Language of document : ECLI:EU:C:2013:629

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

3 de outubro de 2013 (*)

«Livre circulação de capitais — Legislação fiscal — Imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas — Juros pagos por uma sociedade residente em remuneração do mútuo concedido por uma sociedade com sede num país terceiro — Existência de ‘relações especiais’ entre estas sociedades — Regime de subcapitalização — Não dedutibilidade dos juros suportados relativamente à parte do endividamento considerada em excesso — Dedutibilidade em caso de juros pagos a uma sociedade residente no território nacional — Fraude e evasão fiscais — Expedientes puramente artificiais — Requisitos de plena concorrência — Proporcionalidade»

No processo C‑282/12,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Tribunal Central Administrativo Sul (Portugal), por decisão de 29 de maio de 2012, entrado no Tribunal de Justiça em 6 de junho de 2012, no processo

Itelcar — Automóveis de Aluguer Lda

contra

Fazenda Pública,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: L. Bay Larsen, presidente de secção, K. Lenaerts, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Quarta Secção, J. Malenovský, U. Lõhmus (relator) e M. Safjan, juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: V. Tourrès, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 11 de abril de 2013,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da Itelcar — Automóveis de Aluguer Lda, por P. Vidal Matos e D. Ortigão Ramos, advogados,

¾        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, J. Menezes Leitão e A. Cunha, na qualidade de agentes,

¾        em representação da Comissão Europeia, por M. Afonso e W. Roels, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 56.° CE e 58.° CE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Itelcar — Automóveis de Aluguer Lda (a seguir «Itelcar») à Fazenda Pública, a respeito da não dedutibilidade parcial dos juros pagos à GE Capital Fleet Services International Holding, Inc. (a seguir «GE Capital»), sociedade americana, em remuneração de mútuos concedidos por esta à Itelcar.

 Quadro jurídico português

3        O Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, na versão resultante do Decreto‑Lei n.o 198/2001, de 3 de julho de 2001, conforme alterado pela Lei n.o 60‑A/2005, de 30 de dezembro de 2005 (a seguir «CIRC»), prevê, no seu artigo 61.°, com a epígrafe «Subcapitalização»:

«1.      Quando o endividamento de um sujeito passivo para com entidade que não seja residente em território português ou em outro Estado membro da União Europeia com a qual existam relações especiais, nos termos definidos no n.° 4 do artigo 58.°, com as devidas adaptações, for excessivo, os juros suportados relativamente à parte considerada em excesso não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável.

2.      É equiparada à existência de relações especiais a situação de endividamento do sujeito passivo para com um terceiro que não seja residente em território português ou em outro Estado membro da União Europeia em que tenha havido prestação de aval ou garantia por parte de uma das entidades referidas no n.° 4 do artigo 58.°

3.      Existe excesso de endividamento quando o valor das dívidas em relação a cada uma das entidades referidas nos números anteriores, com referência a qualquer data do período de tributação, seja superior ao dobro do valor da correspondente participação no capital próprio do sujeito passivo.

4.      Para o cálculo do endividamento são consideradas todas as formas de crédito, em numerário ou em espécie, qualquer que seja o tipo de remuneração acordada, concedido pela entidade com a qual existem relações especiais, incluindo os créditos resultantes de operações comerciais quando decorridos mais de seis meses após a data do respetivo vencimento.

5.      Para o cálculo do capital próprio adiciona‑se o capital social subscrito e realizado com as demais rubricas como tal qualificadas pela regulamentação contabilística em vigor, exceto as que traduzem mais‑valias ou menos‑valias potenciais ou latentes, designadamente as resultantes de reavaliações não autorizadas por diploma fiscal ou da aplicação do método da equivalência patrimonial.

