Language of document : ECLI:EU:C:2009:474

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

16 de Julho de 2009 (*)

«Cooperação judiciária em matéria civil – Regulamento (CE) n.° 2201/2003 – Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental – Artigo 64.° – Disposições transitórias – Aplicação a uma decisão de um Estado‑Membro que aderiu à União Europeia em 2004 – Artigo 3.°, n.° 1 – Competência em matéria de divórcio – Elementos de conexão – Residência habitual – Nacionalidade – Cônjuges residentes em França, ambos de nacionalidades francesa e húngara»

No processo C‑168/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos dos artigos 68.° CE e 234.° CE, apresentado pela Cour de cassation (França), por decisão de 16 de Abril de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 21 de Abril de 2008, no processo

Laszlo Hadadi (Hadady)

contra

Csilla Marta Mesko, pelo casamento Hadadi (Hadady),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Rosas, presidente de secção, A. Ó Caoimh (relator), J. Klučka, P. Lindh e A. Arabadjiev, juízes,

advogada‑geral: J. Kokott,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 5 de Fevereiro de 2009,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de L. Hadadi (Hadady), por C. Rouvière, avocate,

–        em representação de C. M. Mesko, por A. Lyon‑Caen, avocat,

–        em representação do Governo francês, por G. de Bergues, A.‑L. During e B. Beaupère‑Manokha, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo alemão, por J. Möller, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo húngaro, por K. Szíjjártó e M. Kurucz, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo polaco, por M. Dowgielewicz, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo eslovaco, por J. Čorba, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo finlandês, por A. Guimaraes‑Purokoski, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por V. Joris e S. Saastamoinen, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 12 de Março de 2009,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000 (JO L 338, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe L. Hadadi (Hadady) a C. M. Mesko a propósito do reconhecimento pelos órgãos jurisdicionais franceses de uma decisão do Tribunal de Pest (Hungria) que decretou o seu divórcio.

 Quadro jurídico

 Regulamentação comunitária

 Regulamento n.° 1347/2000

3        Nos termos do quarto e décimo segundo considerandos do Regulamento (CE) n.° 1347/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e de regulação do poder paternal em relação a filhos comuns do casal (JO L 160, p. 19):

«(4) A disparidade entre determinadas normas nacionais em matéria de jurisdição e de execução dificulta a livre circulação das pessoas, bem como o bom funcionamento do mercado interno. É, por conseguinte, justificado adoptar disposições que permitam unificar as normas de conflito de jurisdição em matéria matrimonial e de regulação do poder paternal, para simplificar as formalidades com vista a um reconhecimento rápido e automático das decisões e à respectiva execução.

[…]

(12)      Os critérios de competência aceites no presente regulamento baseiam‑se no princípio de que deve existir um vínculo efectivo entre o interessado e o Estado‑Membro com competência. [...]»

4        O artigo 2.° do Regulamento n.° 1347/2000, que prevê as disposições gerais relativas à competência judicial em matéria de divórcio, separação de pessoas e bens e anulação do casamento, foi substituído pelo artigo 3.° do Regulamento n.° 2201/2003, estando os dois artigos redigidos em termos idênticos.

 Regulamento n.° 2201/2003

5        Nos termos do primeiro e oitavo considerandos do Regulamento n.° 2201/2003:

«(1)      A Comunidade Europeia fixou o objectivo de criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça em que será garantida a livre circulação das pessoas. Para o efeito, a Comunidade deve adoptar, nomeadamente, medidas no domínio da cooperação judiciária em matéria civil necessárias para o correcto funcionamento do mercado interno.

[...]

(8)      Quanto às decisões de divórcio, de separação ou de anulação do casamento, o presente regulamento apenas deve ser aplicável à dissolução do vínculo matrimonial e não deve abranger questões como as causas do divórcio, os efeitos patrimoniais do casamento ou outras eventuais medidas acessórias.»

6        Em conformidade com o seu artigo 1.°, n.° 1, alínea a), o Regulamento n.° 2201/2003 é aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas ao divórcio, à separação e à anulação do casamento.

7        O artigo 3.°, n.° 1, do referido regulamento, intitulado «Competência geral», enuncia:

«São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado‑Membro:

a)      Em cujo território se situe:

–        a residência habitual dos cônjuges, ou

–        a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou

–        a residência habitual do requerido, ou

–        em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou

–        a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou

–        a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado‑Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu ‘domicílio’;

b)      Da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do ‘domicílio’ comum.

