Language of document : ECLI:EU:C:2012:215

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

19 de abril de 2012 (*)

«Cooperação judiciária em matéria civil ― Regulamento (CE) n.° 1346/2000 ― Artigo 3.°, n.° 1 ― Conceito de ‘ação que decorre de um processo de insolvência e que com ele está estreitamente relacionada’ ― Regulamento (CE) n.° 44/2001 ― Artigo 1.°, n.os 1 e 2, alínea b) ― Conceitos de ‘matéria civil e comercial’ e de ‘falência’ ― Ação intentada com fundamento na cessão, pelo administrador da massa falida, do seu direito de revogação»

No processo C‑213/10,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Lituânia), por decisão de 27 de abril de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 4 de maio de 2010, no processo

F‑Tex SIA

contra

Lietuvos‑Anglijos UAB „Jadecloud‑Vilma“,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, M. Safjan, M. Ilešič, E. Levits e M. Berger (relatora), juízes,

advogado‑geral: V. Trstenjak,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da F‑Tex SIA, por M. Nosevič, advokatas,

¾        em representação da Lietuvos‑Anglijos UAB „Jadecloud‑Vilma“, por R. Bukauskas, advokatas,

¾        em representação do Governo lituano, por D. Kriaučiūnas e L. Liubertaitė, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Kemper, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo helénico, por M. Michelogiannaki, K. Georgiadis e D. Kalogiros, na qualidade de agentes,

¾        em representação da Comissão Europeia, por A. Steiblytė e M. Wilderspin, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (JO L 160, p. 1), e dos artigos 1.°, n.° 2, alínea b), e 2.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a F‑Tex SIA (a seguir «F‑Tex») à Lietuvos‑Anglijos UAB „Jadecloud‑Vilma“ (a seguir «Jadecloud‑Vilma»), a propósito da restituição da quantia de 523 700,20 LTL, acrescida de juros, que foi paga à Jadecloud‑Vilma pela Neo Personal Light Clothing GmbH (a seguir «NPLC»), quando esta última sociedade se encontrava insolvente.

 Quadro jurídico

 Regulamento n.° 1346/2000

3        De acordo com o seu sexto considerando, o Regulamento n.° 1346/2000 deve limitar‑se às «disposições que regulam a competência em matéria de abertura de processos de insolvência e de decisões diretamente decorrentes de processos de insolvência e com eles estreitamente relacionadas».

4        O artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000, respeitante à competência internacional, institui a seguinte regra geral de competência:

«Os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência. Presume‑se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas coletivas é o local da respetiva sede estatutária.»

5        O artigo 25.° do Regulamento n.° 1346/2000, relativo ao reconhecimento e caráter executório de outras decisões, dispõe nos seus n.os 1 e 2:

«1.      As decisões relativas à tramitação e ao encerramento de um processo de insolvência proferidas por um órgão jurisdicional cuja decisão de abertura do processo seja reconhecida por força do artigo 16.°, bem como qualquer acordo homologado por esse órgão jurisdicional, são igualmente reconhecidos sem mais formalidades. Essas decisões são executadas em conformidade com o disposto nos artigos 31.° a 51.°, com exceção do n.° 2 do artigo 34.°, da Convenção de Bruxelas relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, alterada pelas convenções relativas à adesão a essa convenção.

O primeiro parágrafo é igualmente aplicável às decisões diretamente decorrentes do processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas, mesmo que proferidas por outro órgão jurisdicional.

[...]

2.      O reconhecimento e a execução de decisões que não as referidas no n.° 1 regem‑se pela convenção referida no n.° 1 do presente artigo, na medida em que esta for aplicável.»

 Regulamento n.° 44/2001

6        O Regulamento n.° 44/2001 substitui, nas relações entre Estados‑Membros, a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32, a seguir «Convenção de Bruxelas»).

7        Nos termos do sétimo considerando do referido regulamento, «[o] âmbito de aplicação material do presente regulamento deverá incluir o essencial da matéria civil e comercial com exceção de certas matérias bem definidas».

