Language of document : ECLI:EU:C:2009:615

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

6 de Outubro de 2009 (*)

«Directiva 93/13/CEE – Contratos celebrados com os consumidores – Cláusula de arbitragem abusiva – Nulidade – Decisão arbitral transitada em julgado – Execução – Competência do juiz nacional de execução para suscitar oficiosamente a nulidade da cláusula de arbitragem abusiva – Princípios da equivalência e da efectividade»

No processo C‑40/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de Bilbao (Espanha), por decisão de 29 de Janeiro de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 5 de Fevereiro de 2008, no processo

Asturcom Telecomunicaciones SL

contra

Cristina Rodríguez Nogueira,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: P. Jann, presidente de secção, M. Ilešič, A. Tizzano (relator), E. Levits e J.‑J. Kasel, juízes,

advogada‑geral: V. Trstenjak,

secretário: R. Grass,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Asturcom Telecomunicaciones SL, por P. Calderón Plaza e P. García Ibaceta, abogados,

–        em representação do Governo espanhol, por J. López‑Medel Bascones, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo húngaro, por K. Veres, R. Somssich e M. Z. Fehér, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por W. Wils e R. Vidal Puig, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 14 de Maio de 2009,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO L 95, p. 29).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um pedido de execução de uma decisão arbitral definitiva que opõe a sociedade Asturcom Telecomunicaciones SL (a seguir «Asturcom») a C. Rodríguez Nogueira a propósito do pagamento de importâncias devidas em execução de um contrato de prestação de serviços de telefonia móvel que a referida sociedade concluiu com esta última.

 Quadro jurídico

 Regulamentação comunitária

3        O artigo 6.°, n.° 1, da Directiva 93/13 dispõe:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respectivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.»

4        Nos termos do artigo 7.°, n.° 1, da referida directiva:

«Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.»

5        O anexo da mesma directiva contém uma lista indicativa de cláusulas que podem ser declaradas abusivas. Entre estas, figuram, no n.° 1, alínea q), do referido anexo, as cláusulas que têm como objectivo ou como efeito «suprimir ou entravar a possibilidade de intentar acções judiciais ou seguir outras vias de recurso, por parte do consumidor, nomeadamente obrigando‑o a submeter‑se exclusivamente a uma jurisdição de arbitragem não abrangida por disposições legais, limitando indevidamente os meios de prova à sua disposição ou impondo‑lhe um ónus da prova que, nos termos do direito aplicável, caberia normalmente a outra parte contratante».

 Legislação nacional

6        Em direito espanhol, a protecção dos consumidores contra as cláusulas abusivas foi, em primeiro lugar, assegurada pela Lei Geral 26/1984, de defesa dos consumidores e utentes (Ley General 26/1984 para la Defensa de los Consumidores y Usuarios), de 19 de Julho de 1984 (BOE n.° 176, de 24 de Julho de 1984, a seguir «Lei 26/1984»).

7        A Lei 26/1984 foi alterada pela Lei 7/1998, sobre as condições gerais dos contratos (Ley 7/1998 sobre Condiciones Generales de la Contratación), de 13 de Abril de 1998 (BOE n.° 89, de 14 de Abril de 1998, a seguir «Lei 7/1998»), que transpôs a Directiva 93/13 para o direito interno.

8        A Lei 7/1998 aditou à Lei 26/1984, designadamente, um artigo 10.° bis que prevê, no seu n.° 1, que «[c]onsideram‑se cláusulas abusivas todas as estipulações não negociadas individualmente que, contra os ditames da boa fé, criem em detrimento do consumidor um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações que para as partes decorrem do contrato. Consideram‑se, de qualquer forma, cláusulas abusivas as previstas na disposição adicional à presente lei. [...]».

9        O artigo 8.° da Lei 7/1998 dispõe:

«1.      São nulas de pleno direito as condições gerais que, em prejuízo do aderente, contrariem as disposições da presente lei ou qualquer outra norma imperativa ou proibitiva, excepto se nelas se estabelecer outra sanção.

2.      Em particular, são nulas as condições gerais abusivas nos contratos celebrados com um consumidor, entendendo‑se como tal, de qualquer forma, as definidas no artigo 10.° bis e na primeira disposição adicional à Lei 26/1984 […]»

10      À época dos factos do processo principal, o processo de arbitragem era regulado pela Lei 60/2003 relativa à arbitragem (Ley 60/2003 de Arbitraje), de 23 de Dezembro de 2003 (BOE n.° 309, de 26 de Dezembro de 2003, a seguir «Lei 60/2003»).