6.      Com exceção dos casos de endividamento perante entidade residente em país, território ou região com regime fiscal claramente mais favorável que conste de lista aprovada por portaria do Ministro de Estado e das Finanças, não é aplicável o disposto no n.° 1 se, encontrando‑se excedido o coeficiente estabelecido no n.° 3, o sujeito passivo demonstrar, tendo em conta o tipo de atividade, o setor em que se insere, a dimensão e outros critérios pertinentes e tomando em conta um perfil de risco da operação que não pressuponha o envolvimento das entidades com as quais tem relações especiais, que podia ter obtido o mesmo nível de endividamento e em condições análogas de uma entidade independente.

7.      A prova mencionada no número anterior deve integrar o processo de documentação fiscal a que se refere o artigo 121.°»

4        O artigo 58.°, n.° 4, do CIRC, para o qual remete o artigo 61.°, n.os 1 e 2, do mesmo código, tem a seguinte redação:

«Considera‑se que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, direta ou indiretamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre:

a)      uma entidade e os titulares do respetivo capital, ou os cônjuges, ascendentes ou descendentes destes, que detenham, direta ou indiretamente, uma participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;

b)      entidades em que os mesmos titulares do capital, respetivos cônjuges, ascendentes ou descendentes detenham, direta ou indiretamente, uma participação não inferior a 10% do capital ou dos direitos de voto;

c)      uma entidade e os membros dos seus órgãos sociais, ou de quaisquer órgãos de administração, direção, gerência ou fiscalização, e respetivos cônjuges, ascendentes e descendentes;

d)      entidades em que a maioria dos membros dos órgãos sociais, ou dos membros de quaisquer órgãos de administração, direção, gerência ou fiscalização, sejam as mesmas pessoas ou, sendo pessoas diferentes, estejam ligadas entre si por casamento, união de facto legalmente reconhecida ou parentesco em linha reta;

e)      entidades ligadas por contrato de subordinação, de grupo paritário ou outro de efeito equivalente;

f)      empresas que se encontrem em relação de domínio, nos termos em que esta é definida nos diplomas que estatuem a obrigação de elaborar demonstrações financeiras consolidadas;

g)      entidades entre as quais, por força das relações comerciais, financeiras, profissionais ou jurídicas entre elas, direta ou indiretamente estabelecidas ou praticadas, se verifica situação de dependência no exercício da respetiva atividade, nomeadamente quando ocorre entre si qualquer das seguintes situações:

1)      o exercício da atividade de uma depende substancialmente da cedência de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de know‑how detidos pela outra;

2)      o aprovisionamento em matérias‑primas ou o acesso a canais de venda dos produtos, mercadorias ou serviços por parte de uma dependem substancialmente da outra;

3)      uma parte substancial da atividade de uma só pode realizar‑se com a outra ou depende de decisões desta;

4)      o direito de fixação dos preços, ou condições de efeito económico equivalente, relativos a bens ou serviços transacionados, prestados ou adquiridos por uma encontra‑se, por imposição constante de ato jurídico, na titularidade da outra;

5)      pelos termos e condições do seu relacionamento comercial ou jurídico, uma pode condicionar as decisões de gestão da outra, em função de factos ou circunstâncias alheios à própria relação comercial ou profissional.

h)      uma entidade residente ou não residente com estabelecimento estável situado em território português e uma entidade sujeita a um regime fiscal claramente mais favorável residente em país, território ou região constante da lista aprovada por portaria do Ministro de Estado e das Finanças.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

5        A Itelcar é uma sociedade portuguesa cuja atividade consiste, designadamente, no aluguer de veículos automóveis ligeiros. Até 2005, o seu capital social era integralmente detido pela General Electric International (Benelux) BV, sociedade belga cujo capital social é detido, em mais de 10%, pela GE Capital. A partir de 2006, 99,98% do capital social da Itelcar passou a ser detido pela referida sociedade belga e 0,02%, pela GE Capital.

6        Em 23 de julho de 2001, entrou em vigor, por um período de dez anos, um contrato de mútuo celebrado entre a Itelcar e a GE Capital, que permitia à primeira sociedade utilizar uma linha de crédito em contrapartida do pagamento de juros à taxa Euribor, acrescida de um spread de 0,5%.