8        O artigo 6.° do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Carácter exclusivo das competências definidas nos artigos 3.°, 4.° e 5.°», dispõe:

«Qualquer dos cônjuges que:

a)      Tenha a sua residência habitual no território de um Estado‑Membro; ou

b)      Seja nacional de um Estado‑Membro ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, tenha o seu ‘domicílio’ no território de um destes dois Estados‑Membros,

só por força dos artigos 3.°, 4.° e 5.° pode ser demandado nos tribunais de outro Estado‑Membro.»

9        O artigo 16.° do Regulamento n.° 2201/2003, intitulado «Apreciação da acção por um tribunal», prevê:

«1.      Considera‑se que o processo foi instaurado:

a)      Na data de apresentação ao tribunal do acto introdutório da instância, ou acto equivalente, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao requerido; ou

b)      Se o acto tiver de ser citado ou notificado antes de ser apresentado ao tribunal, na data em que é recebido pela autoridade responsável pela citação ou notificação, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que o acto seja apresentado a tribunal.»

10      O artigo 19.° do referido regulamento tem a seguinte redacção:

«1.      Quando os processos de divórcio, separação ou anulação do casamento entre as mesmas partes são instaurados em tribunais de Estados‑Membros diferentes, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar.

[…]

3.      Quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declar[a]‑se incompetente a favor daquele.

Neste caso, o processo instaurado no segundo tribunal pode ser submetid[o] pelo requerente à apreciação do tribunal em que a acção foi instaurada em primeiro lugar.»

11      Nos termos do artigo 21.°, n.os 1 e 4, do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Reconhecimento das decisões»:

«1.      As decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros, sem quaisquer formalidades.

[...]

4.      Se o reconhecimento de uma decisão for invocado a título incidental num tribunal de um Estado‑Membro, este é competente para o apreciar.»

12      O artigo 24.° do Regulamento n.° 2201/2003, intitulado «Proibição do controlo da competência do tribunal de origem», prevê:

«Não se pode proceder ao controlo da competência do tribunal do Estado‑Membro de origem. O critério de ordem pública, referido na alínea a) do artigo 22.° e na alínea a) do artigo 23.°, não pode ser aplicado às regras de competência enunciadas nos artigos 3.° a 14.°»

13      No capítulo VI do Regulamento n.° 2201/2003, sob a epígrafe «Disposições transitórias», o artigo 64.°, n.os 1 e 4, do mesmo tem a seguinte redacção:

«1.      As disposições do presente regulamento são aplicáveis apenas às acções judiciais, actos autênticos e acordos entre as partes posteriores à sua data de aplicação, prevista no artigo 72.°

[...]

4.      As decisões proferidas antes da data de aplicação do presente regulamento, mas após a data de entrada em vigor do Regulamento […] n.° 1347/2000, na sequência de processos instaurados antes da data de entrada em vigor do Regulamento […] n.° 1347/2000, são reconhecidas e executadas nos termos do capítulo III do presente regulamento, desde que se trate de uma decisão de divórcio, de separação, de anulação do casamento ou relativa à responsabilidade parental de filhos comuns no âmbito de uma acção de natureza matrimonial, e se a competência do tribunal se fundava em regras conformes com as previstas no capítulo II do presente regulamento, no Regulamento […] n.° 1347/2000 ou numa convenção em vigor entre o Estado‑Membro de origem e o Estado‑Membro requerido aquando da instauração do processo.»

14      Em conformidade com o seu artigo 72.°, o Regulamento n.° 2201/2003 entrou em vigor em 1 de Agosto de 2004 e é aplicável a partir de 1 de Março de 2005, com excepção dos artigos 67.° a 70.°, que não são relevantes para a lide principal.

 Regulamentação francesa

15      O artigo 1070.°, quarto parágrafo, do Código de Processo Civil dispõe:

«A competência territorial é determinada pelo lugar da residência à data do pedido ou, em matéria de divórcio, à data da apresentação da petição inicial.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

16      Em 1979, L. Hadadi e C. M. Mesko, ambos de nacionalidade húngara, casaram‑se na Hungria. Emigraram para França em 1980, onde, segundo a decisão de reenvio, ainda residem. Em 1985, naturalizaram‑se franceses, de modo que cada um deles tem as nacionalidades húngara e francesa.