11      O artigo 8.°, n.os 4 e 5, da Lei 60/2003 dispunha o seguinte:

«4.      É competente para a execução da decisão arbitral o tribunal de primeira instância da comarca na qual a decisão foi proferida, nos termos do artigo 545.°, n.° 2, do Código de Processo Civil […]

5.      O recurso de anulação da decisão arbitral deve ser interposto junto da Audiencia Provincial da comarca onde a decisão foi proferida.»

12      O artigo 22.°, n.os 1 e 2, da referida lei prevê:

«1.      Os árbitros decidem sobre a sua própria competência, incluindo sobre as excepções relativas à existência ou à validade da convenção arbitral ou quaisquer outras cuja apreciação impeça a análise do mérito da causa. Para este efeito, uma convenção arbitral incluída num contrato será considerada uma convenção distinta das restantes estipulações do mesmo. A decisão dos árbitros que declare a nulidade do contrato não implica, por si só, a nulidade da convenção arbitral.

2.      As excepções a que se refere o número anterior devem ser deduzidas até à apresentação da contestação, não sendo a sua dedução prejudicada pelo facto de uma parte ter designado ou participado na nomeação dos árbitros. A excepção relativa ao facto de os árbitros excederem o âmbito da sua competência deve ser deduzida logo que, durante o processo arbitral, a matéria que excede o referido âmbito for suscitada.

Os árbitros só podem admitir as excepções deduzidas posteriormente se o atraso se justificar.»

13      O artigo 40.° da mesma lei dispunha:

«Uma decisão arbitral definitiva pode ser objecto de recurso de anulação nos termos previstos no presente título.»

14      O artigo 41.°, n.° 1, da Lei 60/2003 estabelecia:

«Uma decisão arbitral só pode ser anulada quando a parte que pede a anulação alegue e prove:

[…]

f)      que a decisão arbitral é contrária à ordem pública.»

15      Nos termos do artigo 41.°, n.° 4, da referida lei, o recurso de anulação devia ser interposto no prazo de dois meses a contar da notificação da decisão arbitral.

16      O artigo 43.° da Lei 60/2003 determinava:

«A decisão arbitral definitiva produz efeitos de caso julgado e só pode ser objecto de recurso de revisão, em conformidade com as disposições do Código de Processo Civil aplicáveis às sentenças definitivas.»

17      O artigo 44.° da mesma decisão previa:

«A execução das decisões arbitrais rege‑se pelo disposto no Código de Processo Civil e no presente título.»

18      O artigo 517.°, n.° 2, ponto 2, da Lei 1/2000 relativa ao processo civil (Ley 1/2000 de Enjuiciamiento Civil), de 7 de Janeiro de 2000 (BOE n.° 7, de 8 de Janeiro de 2000, a seguir «Lei 1/2000»), dispõe que as sentenças ou decisões arbitrais são susceptíveis de execução.

19      0 artigo 559.°, n.° 1, da Lei 1/2000 tem a seguinte redacção:

«O executado pode igualmente opor‑se à execução invocando os seguintes vícios processuais:

1.      Não ter a qualidade própria ou de representação pela qual foi demandado;

2.      Falta de capacidade ou de poderes de representação do exequente ou não ter este feito prova da qualidade própria ou de representação para requerer a execução;

3.      Nulidade insanável do despacho de execução pelo facto de a sentença ou a decisão arbitral não conterem decisões condenatórias, de o documento apresentado não possuir os requisitos legais exigidos para poder constituir título executivo, ou por violação, ao ser processada a execução, do disposto no artigo 520.° da presente lei;

4.      Se o título executivo for uma decisão arbitral não autenticada por notário, o carácter não autêntico desta.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

20      Em 24 de Maio de 2004, foi celebrado um contrato de prestação de serviços de telefonia móvel entre a Asturcom e C. Rodríguez Nogueira. Tal contrato comportava uma cláusula arbitral submetendo os litígios relativos à execução do contrato à arbitragem da Asociación Europea de Arbitraje de Derecho y Equidad (Associação Europeia de Arbitragem e de Resolução Amigável, a seguir «AEADE»). A sede desta instância arbitral, que não era indicada no contrato, é em Bilbau.

