Language of document : ECLI:EU:C:2019:363

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 2 de maio de 2019 (1)

Processo C683/17

Cofemel – Sociedade de Vestuário, SA

contra

GStar Raw CV

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal de Justiça (Portugal)]

«Reenvio prejudicial — Direito de autor e direitos conexos — Proteção jurídica dos desenhos e modelos — Direito de reprodução — Vestuário»






 Introdução

1.        A proteção jurídica das obras de artes aplicadas é quase tão antiga como a da propriedade intelectual em geral (2). No entanto, continua a ter dificuldade em encontrar o seu lugar no sistema do direito da propriedade intelectual. Esta abrange três domínios principais: a proteção das invenções pelo direito das patentes, a proteção das criações intelectuais pelo direito de autor e a proteção do prestígio pelo direito das marcas. Devido ao seu caráter simultaneamente decorativo e utilitário e ao seu fim tanto artístico como industrial, os objetos de artes aplicadas prestam‑se a estas três formas de proteção, sem no entanto responderem perfeitamente aos objetivos nem aos mecanismos de nenhuma delas (3). Embora tenham sido desenvolvidos regimes de proteção sui generis, nomeadamente na Europa, esta proteção nunca adquiriu, porém, um estatuto exclusivo: pode sempre ser cumulada com outros tipos de proteção (4).

2.        O presente processo diz respeito, mais especificamente, à cumulação da proteção dos desenhos e modelos no regime sui generis com a sua proteção, enquanto obras, pelo direito de autor. A relação entre estes dois regimes de proteção é, desde sempre, fonte de hesitações, tanto do legislador como da jurisprudência, e de controvérsia.

3.        Por um lado, o caráter utilitário e funcional dos objetos de artes aplicadas e a sua vocação para serem produzidos industrialmente em massa permitem duvidar da sua aptidão para serem protegidos pelo direito de autor e da conformidade dessa proteção com os seus fundamentos axiológicos (a relação pessoal entre o autor e a sua obra) e com os seus objetivos (a remuneração do esforço intelectual criativo). A proteção dos desenhos e modelos pelo direito de autor comporta, nomeadamente, dois tipos de riscos: a inflação da proteção pelo direito de autor e o entrave à livre concorrência económica (5). Por essa razão, numerosas ordens jurídicas desenvolveram dispositivos destinados a reservar a proteção pelo direito de autor aos desenhos e modelos que apresentem elevado valor artístico. Pode citar‑se a doutrina da «scindibilità», em direito italiano, a «Stufentheorie», em direito alemão, ou a limitação da duração da proteção para os objetos produzidos à escala industrial, no direito do Reino Unido (6).

4.        Por outro lado, alguns objetos de artes aplicadas têm indiscutivelmente um elevado grau de originalidade. Basta pensar nos estilos desenvolvidos neste domínio, como a Art déco ou a Bauhaus. O mesmo se diga do setor de atividade em causa no presente processo, ou seja, o vestuário: as peças da alta costura são tanto — se não mais — obras de arte como vestuário. Por conseguinte, não se justifica excluir a priori os objetos de artes aplicadas da proteção pelo direito de autor, pelo simples facto de terem caráter (também) funcional. Por outro lado, outras categorias de obras, cuja proteção pelo direito de autor não suscita dúvidas, podem também ter funções utilitárias, sem deixarem de ser criações intelectuais originais. É o caso de certas obras literárias, fotográficas e até musicais.

5.        Assim, a opção feita pelo legislador da União, no espírito da teoria da unidade da arte desenvolvida na doutrina jurídica francesa (7), da cumulação da proteção dos objetos de artes aplicadas por um regime sui generis e pelo direito de autor não parece desprovida de pertinência (8). É, porém, necessário assegurar a autonomia e a realização dos objetivos respetivos de cada regime de proteção.

6.        É neste contexto que o Tribunal de Justiça será chamado a decidir as questões jurídicas submetidas pelo Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) no âmbito do presente reenvio prejudicial.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

7.        Nos termos do artigo 2.o, n.os 1 e 7, da Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, assinada em Berna, em 9 de setembro de 1886 (Ato de Paris de 24 de julho de 1971), conforme alterada em 28 de setembro de 1979 (a seguir «Convenção de Berna») (9):

«1)      Os termos “obras literárias e artísticas” compreendem todas as produções do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o seu modo ou forma de expressão, tais como: […] as obras de artes aplicadas […]

[…]

7)      Fica reservada às legislações dos países da União a regulamentação do campo de aplicação das leis relativas às obras de artes aplicadas e aos desenhos e modelos industriais, assim como as condições de proteção dessas obras, desenhos e modelos, tendo em conta as disposições do artigo 7, 4) da presente Convenção [(10)]. Para as obras protegidas unicamente como desenhos e modelos no país de origem, só pode ser reclamada num outro país da União a proteção especial concedida nesse país aos desenhos e modelos; todavia, se uma proteção especial não for concedida nesse país, essas obras serão protegidas como obras artísticas.

[…]»

8.        Nos termos do artigo 25.o do Acordo TRIPS:

«1.      Os Membros assegurarão uma proteção dos desenhos ou modelos industriais criados de forma independente que sejam novos ou originais. […]

2.      Cada Membro assegurará que os requisitos para obtenção da proteção de desenhos ou modelos de têxteis, nomeadamente no que se refere a eventuais custos, exames ou publicações, não comprometam indevidamente a possibilidade de requerer e obter essa proteção. Os Membros serão livres de dar cumprimento a esta obrigação através da legislação em matéria de desenhos ou modelos industriais ou através da legislação em matéria de direitos de autor.»

 Direito da União

9.        O artigo 17.o da Diretiva 98/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, relativa à proteção legal de desenhos e modelos (11), dispõe:

«Qualquer desenho ou modelo protegido por um registo num Estado‑Membro de acordo com a presente diretiva beneficia igualmente da proteção conferida pelo direito de autor desse Estado a partir da data em que o desenho ou modelo foi criado ou definido sob qualquer forma. Cada Estado‑Membro determinará o âmbito dessa proteção e as condições em que é conferida, incluindo o grau de originalidade exigido.»

10.      Nos termos do artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (12):

«Os Estados‑Membros devem prever que o direito exclusivo de autorização ou proibição de reproduções, diretas ou indiretas, temporárias ou permanentes, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, cabe:

a)      Aos autores, para as suas obras;

[…]»

11.      Nos termos do artigo 9.o desta diretiva:

«O disposto na presente diretiva não prejudica as disposições relativas nomeadamente às patentes, marcas registadas, modelos de utilidade, topografias de produtos semicondutores, carateres tipográficos, acesso condicionado, acesso ao cabo de serviços de radiodifusão, proteção dos bens pertencentes ao património nacional, requisitos de depósito legal, legislação sobre acordos, decisões ou práticas concertadas entre empresas e concorrência desleal, segredo comercial, segurança, confidencialidade, proteção dos dados pessoais e da vida privada, acesso aos documentos públicos e o direito contratual.»