17      Em 23 de Fevereiro de 2002, L. Hadadi apresentou um pedido de divórcio no Tribunal de Pest.

18      Em 19 de Fevereiro de 2003, C. M. Mesko requereu o divórcio litigioso no tribunal de grande instance de Meaux (França).

19      Em 4 de Maio de 2004, após a adesão da República da Hungria à União Europeia no dia 1 do mesmo mês, o divórcio entre L. Hadadi e C. M. Mesko foi decretado por sentença do Tribunal de Pest. Resulta da decisão de reenvio que essa sentença transitou em julgado.

20      Por despacho de 8 de Novembro de 2005, o juiz de família do tribunal de grande instance de Meaux declarou inadmissível a acção de divórcio proposta nesse órgão jurisdicional por C. M. Mesko.

21      Em 12 de Outubro de 2006, na sequência do recurso interposto por C. M. Mesko desse despacho, a cour d’appel de Paris (França) declarou que a sentença de divórcio do Tribunal de Pest não pode ser reconhecida em França. A cour d’appel de Paris declarou, assim, admissível a acção de divórcio proposta por C. M. Mesko.

22      L. Hadadi interpôs recurso do acórdão da cour d’appel de Paris, alegando que este último não aceitou a competência do juiz húngaro unicamente com base no artigo 3.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 2201/2003, relativo à residência habitual dos cônjuges, sem ter apurado se essa competência podia resultar da nacionalidade húngara dos cônjuges, como previsto no mesmo n.° 1, alínea b).

23      Nestas condições, a Cour de cassation decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 3.°, n.° 1, alínea b), [do Regulamento n.° 2201/2003] deve ser interpretado no sentido de que, quando os cônjuges têm tanto a nacionalidade do Estado do tribunal que conhece do litígio como a nacionalidade de outro Estado‑Membro da União Europeia, deve prevalecer a nacionalidade correspondente ao Estado do tribunal que conhece do litígio?

2)      Se a resposta à questão precedente for negativa, a referida disposição deve ser interpretada no sentido de que designa, quando os cônjuges têm, cada um, duas nacionalidades dos mesmos dois Estados‑Membros, a nacionalidade mais efectiva entre as nacionalidades em causa?

3)      Se a resposta à questão precedente for negativa, deve considerar‑se que a referida disposição dá aos cônjuges uma opção suplementar, que consiste em poderem escolher entre um dos tribunais dos dois Estados‑Membros de que têm a nacionalidade?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Observações preliminares

24      A lide principal tem origem no pedido de divórcio apresentado em França por C. M. Mesko em 19 de Fevereiro de 2003. Resulta dos autos que, no âmbito da análise da admissibilidade desse pedido, o reconhecimento da sentença de divórcio proferida pelo Tribunal de Pest em 4 de Maio de 2004 constitui uma questão incidental. Ao abrigo do artigo 21.°, n.° 4, do Regulamento n.° 2201/2003, os órgãos jurisdicionais franceses podem decidir na matéria. Neste contexto, a Cour de cassation colocou questões relativas à interpretação do artigo 3.°, n.° 1, do mesmo regulamento.

25      Deve observar‑se que, em conformidade com o seu artigo 72.°, esse regulamento entrou em vigor em 1 de Agosto de 2004 e é aplicável desde 1 de Março de 2005.

26      Além disso, o Regulamento n.° 1347/2000 só era aplicável à Hungria a partir de 1 de Maio de 2004, em conformidade com o artigo 2.° do Acto relativo às condições de adesão da República Checa, da República da Estónia, da República de Chipre, da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da República de Malta, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia (JO 2003, L 236, p. 33).

27      Deste modo, a sentença de divórcio proferida pelo Tribunal de Pest em 4 de Maio de 2004 é posterior à data de entrada em vigor do Regulamento n.° 1347/2000 na Hungria, na sequência de uma acção intentada antes dessa data. Além disso, há que salientar que essa sentença foi proferida antes de 1 de Março de 2005, data da aplicação do Regulamento n.° 2201/2003.

28      Nestas condições, como alegaram os Governos francês, alemão, polaco e eslovaco, a questão do reconhecimento da referida sentença deve ser apreciada nos termos do artigo 64.°, n.° 4, do Regulamento n.° 2201/2003, uma vez que a propositura da acção e a prolação da sentença ocorreram dentro do quadro temporal definido por essa disposição.