7        No âmbito deste contrato, o crédito concretamente utilizado pela Itelcar ascendeu a 122 072 179,97 euros, em 2004, 131 772 249,75 euros, em 2005, 212 113 789,46 euros, em 2006, e 272 113 789,46 euros, em 2007.

8        A Itelcar apresentou ao diretor‑geral dos impostos prova demonstrativa de que, para cada um dos anos de 2004 a 2007, o nível do seu endividamento para com a GE Capital poderia ter sido alcançado, em condições análogas, com uma entidade independente e de que o spread da taxa de juro convencionado com a GE Capital respeitava o princípio da plena concorrência.

9        Por notificações de 5 de dezembro de 2008 e 8 de janeiro de 2009, a Itelcar foi informada dos relatórios finais da inspeção tributária relativos às correções feitas à base tributável da referida sociedade para os anos de 2004 a 2007 nos termos do artigo 61.° do CIRC. Estes relatórios constataram um excesso de endividamento, na aceção do n.° 3 daquele artigo, e a insuficiência das provas apresentadas pela Itelcar em aplicação do n.° 6 do mesmo artigo.

10      Em 2009, a Itelcar apresentou duas reclamações graciosas das referidas correções. Uma vez que estas reclamações foram indeferidas, recorreu para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra. Este recurso foi julgado parcialmente improcedente, com o fundamento de que as disposições de direito nacional aplicadas ao caso não violavam o princípio da livre circulação de capitais consagrado no artigo 56.° CE.

11      A Itelcar interpôs recurso do acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra para o órgão jurisdicional de reenvio, que entende que a solução do litígio depende da conformidade das disposições pertinentes do CIRC com o direito da União.

12      Nestas condições, o Tribunal Central Administrativo Sul decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os artigos 63.° [TFUE] e 65.° [TFUE] (antigos artigos 56.° [CE] e 58.° [CE]) opõem‑se à legislação de um Estado‑Membro, como a do artigo 61.° CIRC [[…]] que, no âmbito de uma situação de endividamento de um sujeito passivo residente em Portugal para com entidade de país terceiro com a qual mantenha relações especiais nos termos do artigo 58.°, n.° 4, do CIRC, não permita a dedutibilidade como custo fiscal dos juros, relativos à parte do endividamento considerada em excesso nos termos do artigo 61.° n.° 3, do CIRC, suportados e pagos pelo sujeito passivo residente em território nacional nas mesmas circunstâncias que aos juros suportados e pagos por sujeito passivo residente em Portugal cujo excesso de endividamento se verifique perante uma entidade residente em Portugal com a qual mantenha relações especiais?»

 Quanto à questão prejudicial

13      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 56.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que, para efeitos de determinação do lucro tributável, não permite deduzir como custo os juros suportados relativamente à parte do endividamento qualificada de excessiva, pagos por uma sociedade residente a uma sociedade mutuante com sede num país terceiro, com a qual mantenha relações especiais, mas permite a dedução desses juros pagos a uma sociedade mutuante residente, com a qual a sociedade mutuária mantenha esse tipo de relações.

 Quanto à liberdade aplicável

14      Quanto à aplicabilidade do artigo 56.° CE às circunstâncias em causa no processo principal, há que constatar, à partida, que os mútuos e os créditos financeiros concedidos por não residentes a residentes constituem movimentos de capitais na aceção desta disposição, como é de resto indicado na rubrica VIII da nomenclatura reproduzida no anexo I da Diretiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de junho de 1988, para a execução do artigo 67.° do Tratado [artigo revogado pelo Tratado de Amesterdão] (JO L 178, p. 5), e nas suas notas explicativas (v., neste sentido, acórdão de 3 de outubro de 2006, Fidium Finanz, C‑452/04, Colet., p. I‑9521, n.os 41 e 42).