8        O artigo 1.° do Regulamento n.° 44/2001 define o âmbito de aplicação deste diploma nos seguintes termos:

«1.      O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição. O presente regulamento não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.

2.      São excluídos da sua aplicação:

[...]

b)      As falências, as concordatas e os processos análogos;

[...]»

9        O artigo 2.°, n.° 1, do mesmo regulamento enuncia a seguinte regra geral de competência:

«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.»

10      O artigo 60.°, n.° 1, do mesmo regulamento precisa:

«Para efeitos da aplicação do presente regulamento, uma sociedade ou outra pessoa coletiva ou associação de pessoas singulares e coletivas tem domicílio no lugar em que tiver:

a)      A sua sede social;

b)      A sua administração central; ou

c)      O seu estabelecimento principal.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

11      Entre fevereiro e junho de 2001, a NPLC, cuja sede social é na Alemanha, pagou, embora estivesse insolvente, a quantia de 523 700,20 LTL à Jadecloud‑Vilma, cuja sede social se situa na Lituânia.

12      Em 24 de janeiro de 2005, o Landgericht Duisburg (Alemanha) instaurou um processo de insolvência à NPLC. Segundo o apurado pelo órgão jurisdicional de reenvio, o único credor era a F‑Tex, cuja sede social se situa na Letónia.

13      Por contrato de 28 de agosto de 2007, o administrador judicial nomeado no quadro do processo instaurado à NPLC cedeu à F‑Tex a totalidade dos créditos da primeira sobre terceiros, incluindo o direito de exigir à Jadecloud‑Vilma a restituição das quantias que esta recebera entre fevereiro e junho de 2001. Esta cessão foi autorizada sem que o administrador tivesse prestado quaisquer garantias quanto ao conteúdo dos créditos, ao respetivo montante ou à sua exequibilidade, tanto jurídica como de facto. A F‑Tex não era legalmente obrigada a proceder à cobrança dos créditos assim cedidos. Para o caso de o decidir fazer, foi acordado que entregaria ao administrador 33% do produto obtido.

14      Por despacho de 19 de agosto de 2009, o Vilniaus apygardos teismas (Lituânia) negou provimento à ação que a F‑Tex aí intentou no sentido de condenar a Jadecloud‑Vilma a pagar‑lhe a quantia de 523 700,20 LTL, acrescida de juros, que esta última sociedade recebera da NPLC. O Vilniaus apygardos teismas considerou que esta ação era da competência dos órgãos jurisdicionais alemães na medida em que o processo de insolvência tinha sido instaurado à NPLC na Alemanha.

15      Em 5 de novembro de 2009, em recurso interposto pela F‑Tex, o Lietuvos apeliacinis teismas (Lituânia) reformou a decisão do Vilniaus apygardos teismas e devolveu‑lhe o processo. O Lietuvos apeliacinis teismas considerou que a competência definida no artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000, prevista para a ação de impugnação não é uma competência exclusiva e que, tendo em conta as circunstâncias do processo, uma tal ação devia ser apreciada no foro da sede social da recorrida.

16      Por decisão de 25 de novembro de 2009, o Landgericht Duisburg conclui que a ação aí interposta pela F‑Tex contra a Jadecloud‑Vilma não era da sua competência, pelo facto, designadamente, de a sede social da demandada não ser na Alemanha, e informou a F‑Tex de que a sua ação seria muito provavelmente julgada inadmissível. A F‑Tex desistiu dessa ação.

