Language of document : ECLI:EU:C:1998:370

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

16 de Julho de 1998 (1)

«Direito de estabelecimento — Imposto sobre as sociedades — Transferência de uma sociedade para outra, no interior de um grupo, do direito a uma dedução fiscal por prejuízos comerciais — Condição atinente à sede das sociedades que compõem o grupo — Discriminação em razão da sede — Obrigações do tribunal nacional»

No processo C-264/96,

que tem por objecto um pedido apresentado ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado CE, pela House of Lords (Reino Unido), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Imperial Chemical Industries plc (ICI)

e

Kenneth Hall Colmer (Her Majesty's Inspector of Taxes),

uma decisão a título prejudicial sobre os artigos 5.° e 52.° do Tratado CE,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, H. Ragnemalm, M. Wathelet (relator) e R. Schintgen, presidentes de secção, G. F. Mancini, J. C. Moitinho de Almeida, J. L. Murray, D. A. O. Edward, P. Jann, L. Sevón e K. M. Ioannou, juízes,

advogado-geral: G. Tesauro


secretário: L. Hewlett, administradora,

vistas as observações escritas apresentadas:

—    em representação da Imperial Chemical Industries plc (ICI), por Peter Whiteman, QC, e Christopher Vajda, barrister, mandatados por Hammond Suddards, Solicitors,

—    em representação do Governo do Reino Unido, por John E. Collins, Assistant Treasury Solicitor, na qualidade de agente, assistido por Derrick Wyatt, QC, e Rabinder Singh, barrister,

—    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Peter Oliver e Hélène Michard, membros do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações da Imperial Chemical Industries plc (ICI), do Governo do Reino Unido e da Comissão, na audiência de 14 de Outubro de 1997,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 16 de Dezembro de 1997,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por despacho de 24 de Julho de 1996, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de Julho seguinte, a House of Lords colocou, nos termos do artigo 177.° do Tratado CE, duas questões prejudiciais relativas à interpretação dos artigos 5.° e 52.° do Tratado CE.

2.
    Essas questões foram suscitadas no quadro de um litígio que opõe a Imperial Chemical Industries plc (a seguir «ICI») à administração fiscal britânica, por esta se ter recusado a conceder à ICI uma dedução fiscal em virtude das perdas comerciais sofridas por uma filial da sociedade holding detida pela ICI através de um consórcio.

3.
    A ICI tem sede no Reino Unido e forma com a Wellcome Foundation Ltd, com sede igualmente nesse Estado-Membro, um consórcio através do qual detêm, à razão de 49% para a ICI e 51% para a Wellcome Foundation Ltd, a sociedade Coopers Animal Health (Holdings) Ltd (a seguir «Holdings»).

4.
    A Holdings tem por única actividade a detenção das acções de sociedades comerciais - 23 sociedades, ao todo - que são suas filiais e desenvolvem as suas actividades em numerosos países. Entre essas 23 filiais, quatro, entre as quais a Coopers Animal Health Ltd (a seguir «CAH»), têm sede no Reino Unido, seis noutros Estados-Membros e três em países terceiros.

5.
    As actividades comerciais da CAH no Reino Unido traduziram-se, para os exercícios encerrados em 1985, 1986 e 1987, num resultado deficitário. A ICI requereu, ao abrigo das section 258 a 264 do Income and Corporation Taxes Act 1970 (Lei de 1970 relativa ao imposto sobre os rendimentos e ao imposto sobre as sociedade, a seguir «Lei»), o benefício de uma dedução fiscal, deduzindo dos lucros tributáveis que tinha realizado durante os períodos correspondentes aos exercícios deficitários da CAH, num montante igual a 49% (ou seja, a taxa da sua participação na Holdings), os prejuízos registados por esta última.

6.
    As disposições da Lei que enunciam as condições e as modalidades de uma dedução como a que a ICI reivindica são as seguintes:

Section 258

«1.    A dedução por prejuízos comerciais e outros montantes que podem conferir direito a dedução nos impostos sobre sociedades pode, de acordo com as disposições seguintes do presente capítulo, ser cedida por uma empresa (designada 'empresa cedente') que faça parte de um grupo de empresas e, se for requerida por outra empresa (designada 'empresa requerente') que faça parte do mesmo grupo, ser concedida à empresa requerente por dedução do imposto sobre sociedades designada 'dedução de grupo'.