12.      O artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 6/2002 do Conselho, de 12 de dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários (13), dispõe:

«Qualquer desenho ou modelo protegido como desenho ou modelo comunitário beneficia igualmente da proteção conferida pela legislação dos Estados‑Membros em matéria de direitos de autor, a partir da data em que esse desenho ou modelo tenha sido criado ou definido sob qualquer forma. Cada Estado‑Membro determinará o âmbito dessa proteção e as condições em que é conferida, incluindo o grau de originalidade exigido.»

 Direito português

13.      A Diretiva 2001/29 foi transposta para o direito português pelo Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, cujo artigo 2.o, n.o 1, enumera as categorias de objetos protegidos pelo direito de autor, nos seguintes termos:

«1.      As criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, quaisquer que sejam o género, a forma de expressão, o mérito, o modo de comunicação e o objetivo, compreendem nomeadamente:

[…]

i)      Obras de artes aplicadas, desenhos ou modelos industriais e obras de design que constituam criação artística, independentemente da proteção relativa à propriedade industrial;

[…]»

 Litígio no processo principal, tramitação e questões prejudiciais

14.      A G‑Star Raw CV (a seguir «G‑Star»), sociedade de direito neerlandês, cria, produz e comercializa vestuário. A G‑Star explora, na qualidade de titular ou ao abrigo de contratos de licença exclusiva, as marcas GStar, GStar Raw, GStar Denim Raw, GSRaw, GRaw e Raw. O vestuário comercializado sob estas marcas inclui, nomeadamente, os modelos Arc de calças de ganga e os modelos Rowdy de sweatshirts e teeshirts.

15.      A Cofemel – Sociedade de Vestuário, SA (a seguir «Cofemel»), sociedade de direito português, cria, produz e comercializa, sob a marca Tiffosi, modelos de calças de ganga, de sweatshirts e de teeshirts.

16.      Em 30 de agosto de 2013, a G‑Star instaurou perante um tribunal português de primeira instância uma ação declarativa de condenação, pedindo, no essencial, que a Cofemel fosse condenada a cessar os atos de violação dos seus direitos de autor e os atos de concorrência desleal, bem como a indemnizá‑la do prejuízo sofrido por esse motivo e, no caso de nova infração, a pagar‑lhe uma sanção pecuniária compulsória diária até à cessação desta. No âmbito desta ação, a G‑Star alegou, nomeadamente, que alguns modelos de calças de ganga, de sweatshirts e de teeshirts comercializados pela Cofemel apresentavam um design idêntico ou semelhante aos dos seus modelos Arc e Rowdy. A G‑Star alegou também que estes últimos constituíam criações intelectuais originais e, a este título, obras de design protegidas por direitos de autor.

17.      A sentença proferida pelo órgão jurisdicional nacional julgou parcialmente procedente a ação intentada pela G‑Star. A Cofemel interpôs recurso desta sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa (Portugal), que a confirmou.

18.      Chamado a conhecer de um recurso interposto pela Cofemel, o Supremo Tribunal de Justiça considera provado, em primeiro lugar, que os modelos de vestuário da G‑Star copiados pela Cofemel foram criados por designers ao serviço da G‑Star ou por designers que trabalham por conta desta e lhe cederam contratualmente os seus direitos de autor. Em segundo lugar, esses modelos de vestuário são o resultado de conceitos e processos de fabrico reconhecidos como inovadores no mundo da moda. Em terceiro lugar, os referidos modelos caracterizam‑se por um conjunto de elementos específicos (forma em três dimensões, local da colocação de certos componentes, esquema de montagem e de cores, etc.), em parte retomados pelos modelos de vestuário da Cofemel. Tendo em conta esta situação, o Supremo Tribunal de Justiça interroga‑se sobre o sentido a dar ao artigo 2.o, n.o 1, alínea i), do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, embora inclua claramente as obras de artes aplicadas, os desenhos ou modelos industriais e as obras de design que constituam uma criação artística no elenco das obras protegidas pelo direito de autor, esta disposição não especifica o grau de originalidade necessário para que essas obras beneficiem dessa proteção.

19.      Nestas circunstâncias, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      […] A interpretação dada pelo TJUE ao art. 2.o, al. a), da Diretiva 2001/29/CE [opõe‑se] a uma legislação nacional — no caso, a norma constante do art. 2.o, n.o 1, al. i), do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos (CDADC) — que confira proteção jusautoral a obras de artes aplicadas, desenho ou modelo industriais ou obra de design que, extravasando o fim utilitário que servem, gerem um efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético, sendo a sua originalidade o critério central da atribuição da proteção, no âmbito dos direitos de autor[?]

2)      […] A interpretação dada pelo TJUE ao art. 2.o, al. a), da Diretiva 2001/29/CE [opõe‑se] a uma legislação nacional — no caso, a norma constante do art. 2.o, n.o 1, al. i), do CDADC — que confira proteção jusautoral a obras de artes aplicadas, desenho ou modelo industriais ou obra de design se, à luz de uma apreciação particularmente exigente quanto ao seu caráter artístico, e tendo em conta as conceções dominantes nos círculos culturais e institucionais, merecerem ser qualificadas como “criação artística” ou “obra de arte”[?]»

20.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de dezembro de 2017. Apresentaram observações escritas os Governos português, checo, italiano e do Reino Unido, bem como a Comissão Europeia. As partes no processo principal, os Governos português, checo e do Reino Unido, bem como a Comissão, estiveram representados na audiência que teve lugar em 12 de dezembro de 2018.

 Análise

21.      Com as suas duas questões prejudiciais, que, em meu entender, devem ser analisadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2001/29, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, se opõe a que os desenhos e modelos industriais (14) só sejam protegidos pelo direito de autor se apresentarem um caráter artístico acrescido, que vá além do que é normalmente exigido a outras categorias de obras.

22.      A resposta a esta questão exige uma análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao conceito de «obra» em direito de autor da União, bem como a análise dos argumentos invocados, nomeadamente, pelos Governos italiano, checo e do Reino Unido, baseados num pretenso estatuto especial dos desenhos e modelos no regime instituído pelo direito da União.

 Jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao conceito de «obra»

23.      O artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2001/29, citado pelo órgão jurisdicional de reenvio, não define o que deve ser considerado obra. Esta disposição limita‑se a conceder aos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir a reprodução das suas obras. Por outro lado, nenhuma disposição desta diretiva define o conceito de «obra». É provável que, como sustenta o Governo checo nas suas observações, as enormes disparidades que existem entre os regimes do direito de autor dos Estados‑Membros não tenham permitido estabelecer uma definição unanimemente aceitável. A este respeito, há que salientar que, mesmo a nível nacional, é extremamente difícil, se não impossível, criar uma definição abstrata, capaz de cobrir a multiplicidade dos objetos muito diferentes passíveis de proteção pelo direito de autor e de excluir, ao mesmo tempo, os que não o são. Quando muito, é possível elaborar uma lista, necessariamente não exaustiva, dos domínios de criação em que o direito de autor é suscetível de se aplicar, como foi feito no artigo 2.o, n.o 1, da Convenção de Berna.

24.      Contudo, tal lacuna não podia subsistir, porque o conceito de «obra» é a pedra angular de qualquer regime de direito de autor, na medida em que define o seu âmbito de aplicação material. Uma interpretação uniforme desse conceito é, por conseguinte, indispensável na harmonização do direito de autor instituído pelo direito da União. Com efeito, seria inútil harmonizar os diferentes direitos de que gozam os autores se os Estados‑Membros fossem livres de incluir nessa proteção ou de dela excluir, por via legislativa ou por via jurisprudencial, um determinado objeto. O Tribunal de Justiça devia necessariamente ser chamado, mais cedo ou mais tarde, a colmatar esta lacuna na sequência de questões prejudiciais colocadas por órgãos jurisdicionais com dúvidas quanto à aplicabilidade das diretivas sobre o direito de autor em certos casos específicos.

25.      Uma vez que a própria Diretiva 2001/29 não define o conceito de «obra» e não remete para o direito dos Estados‑Membros para lhe dar uma definição, estamos perante um conceito autónomo do direito da União (15). Assim, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, para que um objeto seja qualificado de «obra», na aceção do direito de autor, é necessário que seja «original, na aceção de que é uma criação intelectual do próprio autor» (16). Esta condição de aplicabilidade do direito de autor, tal como harmonizado em direito da União, nomeadamente na Diretiva 2001/29, foi deduzida pelo Tribunal de Justiça da economia desta diretiva e da Convenção de Berna. Esta condição não é, no entanto, uma invenção do direito da União: figura efetivamente na maior parte dos direitos de autor nacionais, pelo menos nos sistemas do direito continental (17). Faz assim parte, de algum modo, das tradições jurídicas dos Estados‑Membros.

26.      A categoria de «criação intelectual do próprio autor» é o elemento principal da definição da obra. Esta definição foi em seguida desenvolvida na jurisprudência do Tribunal de Justiça, que considerou que uma criação intelectual é do próprio autor quando reflete a sua personalidade. É o caso quando o autor pôde exprimir as suas capacidades criativas na realização da obra, fazendo escolhas livres e criativas (18). Em contrapartida, quando a expressão das componentes do objeto em causa é ditada pela sua função técnica, o critério da originalidade não está preenchido porque as diferentes maneiras de executar uma ideia são tão limitadas que a ideia e a expressão se confundem. Tal situação não permite ao autor exprimir o seu espírito criativo de modo original e chegar a um resultado que constitua uma criação intelectual própria (19). Apenas a criação intelectual do próprio autor, na aceção acima definida, contribui para a qualidade de obra passível de proteção pelo direito de autor. Elementos como o trabalho intelectual e a perícia do autor não podem, enquanto tais, justificar a proteção da obra em causa pelo direito de autor, se esse trabalho e essa perícia não exprimirem nenhuma originalidade (20). Por último, é necessário que o objeto da proteção conferida pelo direito de autor seja identificável com suficiente precisão e objetividade (21) (22).

 Aplicação desta jurisprudência aos desenhos e modelos

27.      Contrariamente ao que sustenta o Governo checo nas suas observações escritas, a definição de obra enquanto criação intelectual do próprio autor não se limita aos domínios sujeitos às regulamentações específicas do direito da União nas quais este critério está expressamente previsto, a saber, as bases de dados, as fotografias e os programas de computador (23).

28.      Com efeito, a primeira aplicação que o Tribunal de Justiça fez deste critério teve por objeto uma obra literária, protegida com fundamento na Diretiva 2001/29. Como já indiquei, o Tribunal de Justiça extrapolou este critério da economia geral do direito de autor tanto internacional como da União. Se o Tribunal aplicou em seguida o referido critério aos objetos abrangidos pelas regulamentações específicas do direito da União, como as fotografias, essa aplicação não se baseou nessa regulamentação mas na sua jurisprudência anterior (24).

29.      Daqui resulta claramente, em meu entender, que o critério da criação intelectual do próprio autor, tal como desenvolvido na jurisprudência do Tribunal de Justiça, é aplicável a todas as categorias de obras. Isso decorre igualmente da uniformidade exigida na aplicação da Diretiva 2001/29 em todo o território da União. Com efeito, qualquer disparidade entre os direitos internos dos Estados‑Membros no âmbito de aplicação da proteção pelo direito de autor comprometeria esta aplicação uniforme (25). Não vejo, portanto, razão para não aplicar esse critério, pelo menos em princípio, aos desenhos e modelos industriais, no que respeita à sua proteção pelo direito de autor.

30.      Também não me convence o argumento desenvolvido pelo Governo checo na audiência, segundo o qual o critério da criação intelectual do próprio autor é inerente a qualquer obra e não se opõe a exigências mais estritas que o direito nacional possa impor a certas categorias de objetos, como as obras de artes aplicadas.

31.      É verdade que o critério da criação intelectual do próprio autor permite distinguir os objetos passíveis de proteção pelo direito de autor dos que não beneficiam desta proteção (26). No entanto, este critério, que o Tribunal de Justiça qualifica também de critério da originalidade (27), constitui igualmente a exigência máxima que os Estados‑Membros têm o direito de impor para se beneficiar da proteção pelo direito de autor, seja qual for o nível de criação artística do objeto em questão. Isso foi explicado com clareza pelo Tribunal de Justiça no seu Acórdão Painer, ao declarar que, no que diz respeito a um retrato fotográfico, a proteção conferida pelo artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2001/29 não pode ser inferior à proteção de que beneficiam outras obras, incluindo as outras obras fotográficas (28). Com efeito, nenhum elemento na Diretiva 2001/29 ou noutra diretiva aplicável na matéria permite considerar que o alcance dessa proteção é tributário de eventuais diferenças nas possibilidades de criação artística, no momento da realização das diversas categorias de obras (29). Ora, se o alcance da proteção não pode ser limitado com este fundamento, não podemos a fortiori considerar que esta proteção esteja completamente excluída a este título.