17      Tendo‑lhe sido submetido o recurso que a Jadecloud‑Vilma interpôs da decisão do Lietuvos apeliacinis teismas de 5 de novembro de 2009, o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Tendo em consideração os acórdãos [do] Tribunal de Justiça [de 22 de fevereiro de 1979, Gourdain, 133/78, Colet., p. 383,] e [de 12 de fevereiro de 2009, Seagon, C‑339/07, Colet., p. I‑767], o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 e o artigo 1.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento n.° 44/2001 devem ser interpretados no sentido de que:

a)      um tribunal nacional chamado a conhecer de um processo de insolvência dispõe de competência exclusiva para conhecer de uma ação pauliana que decorre diretamente desse processo ou com ele está estreitamente relacionada, só podendo as exceções a essa competência basear‑se noutras disposições do Regulamento n.° 1346/2000[;]

b)      uma ação pauliana, proposta pelo único credor de uma empresa objeto de um processo de insolvência iniciado num Estado‑Membro, que

¾        foi instaurada noutro Estado‑Membro,

¾        assenta num crédito sobre terceiros, que lhe foi cedido pelo administrador judicial com base num acordo a título oneroso, desse modo coartando o alcance dos direitos do administrador judicial no primeiro Estado‑Membro, e

¾        não constitui um perigo para outros possíveis credores,

deve ser considerada matéria civil e comercial na aceção do artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001?

2)      O direito de uma demandante à proteção jurisdicional, reconhecido pelo Tribunal de Justiça como princípio geral do direito da União […] e garantido pelo artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser entendido e interpretado no sentido [de] que:

a)      os órgãos jurisdicionais nacionais com competência para conhecer de uma ação pauliana (dependendo da sua relação com o processo de insolvência) nos termos do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 ou do artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 não podem ambos declarar‑se incompetentes[;]

b)      se o tribunal de um Estado‑Membro tiver decidido não conhecer de uma ação pauliana por se considerar incompetente para o efeito, um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, que pretenda salvaguardar o direito de acesso aos tribunais da demandante, tem o direito de se declarar oficiosamente competente, independentemente do facto de, segundo o direito da União […] relativo à determinação da competência judiciária internacional, não poder tomar essa decisão?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à segunda parte da primeira questão

18      Na segunda parte da primeira questão, que importa examinar em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio procura saber, no essencial, se uma ação intentada contra terceiros pelo credor de alguém que seja objeto de um processo de insolvência, fundada na cessão de um crédito autorizada pelo administrador judicial designado no quadro desse processo, integra o âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1346/2000, na medida em que decorre diretamente desse processo e com ele está estreitamente relacionada, ou o do Regulamento n.° 44/2001, na medida em que a referida ação é abrangida pelo conceito de matéria civil ou comercial.

 Observações preliminares

19      A título liminar, importa precisar os âmbitos de aplicação respetivos dos Regulamentos n.os 44/2001 e 1346/2000.

¾       Regulamento n.° 44/2001

20      O artigo 1.°, primeiro parágrafo, da Convenção de Bruxelas, que foi substituída pelo Regulamento n.° 44/2001, dispunha que esta Convenção se aplicava em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição. O segundo parágrafo desse mesmo artigo excluía da sua aplicação determinadas matérias, nomeadamente, no n.° 2, «[a]s falências, as concordatas e outros processos análogos».

21      Tanto o relatório sobre a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, de P. Jenard (JO 1979, C 59, p. 1), como o relatório sobre a Convenção de 9 de outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte à referida Convenção, bem como ao protocolo respeitante à sua interpretação pelo Tribunal de Justiça, de P. Schlosser (JO 1979, C 59, p. 71), referem que a matéria excluída devia ser objeto de Convenção distinta. O relatório de P. Schlosser precisou, no seu n.° 53, que era necessário delimitar os âmbitos de aplicação das duas Convenções de forma a evitar qualquer lacuna e as questões de qualificação.

22      No acórdão Gourdain, já referido, proferido no quadro da Convenção de Bruxelas, o Tribunal de Justiça delimitou o âmbito da exclusão em causa. No n.° 4 desse acórdão, declarou que é necessário, para que as decisões relativas a uma falência sejam excluídas do âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas, que resultem diretamente da falência e se insiram no âmbito estrito de um processo de liquidação de patrimónios ou de concordata judicial.