21      Não tendo C. Rodríguez Nogueira pago certas facturas e tendo rescindido o contrato antes do termo do período mínimo de duração da assinatura acordado, a Asturcom desencadeou um processo de arbitragem na AEADE.

22      A decisão arbitral, proferida em 14 de Abril de 2005, condenou C. Rodríguez Nogueira no pagamento de 669,60 euros.

23      Não tendo C. Rodríguez Nogueira interposto recurso de anulação da decisão arbitral, esta tornou‑se definitiva.

24      Em 29 de Outubro de 2007, a Asturcom apresentou no Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de Bilbao uma acção executiva da referida decisão arbitral.

25      Na decisão de reenvio, este órgão jurisdicional assinala que a cláusula de arbitragem contida no contrato tem carácter abusivo, tendo em conta, designadamente, que, em primeiro lugar, as despesas que o consumidor efectuou para se deslocar para a sede da instância arbitral eram superiores ao montante da importância objecto do litígio no processo principal. Em seguida, segundo o mesmo órgão jurisdicional, tal sede encontra‑se a uma distância mais importante do domicílio do consumidor e não é indicada no contrato. Finalmente, esta instância elabora ela própria os contratos que são posteriormente utilizados pelas empresas de telecomunicações.

26      Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha igualmente que, por um lado, a Lei 60/2003 não permite aos árbitros suscitar oficiosamente a nulidade das cláusulas de arbitragem abusivas e que, por outro, a Lei 1/2000 não contém nenhuma disposição relativa à apreciação do carácter abusivo das cláusulas de arbitragem pelo juiz competente para conhecer da acção executiva de uma decisão arbitral que se tornou definitiva.

27      Nestas circunstâncias, tendo dúvidas quanto à compatibilidade da legislação nacional com o direito comunitário, designadamente no que respeita às regras processuais internas, o Juzgado de Primera Instancia n.° 4 de Bilbao decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«A protecção conferida aos consumidores pela [Directiva 93/13] pode levar a que o tribunal que conheça de um pedido de execução de uma decisão [arbitral que se tornou definitiva], proferida sem a comparência do consumidor, conheça oficiosamente da nulidade da convenção arbitral e, consequentemente, anule a decisão arbitral por considerar que essa convenção contém uma cláusula arbitral abusiva em prejuízo do consumidor?»

 Quanto à questão prejudicial

28      Através da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a Directiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que um órgão jurisdicional nacional chamado a conhecer de uma acção executiva de uma decisão arbitral transitada em julgado, proferida sem a comparência do consumidor, é obrigado a apreciar oficiosamente o carácter abusivo da cláusula de arbitragem contida num contrato celebrado entre um profissional e esse consumidor, bem como a anular a referida decisão.

29      A fim de responder à questão submetida, importa começar por recordar que o sistema de protecção instituído pela Directiva 93/13 assenta na ideia de que o consumidor se encontra numa situação de inferioridade relativamente ao profissional, no que respeita quer ao poder de negociação quer ao nível de informação, situação esta que o leva a aderir às condições redigidas previamente pelo profissional, sem poder influenciar o conteúdo destas (acórdãos de 27 de Junho de 2000, Océano Grupo Editorial e Salvat Editores, C‑240/98 a C‑244/98, Colect., p. I‑4941, n.° 25, e de 26 de Outubro de 2006, Mostaza Claro, C‑168/05, Colect. p. I‑10421, n.° 25).

30      Tendo em conta tal situação de inferioridade, o artigo 6.°, n.° 1, da referida directiva prevê que as cláusulas abusivas não vinculam os consumidores. Como resulta da jurisprudência, trata‑se uma disposição imperativa que pretende substituir o equilíbrio formal que o contrato estabelece entre os direitos e obrigações das partes por um equilíbrio real susceptível de restabelecer a igualdade entre estas (acórdãos Mostaza Claro, já referido, n.° 36, e de 4 de Junho de 2009, Pannon GSM, C‑243/08, Colect., p. I‑0000, n.° 25).

31      A fim de assegurar a protecção pretendida pela Directiva 93/13, o Tribunal de Justiça sublinhou igualmente em várias ocasiões que a situação de desequilíbrio entre o consumidor e o profissional só pode ser compensada por uma intervenção positiva, exterior às partes do contrato (acórdãos, já referidos, Océano Grupo Editorial e Salvat Editores, n.° 27, e Mostaza Claro, n.° 26).

