Language of document : ECLI:EU:C:2009:810

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

23 de Dezembro de 2009 (*)

«Cooperação judiciária em matéria civil – Matéria matrimonial e matéria de responsabilidade parental – Regulamento (CE) n.° 2201/2003 – Medidas provisórias relativas ao direito de guarda – Decisão executória num Estado‑Membro – Deslocação ilícita da criança – Outro Estado‑Membro – Outro tribunal – Atribuição da guarda da criança ao outro progenitor – Competência – Processo prejudicial urgente»

No processo C‑403/09 PPU,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos dos artigos 68.° CE e 234.° CE, apresentado pelo Višje sodišče v Mariboru (Eslovénia), por decisão de 19 de Outubro de 2009, entrado no Tribunal de Justiça em 20 de Outubro de 2009, no processo intentado por

Jasna Detiček

contra

Maurizio Sgueglia,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta, E. Juhász, J. Malenovský (relator) e D. Šváby, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

visto o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de 19 de Outubro de 2009, entrado no Tribunal de Justiça em 20 de Outubro de 2009, de submeter o reenvio prejudicial a tramitação urgente, nos termos do artigo 104.°‑B do Regulamento de Processo,

vista a decisão da Terceira Secção de 27 de Outubro de 2009, de deferir o referido pedido,

vistos os autos e após a audiência de 7 de Dezembro de 2009,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de J. Detiček, por B. Žibret, odvetnik,

–        em representação de M. Sgueglia, por L. Varanelli, odvetnik,

–        em representação do Governo esloveno, por N. Aleš Verdir, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo alemão, por J. Kemper, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo francês, por B. Beaupère‑Manokha, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo italiano, por I. Bruni, na qualidade de agente, assistida por F. Arena, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo letão, por K. Drevina, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo polaco, por M. Arciszewski, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por A.‑M. Rouchaud‑Joët e M. Žebre, na qualidade de agentes,

ouvido o advogado‑geral,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 20.° do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000 (JO L 338, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre J. Detiček e M. Sgueglia, a propósito da guarda da filha de ambos, Antonella.

 Quadro jurídico

 Regulamentação comunitária

3        O considerando 12 do Regulamento n.° 2201/2003 tem a seguinte redacção:

«As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.»

4        O considerando 16 deste regulamento precisa:

«O presente regulamento não impede que, em caso de urgência, os tribunais de um Estado‑Membro ordenem medidas provisórias ou cautelares em relação a pessoas ou bens presentes nesse Estado‑Membro.»

5        O considerando 21 do regulamento enuncia:

«O reconhecimento e a execução de decisões proferidas num Estado‑Membro têm por base o princípio da confiança mútua e os fundamentos do não reconhecimento serão reduzidos ao mínimo indispensável.»

6        Nos termos do considerando 33 do Regulamento n.° 2201/2003:

«O presente regulamento reconhece os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [proclamada em Nice, em 7 de Dezembro de 2000 (JO C 364, p. 1, a seguir ‘Carta’)]; pretende, designadamente, garantir o pleno respeito dos direitos fundamentais da criança enunciados no artigo 24.° da [Carta].»

7        O artigo 2.° deste regulamento prevê:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por

[…]

4)      ‘Decisão’, qualquer decisão de divórcio, separação ou anulação do casamento, bem como qualquer decisão relativa à responsabilidade parental proferida por um tribunal de um Estado‑Membro, independentemente da sua designação, tal como ‘acórdão, ‘sentença’ ou ‘despacho judicial’;

[…]

11)      ‘Deslocação ou retenção ilícitas de uma criança’, a deslocação ou a retenção de uma criança, quando:

a)      Viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor por força da legislação do Estado‑Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção; e

b)      No momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efectivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê‑lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção. Considera‑se que a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre [o] local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade parental.»

8        O artigo 8.°, n.° 1, do referido regulamento dispõe:

«Os tribunais de um Estado‑Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado‑Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.»

9        O artigo 20.° do mesmo regulamento, intitulado «Medidas provisórias e cautelares», dispõe:

«1.      Em caso de urgência, o disposto no presente regulamento não impede que os tribunais de um Estado‑Membro tomem as medidas provisórias ou cautelares relativas às pessoas ou bens presentes nesse Estado‑Membro, e previstas na sua legislação, mesmo que, por força do presente regulamento, um tribunal de outro Estado‑Membro seja competente para conhecer do mérito.