29      Em conformidade com essa disposição, a referida sentença de divórcio deve, pois, ser reconhecida ao abrigo do Regulamento n.° 2201/2003 se as regras de competência aplicadas estiverem em conformidade com as previstas no capítulo II deste regulamento ou do Regulamento n.° 1347/2000, ou numa Convenção em vigor entre o Estado‑Membro de origem, neste caso a República da Hungria, e o Estado‑Membro requerido, neste caso a Republica Francesa, aquando da instauração do processo.

30      Não resultam dos autos nem as disposições em que o Tribunal de Pest fundou a sua competência nem a sua redacção. Todavia, esta circunstância deve ser considerada irrelevante para o processo principal se a aplicação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003 for susceptível de resultar na competência dos tribunais húngaros, independentemente das regras de competência por eles aplicadas. Assim, no essencial, o presente reenvio prejudicial visa determinar se, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, os tribunais húngaros podem ser competentes nos termos da referida disposição para se pronunciarem sobre o litígio relativo ao divórcio de L. Hadadi e de C. M. Mesko.

31      Por último, é verdade que esta última defende, nas suas observações escritas apresentadas no Tribunal de Justiça, que só teve conhecimento da acção de divórcio no Tribunal de Pest seis meses após a sua propositura por L. Hadadi. Todavia, não alega que este tivesse deixado de tomar as medidas que lhe incumbiam para que fosse feita a citação nem que, portanto, de acordo com o artigo 16.° do Regulamento n.° 2201/2003, se possa considerar que o processo não foi instaurado no órgão jurisdicional húngaro nessa data. Além disso, resulta dos autos que C. M. Mesko interveio no processo nesse tribunal. Mais, em resposta a uma questão do Tribunal de Justiça colocada na audiência, o Governo húngaro indicou que, no direito nacional, quando um acto introdutório da instância é apresentado num órgão jurisdicional, este procede à sua citação ao demandado. Nestas circunstâncias, há que partir da premissa de que o processo foi regularmente instaurado no Tribunal de Pest, na acepção do referido artigo 16.°

 Quanto à primeira questão

32      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que, no caso de os cônjuges terem tanto a nacionalidade do Estado‑Membro do tribunal da causa como a nacionalidade de outro mesmo Estado‑Membro da União Europeia, o tribunal no qual a acção foi proposta deve fazer prevalecer a nacionalidade correspondente ao Estado‑Membro de que faz parte.

33      A título preliminar, cumpre recordar que os tribunais que conhecem de litígios como o que está em causa no processo principal, regidos pela regulamentação transitória de reconhecimento enunciada no artigo 64.°, n.° 4, do Regulamento n.° 2201/2003, são chamados a pronunciar‑se sobre a competência dos tribunais de outro Estado‑Membro. Estes litígios distinguem‑se dos litígios regulados mais directamente pelas disposições do capítulo III desse regulamento, sobre o reconhecimento e a execução de decisões judiciais, para os quais o artigo 24.° do referido regulamento prevê uma proibição da fiscalização da competência do tribunal de origem.

34      Resulta dos autos que, no acórdão recorrido no processo principal, a cour d’appel de Paris considerou que a competência do Tribunal de Pest, na medida em que se baseava na nacionalidade húngara de L. Hadadi, que é uma regra de competência que não faz parte das regras francesas de competência internacional, era «na realidade muito frágil», ao passo que a competência do tribunal do domicílio conjugal era, comparativamente, «particularmente forte».

35      Segundo a Comissão das Comunidades Europeias, a primeira questão prejudicial foi colocada pelo facto de, em caso de conflito entre a nacionalidade francesa e uma outra nacionalidade, o juiz francês chamado a conhecer do litígio fazer «na maior parte dos casos prevalecer a nacionalidade do foro».

36      Esta tese é apoiada pela argumentação apresentada ao Tribunal de Justiça pela demandada no processo principal, que defende que o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003 não contém disposições específicas que regulem o caso da dupla nacionalidade, de modo que cada Estado‑Membro aplica o seu próprio direito em matéria de nacionalidade nesse tipo de casos. Decorre da doutrina e da jurisprudência francesas que, em caso de conflito de nacionalidades, se uma delas é a nacionalidade do foro, é esta que prevalece.