2.    A dedução de grupo pode também ser concedida de acordo com as referidas disposições se uma empresa cedente e uma empresa requerente fizerem, uma delas parte de um consórcio e a outra for

    a)    uma sociedade comercial ou industrial propriedade do consórcio e que não seja uma sociedade subsidiária a 75% de outra sociedade; ou

    b)    uma sociedade comercial ou industrial

        i)    que seja subsidiária a 90% de uma empresa holding que seja propriedade do consórcio; e

        ii)    que não seja subsidiária a 75% de outra sociedade que não a sociedade holding; ou

    c)    uma sociedade holding que seja propriedade do consórcio e não seja subsidiária a 75% de qualquer sociedade

...

5.    Para efeitos da presente subsection e seguintes do presente capítulo

    a)    duas sociedades são consideradas membros do mesmo grupo de sociedades se uma for subsidiária da outra a 75% ou se ambas forem subsidiárias de uma terceira a 75%,

    b)    'sociedade holding' é uma sociedade cuja actividade consiste no todo ou principalmente na detenção de acções ou obrigações de sociedades que sejam suas subsidiárias a 90% e que sejam sociedades comerciais ou industriais.

    c)    'sociedade comercial ou industrial (trading)' é uma sociedade cuja actividade consiste no todo ou principalmente em comércio ou indústria.

...

7.    Para efeitos desta section e das seguintes do presente capítulo, por sociedade entende-se apenas uma pessoa colectiva com sede no Reino Unido; ao determinar, para os efeitos desta section e das seguintes do presente capítulo, se uma sociedade é uma subsidiária a 75% de outra sociedade, a primeira será considerada como não sendo detentora

    a)    de qualquer parte do capital por acções que possua directamente numa pessoa colectiva se qualquer lucro resultante da venda das acções for considerado como uma receita comercial resultante do seu comércio ou indústria, ou

    b)    de qualquer parte do capital por acções que possua indirectamente, e que é propriedade directa de uma pessoa colectiva, em relação ao qual qualquer lucro resultante da venda das acções seja considerado uma receita comercial, ou

    c)    de qualquer parte do capital de que seja proprietária, directa ou indirectamente, uma pessoa colectiva com sede fora do Reino Unido.

8.    Para efeito desta section e das seguintes do presente capítulo, uma sociedade é propriedade de um consórcio se 75% ou mais do capital

comum por acções da sociedade for propriedade (beneficially owned), entre si, de sociedades das quais nenhuma é proprietária (beneficially owns) de menos de um vigésimo desse capital, sendo essas sociedades designadas por membros do consórcio.»

Section 259

«1)    Se, em qualquer período contabilístico, a sociedade cedente tiver prejuízo, calculado para os efeitos da subsection (2) da section 177 do presente Act, no exercício do seu comércio ou indústria, o montante do prejuízo pode ser deduzido, para efeitos do imposto sobre sociedades, dos lucros totais da sociedade requerente no seu correspondente período contabilístico...»

7.
    A dedução fiscal solicitada pela ICI foi-lhe recusada. A administração fiscal baseou esta recusa no facto de a Holdings não constituir uma sociedade holding na acepção da section 258 (5) (b), lida em conjugação com a subsection 7. Mesmo que a actividade da Holdings consistisse apenas na detenção de acções ou títulos de sociedades que são suas filiais em 90% e que são sociedades comerciais, a frase introdutória da subsection 7 proibia que lhe fosse reconhecida a qualidade de sociedade holding, com as vantagens que daí decorrem, na acepção da subsection 5 (b), pois a maioria das suas filiais, ou seja, 19 em 23, não são sociedades comerciais com sede no Reino Unido e uma vez que a sua actividade principal não é, portanto, a que decorre dessa qualidade.

8.
    Contestando essa interpretação do direito nacional, a ICI interpôs recurso contencioso da decisão de indeferimento, que a High Court e, mais tarde, a Court of Appeal acolheram.

9.
    A administração fiscal interpôs recurso para a House of Lords, que considerou que, nos termos da Lei, se justificava a recusa da administração fiscal, embora entendesse dever examinar a argumentação fundada no direito comunitário que a ICI tinha desenvolvido para contestar essa recusa.

10.
    A esse propósito, a ICI sustentou que a exigência de a actividade da sociedade holding consistir, no todo ou principalmente, na detenção de participações de sociedades com sede no Reino Unido restringia, através de um regime fiscal discriminatório, a liberdade de estabelecimento das sociedades, violando assim os artigos 52.° e 58.° do Tratado CE.