32.      De igual modo, não vejo na Diretiva 2001/29 nenhum elemento que permita justificar uma distinção no nível de proteção das obras de artes aplicadas em função do seu valor artístico. No entanto, os Governos italiano, checo e do Reino Unido, que apresentaram observações no presente processo, consideram que tal elemento figura noutras disposições do direito da União, a saber, o artigo 17.o da Diretiva 98/71 e o artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002. Por conseguinte, vou agora analisar este aspeto.

 Contributo do artigo 17.o da Diretiva 98/71 e do artigo 96.o,n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002

33.      Recorde‑se que o artigo 17.o da Diretiva 98/71 consagra o princípio da cumulação da proteção dos desenhos e modelos tanto pelo direito dos desenhos e modelos como pelo direito de autor. O segundo período deste artigo dispõe que o âmbito e as condições de obtenção da proteção pelo direito de autor, incluindo o grau de originalidade exigido, são determinados por cada Estado‑Membro. Uma formulação semelhante encontra‑se no artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002.

34.      Segundo os Governos italiano, checo e do Reino Unido, estas disposições conferem aos Estados‑Membros a máxima liberdade nas condições de concessão aos desenhos e modelos da proteção pelo direito de autor, isso não obstante a adoção da Diretiva 2001/29. Estes Governos sustentam, assim, que o artigo 17.o da Diretiva 98/71 constitui uma lex specialis relativamente às disposições da Diretiva 2001/29 tal como interpretadas pelo Tribunal de Justiça. Uma posição semelhante é preconizada pela doutrina (30).

35.      Não partilho desta posição e analisarei a seguir os diferentes argumentos apresentados para a sustentar, que considero pouco convincentes.

36.      Antes de mais, como resulta inequivocamente do seu primeiro período, o artigo 17.o da Diretiva 98/71 versa unicamente sobre os desenhos e modelos registados. A eventual liberdade concedida aos Estados‑Membros apenas diz respeito, portanto, a esta categoria de desenhos e modelos. Ora, a maioria dos desenhos e modelos na União Europeia não está registada (31). Como resulta das indicações fornecidas no pedido de decisão prejudicial no presente processo, é designadamente o caso dos desenhos e modelos em causa no processo principal. Por conseguinte, parece‑me mais pertinente raciocinar com base no artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002. Com efeito, este regulamento concede uma proteção, limitada a três anos, a qualquer desenho ou modelo na União, desde que seja novo e original, sem necessidade de registo.

37.      É verdade que, tendo em conta a sua redação, o artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002 parece conferir aos Estados‑Membros uma ampla margem de apreciação quanto às condições de concessão aos desenhos e modelos da proteção pelo direito de autor. No entanto, esta margem de apreciação é‑lhes concedida sob reserva da harmonização dos direitos de autor a nível da União, o que é confirmado pelo considerando 32 desse regulamento, segundo o qual «[n]a falta de uma harmonização total da legislação em matéria de direito de autor, é importante consagrar o princípio da cumulação da proteção específica dos desenhos ou modelos comunitários e da proteção pelo direito de autor, deixando simultaneamente aos Estados‑Membros toda a liberdade para determinar o alcance da proteção pelo direito de autor e as condições em que essa proteção é conferida» (32). Resulta ainda mais claramente da exposição de motivos do Regulamento n.o 6/2002 (33) que a solução adotada no atual artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002 pretendia ser provisória, enquanto se aguardava a harmonização do direito de autor.

38.      É, por conseguinte, claro, na minha opinião, que, uma vez realizada essa harmonização através, nomeadamente, da Diretiva 2001/29, conforme interpretada pelo Tribunal de Justiça, a margem de apreciação confiada aos Estados‑Membros pelo artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002 se encontra limitada pelas obrigações que lhes incumbem por força da referida diretiva. Com efeito, seria surpreendente considerar que qualquer reenvio num diploma do direito da União para o direito dos Estados‑Membros equivale a dispensar estes mesmos Estados das suas obrigações decorrentes, no domínio abrangido pelo referido reenvio, de outros atos da União, anteriores ou posteriores. Esse reenvio visa necessariamente o direito interno tal como enquadrado pelas obrigações negativas e positivas decorrentes do direito da União.

39.      A este respeito, não me convence o argumento do Governo do Reino Unido baseado no facto de o Regulamento n.o 6/2002 ser posterior à Diretiva 2001/29. É certo que este regulamento só foi adotado em 12 de dezembro de 2001, ao passo que a Diretiva 2001/29 foi adotada em 22 de maio do mesmo ano. No entanto, em primeiro lugar, o texto que corresponde ao atual artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002 já constava, ainda que formulado de maneira diferente, da primeira proposta da Comissão relativa a este regulamento, que datava de 3 de dezembro de 1993, muito antes da primeira proposta da Diretiva 2001/29 (34). Posteriormente, os trabalhos legislativos relativos a estes dois diplomas decorreram em simultâneo. Em segundo lugar, o prazo de transposição da Diretiva 2001/29 apenas terminou em 22 de dezembro de 2002, ao passo que o Regulamento n.o 6/2002 entrou em vigor no início do mês de março desse mesmo ano. No momento da entrada em vigor deste regulamento, a harmonização do direito de autor pela Diretiva 2001/29 não estava portanto concluída, porque os Estados‑Membros ainda não tinham a obrigação de ter transposto as disposições desta diretiva. Assim, o facto de, formalmente, o Regulamento n.o 6/2002 ser posterior à Diretiva 2001/29 em nada altera a análise da relação entre estes dois atos: a margem de apreciação conferida aos Estados‑Membros pelo artigo 96.o, n.o 2, deste regulamento está limitada pelas obrigações decorrentes da Diretiva 2001/29.

40.      Também não me convence o argumento baseado nos trabalhos preparatórios da Diretiva 98/71 ou do Regulamento n.o 6/2002 (35). Embora a Comissão tenha tido objetivos mais ambiciosos e embora tivesse sido finalmente decidido que, à época, não era oportuno harmonizar o direito de autor dos Estados‑Membros através de atos legislativos em matéria de desenhos e modelos, isso não significa que a proteção dos referidos desenhos e modelos pelo direito de autor deva para sempre constituir uma exceção, uma vez realizada esta harmonização. Se é certo que os trabalhos preparatórios dos atos do direito da União podem dar indicações preciosas sobre as razões que presidiram às opções do legislador da União, os ensinamentos tirados desses trabalhos preparatórios não podem, no entanto, prevalecer sobre a redação e a economia das disposições em causa. Designadamente, é pouco recomendável retirar dos trabalhos preparatórios de um diploma (a Diretiva 98/71 ou o Regulamento n.o 6/2002) conclusões sobre a interpretação ou o âmbito de aplicação de outro diploma (a Diretiva 2001/29).