37      Nestas condições, coloca‑se a questão de saber se, uma vez que o Regulamento n.° 2201/2003 não regula expressamente, como refere C. M. Mesko, os casos de dupla nacionalidade comum, o artigo 3.°, n.° 1, do mesmo deve ser interpretado de forma diferente consoante os dois cônjuges tenham duas nacionalidades comuns ou tenham uma mesma nacionalidade.

38      Segundo jurisprudência assente, decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito comunitário como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição de direito comunitário que não contenha qualquer remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros no sentido de estes determinarem o seu sentido e alcance devem normalmente ser interpretados em toda a Comunidade de modo autónomo e uniforme, tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pelas normas em causa (v., a propósito do Regulamento n.° 2201/2003, acórdão de 2 de Abril de 2009, A, C‑523/07, Colect., p. I‑0000, n.° 34).

39      Nesta matéria, importa salientar que o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003 não contém qualquer remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros no sentido de estes determinarem o alcance exacto do critério relativo à «nacionalidade».

40      Além disso, não se verifica que o Regulamento n.° 2201/2003 estabeleça, pelo menos em princípio, uma distinção consoante uma pessoa tenha apenas uma ou, se for o caso, várias nacionalidades.

41      Por conseguinte, em caso de dupla nacionalidade comum, o tribunal da causa não pode ignorar o facto de os interessados terem a nacionalidade de outro Estado‑Membro, o que equivaleria a tratar as pessoas com dupla nacionalidade como se tivessem apenas a nacionalidade do Estado‑Membro do tribunal da causa. Com efeito, isso teria como consequência impedir essas pessoas, no âmbito da regra transitória de reconhecimento enunciada no artigo 64.°, n.° 4, do Regulamento n.° 2201/2003, de invocarem num tribunal do Estado‑Membro requerido o artigo 3.°, n.° 1, alínea b), desse regulamento para determinar a competência de tribunais de outro Estado‑Membro, apesar de terem a nacionalidade deste último Estado.

42      Pelo contrário, no âmbito do referido artigo 64.°, n.° 4, no caso de os cônjuges terem tanto a nacionalidade do Estado‑Membro do tribunal da causa como a nacionalidade de outro mesmo Estado‑Membro, esse tribunal deve ter em consideração o facto de os tribunais desse outro Estado‑Membro, em razão da circunstância de os interessados terem a nacionalidade deste último Estado, terem podido competentemente conhecer do litígio em conformidade com o artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 2201/2003.

43      Consequentemente, há que responder à primeira questão que, quando o tribunal do Estado‑Membro requerido deve verificar, nos termos do artigo 64.°, n.° 4, do Regulamento n.° 2201/2003, se o tribunal do Estado‑Membro de origem de uma decisão jurisdicional seria competente ao abrigo do artigo 3.°, n.° 1, alínea b), desse mesmo regulamento, esta última disposição opõe‑se a que o tribunal do Estado‑Membro requerido considere os cônjuges, que têm ambos a nacionalidade tanto desse Estado como do Estado‑Membro de origem, unicamente como nacionais do Estado‑Membro requerido. Pelo contrário, esse tribunal deve ter em conta o facto de os cônjuges terem igualmente a nacionalidade do Estado‑Membro de origem e que, como tal, os tribunais deste último podiam ter sido competentes para conhecer do litígio.

 Quanto à segunda e terceira questões

44      Através da segunda e terceira questões, que cabe examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que, para determinar o tribunal competente para conhecer do divórcio de pessoas com a mesma dupla nacionalidade, há que ter em conta apenas a nacionalidade do Estado‑Membro com o qual essas pessoas têm vínculos mais estreitos – a nacionalidade «mais efectiva» –, de modo que apenas os tribunais desse Estado são competentes pela nacionalidade (segunda questão) ou se, pelo contrário, há que ter as duas nacionalidades em consideração, de modo que os tribunais dos dois Estados‑Membros podem ser competentes a esse título, podendo os interessados escolher o tribunal do Estado‑Membro em que pretendem instaurar o processo (terceira questão).