11.
    Essa discriminação resultava do facto de a dedução fiscal por prejuízos sofridos por uma sociedade com sede nesse país detida através de uma sociedade holding, com sede igualmente no mesmo país, ser concedida, ao nível dos membros de um consórcio, caso a sociedade holding controle no todo ou principalmente filiais com sede nesse país, enquanto é recusada, em idêntica situação, se essa mesma

sociedade holding, porque fez uso da liberdade de estabelecimento que lhe garante o Tratado CE, controlar principalmente filiais com sede noutros Estados-Membros.

12.
    Segundo a ICI, face a uma tal discriminação, cabia ao tribunal nacional, mesmo numa situação como aquela que foi submetida à House of Lords, em que a sociedade holding controla 23 filiais, das quais apenas 10 têm sede no Reino Unido ou noutro Estado-Membro, afastar, por incompatibilidade com o direito comunitário, a condição da sede imposta pela Lei.

13.
    A House of Lords entendeu que as questões da compatibilidade, na perspectiva das regras do Tratado, das condições de localização da sede a que a Lei subordina a concessão da dedução reivindicada pela ICI e da atitude que o tribunal nacional, se essa lei se revelar contrária ao direito comunitário, deve adoptar face a tal situação implicam uma interpretação do direito comunitário. Por conseguinte, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

«1.    Numa situação em que:

    (i)    Uma sociedade (sociedade A) tem sede num Estado-Membro da União Europeia.

    (ii)    A sociedade A faz parte de um consórcio com outra sociedade (sociedade B) também com sede nesse Estado-Membro.

    (iii)    As sociedades A e B detêm conjuntamente uma sociedade holding (sociedade C) também com sede nesse Estado-Membro.

    (iv)    A sociedade C tem um certo número de sociedades comerciais ou industriais subsidiárias, umas com sede nesse Estado-Membro, outras com sede noutros Estados-Membros da União Europeia, outras ainda com sede noutras partes do Mundo, e

    (v)    A sociedade A está impedida de reclamar a dedução do seu imposto sobre sociedades, relativamente a prejuízos sofridos por uma sociedade comercial ou industrial subsidiária (também com sede nesse Estado-Membro) da sociedade C, porque a legislação nacional, interpretada de acordo com os princípios da lei nacional, exige que as actividades da sociedade C consistam, no todo ou principalmente, na detenção de acções de sociedades subsidiárias que tenham a sua sede nesse Estado-Membro.

    Constitui a condição referida em (v) uma restrição à liberdade de estabelecimento a que se refere o artigo 52.° do Tratado CE? Se assim for, tem esse tratamento justificação em termos de direito comunitário?

2.    Se a condição referida em (v) constituir uma injustificada restrição nos termos do direito comunitário, exige o artigo 5.° do Tratado CE que um tribunal nacional interprete a legislação nacional pertinente, na medida do possível, de modo a dar cumprimento ao direito comunitário, ainda que nenhuma das sociedades A, B ou C, procure exercer quaisquer direitos que lhe sejam conferidos pelo direito comunitário e mesmo que uma interpretação da lei nacional de modo a dar cumprimento ao direito comunitário tenha por efeito permitir a dedução quando as actividades da sociedade C tenham consistido principalmente na detenção de acções em sociedade subsidiárias com sede fora da CE/EEE? Ou tem o artigo 5.° apenas a consequência de que a lei nacional, apesar da sua interpretação, produz efeitos de acordo com as exigências do direito comunitário quando essas exigências estiverem em causa?»

Quanto à admissibilidade das questões submetidas

14.
    O Governo do Reino Unido manifestou dúvidas quanto à pertinência da primeira questão para efeitos da solução do litígio no processo principal. Sustentou que, mesmo que se devesse declarar que a lei comporta uma restrição à liberdade de estabelecimento incompatível com o artigo 52.° do Tratado, isso seria irrelevante para efeitos da solução do litígio no processo principal. Com efeito, a dedução fiscal prevista pela lei seria, de qualquer forma, recusada à ICI, pois a maioria das sociedades controladas pela Holdings, ou seja, 13 em 23, têm a sua sede não noutros Estados-Membros, mas em países terceiros.