41.      Em seguida, o Governo do Reino Unido invoca, em apoio da sua posição, o artigo 9.o da Diretiva 2001/29, nos termos do qual esta diretiva não afeta as disposições do direito da União relativas, nomeadamente, aos desenhos e modelos, incluindo o artigo 17.o da Diretiva 98/71 (36). Pela minha parte, considero que esta disposição da Diretiva 2001/29 também não pode sustentar a tese deste Governo. Com efeito, é evidente que a Diretiva 2001/29, que diz respeito ao direito de autor, não deve afetar as disposições aplicáveis noutros domínios, como o direito dos desenhos e modelos. No entanto, o artigo 17.o da Diretiva 98/71, tal como o artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002, não é uma disposição do domínio do direito dos desenhos e modelos, mas do domínio do direito de autor. Uma interpretação diferente significaria que a proteção das obras de artes aplicadas pelo direito de autor é função do direito dos desenhos e modelos, quando a verdade é que estes dois domínios são autónomos. O artigo 9.o da Diretiva 2001/29 não pode, portanto, ser interpretado no sentido de que justifica a exclusão dos desenhos e modelos da harmonização realizada pela Diretiva 2001/29.

42.      Em todo o caso, se o legislador da União tivesse pretendido estabelecer uma exceção tão importante do direito de autor harmonizado, tê‑lo‑ia feito não implicitamente em diferentes atos do direito da União, mas de forma clara e explícita, por exemplo, no artigo 1.o da Diretiva 2001/29, que define o seu âmbito de aplicação.

43.      O Governo checo acrescenta que, como o seu título indica, a Diretiva 2001/29 harmoniza apenas «certos aspetos do direito de autor», e apenas «na sociedade da informação». Contudo, não vejo em que é que esta afirmação pode sustentar as teses que desenvolve sobre a proteção das obras de artes aplicadas.

44.      É verdade que a Diretiva 2001/29 deixa de fora do seu âmbito de aplicação importantes aspetos do direito de autor: os direitos morais, a gestão coletiva dos direitos, a defesa desses direitos (com exceção da disposição muito genérica do artigo 8.o), etc. No entanto, a G‑Star invocou no litígio no processo principal o direito exclusivo do autor de autorizar ou proibir a reprodução da sua obra. Ora, este direito é harmonizado de forma exaustiva pela Diretiva 2001/29. Também é verdade que, nomeadamente na literatura anglófona, a Diretiva 2001/29 é muitas vezes qualificada de «Diretiva sobre a Sociedade da Informação» (Information Society Directive). Parece‑me que alguns autores retiram desta denominação informal conclusões tão excessivas como erradas. Com efeito, embora o artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29 ponha «[…] especial ênfase na sociedade da informação», não é menos verdade que as disposições desta diretiva se destinam a ser indiferentemente aplicadas em todos os contextos, quer sejam ou não da sociedade da informação. Assim, o facto de os desenhos e modelos serem habitualmente incorporados em objetos tangíveis pertencentes ao mundo «real» (37) não justifica de modo algum a sua exclusão da proteção realizada por esta diretiva.

45.      A tese destes Governos também não encontra fundamento no direito internacional. É verdade que o artigo 2.o, n.o 7, da Convenção de Berna deixa à discrição dos Estados signatários a questão da aplicação do direito de autor aos desenhos e modelos. Esta convenção aplica‑se, no entanto, sem prejuízo das obrigações dos Estados‑Membros decorrentes do direito da União. Assim, se este direito restringe a liberdade de escolha dos Estados‑Membros, uma disposição facultativa da Convenção de Berna não se pode opor esta restrição. Qualquer conclusão diferente seria contrária ao artigo 351.o, segundo parágrafo, TFUE. As mesmas considerações são válidas para o artigo 25.o do Acordo TRIPS.

46.      Por outro lado, se o artigo 2.o, n.o 7, da Convenção de Berna fosse considerado uma disposição derrogatória das obrigações dos Estados‑Membros decorrentes da Diretiva 2001/29, então teria de se aplicar também o segundo período deste número, que consagra o princípio da reciprocidade, entre os Estados signatários, na proteção dos desenhos e modelos. Segundo esta disposição, para as obras protegidas unicamente como desenhos e modelos no país de origem, só essa proteção especial pode ser reclamada noutro país, a menos que essa proteção especial não seja aí concedida, caso em que serão protegidas pelo direito de autor. Ora, a eliminação deste princípio da reciprocidade, fonte de discriminação contrária às regras do mercado interno, nas relações entre Estados‑Membros era precisamente um dos objetivos do artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002 (38).

47.      Por último, o argumento de que o artigo 17.o da Diretiva 98/71 permite aos Estados‑Membros derrogar as disposições do direito de autor da União é infirmado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à interpretação desta disposição. No Acórdão Flos (39), sobre o prazo de proteção dos desenhos e modelos pelo direito de autor, o Tribunal de Justiça considerou que a possibilidade de os Estados‑Membros determinarem o alcance e as condições de obtenção desta proteção não podia ter a ver com o prazo dessa proteção, dado que esse prazo já foi objeto de harmonização ao nível da União através da Diretiva 93/98/CEE (40). Pode seguir‑se o mesmo raciocínio em relação à Diretiva 2001/29: uma vez que esta diretiva, conforme interpretada pelo Tribunal de Justiça, harmonizou os direitos patrimoniais dos autores, incluindo o conceito de «obra», fundamental para a aplicação uniforme dos referidos direitos, estas questões escapam à faculdade concedida aos Estados‑Membros pelo artigo 17.o da Diretiva 98/71 e, por analogia, pelo artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002. Concordo aqui com a posição da Comissão expressa nas suas observações.

48.      Assim, o artigo 17.o da Diretiva 98/71 e o artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002 devem ser interpretados como uma afirmação do princípio da cumulação da proteção: uma obra de artes aplicadas não deve ser excluída da proteção pelo direito de autor simplesmente porque pode beneficiar da proteção sui generis como desenho ou modelo. Em contrapartida, estas disposições não podem ser interpretadas como uma derrogação das disposições da Diretiva 2001/29 ou de qualquer outro diploma da União que regule os direitos de autor.

 Conclusão intermédia

49.      Nesta fase, considero, portanto, que há que responder às questões prejudiciais que o artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2001/29, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, se opõe a que os desenhos e modelos industriais só sejam protegidos pelo direito de autor se apresentarem um caráter artístico acrescido, que vá além do que é normalmente exigido a outras categorias de obras.