15      No entanto, o Governo português alega que a legislação em causa no processo principal constitui um regime baseado na existência de «relações especiais» resultante do facto de a entidade mutuante ter o poder de exercer, direta ou indiretamente, uma influência significativa nas decisões de gestão e de financiamento da entidade mutuária. O Tribunal de Justiça examinou esses regimes exclusivamente à luz da liberdade de estabelecimento, que não é aplicável a operações efetuadas, como no presente caso, com uma entidade com sede num país terceiro.

16      A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que, no caso de uma legislação nacional relativa ao tratamento fiscal de dividendos originários de um país terceiro, importa considerar que o exame do objeto dessa legislação é suficiente para apreciar se o referido tratamento fiscal está abrangido pelas disposições do Tratado CE relativas à livre circulação de capitais. Com efeito, uma vez que o capítulo do Tratado relativo à liberdade de estabelecimento não contém nenhuma disposição que alargue o âmbito de aplicação das suas disposições às situações que respeitem ao estabelecimento de uma sociedade de um Estado‑Membro num país terceiro ou ao estabelecimento de uma sociedade de um país terceiro num Estado‑Membro, tal legislação não é suscetível de ser abrangida pelo artigo 43.° CE (v. acórdão de 13 de novembro de 2012, Test Claimants in the FII Group Litigation, C‑35/11, n.os 96 e 97 e jurisprudência referida).

17      O Tribunal de Justiça também declarou que, quando resulte do objeto de uma legislação nacional desta natureza que a mesma só é aplicável às participações que permitam exercer uma influência efetiva nas decisões da sociedade em causa e determinar as respetivas atividades, os artigos 43.° CE e 56.° CE não podem ser invocados (acórdão Test Claimants in the FII Group Litigation, já referido, n.° 98).

18      Em contrapartida, uma legislação nacional relativa ao tratamento fiscal de dividendos provenientes de um país terceiro, que não se aplique exclusivamente às situações em que a sociedade‑mãe exerce uma influência decisiva na sociedade que distribui os dividendos, deve ser apreciada à luz do artigo 56.° CE. Por conseguinte, uma sociedade residente num Estado‑Membro pode invocar esta disposição para questionar a legalidade de uma legislação deste tipo, independentemente da importância da participação que detém na sociedade que procede à distribuição de dividendos estabelecida num país terceiro (acórdãos Test Claimants in the FII Group Litigation, já referido, n.° 99, e de 28 de fevereiro de 2013, Beker, C‑168/11, n.° 30).

19      Estas considerações são aplicáveis relativamente a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que respeita ao tratamento fiscal dos juros pagos por uma sociedade residente a uma sociedade mutuante com sede num país terceiro, com a qual mantém relações especiais. Com efeito, uma legislação deste tipo não estaria abrangida pelo artigo 43.° CE nem pelo artigo 56.° CE se dissesse apenas respeito às situações em que tal sociedade mutuante detivesse uma participação na sociedade mutuária residente que lhe permitisse exercer uma influência efetiva nesta última.

20      Quanto à legislação em causa no processo principal, como salientam a Itelcar e a Comissão Europeia, o conceito de «relações especiais», conforme definido no artigo 58.°, n.° 4, do CIRC, não visa apenas as situações em que a sociedade mutuante de um país terceiro exerce uma influência efetiva, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça acima referida, na sociedade mutuária residente, devido à sua participação no seu capital. Em particular, as situações enumeradas no referido n.° 4, alínea g), que dizem respeito a relações comerciais, financeiras, profissionais ou jurídicas entre as sociedades em questão, não implicam necessariamente uma participação da sociedade mutuante no capital da sociedade mutuária.

21      Na audiência, o Governo português indicou, todavia, em resposta a uma questão colocada pelo Tribunal de Justiça, que a referida legislação se aplica apenas às situações em que a sociedade mutuante detém uma participação direta ou indireta no capital da sociedade mutuária.