2.      As medidas tomadas por força do n.° 1 deixam de ter efeito quando o tribunal do Estado‑Membro competente quanto ao mérito ao abrigo do presente regulamento tiver tomado as medidas que considerar adequadas.»

10      O artigo 21.°, n.os 1 e 3, do Regulamento n.° 2201/2003 prevê:

«1.      As decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros, sem quaisquer formalidades.

[…]

3.      Sem prejuízo do disposto na secção 4 do presente capítulo, qualquer parte interessada pode requerer, nos termos dos procedimentos previstos na secção 2 do presente capítulo, o reconhecimento ou o não reconhecimento da decisão.

[...]»

 A Convenção de Haia de 1980

11      O artigo 12.° da Convenção de Haia, de 25 de Outubro de 1980, sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (a seguir «Convenção de Haia de 1980»), dispõe:

«Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.° e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.

A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente.

Quando a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido tiver razões para crer que a criança tenha sido levada para um outro Estado, pode então suspender o processo ou rejeitar o pedido para o regresso da criança.»

12      O artigo 13.° da Convenção de Haia de 1980 tem a seguinte redacção:

«Sem prejuízo das disposições contidas no artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:

a)      que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou

b)      que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.

A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar‑se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.

Ao apreciar as circunstâncias referidas neste artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança.»

 Legislação nacional

13      Nos termos do artigo 411.°, n.os 1 e 3, do Código de Processo Civil (Zakon o pravdnem postopku):

«1.      Na pendência de acções relativas a litígios matrimoniais e a litígios nas relações entre pais e filhos, o tribunal, a requerimento de uma das partes ou oficiosamente, pode proferir decisões provisórias sobre a guarda e a subsistência dos filhos menores do casal e medidas provisórias sobre a retirada ou a limitação dos direitos de manter contactos ou sobre as modalidades de exercício desses contactos.

[…]

3.      As decisões provisórias referidas nos números anteriores são adoptadas de acordo com as disposições da lei das medidas cautelares.»

14      Nos termos do artigo 272.°, n.° 1, da Lei da execução e das medidas cautelares (Zakon o izvršbi in zavarovanju, a seguir «ZIZ»):

«O tribunal profere uma decisão provisória para a garantia dos créditos não monetários se o credor demonstrar a probabilidade séria da existência do crédito ou de que este se virá a constituir contra o devedor. O credor deve demonstrar a probabilidade séria […] de que a decisão é necessária para evitar o uso da força ou a ocorrência de um dano dificilmente reparável [...].»

15      O artigo 267.° do ZIZ dispõe:

«Uma decisão provisória pode ser proferida antes de proposta a acção judicial, na pendência desta ou mesmo após o seu termo, enquanto não se proceder à execução.»

16      Por força do disposto no artigo 278, n.° 2, do ZIZ:

«O tribunal põe termo ao processo e anula os actos realizados, também a requerimento do devedor, se as circunstâncias que deram origem à medida provisória se tiverem alterado posteriormente e, em consequência, a medida tiver deixado de ser necessária.»

17      O artigo 105.°, n.° 3, da Lei do casamento e da família (Zakon o zakonski zvezi in družinskih razmerjih) dispõe:

«Se os progenitores, mesmo com o auxílio do centro de assuntos sociais, não chegarem a acordo sobre a guarda e a educação dos filhos, o tribunal, a pedido de um ou de ambos os progenitores, confiará a guarda e a educação de todos os filhos a um deles, ou a guarda e a educação de alguns dos filhos a um progenitor e a guarda e a educação dos outros filhos ao outro progenitor. O tribunal pode ainda confiar oficiosamente a terceiros a guarda e a educação de todos ou de alguns dos filhos [...]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

18      J. Detiček, de nacionalidade eslovena, e M. Sgueglia, casados entre si e em instância de divórcio, residiram em Roma (Itália) durante 25 anos. A filha de ambos, Antonella, nasceu em 6 de Setembro de 1997.

19      Em 25 de Julho de 2007, o tribunal competente de Tivoli (Itália) (a seguir «Tribunale di Tivoli»), chamado a conhecer de uma acção de divórcio intentada pelo casal Detiček e Sgueglia, que tinha igualmente por objecto a guarda da Antonella, confiou provisoriamente a guarda exclusiva desta a M. Sgueglia e determinou que a criança fosse colocada provisoriamente no lar de acolhimento das Irmãs Escolápias em Roma.