32      Foi à luz destes princípios que o Tribunal de Justiça julgou que o juiz nacional deva apreciar oficiosamente o carácter abusivo de uma cláusula contratual (acórdão Mostaza Claro, já referido, n.° 38).

33      O presente processo distingue‑se, porém, do que deu origem ao acórdão Mostaza Claro, já referido, na medida em que C. Rodríguez Nogueira se manteve totalmente passiva no decurso dos diferentes processos relativos ao litígio que a opõe à Asturcom e, em especial, não interpôs um recurso de anulação da decisão arbitral proferida pela AEADE a fim de contestar o carácter abusivo da cláusula de arbitragem, pelo que tal decisão adquiriu força de caso julgado.

34      Nestas condições, há que determinar se a necessidade de substituir o equilíbrio formal que o contrato estabelece entre os direitos e as obrigações das partes por um equilíbrio real susceptível de restabelecer a igualdade entre estas últimas obriga o juiz de execução a garantir uma protecção absoluta ao consumidor, mesmo não tendo este último intentado uma acção judicial com vista a obter a defesa dos seus direitos e não obstante as regras processuais nacionais que põem em prática o princípio da autoridade do caso julgado.

35      A este respeito, importa recordar, em primeiro lugar, a importância que reveste, tanto na ordem jurídica comunitária como nas ordens jurídicas nacionais, o princípio da autoridade do caso julgado.

36      Com efeito, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de precisar que, para garantir a estabilidade do direito e das relações jurídicas, e uma boa administração da justiça, é necessário que as decisões judiciais que se tornaram definitivas após o esgotamento das vias de recurso disponíveis ou depois de decorridos os prazos previstos para tais recursos já não possam ser postas em causa (acórdãos de 30 de Setembro de 2003, Köbler, C‑224/01, Colect., p. I‑10239, n.° 38; de 16 de Março de 2006, Kapferer, C‑234/04, Colect., p. I‑2585, n.° 20; e de 3 de Setembro de 2009, Fallimento Olimpiclub, C‑2/08, Colect., p. I‑0000, n.° 22).

37      Consequentemente, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o direito comunitário não obriga um órgão jurisdicional nacional a afastar a aplicação das regras processuais internas que conferem autoridade de caso julgado a uma decisão, mesmo que isso permita obviar a uma violação do direito comunitário pela decisão em causa (v., designadamente, acórdãos de 1 de Junho de 1999, Eco Swiss, C‑126/97, Colect., p. I‑3055, n.os 47 e 48; Kapferer, já referido, n.° 21; e Fallimento Olimpiclub, já referido, n.° 23).

38      Na falta de regulamentação comunitária na matéria, as modalidades de aplicação do princípio da autoridade do caso julgado fazem parte da ordem jurídica interna dos Estados‑Membros ao abrigo do princípio da autonomia processual destes últimos. Todavia, essas modalidades não devem ser menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) nem ser concebidas de forma a tornarem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efectividade) (v., designadamente, acórdãos, já referidos, Kapferer, n.° 22, e Fallimento Olimpiclub, n.° 24).

39      No que respeita, em primeiro lugar, ao princípio da efectividade, importa recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito comunitário deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, visto como um todo, na tramitação deste e nas suas particularidades, perante as várias instâncias nacionais. Nesta perspectiva, há que tomar em consideração, se necessário, os princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, como a protecção dos direitos de defesa, o princípio da segurança jurídica e a correcta tramitação do processo (acórdãos de 14 de Dezembro de 1995, Peterbroeck, C‑312/93, Colect., p. I‑4599, n.° 14, e Fallimento Olimpiclub, já referido, n.° 27).

40      No caso vertente, a decisão arbitral em causa no processo principal tornou‑se definitiva pelo facto de o consumidor em questão não ter interposto um recurso de anulação dessa decisão no prazo previsto para o efeito.

41      A este respeito, importa sublinhar que, segundo jurisprudência assente, a fixação de prazos razoáveis de recurso sob pena de caducidade, por razões de segurança jurídica, é compatível com o direito comunitário (v., neste sentido, acórdãos de 16 de Dezembro de 1976, Rewe‑Zentralfinanz e Rewe‑Zentral, 33/76, Colect., p. 813, n.° 5; de 10 de Julho de 1997, Palmisani, C‑261/95, Colect., p. I‑4025, n.° 28; e de 12 de Fevereiro de 2008, Kempter, C‑2/06, Colect., p. I‑411, n.° 58). Com efeito, tais prazos não são susceptíveis de tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (v., neste sentido, acórdão de 24 de Setembro de 2002, Grundig Italiana, C‑255/00, Colect., p. I‑8003, n.° 34).

