Language of document : ECLI:EU:C:2012:505

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

19 de julho de 2012 (*)

«Artigo 49.° CE — Restrições à livre prestação de serviços — Igualdade de tratamento — Dever de transparência — Jogos de fortuna ou azar — Casinos, salas de jogos e salas de bingo — Obrigação de obter a aprovação prévia do município onde se situa o estabelecimento — Poder de apreciação — Lesão substancial dos interesses do Estado e dos habitantes da área administrativa em causa — Justificações — Proporcionalidade»

No processo C‑470/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Augstākās tiesas Senāts (Letónia), por decisão de 6 de dezembro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 14 de setembro de 2011, no processo

SIA Garkalns

contra

Rīgas dome,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, K. Schiemann, L. Bay Larsen, C. Toader (relator) e E. Jarašiūnas, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação do Governo letão, por I. Kalniņš, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, na qualidade de agente,

¾        em representação da Comissão Europeia, por E. Kalniņš e I. Rogalski, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 49.° CE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre a SIA Garkalns (a seguir «Garkalns»), com sede na Letónia, e o Rīgas dome (Assembleia Municipal de Riga), agindo em nome do Rīgas pilsētas pašvaldības (município de Riga, a seguir «município»), a propósito da recusa deste último de licenciar a abertura pela Garkalns de uma sala de jogos num centro comercial em Riga.

 Quadro jurídico

 Direito letão

3        O artigo 26.°, n.° 1, da Lei dos jogos de fortuna ou azar e lotarias (azartspēļu un izložu likums, a seguir «lei dos jogos de fortuna ou azar») prevê que a abertura de um casino, de uma sala de jogos ou de uma sala de bingo está sujeita a uma licença específica. Esta é concedida às sociedades de capitais titulares de uma licença geral para a organização de jogos de máquinas, de roletas, de jogos de cartas e dados ou de jogos de bingo.

4        Segundo o artigo 26.°, n.° 2, da lei dos jogos de fortuna ou azar, para obter a licença específica de abertura de um casino, de uma sala de jogos ou de uma sala de bingo, o organizador de jogos de fortuna ou azar apresenta um pedido ao Serviço de Inspeção e Supervisão das Lotarias e Jogos de Fortuna ou Azar (Izložu un azartspēļu uzraudzības inspekcija), ao qual deve juntar vários documentos, incluindo uma autorização para a abertura de tal estabelecimento e para aí organizar os jogos de fortuna ou azar em questão, emitida pelo município competente.

5        O artigo 41.°, n.° 2, desta lei proíbe a organização de jogos de fortuna ou azar:

«1)      em instituições públicas;

2)      em igrejas e locais de culto;

3)      em edifícios destinados a serviços de saúde e em estabelecimentos de ensino;

4)      em farmácias, estações de correios ou instituições de crédito;

5)      em locais onde se realizem eventos públicos, enquanto os mesmos decorrem, à exceção da organização de apostas;

6)      em zonas onde tenha sido autorizada a realização de mercados de acordo com o procedimento estabelecido;

7)      em lojas, estabelecimentos culturais, estações ferroviárias e rodoviárias, aeroportos e portos, à exceção das salas de jogos e das salas de apostas para as quais tenha sido criado um espaço fechado ao qual se possa aceder apenas a partir do exterior do edifício, através de entrada separada;

8)      em bares e cafés, à exceção da organização de apostas;

9)      em residências de estudantes, trabalhadores e similares;

10)      em edifícios de habitação cuja entrada exterior coincida com a entrada para o espaço onde se organizam jogos de fortuna ou azar.»

6        O artigo 42.°, n.° 3, da referida lei precisa que, quando se preveja organizar jogos de fortuna ou azar num espaço ao qual não são aplicáveis as restrições estabelecidas no artigo 41.°, n.° 2, desta mesma lei, a assembleia municipal competente decidirá em cada caso concreto, examinando se a organização de jogos de fortuna ou azar no espaço previsto não produz uma «lesão substancial dos interesses do Estado e dos habitantes da área administrativa em causa».

 Factos no processo principal e questão prejudicial

7        A Garkalns solicitou ao município uma licença para a abertura de uma sala de jogos de fortuna ou azar num centro comercial situado na cidade de Riga. Por decisão de 12 de outubro de 2006, o Rīgas dome recusou conceder essa licença, por considerar que a abertura da referida sala prejudicaria substancialmente os interesses dos habitantes do município.