20      No mesmo dia, J. Detiček abandonou a Itália com a sua filha Antonella, com o objectivo de se instalar na Eslovénia, na cidade de Zgornje Poljčane, onde ainda vivem actualmente.

21      Por decisão de 22 de Novembro de 2007 do okrožno sodišče v Mariboru (Tribunal Regional de Maribor ) (Eslovénia), confirmada pela decisão do Vrhovno sodišče (Tribunal Supremo) (Eslovénia), de 2 de Outubro de 2008, o despacho do Tribunale di Tivoli de 25 de Julho de 2007 foi declarado executório no território da República da Eslovénia.

22      Com fundamento nesta decisão do Vrhovno sodišče, foi submetido ao okrajno sodišče v Slovenski Bistrici (Tribunal Cantonal de Slovenska Bistrica) o procedimento de execução para a entrega da criança a M. Sgueglia, com colocação no referido lar de acolhimento. No entanto, por despacho de 2 de Fevereiro de 2009, este tribunal suspendeu a execução em questão até ao encerramento definitivo do processo principal.

23      Em 28 de Novembro de 2008, J. Detiček apresentou no okrožno sodišče v Mariboru um pedido de medida provisória e cautelar no qual requeria que lhe fosse confiada a guarda da criança.

24      Por despacho de 9 de Dezembro de 2008, esse tribunal deferiu a pretensão de J. Detiček e confiou‑lhe a guarda provisória da Antonella. Baseou a sua decisão nas disposições conjugadas dos artigos 20.° do Regulamento n.° 2201/2003 e 13.° da Convenção de Haia de 1980 e fundamentou‑a numa alteração de circunstâncias e no interesse da criança.

25      Considerava que a Antonella se tinha integrado no seu meio social na Eslovénia. Um regresso a Itália, com uma colocação forçada num lar, seria contrário ao seu bem‑estar e poderia causar‑lhe um traumatismo físico e psíquico irreversível. Por outro lado, segundo aquele tribunal, a Antonella terá manifestado o desejo, no decurso do processo judicial na Eslovénia, de permanecer junto da mãe.

26      M. Sgueglia opôs‑se a este despacho perante o mesmo tribunal, oposição que foi indeferida por despacho de 29 de Junho de 2009.

27      M. Sgueglia recorreu deste último despacho para o Višje sodišče v Mariboru (Tribunal de Recurso de Maribor) (Eslovénia).

28      Nestas condições, o Višje sodišče v Mariboru decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as duas questões prejudiciais seguintes:

«1)      Um tribunal da República da Eslovénia (Estado‑Membro [da União Europeia]) tem competência, ao abrigo do artigo 20.° do Regulamento [n.° 2201/2003], para decretar medidas cautelares, quando um tribunal de outro Estado‑Membro, competente para o conhecimento do mérito da causa em aplicação desse regulamento, já tiver decretado uma medida cautelar com força executória declarada na República da Eslovénia?

Em caso de resposta afirmativa:

2)      Um tribunal esloveno pode, em aplicação do direito nacional (permitida pelo artigo 20.° do Regulamento [n.° 2201/2003]), decretar uma medida cautelar, na acepção [do] artigo 20.° [do Regulamento n.° 2201/2003], que altere ou revogue uma medida cautelar definitiva e com força executória decretada por um tribunal de outro Estado‑Membro, ao qual [o] Regulamento [n.° 2201/2003] atribui competência para o conhecimento do mérito da causa?»

 Quanto à tramitação urgente

29      O Višje sodišče v Mariboru pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação urgente prevista no artigo 104.°‑B do Regulamento de Processo.

30      O tribunal de reenvio fundamentou este pedido, alegando que existe uma decisão judicial executória que decreta medidas cautelares, adoptada pelo tribunal italiano, que confia a guarda da criança ao pai, e a decisão judicial contrária, decretando medidas cautelares, adoptada pelo tribunal esloveno, que confia a guarda da criança à mãe. Considera também que é necessário actuar rapidamente, dado que uma decisão tardia seria contrária ao interesse da criança e poderia conduzir a uma deterioração irreparável das relações entre esta e o pai. Aquele tribunal menciona, finalmente, que o carácter provisório da medida adoptada, no quadro da medida cautelar sobre a guarda da criança, impõe por si só, para que o estado de insegurança jurídica não se prolongue, a intervenção urgente do Tribunal de Justiça.