15.
    Recorde-se, a este respeito, que, segundo jurisprudência constante, é da competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais, que são chamados a conhecer do litígio e aos quais cabe a responsabilidade pela decisão a proferir, apreciar, tendo em conta as particularidades de cada caso, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial, para poderem proferir decisão, como a pertinência das questões submetidas ao Tribunal (v., nomeadamente, acórdãos de 27 de Outubro de 1993, Enderby, C-127/92, Colect., p. I-5535, n.° 10; de 3 de Março de 1994, Eurico Italia e o., C-332/92, C-333/92 e C-335/92, Colect., p. I-711, n.° 17, e de 7 de Julho de 1994 McLachlan, C-146/93, Colect., p. I-3229, n.° 20). A rejeição de um pedido formulado por um órgão jurisdicional nacional é possível se for manifesto que a interpretação do direito comunitário ou o exame da validade de uma norma comunitária, solicitados por esse órgão jurisdicional, não têm qualquer relação com a realidade ou com o objecto do litígio no processo principal (acórdãos de 6 de Julho de 1995, BP Soupergaz, C-62/93, Colect., p. I-1883, n.° 10, e de 26 de Outubro de 1995, Furnalis, C-143/94, Colect., p. I-3633, n.° 12).

16.
    Não é no entanto isto o que se verifica no caso do processo principal. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio dá conta de uma divergência de opinião no que toca à interpretação da exigência que figura na section 258 (5), segundo a qual, para constituir uma sociedade holding na acepção da lei, é necessário deter no todo

ou principalmente as participações de sociedades com sede no Reino Unido, e, mais particularmente, da noção de controlo de uma maioria de filiais com sede no Reino Unido, implicando uma das interpretações possíveis a fiscalização da compatibilidade da lei com o artigo 52.° do Tratado.

17.
    Nestas condições, importa examinar as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de renvio.

Quanto ao mérito

Quanto à primeira questão

18.
    Através da sua primeira questão, o órgão jurisdicional de renvio pretende, em substância, saber se o artigo 52.° do Tratado se opõe a uma legislação de um Estado-Membro que, no que toca às sociedades com sede nesse Estado-Membro e que fazem parte de um consórcio através do qual detêm uma sociedade holding, subordina o direito a uma dedução fiscal à condição de a actividade da sociedade holding consistir no todo ou principalmente na detenção das acções de filiais com sede no Estado-Membro em causa.

19.
    A título preliminar, há que recordar que, embora a fiscalidade directa seja da competência dos Estados-Membros, não é menos verdade que estes últimos a devem exercer no respeito do direito comunitário (v. acórdãos de 14 de Fevereiro de 1995, Schumacker, C-279/93, Colect., p. I-225, n.° 21; de 11 de Agosto de 1995, Wielockx, C-80/94, Colect., p. I-2493, n.° 16; de 27 de Junho de 1996, Asscher, C-107/94, Colect., p. I-3089, n.° 36, e de 15 de Maio de 1997, Futura Participations e Singer, C-250/95, Colect., p. I-2471, n.° 19).

20.
    Deve salientar-se, em seguida, que, segundo uma jurisprudência constante, a liberdade de estabelecimento, que o artigo 52.° reconhece aos nacionais dos Estados-Membros e que comporta o acesso destes às actividades não assalariadas e ao seu exercício nas mesmas condições que as definias pela legislação do Estado-Membro de estabelecimento para os seus próprios nacionais, implica, nos termos do artigo 58.° do Tratado, para as sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado-Membro e que tenham a sua sede estatutária, a sua administração central ou o seu principal estabelecimento no interior da Comunidade, o direito de exercer a sua actividade no Estado-Membro em questão, por intermédio de uma sucursal ou agência. Para as sociedades, importa observar, neste contexto, que a sua sede, na acepção acima referida, serve para determinar, à semelhança da nacionalidade para as pessoas singulares, a sua subordinação à ordem jurídica de um Estado (acórdãos de 28 de Janeiro de 1986, Comissão/França, 270/83, Colect., p. 273, n.° 18, e de 13 de Julho de 1993, Commerzbank, C-330/91, Colect., p. I-4017, n.° 13).

21.
    Importa esclarecer, além disso, que, embora, de acordo com o seu teor, as disposições relativas à liberdade de estabelecimento visem nomeadamente

assegurar o benefício do tratamento nacional no Estado-Membro de acolhimento, impedem igualmente que o Estado de origem levante obstáculos ao estabelecimento noutro Estado-membro dos seus nacionais ou de uma sociedade constituída em conformidade com a sua legislação e que, além disso, corresponda à definição do 58.° do Tratado (Acórdão de 7 de Setembro de 1988, Daily Mail and General Trust, 81/87, Colect., p. 5483, n.° 16).