8        A Garkalns interpôs um recurso no administratīvā rajona tiesa (Tribunal Administrativo de Primeira Instância). Por decisão de 29 de outubro de 2008, este órgão jurisdicional negou provimento ao recurso.

9        Por acórdão de 13 de abril de 2010, foi também negado provimento ao recurso dessa decisão, interposto no Administratīvā apgabaltiesa [Tribunal Administrativo Regional (Tribunal Administrativo de Recurso)].

10      Este último órgão jurisdicional considerou que a organização de jogos de fortuna ou azar no local previsto era suscetível de prejudicar não só os interesses dos habitantes do bairro em questão mas também os interesses dos habitantes de outros bairros, uma vez que o centro comercial, com grande afluência de pessoas, está localizado numa artéria principal. Assim, a instalação prevista ficaria situada, por um lado, nas imediações de um complexo residencial e, por outro, a cerca de 500 metros de um estabelecimento de ensino secundário. Segundo este órgão jurisdicional, a recusa do município era assim justificada pela intenção de evitar que o público fosse tentado a privilegiar a participação em jogos de fortuna ou azar em detrimento de outras possibilidades de ocupação dos seus tempos livres.

11      A Garkalns interpôs um recurso de cassação no órgão jurisdicional de reenvio contra o acórdão proferido pelo Administratīvā apgabaltiesa. Sustenta, designadamente, que o referido órgão jurisdicional interpretou incorretamente o artigo 42.°, n.° 3, da lei dos jogos de fortuna ou azar.

12      Em apoio do seu recurso, a Garkalns, referindo‑se ao acórdão do Tribunal de Justiça de 3 de junho de 2010, Sporting Exchange (C‑203/08, Colet., p. I‑4695, n.os 50 e 51), alega designadamente que, embora um Estado possa fixar um nível de proteção necessário no domínio dos jogos de fortuna ou azar, a margem de apreciação de que dispõe não pode, no entanto, prejudicar a livre prestação de serviços. O regime de licenciamento dos jogos de fortuna ou azar deveria, assim, basear-se em critérios objetivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente.

13      O Rīgas dome pediu que fosse negado provimento ao recurso e observou que a decisão impugnada está em conformidade com a prática do município, que consiste em não emitir licenças a fim de reduzir o número de estabelecimentos de jogos de fortuna ou azar em Riga.

14      O órgão jurisdicional de reenvio considera que a redação imprecisa do artigo 42.°, n.° 3, da lei dos jogos de fortuna ou azar é suscetível de violar o princípio da igualdade de tratamento e o dever de transparência dele resultante, mas interroga‑se sobre se esta disposição legal não será necessária para reconhecer às autoridades locais uma certa liberdade na aplicação do regime relativo à organização dos jogos de fortuna ou azar, bem como na planificação do desenvolvimento territorial e social do município, o que não seria possível se a lei estabelecesse critérios mais rígidos.

15      Foi nestas condições que o Augstākās tiesas Senāts decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 49.° do Tratado que institui a Comunidade Europeia e o dever de transparência que lhe está associado devem ser interpretados no sentido de que é compatível com as restrições admissíveis à livre prestação de serviços a utilização, numa lei anunciada pública e antecipadamente, de um conceito jurídico indeterminado como o de ‘lesão substancial dos interesses do Estado e dos habitantes da área administrativa em causa’, conceito este que deverá ser concretizado caso a caso através de orientações interpretativas, mas que, ao mesmo tempo, permite uma certa flexibilidade na avaliação dessa lesão?»

 Quanto à questão prejudicial

 Quanto à admissibilidade

16      O Governo letão contesta a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial com o fundamento de que todos os elementos do processo principal estão confinados no interior de um único Estado‑Membro. Segundo este governo, na falta de um elemento transfronteiriço, a questão submetida é hipotética e não tem nenhuma ligação com o direito da União.

17      A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, compete exclusivamente ao tribunal nacional, que é chamado a conhecer do litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a proferir, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial, para poder proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, quando as questões tenham por objeto a interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (acórdão de 10 de março de 2009, Hartlauer, C‑169/07, Colet., p. I‑1721, n.° 24).

18      Daqui resulta que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar‑se a responder a uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional, quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (v., nomeadamente, acórdão de 1 de junho de 2010, Blanco Pérez e Chao Gómez, C‑570/07 e C‑571/07, Colet., p. I‑4629, n.° 36).

