CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

GERARD HOGAN

apresentadas em 10 de setembro de 2020 (1)

Processo C336/19

Centraal Israëlitisch Consistorie van België e o.,

Unie Moskeeën Antwerpen VZW,

Islamitisch Offerfeest Antwerpen VZW,

JG,

KH,

Executief van de Moslims van België e o.,

Coördinatie Comité van Joodse Organisaties van België, Section belge du Congrès juif mondial et Congrès juif européen VZW e o.

sendo intervenientes:

LI,

Vlaamse Regering,

Waalse regering,

Kosher Poultry BVBA e o.,

Global Action in the Interest of Animals VZW (GAIA)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Regulamento (CE) n.o 1099/2009 — Proteção dos animais no momento da occisão — Requisito, previsto no artigo 4.o, n.o 1, de os animais apenas serem mortos após atordoamento — Derrogação — Artigo 4.o, n.o 4 — Métodos específicos de abate exigidos por determinados ritos religiosos — Artigo 26.o — Regras nacionais mais estritas — Imposição, pelo Estado‑Membro, de uma proibição de abate sem atordoamento prévio — Abate segundo métodos especiais exigidos por determinados ritos religiosos — Atordoamento reversível ou atordoamento após incisão sem morte do animal — Liberdade de religião — Artigo 10.o, n.o 1, da Carta»






I.      Introdução

1.        O presente pedido de decisão prejudicial resulta de cinco recursos de anulação, total ou parcial, do decreet van het Vlaamse Gewest van 7 juli 2017 houdende wijziging van de wet van 14 augustus 1986 betreffende de bescherming en het welzijn der dieren, wat de toegelaten methodes voor het slachten van dieren betreft (Decreto da Região da Flandres, de 7 de julho de 2017, que altera a Lei de 14 de agosto de 1986 respeitante à proteção e ao bem‑estar dos animais, no que respeita aos métodos permitidos de abate de animais) (a seguir «decreto impugnado»), interpostos no Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional, Bélgica) em 16 de janeiro de 2018. Com efeito, este decreto proíbe o abate de animais segundo ritos judaicos e muçulmanos tradicionais e exige que esses animais sejam atordoados antes do abate, a fim de diminuir o seu sofrimento. A principal questão que se coloca ao Tribunal de Justiça consiste em saber se, ao abrigo do direito da União, é permitida uma proibição absoluta, caso não exista atordoamento, tendo em conta, nomeadamente, as garantias de liberdade de religião previstas na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2.        Os recursos foram interpostos por Centraal Israëlitisch Consistorie van België e o., Unie Moskeeën Antwerpen VZW, Islamitisch Offerfeest Antwerpen VZW, por JG, por KH, Executief van de Moslims van België e o., Coördinatie Comité van Joodse Organisaties van België, e VZW e o. (a seguir «recorrentes»). Além disso, várias outras partes, nomeadamente, LI, Vlaamse regering (Governo da Flandres), Waalse regering (Governo da Valónia), Kosher Poultry BVBA e o., e Global Action in the Interest of Animals VZW são intervenientes no processo.

3.        As disposições pertinentes do decreto impugnado estabelecem que um animal vertebrado (2) só pode ser abatido após atordoamento prévio. No entanto, se os animais forem abatidos segundo métodos especiais exigidos por determinados ritos religiosos, o atordoamento deve ser reversível e não pode ter como consequência a morte do animal. Em derrogação à obrigação de atordoamento prévio reversível de animais, o atordoamento de gado segundo métodos especiais exigidos por determinados ritos religiosos pode atualmente ser feito imediatamente após a incisão na garganta do animal (atordoamento após a incisão).

4.        Por conseguinte, o decreto impugnado revogou, a partir de 1 de janeiro de 2019, a derrogação relativa à exigência de atordoamento prévio de animais anteriormente existente no direito nacional no que diz respeito ao abate exigido por determinados ritos religiosos (3). Os recorrentes consideram que devem existir exceções, alegando que a revogação desta derrogação compromete significativamente um elemento fundamental das suas práticas e convicções religiosas.

5.        O presente pedido de decisão prejudicial, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 18 de abril de 2019, tem por objeto, no essencial, a interpretação do artigo 4.o, n.o 4, e do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento (CE) n.o 1099/2009 do Conselho (4) e a validade desta disposição à luz do artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

6.        A este respeito, importa observar que o artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009 estabelece inequivocamente que «[o]s animais só podem ser mortos após atordoamento». O artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento estabelece, a título de derrogação (5), que, para os animais que são submetidos a métodos especiais de abate exigidos por determinados ritos religiosos, «[o]s requisitos previstos no n.o 1 não se aplicam […] desde que o abate seja efetuado num matadouro». No entanto, o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 estabelece que os Estados‑Membros podem adotar disposições destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão do que as previstas no referido regulamento, em relação, designadamente, ao abate de animais em conformidade com o n.o 4 do artigo 4.o

7.        Alguns dos recorrentes alegaram no órgão jurisdicional de reenvio que os Estados‑Membros não podem invocar o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 para eliminar ou esvaziar de sentido a exceção relativa ao abate exigido por determinados ritos religiosos, prevista no artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento. Em contrapartida, o Governo da Flandres e o Governo da Valónia afirmaram perante o referido órgão jurisdicional que o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 autoriza expressamente os Estados‑Membros a derrogarem o disposto no artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento.