22.
    Deve reconhecer-se, a este propósito, que a legislação em causa no processo principal recusa às sociedades de consórcio com sede nesse Estado que, por intermédio de uma sociedade holding, fizeram uso do seu direito de livre estabelecimento para criar filiais noutros Estados-Membros o benefício da dedução fiscal por prejuízos sofridos por uma filial da sociedade holding com sede nesse Estado, quando essa sociedade holding controla principalmente filiais com sede fora do Reino Unido.

23.
    Tal legislação utiliza portanto o critério da sede das filiais controladas para instituir um tratamento fiscal diferenciado das sociedades de consórcio com sede no Reino Unido. Com efeito, reserva a concessão do benefício fiscal que constitui a dedução de consórcio apenas para as sociedades que no todo ou principalmente controlam filiais que têm a sua sede no território nacional.

24.
    Importa, por isso, levantar a questão da eventual justificação dessa desigualdade de tratamento à luz das disposições do Tratado sobre a liberdade de estabelecimento.

25.
    A esse propósito, o Governo do Reino Unido alegou que, em matéria de fiscalidade directa, as situações das sociedades com sede nesse Estado e das que aí não a têm não são, regra geral, comparáveis e avançou dois tipos de justificações. Em primeiro lugar, a legislação em causa visava reduzir o risco de evasão fiscal, que estava ligado, no caso em apreço, à eventualidade de os membros de um consórcio organizarem uma transferência de despesas das filiais que não têm a sua sede nesse Estado para uma filial que aí a tenha e velarem, inversamente, para que os lucros surjam nas filiais que aí não têm a sua sede. A legislação em causa visava, portanto, evitar que a criação de filiais no estrangeiro fosse utilizada para subtrair recursos tributáveis ao fisco britânico. Em seguida, visava evitar uma redução das receitas resultante apenas da existência de filiais que não têm a sua sede nesse Estado e que decorria da impossibilidade do fisco britânico compensar a redução do imposto resultante da dedução dos prejuízos das filiais que aí têm a sua sede pela tributação dos lucros das filiais situadas fora do Reino Unido.

26.
    No que toca à justificação baseada no risco de evasão fiscal, basta sublinhar que a legislação em causa no processo principal não tem por objectivo específico excluir de um benefício fiscal os expedientes puramente artificiais cuja finalidade era contornar a lei fiscal do Reino Unido, mas visa, de maneira geral, qualquer

situação em que a maioria das sociedades filiais de um grupo tenha a sua sede, por qualquer razão, fora do Reino Unido. Ora, o estabelecimento de uma sociedade fora do Reino Unido não implica, em si, a evasão fiscal, pois a sociedade em questão fica de qualquer forma sujeita à legislação fiscal do Estado de estabelecimento.

27.
    Além disso, no caso em apreço, o risco de transferência de despesas que a legislação em causa visa evitar não decorre de forma nenhuma da existência ou não de uma maioria de filiais com sede, ou não, no Reino Unido. Com efeito, basta que exista apenas uma filial que aí não tenha a sua sede para que o risco invocado pelo Governo do Reino Unido se possa concretizar.

28.
    Quanto ao argumento relativo à impossibilidade de compensar a redução de imposto resultante da dedução das perdas das filiais que aí têm a sua sede com a tributação dos lucros das filiais com sede fora do Reino Unido, há que assinalar que a redução de receitas fiscais que daí resulta não figura entre as razões enunciadas no artigo 56.° do Tratado e não pode ser considerada uma razão imperiosa de interesse geral que possa ser invocada para justificar uma desigualdade de tratamento em princípio incompatível com o artigo 52.° do Tratado.

29.
    É verdade que o Tribunal de Justiça considerou que a necessidade de assegurar a coerência de um regime fiscal podia, em certas circunstâncias, justificar uma regulamentação susceptível de restringir as liberdades fundamentais (v., neste sentido, acórdãos de 28 de Janeiro de 1992, Bachmann, C-204/90, Colect, p. I-249, e Comissão/Bélgica, C-300/90, Colect., p. I-305). Todavia, nos processos já referidos, existia uma relação directa entre a possibilidade de dedução das cotizações, por um lado, e a tributação das somas devidas pelas seguradoras em execução dos contratos de seguro de velhice e morte, por outro, relação essa que era necessário preservar para salvaguardar a coerência do sistema fiscal em causa. No caso em apreço, não existe nenhuma relação directa dessa natureza entre, por um lado, a dedução fiscal, na esfera da sociedade de consórcio, das perdas sofridas por uma das suas filiais com sede no Reino Unido e, por outro, a tributação dos lucros das filiais com sede fora do Reino Unido.