 Observações finais sobre a proteção dos desenhos e modelos pelo direito de autor

50.      Dito isto, não quero dar a impressão de que ignoro ou desvalorizo as preocupações manifestadas tanto pelos Governos que apresentaram observações no presente processo como por alguns representantes da doutrina (41) acerca das consequências nefastas de uma proteção excessiva dos desenhos e modelos pelo direito de autor.

51.      Com efeito, uma proteção sui generis dos desenhos e modelos, como a prevista pelo Regulamento n.o 6/2002, adequa‑se à especificidade desses objetos de proteção, isto é, objetos utilitários correntes e produzidos em massa que, no entanto, também podem ter algumas características estéticas originais dignas de proteção. Esta proteção tem uma duração suficiente para permitir rentabilizar o investimento que é constituído pela elaboração do desenho ou modelo (42), sem, contudo, entravar excessivamente a concorrência. Do mesmo modo, as condições de obtenção dessa proteção, com base na originalidade e na novidade, bem como o critério que serve para determinar que existe um ato de contrafação, que é o da impressão visual global (43), são adaptados à realidade dos mercados destes objetos.

52.      No entanto, embora seja demasiado fácil obter, para o mesmo objeto, a proteção pelo direito de autor, que está dispensada de qualquer formalidade, que se aplica desde a criação do objeto e sem condição de novidade e cuja duração é praticamente infinita no que se refere à utilidade de um desenho ou modelo para o seu proprietário (44), existe o risco de o regime do direito de autor excluir o regime sui generis destinado aos desenhos e modelos. Ora, essa exclusão teria vários efeitos negativos: a desvalorização do direito de autor, solicitado para proteger criações, de facto, banais, o entrave à concorrência em virtude da duração excessiva da proteção ou ainda a insegurança jurídica, na medida em que os concorrentes não estão em condições de prever se um desenho ou modelo cuja proteção sui generis expirou não está igualmente protegido pelo direito de autor.

53.      Estas preocupações explicam as diferentes limitações da proteção pelo direito de autor de obras de artes aplicadas, nos regimes nacionais de propriedade intelectual evocados na introdução das presentes conclusões. Em contrapartida, como expus na resposta às questões prejudiciais, o regime do direito de autor da União não contém nenhum fundamento legal que permita essa limitação, uma vez que as obras de artes aplicadas são protegidas enquanto criações intelectuais do próprio autor, do mesmo modo que as outras categorias de obras.

54.      Parece‑me, todavia, que uma aplicação rigorosa do direito de autor pelos órgãos jurisdicionais nacionais seria suscetível de suprir em grande medida os inconvenientes resultantes da cumulação deste tipo de proteção com a proteção sui generis dos desenhos e modelos. Com efeito, não se trata de prolongar, através do direito de autor, a proteção conferida aos desenhos e modelos até setenta anos após a morte do autor, mas de cumprir, no que se refere às obras de artes aplicadas, os objetivos específicos do direito de autor com o auxílio dos dispositivos que lhe são próprios.

55.      Ora, o direito de autor e o direito dos desenhos e modelos prosseguem objetivos diferentes. Este último protege o investimento na criação de desenhos e modelos contra a sua imitação pelos concorrentes. Em contrapartida, o direito de autor ignora esta proteção contra a concorrência. Bem pelo contrário, o diálogo, a inspiração e a reformulação são inerentes à criação intelectual, e o direito de autor não se destina a criar‑lhes obstáculos (45). O que o direito de autor protege, em todo o caso através dos direitos patrimoniais, é a possibilidade de exploração económica sem entraves da obra enquanto tal.

56.      Estes diferentes objetivos andam a par com diferentes mecanismos e princípios de proteção.

57.      Em primeiro lugar, se o limiar de originalidade adotado no direito de autor não é geralmente muito elevado, não é, todavia, inexistente. Para beneficiar da proteção, o esforço do autor deve ser livre e criativo. As soluções ditadas unicamente pelo resultado técnico não podem ser protegidas (46), assim como o trabalho desprovido de qualquer criatividade (47). Neste sentido, não é necessário exigir dos objetos utilitários um nível artístico particularmente elevado relativamente a outras categorias de obras, sendo suficiente aplicar à letra o critério da criação intelectual do próprio autor. Qualquer produto utilitário tem um aspeto visual, fruto do trabalho de quem o cria. No entanto, nem todo o aspeto visual será protegido pelo direito de autor.

58.      Em segundo lugar, o direito de autor baseia‑se numa distinção entre a ideia e a sua expressão, sendo que apenas a expressão é protegida. No que se refere às obras de artes aplicadas, esta dicotomia é, na minha opinião, suscetível de atenuar os efeitos anticoncorrenciais da sua proteção pelo direito de autor. Seja‑me permitido tomar como exemplo os objetos em causa no processo principal, para ilustrar a minha ideia.

59.      Segundo a decisão de reenvio, a recorrente no processo principal pede a proteção para:

«[os] modelos de […] sweatshirts e t[ee]shirts […] [que] incluem vários elementos na sua composição, nomeadamente a imagem estampada na frente da camisola, o esquema de cores, o local da colocação da bolsa na barriga e inserções do bolso. […]» e

«[o] modelo [de calças de ganga] caracterizado pela forma como cada um dos três diferentes módulos foi cortado e montado. Ao utilizar tais módulos de diferentes comprimentos e formas, é criada uma perna com o […] efeito de 3 dimensões (3D), dobrando para dentro e para trás, e assim torcendo em torno da perna do utilizador (efeito chave‑de‑fenda). Outros elementos que contribuem para o “efeito chave‑de‑fenda” são os dardos (“darts”) incluídos no modelo para o lugar do joelho, um em cada perna».

60.      A qualificação dos objetos em causa de obras passíveis de proteção e a constatação de uma eventual contrafação, elementos de facto, enquadram‑se, bem entendido, inteiramente no âmbito da apreciação do órgão jurisdicional nacional. Parece‑me, no entanto, que características como a «composição específica baseada em formas, cores, palavras e números», o «esquema de cores», o «local da colocação de bolsos na barriga», ou ainda o «corte com a montagem de 3 painéis», cuja reprodução é imputada à Cofemel, deveriam ser analisadas como ideias suscetíveis de diferentes expressões, ou mesmo como soluções funcionais (48), e não deveriam ser abrangidas pela proteção pelo direito de autor.

61.      Além disso, ao invocar o caráter (à época) inovador e único do seu modelo G‑Star Elwood, introduzido em 1996, a G‑Star parece pretender, de facto, proteger através do direito de autor o seu prestígio e o caráter distintivo dos seus produtos, proteção normalmente assegurada pelo direito das marcas.