45      C. M. Mesko e o Governo polaco defendem que, em caso de dupla nacionalidade comum dos cônjuges, há que aplicar o critério da nacionalidade mais efectiva. A este respeito, C. M. Mesko, apoiando‑se em vários elementos, em particular no facto de ela própria e L. Hadadi residirem em França desde 1980, considera que, no processo principal, a nacionalidade francesa é a mais efectiva. Alega que, se as duas nacionalidades fossem colocadas em pé de igualdade, tal conduziria a uma «corrida aos tribunais», incitando abusivamente um dos cônjuges a precipitar a instauração de um processo nos tribunais de um Estado‑Membro para evitar que o outro instaurasse um processo nos tribunais de outro Estado‑Membro. O Governo polaco considera que não convém deixar a escolha do tribunal competente às partes, visto que tal solução concede um privilégio exorbitante às pessoas que gozam da dupla nacionalidade comum e oferece‑lhes a possibilidade de escolher de facto o tribunal competente, ao passo que o Regulamento n.° 2201/2003 não reconhece a mesma faculdade às outras pessoas. Além disso, segundo esse governo, manter a competência dos tribunais de um Estado‑Membro no qual os cônjuges já não habitam há muito tempo poderia complicar a eficácia e a equidade das decisões jurisdicionais e levar a certos abusos, como o «forum shopping».

46      Em contrapartida, segundo L. Hadadi e os Governos francês, checo, alemão, húngaro, eslovaco e finlandês, bem como a Comissão, em caso de dupla nacionalidade comum, cada um dos cônjuges tem o direito, em aplicação do artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 2201/2003, de propor uma acção de divórcio no tribunal de um ou outro dos dois Estados‑Membros de que esse cônjuge e o seu marido/mulher são nacionais.

47      A este respeito, em primeiro lugar, cumpre salientar que, como resulta do seu primeiro considerando, o Regulamento n.° 2201/2003 contribui para criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça em que será garantida a livre circulação das pessoas. Para este fim, nos seus capítulos II e III, esse regulamento estabelece designadamente as regras que regulam a competência assim como o reconhecimento e a execução de decisões em matéria de dissolução do vínculo matrimonial.

48      Neste contexto, o artigo 3.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Regulamento n.° 2201/2003 prevê vários critérios de competência, entre os quais não existe uma hierarquia. Todos os critérios objectivos enunciados no artigo 3.°, n.° 1, são alternativos. Tendo em conta o objectivo desse regulamento que visa garantir a segurança jurídica, o seu artigo 6.° dispõe, no essencial, que as competências definidas nos artigos 3.° a 5.° do mesmo regulamento têm um carácter exclusivo.

49      Daqui resulta que o sistema de repartição de competências instituído pelo Regulamento n.° 2201/2003 em matéria de dissolução do vínculo matrimonial não visa excluir a pluralidade de foros competentes. Pelo contrário, prevê‑se expressamente a existência paralela de vários foros competentes hierarquicamente equiparados.

50      A este título, enquanto os critérios enumerados no artigo 3.°, n.° 1, alínea a), do referido regulamento se baseiam sob diversos aspectos na residência habitual dos cônjuges, o critério enunciado no mesmo número, alínea b), é o da «nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do ‘domicílio’ comum». Assim, salvo no caso destes dois últimos Estados‑Membros, os tribunais dos outros Estados‑Membros da nacionalidade dos cônjuges são competentes para conhecer de acções em matéria de dissolução do vínculo matrimonial.

51      Todavia, nada na redacção do referido artigo 3.°, n.° 1, alínea b), deixa entender que apenas a nacionalidade «efectiva» pode ser tomada em consideração para efeitos da aplicação dessa disposição. Com efeito, na medida em que faz da nacionalidade um critério de competência, esta disposição privilegia um elemento de conexão unívoco e de fácil aplicação. Não prevê outro critério respeitante à nacionalidade, como, nomeadamente, a sua efectividade.

52      Além disso, uma interpretação em virtude da qual apenas a nacionalidade «efectiva» fosse susceptível de ser tomada em consideração para efeitos do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003 não encontraria apoio nas finalidades dessa disposição ou no contexto em que a mesma se insere.

53      Com efeito, por um lado, tal interpretação teria por efeito restringir a escolha do tribunal competente pelas partes, nomeadamente no caso do exercício do direito de livre circulação das pessoas.