23      No acórdão de 2 de julho de 2009, SCT Industri (C‑111/08, Colet., p. I‑5655), proferido após a entrada em vigor do Regulamento n.° 44/2001, o Tribunal de Justiça declarou que, na medida em que esse regulamento substitui a Convenção de Bruxelas, a interpretação que o Tribunal de Justiça fez desta Convenção vale também para o referido regulamento, quando as disposições em causa possam ser consideradas equivalentes, o que se verifica no caso do artigo 1.°, n.° 2, alínea b), desse regulamento e do artigo 1.°, segundo parágrafo, n.° 2, da Convenção de Bruxelas, redigidos em termos idênticos. Recorrendo ao critério segundo o qual uma ação está ligada a um processo de falência quando resulta diretamente da falência e está estreitamente relacionada com um processo de liquidação de património ou de concordata judicial, o Tribunal de Justiça esclareceu que é a intensidade do nexo existente, na aceção da jurisprudência resultante do acórdão Gourdain, já referido, entre uma ação judicial e o processo de insolvência que é determinante para aferir se a referida exclusão é aplicável (v., neste sentido, acórdão SCT Industri, já referido, n.os 22 a 25).

¾       Regulamento n.° 1346/2000

24      O Regulamento n.° 1346/2000 reproduz, em termos idênticos, as disposições da Convenção relativa aos processos de insolvência aberta para assinatura dos Estados‑Membros em Bruxelas, em 23 de novembro de 1995.

25      No acórdão Seagon, já referido, o Tribunal de Justiça, como referido pelo órgão jurisdicional de reenvio, examinou os critérios que permitem determinar se uma ação se inclui, ou não, no âmbito de aplicação do artigo 3.°, n.° 1, desse regulamento.

26      No n.° 20 desse acórdão, o Tribunal de Justiça sublinhou que é precisamente o critério definido no acórdão Gourdain, já referido, que utiliza o sexto considerando do Regulamento n.° 1346/2000 para delimitar o objeto deste último. Com efeito, segundo esse considerando, o referido regulamento deve limitar‑se às disposições que regulam a competência em matéria de abertura de processos de insolvência e de decisões diretamente decorrentes de processos de insolvência e com eles estreitamente relacionadas.

27      O Tribunal de Justiça daí conclui que, tendo em conta esta intenção do legislador e o efeito útil do referido regulamento, o artigo 3.°, n.° 1, deste último deve ser interpretado no sentido de que atribui também competência internacional aos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro competente para dar início a um processo de insolvência para conhecer ações decorrentes diretamente desse processo e com ele estreitamente relacionadas (acórdão Seagon, já referido, n.° 21).

28      Acresce que este duplo critério também é utilizado no artigo 25.°, n.° 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 1346/2000, que regula o reconhecimento e a execução de decisões relativas à tramitação e ao encerramento de um processo de insolvência. Por força do segundo parágrafo desse n.° 1, o primeiro parágrafo também é aplicável às decisões diretamente decorrentes do processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas, mesmo que proferidas por outro órgão jurisdicional. Nos termos do n.° 2 do referido artigo 25.°, as outras decisões que não as previstas no n.° 1 regem‑se pelo Regulamento n.° 44/2001, desde que este seja aplicável.

¾       Quanto à relação entre os Regulamentos n.os 1346/2000 e 44/2001

29      Do conjunto das considerações precedentes resulta, em primeiro lugar, que o artigo 1.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento n.° 44/2001 só exclui do âmbito de aplicação deste regulamento, que, de acordo com o seu sétimo considerando, se destina a ser aplicado ao conjunto da matéria civil e comercial com exceção de certas matérias bem definidas, as ações diretamente decorrentes de um processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas. Dessas mesmas considerações resulta, em segundo lugar, que só as ações diretamente decorrentes de um processo de insolvência e que com este se encontrem estreitamente relacionadas integram o âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1346/2000.

30      A fim de responder à segunda parte da primeira questão, importa, pois, apurar se a ação no processo principal, tendo em conta as conclusões do órgão jurisdicional de reenvio, cumpre este duplo critério.