31      A Terceira Secção do Tribunal de Justiça, ouvido o advogado‑geral, decidiu, em 27 de Outubro de 2009, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio no sentido de o reenvio prejudicial ser submetido a tramitação urgente.

 Quanto às questões prejudiciais

32      Através das suas duas questões, que devem ser examinadas em conjunto, o tribunal de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 20.° do Regulamento n.° 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que permite a um tribunal de um Estado‑Membro adoptar uma medida provisória em matéria de responsabilidade parental, com vista a confiar a guarda de uma criança que se encontra no seu território a um dos seus progenitores, quando um tribunal de outro Estado‑Membro, competente por força do referido regulamento para conhecer do mérito do litígio relativo à guarda da criança, já tiver adoptado uma decisão confiando provisoriamente a guarda dessa criança ao outro progenitor e essa decisão tiver sido declarada executória no território do primeiro Estado‑Membro.

33      Segundo jurisprudência constante, na interpretação de uma disposição de direito comunitário, deve atender‑se não apenas aos seus termos e ao seu contexto mas também aos objectivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada (v., neste sentido, designadamente, acórdãos de 18 de Maio de 2000, KVS International, C‑301/98, Colect., p. I‑3583, n.° 21; de 23 de Novembro de 2006, ZVK, C‑300/05, Colect., p. I‑11169, n.° 15; e de 22 de Outubro de 2009, Bogiatzi‑Ventouras, C‑301/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 39).

34      Além disso, resulta de jurisprudência bem assente que incumbe aos Estados‑Membros não só interpretar o seu direito nacional em conformidade com o direito comunitário mas também evitar basearem‑se numa interpretação de um diploma de direito derivado que seja susceptível de entrar em conflito com os direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica comunitária ou com os outros princípios gerais do direito comunitário (v., neste sentido, acórdãos de 6 de Novembro de 2003, Lindqvist, C‑101/01, Colect., p. I‑12971, n.° 87, e de 26 de Junho de 2007, Ordre des barreaux francophones et germanophone e o., C‑305/05, Colect., p. I‑5305, n.° 28).

35      A título preliminar, importa salientar que, nos termos do considerando 12 do Regulamento n.° 2201/2003, as regras de competência em matéria de responsabilidade parental por ele instituídas são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade.

36      Por força do disposto no artigo 8.° do Regulamento n.° 2201/2003, a competência em matéria de responsabilidade parental é, em primeira linha, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro onde a criança tem a sua residência habitual no momento em que o tribunal é chamado a intervir. Com efeito, em razão da proximidade geográfica, estes tribunais são os que estão em melhores condições para apreciar as medidas a adoptar no interesse da criança.

37      No caso vertente, resulta da decisão de reenvio bem como do despacho do okrožno sodišče v Mariboru de 9 de Dezembro de 2008 que o Tribunale di Tivoli é, em conformidade com o referido artigo 8.°, o juiz competente para conhecer do mérito de qualquer questão relativa à responsabilidade parental no litígio principal.

38      Todavia, o artigo 20.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003 prevê que os tribunais do Estado‑Membro onde se encontre a criança são autorizados, sob certas condições, a tomar as medidas provisórias ou cautelares previstas pela lei desse Estado, ainda que o referido regulamento confira a um tribunal de outro Estado‑Membro a competência para conhecer do mérito. Na medida em que constitui uma excepção ao sistema de competência previsto pelo referido regulamento, esta disposição deve ser objecto de interpretação estrita.

39      Como resulta do próprio teor do artigo 20.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003, os tribunais mencionados nesta disposição só estão autorizados a decretar tais medidas provisórias ou cautelares, na condição de respeitarem três requisitos cumulativos: as medidas em causa devem ser urgentes, devem ser tomadas relativamente às pessoas ou aos bens presentes no Estado‑Membro onde estes tribunais têm a sua sede e devem ser provisórias (v., neste sentido, acórdão de 2 de Abril de 2009, A, C‑523/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 47).

40      Deste modo, a não observância de um só destes três requisitos tem como consequência que a medida prevista não pode ser abrangida pelo artigo 20, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003.