42      Assim, há que verificar o carácter razoável de um prazo de dois meses, como o previsto no artigo 41.°, n.° 4, da Lei 60/2003, no termo do qual, na falta de recurso de anulação, uma decisão arbitral se torna definitiva e adquire autoridade de caso julgado.

43      No presente caso, cabe assinalar, por um lado, que, como o Tribunal de Justiça já declarou, um prazo de recurso de 60 dias não é, em si, criticável (v., neste sentido, acórdão Peterbroeck, já referido, n.° 16).

44      Na verdade, tal prazo de caducidade tem carácter razoável, no sentido de que permite avaliar se existem motivos para contestar uma decisão arbitral e, eventualmente, preparar o recurso de anulação contra essa decisão. A este propósito, importa salientar que, no presente processo, não foi alegado que as regras processuais nacionais que regulam a interposição do recurso de anulação de uma decisão arbitral, designadamente o prazo de dois meses fixado para esse efeito, não sejam razoáveis.

45      Por outro lado, cabe precisar que, nos termos do artigo 41.°, n.° 4, da Lei 60/2003, o prazo começa a correr a partir da notificação da decisão arbitral. Assim, no processo principal, o consumidor não pode encontrar‑se numa situação em que o prazo de prescrição começa a correr, ou mesmo em que já se esgotou, sem ter tido conhecimento dos efeitos da cláusula de arbitragem abusiva em seu prejuízo.

46      Nestas condições, semelhante prazo de recurso é conforme ao princípio da efectividade, na medida em que não é, por si próprio, susceptível de tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos que resultam para os consumidores da Directiva 93/13 (v., neste sentido, acórdão de 27 de Fevereiro de 2003, Santex, C‑327/00, Colect., p. I‑1877, n.° 55).

47      De qualquer forma, o respeito pelo princípio da efectividade não pode ter por efeito, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, exigir que um órgão jurisdicional nacional não só compense uma omissão processual de um consumidor que ignora os seus direitos, como no processo que deu origem ao acórdão Mostaza Claro, já referido, mas também deva suprir integralmente a passividade total do consumidor em causa, que, como a demandada no processo principal, não participou no processo arbitral nem interpôs um recurso de anulação da decisão arbitral, a qual, por consequência, se tornou definitiva.

48      À luz das considerações que precedem, há que concluir que as regras processuais estabelecidas pelo sistema espanhol de protecção dos consumidores contra as cláusulas contratuais abusivas não tornam impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos aos consumidores pela Directiva 93/13.

49      Em segundo lugar, relativamente ao princípio da equivalência, trata‑se de um princípio que exige que os requisitos impostos pelo direito nacional para suscitar oficiosamente uma regra de direito comunitário não sejam menos favoráveis do que os que regulam a aplicação oficiosa de regras do mesmo grau hierárquico de direito interno (v., neste sentido, designadamente, acórdão de 14 de Dezembro de 1995, van Schijndel e van Veen, C‑430/93 e C‑431/93, Colect., p. I‑4705, n.os 13, 17 e jurisprudência referida).

50      Para verificar se o referido princípio é respeitado no processo submetido à apreciação do órgão jurisdicional nacional, compete a este último, que é o único a ter um conhecimento directo das modalidades processuais dos recursos em direito interno, examinar tanto o objecto como os elementos essenciais dos recursos pretensamente similares de natureza interna (v., designadamente, acórdão de 16 de Maio de 2000, Preston e o., C‑78/98, Colect., p. I‑3201, n.os 49 e 56). Todavia, tendo em vista a apreciação que o órgão jurisdicional nacional deverá efectuar, o Tribunal de Justiça pode fornecer‑lhe certos elementos relativos à interpretação do direito comunitário (v. acórdão Preston e o., já referido, n.° 50).