22      Ora, supondo que a aplicação da legislação em causa no processo principal se limita às situações de relações entre uma sociedade mutuária e uma sociedade mutuante que detém uma participação de, pelo menos, 10% do capital ou dos direitos de voto na primeira sociedade, ou entre sociedades em que os mesmos titulares detêm essa participação, conforme prevê o artigo 58.°, n.° 4, alíneas a) e b), do CIRC, há que concluir que uma participação desta importância não implica necessariamente que o titular dessa participação exerça uma influência efetiva nas decisões da sociedade de que é acionista (v., neste sentido, acórdãos de 13 de abril de 2000, Baars, C‑251/98, Colet., p. I‑2787, n.° 20, e de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C‑446/04, Colet., p. I‑11753, n.° 58).

23      Daqui decorre que uma sociedade residente pode, independentemente da existência de uma participação de uma sociedade mutuante de um país terceiro no seu capital, ou da importância dessa participação, invocar as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, para questionar a legalidade dessa legislação nacional (v., por analogia, acórdão de 13 de novembro de 2012, Test Claimants in the FII Group Litigation, já referido, n.° 104).

24      De resto, segundo a interpretação das referidas disposições quanto às relações com países terceiros, não existe, neste caso, o risco de as sociedades mutuantes com sede nestes, que não se enquadrem nos limites do âmbito de aplicação territorial da liberdade de estabelecimento, poderem beneficiar desta liberdade. Com efeito, contrariamente ao que o Governo português alegou na audiência, uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal não visa as condições de acesso ao mercado dessas sociedades no Estado‑Membro em questão, mas diz unicamente respeito ao tratamento fiscal dos juros suportados relativamente ao endividamento considerado excessivo contraído por uma sociedade residente para com uma sociedade de um país terceiro, com a qual mantém relações especiais na aceção do artigo 58.°, n.° 4, do CIRC (v., por analogia, acórdão de 13 de novembro de 2012, Test Claimants in the FII Group Litigation, já referido, n.° 100).

25      Daqui resulta que uma legislação como a que está em causa no processo principal deve ser examinada exclusivamente à luz da livre circulação de capitais consagrada no artigo 56.° CE.

 Quanto à existência de uma restrição e de eventuais justificações

26      Importa recordar que, de acordo com jurisprudência constante, embora a fiscalidade direta seja da competência dos Estados‑Membros, estes devem, todavia, exercer essa competência no respeito do direito da União (acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, n.° 14 e jurisprudência referida).

27      Resulta igualmente de jurisprudência constante que as medidas proibidas pelo artigo 56.°, n.° 1, CE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as medidas que sejam suscetíveis de dissuadir os não residentes de investirem num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes desse Estado‑Membro de investirem noutros Estados (acórdão de 25 de janeiro de 2007, Festersen, C‑370/05, Colet., p. I‑1129, n.° 24, e acórdão Santander Asset Management SGIIC e o., já referido, n.° 15).

28      No presente caso, resulta do artigo 61.°, n.° 1, do CIRC que, quando o endividamento de uma sociedade residente para com uma sociedade com sede num país terceiro, com a qual mantenha relações especiais na aceção do artigo 58.°, n.° 4, do CIRC, for considerado excessivo no sentido do n.° 3 do referido artigo 61.°, os juros suportados relativamente à parte considerada em excesso não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável da sociedade residente.

29      Em contrapartida, resulta também do artigo 61.°, n.° 1, do CIRC que esses juros são dedutíveis quando a sociedade mutuante reside no território português ou noutro Estado‑Membro.

30      Como reconhece o Governo português, na hipótese de o Tribunal de Justiça considerar que a situação em questão no processo principal se enquadra na livre circulação de capitais, esta situação implica um tratamento fiscal menos favorável de uma sociedade residente que contrai um endividamento que excede um certo nível para com uma sociedade com sede num país terceiro do que o tratamento reservado a uma sociedade residente que contrai o mesmo endividamento para com uma sociedade residente no território nacional ou noutro Estado‑Membro.