19      Ora, não é o que sucede no presente processo. Com efeito, a decisão de reenvio descreve, de forma suficiente, o quadro jurídico e factual do processo principal, e as indicações prestadas pelo órgão jurisdicional de reenvio permitem determinar o alcance da questão submetida.

20      No caso em apreço, é facto assente que a Garkalns é uma empresa letã, criada na Letónia, e que todos os elementos do processo principal estão circunscritos ao interior de um único Estado‑Membro. Todavia, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a resposta deste pode ser útil ao órgão jurisdicional de reenvio, mesmo em tais circunstâncias, nomeadamente na hipótese de o seu direito nacional o obrigar a reconhecer a um cidadão nacional direitos iguais àqueles de que um cidadão de outro Estado‑Membro deve beneficiar, na mesma situação, ao abrigo do direito da União (v., neste sentido, acórdão Blanco Pérez e Chao Gómez, já referido, n.° 39, e acórdão de 10 de maio de 2012, Duomo Gpa e o., C‑357/10 a C‑359/10, n.° 28).

21      Além disso, embora uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal, que é indistintamente aplicável aos nacionais letões e aos nacionais dos outros Estados‑Membros, regra geral, só seja abrangida pelas disposições relativas às liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado FUE na medida em que seja aplicável a situações que tenham um nexo com as trocas comerciais entre os Estados‑Membros, não se pode excluir que operadores estabelecidos em Estados‑Membros diferentes da República da Letónia tenham estado ou estejam interessados em abrir salas de jogos de fortuna ou azar no território letão (v., neste sentido, acórdão Blanco Pérez e Chao Gómez, já referido, n.° 40 e jurisprudência referida).

22      Nestas circunstâncias, há que julgar admissível o pedido de decisão prejudicial.

 Quanto à identificação das disposições do direito da União que devem ser objeto de interpretação

23      O Governo letão expressou dúvidas quanto à pertinência da referência, na questão prejudicial, ao artigo 49.° CE, entendendo que só o artigo 43.° CE pode ser aplicável a uma situação como a que está em causa no processo principal.

24      A este respeito, há que recordar que, como resulta de jurisprudência constante, as atividades que consistem em permitir que os utilizadores participem, contra remuneração, num jogo a dinheiro constituem atividades de serviços na aceção do artigo 49.° CE (acórdão de 8 de setembro de 2010, Stoß e o., C‑316/07, C‑358/07 a C‑360/07, C‑409/07 e C‑410/07, Colet., p. I‑8069, n.° 56 e jurisprudência referida).

25      Por conseguinte, prestações como as que estão em causa no processo principal podem ser abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 49.° CE, exceto se o artigo 43.° CE for aplicável.

26      No que respeita à delimitação dos âmbitos de aplicação respetivos dos princípios da livre prestação de serviços e da liberdade de estabelecimento, importa determinar se o operador económico está ou não estabelecido no Estado‑Membro onde oferece o serviço em questão (v., neste sentido, acórdão de 30 de novembro de 1995, Gebhard, C‑55/94, Colet., p. I‑4165, n.° 22). Quando esteja estabelecido no Estado‑Membro onde oferece esse serviço, fica abrangido pelo âmbito de aplicação do princípio da liberdade de estabelecimento, conforme definido no artigo 43.° CE. Quando, pelo contrário, o operador económico não esteja estabelecido no Estado‑Membro de destino, é um prestador transfronteiriço abrangido pelo princípio da livre prestação de serviços previsto no artigo 49.° CE (v. acórdão Duomo Gpa e o., já referido, n.° 30 e jurisprudência referida).

27      Neste contexto, o conceito de estabelecimento implica que o operador proponha os seus serviços, de modo estável e continuado, a partir de um estabelecimento no Estado‑Membro de destino. Em contrapartida, constituem «prestações de serviços», na aceção do artigo 49.° CE, todas as prestações que não sejam propostas, de modo estável e continuado, a partir de um estabelecimento no Estado‑Membro de destino (v. acórdão, Duomo Gpa e o., já referido, n.° 31 e jurisprudência referida).

28      Decorre igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que nenhuma disposição do Tratado CE permite determinar, em abstrato, a duração ou a frequência a partir da qual a prestação de um serviço ou de um certo tipo de serviço deixa de poder ser considerada uma prestação de serviços, de modo que o conceito de «serviço» na aceção do referido Tratado pode abranger serviços de natureza muito diferente, incluindo serviços cuja prestação se efetua ao longo de um período alargado, ou mesmo de vários anos (v. acórdão Duomo Gpa e o., já referido, n.° 32 e jurisprudência referida).