51      Ora, como foi recordado no n.° 30 do presente acórdão, importa precisar que o artigo 6.°, n.° 1, da Directiva 93/13 constitui uma disposição de carácter imperativo. Além disso, deve salientar‑se que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, esta directiva constitui, na sua totalidade, em conformidade com o artigo 3.°, n.° 1, alínea t), CE, uma medida indispensável para o cumprimento das missões confiadas à Comunidade Europeia e, em particular, para aumentar o nível e a qualidade de vida em todo o seu território (acórdão Mostaza Claro, já referido, n.° 37).

52      Assim, atendendo à natureza e à importância do interesse público que está na base da protecção que a Directiva 93/13 garante aos consumidores, cabe assinalar que o artigo 6.° desta deve ser considerado uma norma equivalente às regras nacionais que ocupam, na ordem jurídica interna, o grau de normas de ordem pública.

53      Daqui resulta que, na medida em que o juiz nacional chamado a conhecer de uma acção executiva de uma decisão arbitral definitiva deva, segundo as regras processuais internas, apreciar oficiosamente se uma cláusula arbitral é contrária às regras nacionais de ordem pública, incumbe‑lhe igualmente apreciar oficiosamente o carácter abusivo dessa cláusula à luz do artigo 6.° da referida directiva, desde que disponha dos elementos jurídicos e de facto necessários para esse efeito (v., neste sentido, acórdão Pannon GSM, já referido, n.° 32).

54      Semelhante obrigação incumbe igualmente ao juiz nacional quando dispõe, no quadro do sistema jurisdicional interno, de uma simples faculdade de apreciar oficiosamente se uma cláusula é contrária às regras nacionais de ordem pública (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, van Schijndel e van Veen, n.os 13, 14 e 22, e Kempter, n.° 45).

55      Ora, relativamente ao processo principal, segundo o Governo espanhol, o juiz de execução de uma decisão arbitral que se tornou definitiva é competente para apreciar oficiosamente a nulidade de uma cláusula arbitral, contida num contrato celebrado entre um consumidor e um profissional, em razão do facto de essa cláusula ser contrária às regras nacionais de ordem pública. Tal competência foi, de resto, admitida em vários acórdãos recentes da Audiencia Provincial de Madrid e da Audiencia Nacional.

56      Consequentemente, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é isso que acontece no litígio que lhe incumbe dirimir.

57      Finalmente, no que respeita às consequências da conclusão do juiz nacional de que existe uma cláusula de arbitragem abusiva num contrato celebrado por um profissional com um consumidor, importa recordar que o artigo 6.°, n.° 1, da Directiva 93/13 exige que os Estados‑Membros prevejam que as cláusulas abusivas não vinculem os consumidores, «nas condições fixadas pelos respectivos direitos nacionais».

58      Por conseguinte, como sugeriu o Governo húngaro nas suas observações escritas, compete ao órgão jurisdicional de reenvio extrair, em conformidade com o direito nacional, todas as consequências que para a decisão arbitral resultam da inclusão de uma cláusula de arbitragem abusiva, desde que tal cláusula não possa vincular o consumidor.

59      Tendo em conta o que precede, há que responder à questão submetida que a Directiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que um órgão jurisdicional nacional chamado a conhecer de uma acção executiva de uma decisão arbitral transitada em julgado, proferida sem a comparência do consumidor, é obrigado, desde que disponha dos elementos jurídicos e de facto necessários para esse efeito, a apreciar oficiosamente o carácter abusivo da cláusula de arbitragem contida num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, na medida em que, segundo as regras processuais nacionais, possa proceder a tal apreciação no quadro de recursos similares de direito interno. Se for esse o caso, incumbe a esse órgão jurisdicional extrair todas as consequências daí decorrentes segundo o direito nacional, a fim de se certificar de que o consumidor não é vinculado por essa cláusula.

 Quanto às despesas

60      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

A Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, deve ser interpretada no sentido de que um órgão jurisdicional nacional chamado a conhecer de uma acção executiva de uma decisão arbitral transitada em julgado, proferida sem a comparência do consumidor, é obrigado, desde que disponha dos elementos jurídicos e de facto necessários para esse efeito, a apreciar oficiosamente o carácter abusivo da cláusula de arbitragem contida num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, na medida em que, segundo as regras processuais nacionais, possa proceder a tal apreciação no quadro de recursos similares de direito interno. Se for esse o caso, incumbe a esse órgão jurisdicional extrair todas as consequências daí decorrentes segundo o direito nacional, a fim de se certificar de que o consumidor não é vinculado por essa cláusula.

Assinaturas


* Língua do processo: espanhol.