41      Importa, em primeiro lugar, analisar o requisito da urgência.

42      A partir do momento em que o artigo 20.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003 habilita um tribunal não competente quanto ao mérito a adoptar, excepcionalmente, uma medida provisória em matéria de responsabilidade parental, deve considerar‑se que o conceito de urgência da referida disposição tem que ver, simultaneamente, com a situação em que se encontra a criança e com a impossibilidade prática de submeter o pedido relativo à responsabilidade parental ao tribunal competente para conhecer do mérito.

43      Resulta da decisão de reenvio que o okrožno sodišče v Mariboru, no seu despacho de 9 de Dezembro de 2008, declarou a existência de uma situação de urgência, na acepção do artigo 20.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003, evocando uma alteração das circunstâncias ocorrida após a adopção, pelo Tribunale di Tivoli, da medida provisória em matéria de responsabilidade parental, confiando a guarda exclusiva da criança ao pai. Essa alteração de circunstâncias resultaria do facto de, entretanto, a criança se ter integrado bem no meio em que vive actualmente na Eslovénia. Nestas condições, o okrožno sodišče v Mariboru considerou que o regresso da criança a Itália, que resultaria da execução do despacho do Tribunale di Tivoli, a colocaria numa situação susceptível de prejudicar gravemente o seu bem‑estar.

44      No entanto, as circunstâncias evocadas pelo okrožno sodišče v Mariboru não permitem afirmar que existe uma situação de urgência, na acepção do artigo 20.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003.

45      Na verdade, em primeiro lugar, o reconhecimento de uma situação de urgência num caso como o do processo principal seria contrário ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões proferidas nos Estados‑Membros, instituído pelo Regulamento n.° 2201/2003, princípio que se baseia, por sua vez, como resulta do considerando 21 do referido regulamento, no princípio da confiança mútua entre os Estados‑Membros.

46      Entre as regras que consagram os princípios evocados no número anterior, há que mencionar, em especial, a regra do artigo 28.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003, nos termos da qual as decisões proferidas no Estado‑Membro de origem sobre o exercício da responsabilidade parental, que aí tenham força executória, devem, em princípio ser executadas no Estado‑Membro requerido, bem como a do artigo 31.°, n.° 3, do referido regulamento, que proíbe qualquer revisão quanto ao mérito de uma decisão cuja execução seja pedida.

47      Ora, na presente situação, o tribunal competente para conhecer do mérito, isto é, o Tribunale di Tivoli, tomou uma decisão provisória em matéria de responsabilidade parental, e essa decisão foi declarada executória na Eslovénia. Se uma alteração das circunstâncias resultante de um processo gradual, como a integração da criança num novo meio, bastasse para, ao abrigo do artigo 20.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003, habilitar um tribunal não competente para conhecer do mérito a adoptar uma medida provisória destinada a modificar a medida em matéria de responsabilidade parental tomada pelo tribunal competente quanto ao mérito, a eventual lentidão do processo de execução no Estado‑Membro requerido contribuiria para criar as condições susceptíveis de permitir ao primeiro tribunal impedir a execução da decisão declarada executória. Tal interpretação desta disposição poria em causa os próprios princípios em que este regulamento assenta.

48      Em segundo lugar, há que salientar que, no presente caso, a alteração da situação da criança resultou de uma deslocação ilícita, na acepção do artigo 2.°, n.° 11, do Regulamento n.° 2201/2003. A medida provisória decretada pelo okrožno sodišče v Mariboru, com efeito, baseia‑se não apenas no artigo 20.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003 mas igualmente no artigo 13.° da Convenção de Haia de 1980, que é aplicável unicamente em caso de deslocação ou de retenção ilícitas.

49      Ora, o reconhecimento de uma situação de urgência num caso como o que está em discussão seria contrário ao objectivo do Regulamento n.° 2201/2003, que consiste em dissuadir deslocações ou retenções ilícitas de crianças entre Estados‑Membros (v., neste sentido, acórdão de 11 de Julho de 2008, Rinau, C‑195/08 PPU, Colect., p. I‑5271, n.° 52). Com efeito, admitir que uma medida susceptível de implicar a alteração da responsabilidade parental possa ser tomada ao abrigo do artigo 20.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003 equivaleria, ao consolidar uma situação de facto decorrente de uma conduta ilícita, a reforçar a posição do progenitor responsável pela deslocação ilícita.