29      Resulta do exposto que uma disposição como a que está em causa no processo principal pode, em princípio, ser abrangida pelo âmbito de aplicação tanto do artigo 43.° CE como do artigo 49.° CE.

30      De qualquer forma, há que recordar que, no âmbito de um processo regulado pelo artigo 267.° TFUE, o qual é baseado na clara separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, qualquer apreciação dos factos da causa principal é da competência do tribunal nacional (acórdão Stoß e o., já referido, n.° 62 e jurisprudência referida).

31      Deste modo, é ao órgão jurisdicional de reenvio que cabe determinar, tendo em conta as circunstâncias específicas do caso que lhe é submetido, se a situação em causa no processo principal está abrangida pelo artigo 43.° CE ou pelo artigo 49.° CE.

32      Uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio formulou a questão prejudicial com base no artigo 49.° CE, importa apreciá‑la à luz deste artigo.

 Quanto ao mérito

33      Através da sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que confia às autoridades locais um amplo poder de apreciação que lhes permite recusar uma licença de abertura de um casino, de uma sala de jogos ou de uma sala de bingo, com fundamento numa «lesão substancial dos interesses do Estado e dos habitantes da área administrativa em causa».

34      A título preliminar, importa recordar que uma regulamentação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que proíbe o exercício de atividades no setor dos jogos de fortuna ou azar na falta de uma licença prévia das autoridades administrativas, constitui uma restrição à livre prestação de serviços garantida pelo artigo 49.° CE (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão de 6 de março de 2007, Placanica e o., C‑338/04, C‑359/04 e C‑360/04, Colet., p. I‑1891, n.° 42).

35      No caso em apreço, importa todavia apreciar se tal restrição pode ser admitida a título das medidas derrogatórias, por razões de ordem pública, de segurança pública e de saúde pública, expressamente previstas nos artigos 45.° CE e 46.° CE, aplicáveis nesta matéria nos termos do artigo 55.° CE, ou justificada, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, por razões imperiosas de interesse geral (v., neste sentido, acórdão de 8 de setembro de 2009, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, C‑42/07, Colet., p. I‑7633, n.° 55, e despacho de 28 de outubro de 2010, Bejan, C‑102/10, n.° 44).

36      A este respeito, o Tribunal de Justiça tem repetidamente declarado que a regulamentação dos jogos de fortuna ou azar é um dos domínios em que há divergências consideráveis de ordem moral, religiosa e cultural entre os Estados‑Membros. Na falta de harmonização na matéria, compete a cada Estado‑Membro apreciar, nesses domínios, segundo a sua própria escala de valores, o que é exigido para assegurar a proteção dos interesses em questão (acórdão Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.° 57 e jurisprudência referida).

37      No entanto, as restrições impostas pelos Estados‑Membros devem preencher as condições que resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça a respeito da sua proporcionalidade e devem ser aplicadas de maneira não discriminatória. Deste modo, uma legislação nacional só é apta a garantir a realização do objetivo invocado se responder verdadeiramente à intenção de o alcançar de uma maneira coerente e sistemática (v., neste sentido, acórdão Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.os 59 a 61 e jurisprudência referida).

38      Como o Tribunal de Justiça já declarou, neste domínio específico, as autoridades nacionais beneficiam de um poder de apreciação suficiente para determinar as exigências que a proteção do consumidor e da ordem social comporta, e, desde que os requisitos estabelecidos pela sua jurisprudência sejam também respeitados, cabe a cada Estado‑Membro apreciar se, no contexto dos objetivos legítimos que prossegue, é necessário proibir total ou parcialmente as atividades relativas a jogos e apostas, ou apenas restringi‑las e, para esse efeito, prever modalidades de controlo mais ou menos estritas (v., neste sentido, acórdão Stoß e o., já referido, n.° 76, e acórdão de 8 de setembro de 2010, Carmen Media Group, C‑46/08, Colet., p. I‑8149, n.° 46).

39      A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as restrições às atividades de jogos de fortuna ou azar podem ser justificadas por razões imperiosas de interesse geral, como a proteção dos consumidores e a prevenção da fraude e da incitação dos cidadãos a uma despesa excessiva associada ao jogo (v., neste sentido, acórdão Carmen Media Group, já referido, n.° 55 e jurisprudência referida).