 Quanto à relação entre, por um lado, a ação no processo principal e, por outro, a insolvência do devedor e o processo de insolvência

31      Com a ação no processo principal pretende‑se que o demandado restitua as quantias que recebeu de um devedor antes de a este ser instaurado um processo de insolvência. O demandante baseia a sua ação na cessão do crédito autorizada pelo administrador judicial nomeado no quadro do referido processo. A referida cessão tinha por objeto o direito de revogação que a lei alemã relativa aos processos de insolvência reconhece ao administrador judicial no que respeita aos atos praticados antes da abertura do processo de insolvência e que prejudiquem os credores que participem no referido processo.

32      Resulta dos autos que a ação de impugnação, que, em direito alemão, se rege pelos §§ 129 e seguintes da lei relativa aos processos de insolvência, só pode ser proposta pelo administrador judicial, apenas para defesa dos interesses da massa falida. Contudo, segundo o Governo alemão, o direito de revogação pode ser cedido desde que seja objeto de uma contraprestação considerada equivalente, em proveito da massa falida.

33      A este propósito, recorde‑se que o Tribunal de Justiça declarou, no contexto de uma ação em que o demandante, enquanto administrador judicial, por meio de uma ação de impugnação fundada na insolvência do devedor, requereu a restituição de uma quantia paga por este, que essa ação integra o âmbito do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 (v., neste sentido, acórdão Seagon, já referido, n.° 28).

34      Além disso, no acórdão SCT Industri, já referido, o Tribunal de Justiça declarou, a propósito do reconhecimento de uma decisão que declara a nulidade de uma cessão autorizada pelo administrador judicial designado no quadro de um processo de insolvência, por este não poder dispor dos ativos cedidos, que essa questão se inclui no conceito de falência na aceção do artigo 1.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento n.° 44/2001 (v., neste sentido, acórdão SCT Industri, já referido, n.° 33).

35      Porém, o presente litígio no processo principal distingue‑se dos que estiveram na origem desses acórdãos.

36      Com efeito, diferentemente do demandante no processo que deu origem ao acórdão Seagon, já referido, o demandante no litígio no processo principal não atua como administrador judicial, ou seja, como autoridade num processo de insolvência, mas como cessionário de um direito.

37      Por outro lado, diferentemente do processo que deu origem ao acórdão SCT Industri, já referido, o presente litígio no processo principal não tem por objeto a validade da cessão autorizada pelo administrador judicial e o poder deste de ceder o seu direito de revogação não é contestado.

38      Importa, portanto, examinar se a ação intentada pelo demandante no processo principal, à luz das suas características específicas, decorre diretamente da insolvência do devedor e se se encontra estreitamente relacionada com o processo de insolvência.

39      Nas observações que apresentaram ao Tribunal de Justiça, a Jadecloud‑Vilma e a Comissão Europeia alegam que a origem e a substância da ação intentada pelo cessionário são, no essencial, as mesmas de uma ação de impugnação intentada pelo administrador judicial.

40      Não se pode na verdade negar que o direito em que o demandante no processo principal funda a sua ação decorre da insolvência do devedor, encontrando‑se a sua origem no direito de revogação reconhecido ao administrador judicial pela lei nacional aplicável ao processo de insolvência. Porém, coloca‑se a questão de saber se o direito adquirido, uma vez entrado no património do cessionário, continua a decorrer diretamente da insolvência do devedor.

41      Esta questão pode, contudo, continuar em aberto caso se revele que, de todo o modo, o exercício pelo cessionário do direito que adquiriu não se encontra estreitamente relacionado com o processo de insolvência.

42      Ora, deve reconhecer‑se que, como observam a F‑Tex e os Governos lituano e alemão, o exercício do direito adquirido pelo cessionário obedece a regras diferentes das aplicáveis no quadro dos processos de insolvência.

43      Em primeiro lugar, diferentemente do administrador judicial, que, em princípio, está obrigado a atuar no interesse dos credores, o cessionário tem liberdade para exercer, ou não, o seu direito ao crédito que adquiriu. Como o órgão jurisdicional de reenvio reconheceu, a F‑Tex não era legalmente obrigada a proceder à cobrança do crédito cedido.