54      Em particular, dado que a residência habitual seria uma consideração essencial para determinar a nacionalidade efectiva, os critérios de competência previstos no artigo 3.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Regulamento n.° 2201/2003 sobrepor‑se‑iam frequentemente. Na prática, isso acabaria por conduzir, no caso de pessoas com várias nacionalidades, a uma hierarquização dos critérios de competência estabelecidos pelas disposições do referido n.° 1, algo que não decorre da redacção desse número. Em contrapartida, um casal que só tivesse a nacionalidade de um Estado‑Membro teria sempre a possibilidade de instaurar um processo nos tribunais deste último, mesmo que já há vários anos não tivesse aí a sua residência habitual e que existissem poucos elementos de real conexão a esse Estado.

55      Por outro lado, devido ao carácter pouco preciso do conceito de «nacionalidade efectiva», deveria tomar‑se em consideração toda uma série de circunstâncias de facto, as quais nem sempre conduziriam a um resultado claro. Deste modo, a necessidade de uma fiscalização dos elementos de conexão entre os cônjuges e as respectivas nacionalidades dificultaria a apreciação da competência do tribunal, indo contra o objectivo de facilitar a aplicação do Regulamento n.° 2201/2003 mediante a utilização de um critério de conexão simples e unívoco.

56      É verdade que, em virtude do artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 2201/2003, os tribunais de vários Estados‑Membros podem ser competentes quando os interessados têm várias nacionalidades. Todavia, como a Comissão assim como os Governos francês, húngaro e eslovaco salientaram, na hipótese de serem instaurados processos em tribunais de vários Estados‑Membros em aplicação dessa disposição, o conflito de competência pode ser resolvido pela aplicação da regra enunciada no artigo 19.°, n.° 1, do mesmo regulamento.

57      Por último, há que admitir que o Regulamento n.° 2201/2003, na medida em que apenas regulamenta a competência judicial, mas não contém normas de conflitos de leis, é certamente susceptível, como alega C. M. Mesko, de incitar os cônjuges a intentar rapidamente o processo junto de um dos tribunais competentes, a fim de assegurar para si as vantagens do regime substantivo do divórcio aplicável segundo o direito internacional privado desse foro. Todavia, contrariamente ao que alega C. M. Mesko, tal circunstância não pode, por si só, ter a consequência de se poder considerar abusiva a instauração de um processo num tribunal competente ao abrigo do artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do mesmo regulamento. Com efeito, como resulta designadamente dos n.os 49 a 52 do presente acórdão, a instauração de um processo em tribunais de um Estado‑Membro da nacionalidade dos dois cônjuges, mesmo na falta de qualquer outro elemento de conexão com esse Estado‑Membro, não é contrária aos objectivos prosseguidos pela referida disposição.

58      Nestas condições, há que responder à segunda e terceira questões submetidas que, quando ambos os cônjuges têm a nacionalidade de dois mesmos Estados‑Membros, o artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 2201/2003 opõe‑se a que a competência dos tribunais de um desses Estados‑Membros seja afastada pelo facto de o demandante não apresentar outros elementos de conexão com esse Estado. Pelo contrário, os tribunais dos Estados‑Membros da nacionalidade dos cônjuges são competentes ao abrigo dessa disposição, podendo estes últimos escolher o tribunal do Estado‑Membro em que pretendem instaurar o processo.

 Quanto às despesas

59      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1)      Quando o tribunal do Estado‑Membro requerido deve verificar, nos termos do artigo 64.°, n.° 4, do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, se o tribunal do Estado‑Membro de origem de uma decisão jurisdicional seria competente ao abrigo do artigo 3.°, n.° 1, alínea b), desse mesmo regulamento, esta última disposição opõe‑se a que o tribunal do Estado‑Membro requerido considere os cônjuges, que têm ambos a nacionalidade tanto desse Estado como do Estado‑Membro de origem, unicamente como nacionais do Estado‑Membro requerido. Pelo contrário, esse tribunal deve ter em conta o facto de os cônjuges terem igualmente a nacionalidade do Estado‑Membro de origem e que, como tal, os tribunais deste último podiam ter sido competentes para conhecer do litígio.

2)      Quando ambos os cônjuges têm a nacionalidade de dois mesmos Estados‑Membros, o artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 2201/2003 opõe‑se a que a competência dos tribunais de um desses Estados‑Membros seja afastada pelo facto de o demandante não apresentar outros elementos de conexão com esse Estado. Pelo contrário, os tribunais dos Estados‑Membros da nacionalidade dos cônjuges são competentes ao abrigo dessa disposição, podendo estes últimos escolher o tribunal do Estado‑Membro em que pretendem instaurar o processo.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.