30.
    Por conseguinte, deve responder-se à primeira questão que o artigo 52.° do Tratado se opõe a uma legislação de um Estado-Membro que, no que toca às sociedades com sede nesse Estado-Membro que integram um consórcio através do qual detêmuma sociedade holding e exercem o seu direito de livre estabelecimento para criar, através dessa sociedade holding, filiais noutros Estados-Membros, subordina o direito a uma dedução fiscal à condição de a actividade da sociedade holding consistir, no todo ou principalmente, na detenção das acções de filiais com sede no Estado-Membro em causa.

Quanto à segunda questão

31.
    Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional nacional pretende, em substância, que se precise o alcance da obrigação de cooperação leal estabelecida no artigo 5.° do Tratado. Mais precisamente, uma vez que da resposta à primeira questão decorria que a legislação em causa no processo principal era incompatível com o direito comunitário na medida em que recusa a dedução caso a sociedade holding detida pelo consórcio controle principalmente filiais com sede na Comunidade, sem que essa condição seja preenchida apenas com as filiais com sede no Reino Unido, o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre se também deve deixar de aplicar essa legislação ou interpretá-la em conformidade com o direito comunitário caso a sociedade holding controle principalmente filiais com sede em países terceiros.

32.
    Importa sublinhar, a este propósito, que a diferença de tratamento consoante a actividade da sociedade holding detida pelo consórcio consista, no todo ou principalmente, na detenção de participações em filiais com sede em países terceiros, ou não, não integra o âmbito de aplicação do direito comunitário.

33.
    Por conseguinte, por um lado, os artigos 52.° e 58.° do Tratado não se opõem a uma legislação nacional que recuse conceder a dedução a uma sociedade de consórcio que tenha a sua sede nesse Estado quando a actividade da sociedade holding detida pelo consórcio consista, no todo ou principalmente, na detenção de participações em filiais com sede em países terceiros. Por outro lado, o artigo 5.° do Tratado também não é aplicável.

34.
    Há portanto que sublinhar que, quando o litígio submetido ao tribunal nacional é relativa a uma situação estranha ao âmbito de aplicação do direito comunitário, o tribunal nacional não é obrigado, por força do direito comunitário, nem a interpretar a sua legislação em conformidade com o direito comunitário, nem a não aplicar essa legislação. Caso fosse apenas uma única e mesma disposição a não dever ser aplicada numa situação que cai sob a alçada do direito comunitário, podendo, no entanto, ainda ser aplicada a uma situação que não cai sob a sua alçada, cabia ao órgão competente do Estado-Membro em causa suprimir essa insegurança jurídica, na medida em que esta podia pôr em causa os direitos decorrentes de normas comunitárias.

35.
    Daí resulta que, em circunstâncias como as do litígio no processo principal, o artigo 5.° do Tratado não obriga o tribunal nacional nem a interpretar a sua legislação em conformidade com o direito comunitário, nem a não aplicar essa legislação numa situação estranha ao âmbito de aplicação do direito comunitário.

Quanto às despesas

36.
    As despesas efectuadas pelo Governo do Reino Unido e pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça, não são reembolsáveis.

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pela House of Lords, por despacho de 24 de Julho de 1996, declara:

1.
    O artigo 52.° do Tratado CE opõe-se a uma legislação de um Estado-Membro que, no que toca às sociedades com sede nesse Estado-Membro que integram um consórcio através do qual detêm uma sociedade holding e exercem o seu direito de livre estabelecimento para criar, através dessa sociedade holding, filiais noutros Estados-Membros, subordina o direito a uma dedução fiscal à condição de a actividade da sociedade holding consistir, no todo ou principalmente, na detenção das acções de filiais com sede no Estado-Membro em causa.

2.
    Em circunstâncias como as do litígio no processo principal, o artigo 5.° do Tratado CE não obriga o tribunal nacional nem a interpretar a sua legislação em conformidade com o direito comunitário, nem a não aplicar essa legislação numa situação estranha ao âmbito de aplicação do direito comunitário.

Rodríguez Iglesias
Ragnemalm
Wathelet

Schintgen

Mancini
            Moitinho de Almeida

Murray

Edward
Jann

Sevón

Ioannou

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 16 de Julho de 1998.

O secretário

O presidente

R. Grass

G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: inglês.