8.        Assim, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 — que visa assegurar a liberdade de religião nos termos do artigo 10.o, n.o 1, da Carta (6) — e o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 permitem uma medida nacional que proíbe a occisão de animais vertebrados sem atordoamento prévio e impõe o atordoamento prévio reversível de animais antes do abate que não tem como consequência a morte destes ou o atordoamento após a incisão no âmbito de métodos especiais de abate exigidos por determinados ritos religiosos.

9.        O presente pedido de decisão prejudicial proporciona ao Tribunal de Justiça uma oportunidade única para rever e expandir a sua jurisprudência relativa ao Regulamento n.o 1099/2009 e à conjugação do objetivo de proteção do bem‑estar animal com o direito de uma pessoa respeitar preceitos alimentares impostos pela sua religião, previsto no artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

10.      A este propósito, o Tribunal de Justiça teve recentemente a oportunidade de apreciar a validade e fornecer uma interpretação de determinadas disposições do Regulamento n.o 1099/2009 nos seus Acórdãos de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335), e de 26 de fevereiro de 2019, Oeuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (C‑497/17, EU:C:2019:137), relativos ao abate de animais sem atordoamento prévio quando o método de abate é exigido por um determinado rito religioso.

11.      Estes processos tinham por objeto, designadamente, a interpretação e a validade da derrogação prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 à proibição estabelecida no artigo 4.o, n.o 1, deste regulamento.

12.      O Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335) apreciou e considerou válido o requisito previsto no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, que estabelece que o abate ritual deve ser feito em matadouros autorizados. No Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, Oeuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (C‑497/17, EU:C:2019:137), o Tribunal de Justiça declarou que o logótipo biológico da União Europeia não podia ser utilizado em produtos provenientes de animais que foram objeto de abate ritual sem atordoamento prévio apesar de tal abate ser permitido ao abrigo de artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009. Em virtude desta decisão, o logótipo biológico da União Europeia não pode ser utilizado quando o produto não é obtido em conformidade com as mais elevadas normas, nomeadamente em matéria de bem‑estar animal.

13.      O objeto do presente pedido de decisão prejudicial é ligeiramente diferente, uma vez que visa, pela primeira vez, a interpretação e validade do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009, que autoriza expressamente os Estados‑Membros a adotarem disposições destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão do que as previstas no artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento.

14.      O presente processo obriga o Tribunal de Justiça a ter em consideração a delicada questão de saber se e, em caso afirmativo, em que medida, um Estado‑Membro, à luz das sensibilidades nacionais específicas relativas ao bem‑estar animal, pode adotar medidas que proporcionem uma proteção mais ampla aos animais no momento da occisão do que as previstas no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, que alegadamente colidem com a liberdade de religião consagrada no artigo 10.o, n.o 1, da Carta. Em particular, o Tribunal de Justiça pode ter de considerar a questão de saber se a possibilidade, prevista no artigo 26.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, de importar produtos provenientes de animais abatidos segundo métodos específicos de abate exigidos por determinados ritos religiosos é suficiente para garantir o respeito do direito à liberdade de religião.

15.      No entanto, antes de ter em consideração estas questões, há que referir as disposições legislativas e as disposições do Tratado relevantes.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

1.      Carta e TFUE

16.      O artigo 10.o da Carta, sob a epígrafe «Liberdade de pensamento, de consciência e de religião», estabelece:

«1.      Todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou coletivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.

[…]»

17.      O artigo 21.o da Carta, sob a epígrafe «Não discriminação», estabelece:

«1.      É proibida a discriminação em razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual.

[…]»

18.      O artigo 22.o da Carta, sob a epígrafe «Diversidade cultural, religiosa e linguística», estabelece:

«A União respeita a diversidade cultural, religiosa e linguística.»

19.      O artigo 52.o da Carta, sob a epígrafe «Âmbito e interpretação dos direitos e dos princípios», estabelece:

«1.      Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

[…]

3.      Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.

[…]»

20.      O artigo 13.o TFUE [anteriormente Protocolo n.o 33 do Tratado CE, relativo à proteção e ao bem‑estar dos animais (1997)] estabelece:

«Na definição e aplicação das políticas da União nos domínios da agricultura, da pesca, dos transportes, do mercado interno, da investigação e desenvolvimento tecnológico e do espaço, a União e os Estados‑Membros terão plenamente em conta as exigências em matéria de bem‑estar dos animais, enquanto seres sensíveis, respeitando simultaneamente as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos Estados‑Membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património regional.»