44      Em segundo lugar, o cessionário, quando decide exercer o seu direito ao crédito, atua no seu próprio interesse e para seu benefício pessoal. À semelhança do direito ao crédito que está na base do seu pedido, o produto da ação que intenta integrará o seu património pessoal. As consequências da ação que intenta são, portanto, diferentes das de uma ação de impugnação intentada pelo administrador judicial, que tem por objetivo o aumento do ativo da empresa que é objeto do processo de insolvência (acórdão Seagon, já referido, n.° 17).

45      A circunstância de, no processo principal, a contrapartida que a F‑Tex deu pela cessão, pelo administrador judicial, do seu direito de revogação ter assumido a forma de uma obrigação de entregar uma percentagem do produto do crédito cedido não altera essa análise, dado que se trata de uma mera forma de pagamento. As estipulações contratuais deste tipo integram a autonomia das partes, pois não se contesta que o administrador judicial e o cessionário tinham a liberdade de expressar a contrapartida paga pelo cessionário em termos de montante fixo ou de percentagem das quantias eventualmente recuperadas.

46      Além disso, em direito alemão, que, no processo principal, é a lei aplicável ao processo de insolvência, o encerramento deste processo em nada afeta o exercício, pelo cessionário, do direito de revogação que adquiriu. Segundo o Governo alemão, esse direito pode ser exercido pelo cessionário após o encerramento do processo de insolvência.

47      Tendo em conta as suas características, a ação no processo principal não se encontra estreitamente relacionada com o processo de insolvência.

48      Por conseguinte, e sem que seja necessário apreciar a eventualidade de essa ação decorrer diretamente da insolvência do devedor, há que considerar que a referida ação não integra o âmbito de aplicação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 e, simetricamente, também não se enquadra no conceito de falência na aceção do artigo 1.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento n.° 44/2001.

49      Consequentemente, cumpre responder à segunda parte da primeira questão que o artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que uma ação intentada contra um terceiro por um demandante que atua com fundamento numa cessão de créditos autorizada pelo administrador judicial designado no quadro de um processo de insolvência, que tem por objeto o direito de revogação que para esse administrador judicial decorre da lei nacional aplicável a esse processo, se inclui no conceito de matéria civil e comercial na aceção dessa disposição.

 Quanto à primeira parte da primeira questão

50      Na primeira parte da primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a competência que o Regulamento n.° 1346/2000, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, atribui aos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em que foi instaurado um processo de insolvência para conhecer das ações decorrentes desse processo e que com este se encontrem estreitamente relacionadas é exclusiva ou não.

51      Tendo em conta a resposta dada à segunda parte da primeira questão, não há que responder à primeira parte desta questão.

 Quanto à segunda questão

52      Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o direito a uma ação perante um tribunal, garantido pelo artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proíbe os órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro, a quem tenha sido submetida uma ação para a qual não tenham competência nos termos do artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, de se declararem incompetentes quando os órgãos jurisdicionais nacionais de outro Estado‑Membro já o tenham feito ao abrigo do disposto no artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° l346/2000.

53      Esta questão só seria pertinente no quadro do litígio no processo principal se os órgãos jurisdicionais lituanos não pudessem fundar a sua competência numa disposição de direito da União.

54      Ora, uma vez que resulta da resposta à primeira questão que o litígio no processo principal integra o âmbito de aplicação do Regulamento n.° 44/2001, a competência dos órgãos jurisdicionais lituanos está estabelecida por força dos artigos 2.°, n.° 1, e 60.°, n.° 1, do referido regulamento, enquanto órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em cujo território a sociedade demandada tem o seu domicílio.

55      Daqui resulta que não há que responder à segunda questão.

 Quanto às despesas

56      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que uma ação intentada contra um terceiro por um demandante que atua com fundamento numa cessão de créditos autorizada pelo administrador judicial designado no quadro de um processo de insolvência, que tem por objeto o direito de revogação que para esse administrador judicial decorre da lei nacional aplicável a esse processo, se inclui no conceito de matéria civil e comercial na aceção dessa disposição.

Assinaturas


* Língua do processo: lituano.