31      Esse tratamento desfavorável é suscetível de dissuadir uma sociedade residente de se endividar de uma maneira que é considerada excessiva para com uma sociedade com sede num país terceiro, com a qual mantém relações especiais na aceção da legislação em causa no processo principal. Consequentemente, constitui uma restrição à livre circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 56.° CE.

32      Segundo jurisprudência constante, essa restrição só pode ser admitida se se justificar por uma razão imperiosa de interesse geral. Mas é ainda necessário, nesse caso, que seja adequada para garantir a realização do objetivo em causa e não ultrapasse o que é necessário para atingir esse objetivo (v. acórdão de 13 de novembro de 2012, Test Claimants in the FII Group Litigation, já referido, n.° 55 e jurisprudência referida).

33      O Governo português alega que a legislação em causa no processo principal tem por objetivo o combate à fraude e evasão fiscais, ao impedir a prática da «subcapitalização» que consiste em reduzir a base tributável do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas em Portugal através do pagamento de juros dedutíveis em vez de lucros não dedutíveis. Esta prática tem por objetivo transferir arbitrariamente rendimentos tributáveis deste Estado‑Membro para um país terceiro, tendo por consequência que o lucro de uma sociedade não seja tributado no Estado onde foi gerado.

34      A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, uma medida nacional que restrinja a livre circulação de capitais pode ser justificada quando visa especificamente expedientes puramente artificiais, desprovidos de realidade económica, cujo único objetivo seja eludir o imposto normalmente devido sobre os lucros gerados por atividades exercidas no território nacional (v., neste sentido, acórdãos de 13 de março de 2007, Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation, C‑524/04, Colet., p. I‑2107, n.os 72 e 74, e de 17 de setembro de 2009, Glaxo Wellcome, C‑182/08, Colet., p. I‑8591, n.° 89).

35      Ao prever que certos juros pagos por uma sociedade residente a uma sociedade com sede num país terceiro, com a qual mantém relações especiais, não sejam dedutíveis para efeitos da determinação dos lucros tributáveis da sociedade residente, uma legislação como a que está em causa no processo principal é suscetível de evitar práticas cujo único objetivo seja eludir o imposto normalmente devido sobre os lucros gerados por atividades exercidas no território nacional. Por conseguinte, essa legislação é adequada para alcançar o objetivo de combate à fraude e evasão fiscais (v., por analogia, acórdão Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation, já referido, n.° 77).

36      No entanto, há que verificar se a referida legislação não ultrapassa o necessário para alcançar esse objetivo.

37      A este respeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que se pode considerar que não vai além do necessário para evitar a fraude e evasão fiscais uma legislação que se baseia numa análise de elementos objetivos e verificáveis para determinar se uma transação tem caráter de expediente puramente artificial apenas para fins fiscais e que, sempre que a existência desse expediente não possa ser excluída, permite ao contribuinte, sem o submeter a contingências administrativas excessivas, apresentar elementos relativos às eventuais razões comerciais pelas quais esta transação foi concluída (v., neste sentido, acórdãos Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation, já referido, n.° 82, e de 5 de julho de 2012, SIAT, C‑318/10, n.° 50).

38      Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça já declarou que, quando a transação em causa ultrapasse o que as sociedades tinham acordado em circunstâncias de plena concorrência, a fim de não ser considerada desproporcionada, a medida fiscal de correção deve limitar‑se à fração que ultrapasse o que tinha sido acordado nessas circunstâncias (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation, n.° 83, e SIAT, n.° 52).

39      Neste caso, é certo, por um lado, que o artigo 61.°, n.° 6, do CIRC prevê que, com exceção dos casos de endividamento perante entidade residente em país, território ou região com regime fiscal claramente mais favorável, a sociedade residente que contraiu um endividamento considerado excessivo para com uma sociedade de um país terceiro, com a qual mantém relações especiais, pode demonstrar que podia ter obtido o mesmo nível de endividamento, em condições análogas, de uma entidade independente. Por outro lado, por força do artigo 61.°, n.° 1, do CIRC, apenas os juros suportados relativamente à parte considerada em excesso não são dedutíveis.