50      Em seguida, como resulta do próprio teor do artigo 20.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003, as medidas provisórias devem ser tomadas relativamente às pessoas presentes no Estado‑Membro onde têm sede os tribunais competentes para adoptar tais medidas.

51      Ora, uma medida provisória em matéria de responsabilidade parental, que implica uma alteração da guarda de uma criança, não é tomada apenas em relação à própria criança mas também em relação ao progenitor ao qual a guarda da criança vem a ser confiada e em relação ao outro progenitor que, na sequência da adopção de tal medida, se vê privado dessa guarda.

52      No caso vertente, é ponto assente que uma das pessoas relativamente às quais tal medida é tomada, isto é, o pai, reside noutro Estado‑Membro, nada indicando que esteja presente no Estado‑Membro cujo tribunal reclama a competência ao abrigo do artigo 20.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003.

53      Finalmente, as considerações que precedem são corroboradas pelas exigências decorrentes do considerando 33 do Regulamento n.° 2201/2003, nos termos do qual este último reconhece os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta, tendo como objectivo, designadamente, garantir o pleno respeito dos direitos fundamentais da criança enunciados no artigo 24.° da mesma.

54      Cabe sublinhar que um desses direitos fundamentais da criança é o direito, enunciado no artigo 24.°, n.° 3, da Carta, de manter regularmente relações pessoais e contactos directos com ambos os progenitores, cuja observância se confunde incontestavelmente com o interesse superior de qualquer criança.

55      Ora, o artigo 20.° do Regulamento n.° 2201/2003 não pode ser interpretado de modo a violar o referido direito fundamental.

56      A este respeito, há que concluir que a deslocação ilícita de uma criança, na sequência de uma decisão unilateral de um dos seus progenitores, priva a criança, na maior parte dos casos, da possibilidade de manter regularmente relações pessoais e contactos directos com o outro progenitor.

57      Por conseguinte, o artigo 20.° do Regulamento n.° 2201/2003 não pode ser interpretado de modo a poder servir de instrumento ao progenitor que deslocou ilicitamente a criança, para prolongar a situação de facto criada pelo seu comportamento ilícito ou para legitimar os efeitos desse comportamento.

58      É verdade que, segundo o artigo 24.°, n.° 3, da Carta, o direito fundamental que assiste à criança de manter regularmente relações pessoais e contactos directos com ambos os progenitores pode ser derrogado se esse interesse superior se revelar contrário ao interesse da criança.

59      Assim, há que considerar que uma medida que impede a manutenção regular de relações pessoais e de contactos directos com ambos os progenitores apenas se pode justificar se outro interesse da criança tiver uma intensidade tal que prevaleça sobre o interesse que está na base do referido direito fundamental.

60      Todavia, uma apreciação equilibrada e razoável de todos os interesses em jogo, que deve assentar em considerações objectivas relativas à própria pessoa da criança e ao seu meio social, deve, em princípio, ser efectuada no quadro de um processo perante o tribunal competente para conhecer do mérito ao abrigo das disposições do Regulamento n.° 2201/2003.

61      Tendo em conta o conjunto das considerações que precedem, há que responder às questões submetidas que o artigo 20.° do Regulamento n.° 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que, em circunstâncias como as do processo principal, não permite a um tribunal de um Estado‑Membro adoptar uma medida provisória em matéria de responsabilidade parental, destinada a confiar a guarda de uma criança que se encontra no território desse Estado‑Membro a um dos progenitores, quando um tribunal de outro Estado‑Membro, competente ao abrigo do referido regulamento para conhecer do mérito do litígio relativo à guarda da criança, já tiver proferido uma decisão confiando provisoriamente a guarda dessa criança ao outro progenitor e essa decisão tiver sido declarada executória no território do primeiro Estado‑Membro.

 Quanto às despesas

62      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

O artigo 20.° do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que, em circunstâncias como as do processo principal, não permite a um tribunal de um Estado‑Membro adoptar uma medida provisória em matéria de responsabilidade parental, destinada a confiar a guarda de uma criança que se encontra no território desse Estado‑Membro a um dos progenitores, quando um tribunal de outro Estado‑Membro, competente ao abrigo do referido regulamento para conhecer do mérito do litígio relativo à guarda da criança, já tiver proferido uma decisão confiando provisoriamente a guarda dessa criança ao outro progenitor e essa decisão tiver sido declarada executória no território do primeiro Estado‑Membro.

Assinaturas


* Língua do processo: esloveno.