62.      É certo que a violação do direito de autor não deve, em todos os casos, consistir na reprodução integral da obra. As partes de uma obra beneficiam também de proteção, desde que contenham os elementos que são a expressão da criação intelectual do próprio autor dessa obra (49). É ainda necessário que não sejam elementos simplesmente inspirados nas ideias expressas na obra, mas partes retiradas dessa obra. A apreciação desta questão deverá ser feita caso a caso pelo juiz que conhece do mérito. No âmbito desta apreciação, esse juiz deverá também certificar‑se do caráter suficientemente identificável do objeto da proteção solicitada (50).

63.      Por último, em terceiro lugar, o direito de autor difere do direito dos desenhos e modelos na apreciação da violação dos direitos exclusivos protegidos. Para retomar o teor do artigo 10.o, n.o 1, do Regulamento n.o 6/2002, o direito dos desenhos e modelos assegura a proteção contra «qualquer desenho ou modelo que não suscite no utilizador informado uma impressão [visual] global diferente». Ora, este conceito de «impressão [visual] global» é totalmente alheio ao direito de autor.

64.      O direito de autor protege uma obra concreta, não uma obra com um determinado aspeto visual (51). Dois fotógrafos que fotografam a mesma cena no mesmo momento podem obter imagens que não produzem uma impressão visual global diferente. No plano do direito dos desenhos e modelos, aquele que divulga primeiro a sua fotografia poderá opor‑se à divulgação da fotografia do outro. Não é o que acontece no âmbito do direito de autor, onde a criação paralela, desde que seja verdadeiramente original, é não só lícita como beneficia plenamente de proteção como obra distinta. O mesmo se diga da criação inspirada em obras anteriores. Na medida em que essa criação não constitua uma reprodução não autorizada de elementos originais de uma obra de outrem, a questão de uma violação do direito de autor não se coloca, quer a impressão visual global seja diferente ou não.

65.      O direito de autor permitirá assim ao autor de um desenho ou de um modelo opor‑se à divulgação e à utilização de um desenho ou de um modelo que não produza uma impressão visual global diferente apenas se puder demonstrar a reprodução de elementos originais do seu desenho ou modelo.

66.      Perante um pedido de proteção de um desenho ou de um modelo pelo direito de autor, o juiz deve ter em conta esses elementos a fim de distinguir o que é abrangido, eventualmente, pela proteção sui generis dos desenhos e modelos daquilo que é abrangido pela proteção pelo direito de autor, e, assim, evitar a confusão entre esses dois regimes de proteção.

 Conclusão

67.      Tendo em conta as considerações que precedem, proponho que seja dada a seguinte resposta às questões prejudiciais submetidas pelo Supremo Tribunal de Justiça (Portugal):

1)      O artigo 2.o, alínea a), da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, opõe‑se a que os desenhos e modelos industriais só sejam protegidos pelo direito de autor se apresentarem um caráter artístico acrescido, que vá além do que é normalmente exigido a outras categorias de obras.

2)      Perante um pedido de proteção de um desenho ou de um modelo industrial pelo direito de autor, o juiz nacional deve ter em conta os objetivos e os mecanismos específicos deste direito, como a proteção não das ideias mas das expressões e os critérios de apreciação de uma violação dos direitos exclusivos. Em contrapartida, o juiz nacional não pode aplicar à proteção pelo direito de autor os critérios específicos da proteção dos desenhos e modelos.


1      Língua original: francês.


2      Um dos primeiros atos legislativos nesta matéria foi a Lei francesa de 18 de março de 1806, relativa à instituição de um conseil des prud’hommes de Lyon, que concedeu proteção aos desenhos dos fabricantes de seda de Lyon.


3      V. Fischman Afori, O., «Reconceptualizing Property in Designs», Cardozo Arts & Entertainment Law Journal, n.o 3, 2008, pp. 1105 a 1178.


4      Sobre o fenómeno da cumulação da proteção de desenhos e modelos em direito da propriedade intelectual, v., nomeadamente, Derclaye, E., Leistner, M., Intellectual Property Overlaps: A European Perspective, Hart Publishing, Oxford, 2011, e Tischner, A., Kumulatywna ochrona wzornictwa przemysłowego w prawie własności intelektualnej, C.H. Beck, Varsóvia, 2015.


5      Sobre esta inflação da proteção em detrimento da concorrência através do industrial copyright no direito do Reino Unido, v., nomeadamente, Bently, L., «The Return of Industrial Copyright?», European Intellectual Property Review, 2012, pp. 654 a 672.


6      V., nomeadamente, Derclaye, E., Leistner, M., op. cit., pp. 200 e 283; Marzano, P., «Une protection mal conçue pour un produit bien conçu: l’Italie et sa protection des dessins et modèles industriels par le droit d’auteur», Revue internationale du droit d’auteur, 2014, p. 118; e Tischner, A., op. cit., pp. 159 a 170.


7      V., nomeadamente, Pollaud‑Dulian, F., Propriété intellectuelle. Le droit d’auteur, Economica, Paris, 2014, pp. 190 a 194; Vivant, M., Bruguière, J.‑M., Droit d’auteur et droits voisins, Dalloz, Paris, 2016, pp. 255 a 257.


8      Ainda que, segundo certos autores, o princípio da proteção cumulativa manifeste a impotência do sistema da propriedade intelectual para controlar a sua hipertrofia (Tischner, A., «The role of unregistred rights — a European perspective on design protection», Journal of Intellectual Property Law & Practice, n.o 4, 2018, pp. 303 a 314).


9      A União Europeia não é parte contratante na Convenção de Berna, mas é parte no Acordo sobre os Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio, que constitui o anexo 1C do Acordo de Marraquexe que institui a Organização Mundial do Comércio, assinado em Marraquexe, em 15 de abril de 1994 (a seguir «Acordo TRIPS»), aprovado, em nome da União Europeia, pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986‑1994) (JO 1994, L 336, p. 1), cujo artigo 9.o, n.o 1, obriga as partes contratantes a darem cumprimento aos artigos 1.o a 21.o da Convenção de Berna.


10      O artigo 7.o, n.o 4, da Convenção de Berna é relativo à duração da proteção dos desenhos e modelos industriais.


11      JO 1998, L 289, p. 28.


12      JO 2001, L 167, p. 10.


13      JO 2002, L 3, p. 1.


14      O órgão jurisdicional de reenvio retoma nas suas questões a formulação do direito português: «Obras de artes aplicadas, desenhos ou modelos industriais e obras de design». Parece‑me, porém, que estes três termos são, em substância, sinónimos. Em todo o caso, refiro‑me, nas presentes conclusões, aos objetos que, como os objetos em causa no processo principal, são passíveis de proteção como desenhos e modelos na aceção da Diretiva 98/71 ou do Regulamento n.o 6/2002.