40      Todavia, uma legislação como a que está em causa no processo principal ultrapassa o que é necessário para alcançar o seu objetivo.

41      Com efeito, como decorre do n.° 20 do presente acórdão, o conceito de «relações especiais», conforme definido no artigo 58.°, n.° 4 do CIRC, engloba situações que não implicam necessariamente uma participação da sociedade mutuante de um país terceiro no capital da sociedade mutuária residente. Na falta de tal participação, resulta do modo de cálculo do excesso de endividamento previsto no artigo 61.°, n.° 3, do CIRC que qualquer endividamento existente entre estas duas sociedades deveria ser considerado excessivo.

42      Há que concluir que, nas circunstâncias descritas no número anterior, a legislação em causa no processo principal afeta também comportamentos cuja realidade económica não pode ser contestada. A referida legislação, ao presumir nessas circunstâncias uma erosão da base tributável do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas devido pela sociedade mutuária residente, vai além do que é necessário para alcançar o seu objetivo.

43      Por outro lado, na medida em que, segundo as indicações do Governo português resumidas no n.° 21 do presente acórdão, a legislação em causa no processo principal só se aplica às situações em que a sociedade mutuante detenha uma participação direta ou indireta no capital da sociedade mutuária, pelo que não se verifica a circunstância evocada no n.° 41 do presente acórdão, a verdade é que essa limitação do âmbito de aplicação desta legislação não decorre da sua redação que, pelo contrário, parece sugerir que também são abrangidas as relações especiais em que não existe essa participação.

44      Nestas circunstâncias, a referida legislação não permite determinar previamente e com precisão suficiente o seu âmbito de aplicação. Consequentemente, não satisfaz as exigências da segurança jurídica segundo as quais as regras de direito devem ser claras, precisas e previsíveis nos seus efeitos, em especial quando podem ter consequências desfavoráveis para os indivíduos e as empresas. Ora, uma regra que não satisfaça as exigências do princípio da segurança jurídica não pode ser considerada proporcionada aos objetivos prosseguidos (v. acórdão SIAT, já referido, n.os 58 e 59).

45      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 56.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que, para efeitos da determinação do lucro tributável, não permite a deduzir como custo os juros suportados relativamente à parte do endividamento qualificada de excessiva, pagos por uma sociedade residente a uma sociedade mutuante com sede num país terceiro, com a qual mantenha relações especiais, mas permite a dedução desses juros pagos a uma sociedade mutante residente, com a qual a sociedade mutuária mantenha esse tipo de relações, quando, em caso de não participação da sociedade mutuante com sede num país terceiro no capital da sociedade mutuária residente, esta legislação presume, contudo, que qualquer endividamento desta última tem a natureza de um expediente cujo objetivo é eludir o imposto normalmente devido ou quando a referida legislação não permite determinar previamente e com precisão suficiente o seu âmbito de aplicação.

 Quanto às despesas

46      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O artigo 56.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que, para efeitos da determinação do lucro tributável, não permite deduzir como custo os juros suportados relativamente à parte do endividamento qualificada de excessiva, pagos por uma sociedade residente a uma sociedade mutuante com sede num país terceiro, com a qual mantenha relações especiais, mas permite a dedução desses juros pagos a uma sociedade mutuante residente, com a qual a sociedade mutuária mantenha esse tipo de relações, quando, em caso de não participação da sociedade mutuante com sede num país terceiro no capital da sociedade mutuária residente, esta legislação presume, contudo, que qualquer endividamento desta última tem a natureza de um expediente cujo objetivo é eludir o imposto normalmente devido ou quando a referida legislação não permite determinar previamente e com precisão suficiente o seu âmbito de aplicação.

Assinaturas


* Língua do processo: português.