40      No caso em apreço, não é contestado que o objetivo prosseguido pela regulamentação nacional em causa, nomeadamente a proteção dos interesses dos habitantes da vizinhança e dos potenciais consumidores contra os riscos associados aos jogos de fortuna ou azar, pode constituir uma razão imperiosa de interesse geral, suscetível de justificar a restrição à livre prestação de serviços em causa.

41      Nestas condições, importa verificar se a restrição à livre prestação de serviços imposta pela regulamentação nacional em causa no processo principal é adequada para garantir a realização do objetivo da proteção dos consumidores contra os riscos associados ao jogo e se não excede o que é necessário para alcançar esse objetivo.

42      Além disso, para respeitar o princípio da igualdade de tratamento e o dever de transparência que dele decorre, um regime de licenciamento dos jogos de fortuna ou azar deve basear-se em critérios objetivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente, de forma a enquadrar o exercício do poder de apreciação das autoridades, para que este não seja utilizado de forma arbitrária (v., neste sentido, acórdão Sporting Exchange, já referido, n.° 50).

43      A fim de permitir um controlo da imparcialidade dos processos de licenciamento, é também necessário que as autoridades competentes fundamentem todas as suas decisões num raciocínio acessível ao público, indicando de forma precisa, quando for o caso, por que razões uma licença foi recusada.

44      A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais garantir, nomeadamente em face das modalidades concretas de aplicação da regulamentação restritiva em causa, que esta responde verdadeiramente à intenção de reduzir as oportunidades de jogo e de limitar as atividades nesse domínio, de maneira coerente e sistemática (v., neste sentido, acórdão Carmen Media Group, já referido, n.° 65 e jurisprudência citada).

45      No caso em apreço, não se pode contestar que, como resulta da decisão de reenvio, ao permitir recusar uma licença de abertura de uma sala de jogos de fortuna ou azar, com fundamento numa lesão substancial dos interesses do Estado e dos habitantes da área administrativa em causa, a legislação nacional em questão no processo principal confia às autoridades administrativas um amplo poder no que respeita à apreciação, designadamente, da natureza dos interesses que entende proteger.

46      Um poder de apreciação como o que está em causa no processo principal poderia ser justificado se a própria regulamentação nacional tivesse por objetivo responder realmente à intenção de reduzir as oportunidades de jogo e de limitar as atividades nesse domínio, de maneira coerente e sistemática, ou de assegurar a tranquilidade dos habitantes da vizinhança ou ainda, de um modo geral, a ordem pública, reconhecendo, para o efeito, às autoridades locais, uma certa liberdade na aplicação do regime relativo à organização dos jogos de fortuna ou azar.

47      Por conseguinte, a fim de apreciar a proporcionalidade da regulamentação nacional em causa, compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar que o Estado exerce um controlo estrito sobre as atividades associadas aos jogos de fortuna ou azar, que a recusa, por parte das autoridades locais, de licenciar a abertura de novos estabelecimentos deste tipo prossegue realmente o objetivo de proteção dos consumidores alegado e que o critério da «lesão substancial dos interesses do Estado e dos habitantes da área administrativa em causa» é aplicado de maneira não discriminatória.

48      Tendo em conta as considerações anteriores, há que responder à questão submetida que o artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que confia às autoridades locais um amplo poder de apreciação que lhes permite recusar uma licença de abertura de um casino, de uma sala de jogos ou de uma sala de bingo, com fundamento numa «lesão substancial dos interesses do Estado e dos habitantes da área administrativa em causa», desde que esta regulamentação tenha realmente por objetivo reduzir as oportunidades de jogo e limitar as atividades neste domínio, de maneira coerente e sistemática, ou assegurar a ordem pública, e desde que o exercício do poder de apreciação das autoridades competentes seja exercido de forma transparente, permitindo um controlo da imparcialidade dos processos de licenciamento, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 Quanto às despesas

49      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que confia às autoridades locais um amplo poder de apreciação que lhes permite recusar uma licença de abertura de um casino, de uma sala de jogos ou de uma sala de bingo, com fundamento numa «lesão substancial dos interesses do Estado e dos habitantes da área administrativa em causa», desde que esta regulamentação tenha realmente por objetivo reduzir as oportunidades de jogo e limitar as atividades neste domínio, de maneira coerente e sistemática, ou assegurar a ordem pública, e desde que o exercício do poder de apreciação das autoridades competentes seja exercido de forma transparente, permitindo um controlo da imparcialidade dos processos de licenciamento, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Assinaturas


* Língua do processo: letão.