15      V., em último lugar, Acórdão de 13 de novembro de 2018, Levola Hengelo (C‑310/17, EU:C:2018:899, n.o 33).


16      Acórdão de 16 de julho de 2009, Infopaq International (C‑5/08, EU:C:2009:465, n.o 37).


17      É o caso, nomeadamente, do direito alemão, no qual o § 2, n.o 2, da Gesetz über Urheberrecht und verwandte Schutzrechte — Urheberrechtsgesetz (Lei relativa ao direito de autor e aos direitos conexos), de 9 de setembro de 1965, dispõe que «[a]penas constituem obras, na aceção da presente lei, as criações intelectuais pessoais». Este conceito encontra‑se na noção de «originalidade» no direito de autor francês (Acórdão da Cour de cassation, Assembleia Plenária, de 7 de março de 1986, Babolat c/Pachot, n.o 83‑10477, publicado no boletim), bem como em direito polaco [artigo 1.o, n.o 1, da ustawa o prawie autorskim i prawach pokrewnych(Lei sobre o direito de autor e os direitos conexos), de 4 de fevereiro de 1994], ou ainda em direito espanhol [artigo 10.o da Ley de Propiedad Intelectual» (Lei sobre a propriedade intelectual), de 24 de abril de 1996]. Já assim não é nos sistemas de copyright dos países anglo‑saxónicos.


18      Acórdão de 1 de dezembro de 2011, Painer (C‑145/10, EU:C:2011:798, n.os 88 e 89).


19      Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Bezpečnostní softwarová asociace (C‑393/09, EU:C:2010:816, n.os 49 e 50).


20      Acórdão de 1 de março de 2012, Football Dataco e o. (C‑604/10, EU:C:2012:115, n.o 33).


21      Acórdão de 13 de novembro de 2018, Levola Hengelo (C‑310/17, EU:C:2018:899, n.o 40).


22      Para a descrição desta jurisprudência, inspirei‑me largamente nos n.os 17 e 18 das minhas Conclusões no processo Funke Medien NRW (C‑469/17, EU:C:2018:870).


23      Trata‑se da Diretiva 96/9/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 1996, relativa à proteção jurídica das bases de dados (JO 1996, L 77, p. 20), artigo 3.o, n.o 1; da Diretiva 2006/116/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa ao prazo de proteção do direito de autor e de certos direitos conexos (JO 2006, L 372, p. 12), artigo 6.o; e da Diretiva 2009/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à proteção jurídica dos programas de computador (JO 2009, L 111, p. 16), artigo 1.o, n.o 3.


24      V. Acórdãos de 1 de dezembro de 2011, Painer (C‑145/10, EU:C:2011:798, n.o 87), e de 7 de agosto de 2018, Renckhoff (C‑161/17, EU:C:2018:634, n.o 14).


25      V., neste sentido, Acórdão de 13 de novembro de 2018, Levola Hengelo (C‑310/17, EU:C:2018:899, n.o 45).


26      V., nomeadamente, Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Bezpečnostní softwarová asociace (C‑393/09, EU:C:2010:816, n.os 46 a 48).


27      Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Bezpečnostní softwarová asociace (C‑393/09, EU:C:2010:816, n.os 48 e 49).


28      Acórdão de 1 de dezembro de 2011, Painer (C‑145/10, EU:C:2011:798, n.o 98).


29      Acórdão de 1 de dezembro de 2011, Painer (C‑145/10, EU:C:2011:798, n.o 97).


30      V. Bently, L., op. cit.


31      V. Tischner, A., «The role of unregistred rights — a European perspective on design protection», Journal of Intellectual Property Law & Practice, n.o 4, 2018, e obras citadas.


32      Uma formulação semelhante encontra‑se no considerando 8 da Diretiva 98/71.


33      COM(93) 342 final, de 3 de dezembro de 1993, pp. 53 a 55.


34      COM(97) 628 final, de 21 de janeiro de 1998.


35      Este argumento é invocado na doutrina, v., nomeadamente, Bently, L., op. cit.


36      Bem como, segundo me parece, o artigo 96.o, n.o 2, do Regulamento n.o 6/2002.


37      Por oposição ao mundo virtual.


38      V. exposição de motivos desse regulamento [COM(93) 342 final, p. 56].


39      Acórdão de 27 de janeiro de 2011 (C‑168/09, EU:C:2011:29, n.o 39).


40      Diretiva do Conselho, de 29 de outubro de 1993, relativa à harmonização do prazo de proteção dos direitos de autor e de certos direitos conexos (JO 1993, L 290, p. 9), substituída pela Diretiva 2006/116.


41      V., nomeadamente, Bently, L., op. cit., e Tischner, A., «The role of unregistred rights — a European perspective on design», Journal of Intellectual Property Law & Practice, n.o 4, 2018.


42      Segundo o Regulamento n.o 6/2002, esta duração é de três anos, para os desenhos e modelos não registados, e de cinco anos, prorrogável até vinte cinco anos, para os registados, o que é suficiente, dado que um desenho ou modelo médio só tem valor comercial durante cerca de quatro anos e até menos (uma ou duas estações) no setor do vestuário. (V. Tischner, A., «The role of unregistred rights — a European perspective on design protection», e Van Keymeulen, E., «Copyrighting couture or counterfeit chic? Protecting fashion design: a comparative EU‑US perspective», Journal of Intellectual Property Law & Practice, n.o 10, 2012, pp. 728 a 737).


43      V. artigos 4.o e 10.o do Regulamento n.o 6/2002.


44      Com efeito, a proteção pelo direito de autor abrange toda a vida do autor e setenta anos após a sua morte.


45      A situação pode ser diferente no que respeita a certos direitos conexos, por exemplo os fonogramas, para os quais, no entanto, é difícil falar de inspiração (v. as minhas Conclusões no processo Pelham e o. (C‑476/17, EU:C:2018:1002).


46      Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Bezpečnostní softwarová asociace (C‑393/09, EU:C:2010:816, n.os 49 e 50).


47      Acórdão de 1 de março de 2012, Football Dataco e o. (C‑604/10, EU:C:2012:115, n.o 33).


48      Um bolso colocado nas costas da sweatshirt não teria grande utilidade.


49      Acórdão de 16 de julho de 2009, Infopaq International (C‑5/08, EU:C:2009:465, n.o 39).


50      V. Acórdão de 13 de novembro de 2018, Levola Hengelo (C‑310/17, EU:C:2018:899, n.o 40).


51      Markiewicz, R., Ilustrowane prawo autorskie, Wolters Kluwer, Varsóvia, 2018, p. 79.