2.      Regulamento n.o 1099/2009

21.      Os considerandos 2, 4, 18, 20, 43, 57, 58 e 61 do Regulamento n.o 1099/2009 estabelecem:

«2)      A occisão de animais pode provocar dor, aflição, medo ou outras formas de sofrimento nos animais, mesmo nas melhores condições técnicas disponíveis. Certas operações associadas à occisão podem provocar stress e todas as técnicas de atordoamento apresentam inconvenientes. Os operadores das empresas ou quaisquer pessoas envolvidas na occisão de animais deverão tomar as medidas necessárias para evitar a dor e minimizar a aflição e sofrimento dos animais durante o processo de abate ou occisão, tendo em conta as melhores práticas neste domínio e os métodos autorizados ao abrigo do presente regulamento. Por conseguinte, a dor, a aflição ou sofrimento deverão ser consideradas como evitáveis sempre que os operadores das empresas ou quaisquer pessoas envolvidas na occisão de animais infrinjam uma das disposições do presente regulamento ou utilizem práticas autorizadas sem ter em conta a respetiva evolução técnica, provocando assim dor, aflição ou sofrimento nos animais, por negligência ou intencionalmente.

[…]

4)      O bem‑estar dos animais é um princípio comunitário consagrado no Protocolo n.o 33 relativo à proteção e ao bem‑estar dos animais, anexo ao Tratado que institui a Comunidade Europeia (Protocolo n.o 33). A proteção dos animais no momento do abate ou occisão é um tema que preocupa o público e influencia a atitude dos consumidores em relação aos produtos agrícolas. Por outro lado, reforçar a proteção dos animais no momento do abate contribui para melhorar a qualidade da carne e, indiretamente, tem efeitos positivos ao nível da segurança no trabalho nos matadouros.

[…]

18)      A Diretiva 93/119/CE previa uma derrogação à obrigação de atordoamento no caso de abate religioso realizado em matadouros. Visto que as disposições comunitárias aplicáveis ao abate religioso foram transpostas de modo diferente em função dos contextos nacionais, e considerando que as regras nacionais têm em conta dimensões que transcendem o objetivo do presente regulamento, é importante manter a derrogação à exigência de atordoamento dos animais antes do abate, deixando, no entanto, um certo nível de subsidiariedade a cada Estado‑Membro. Assim, o presente regulamento respeita a liberdade de religião e o direito de manifestar a sua religião ou crença através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos, consagrados no artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

[…]

20)      Muitos métodos de occisão são dolorosos para os animais. O atordoamento torna‑se, assim, necessário, para provocar nos animais um estado de inconsciência e uma perda de sensibilidade antes ou no momento da occisão. Medir a perda de consciência e de sensibilidade de um animal é uma operação complexa que deverá ser realizada de acordo com métodos aprovados cientificamente. Convém, no entanto, assegurar um acompanhamento mediante indicadores, a fim de avaliar a eficiência do procedimento em condições reais.

[…]

43)      No abate sem atordoamento deverá ser praticada uma incisão precisa na garganta com uma faca afiada, para minimizar o sofrimento. Além disso, se os animais não forem imobilizados mecanicamente após a incisão, o processo de sangria pode ser mais demorado, o que prolongará desnecessariamente o sofrimento dos animais. Os bovinos, ovinos e caprinos são as espécies mais frequentemente abatidas através deste procedimento. Por conseguinte, os ruminantes abatidos sem atordoamento deverão ser imobilizados individualmente e mecanicamente.

[…]

57)      Os cidadãos europeus esperam que sejam respeitadas as normas mínimas de bem‑estar dos animais durante o seu abate. Em certas zonas, a atitude em relação aos animais depende também das perceções nacionais e, em alguns Estados‑Membros, verifica‑se a exigência de manter ou adotar regras de bem‑estar dos animais mais amplas do que as acordadas a nível comunitário. No interesse dos animais e desde que tal não afete o funcionamento do mercado interno é adequado dar aos Estados‑Membros uma certa flexibilidade para manter ou, em certos domínios específicos, adotar normas nacionais mais exigentes.

É importante garantir que tais normas nacionais não sejam utilizadas pelos Estados‑Membros de modo a prejudicar o correto funcionamento do mercado interno.

[…]

61)      Atendendo a que o objetivo do presente regulamento, nomeadamente garantir uma abordagem harmonizada no que respeita às normas de bem‑estar dos animais no momento da occisão, não pode ser suficientemente realizado pelos Estados‑Membros e pode, pois, devido à dimensão e aos efeitos do presente regulamento, ser melhor alcançado ao nível comunitário, a Comunidade pode tomar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 5.o do Tratado. Em conformidade com o princípio da proporcionalidade consagrado no mesmo artigo, é necessário e adequado, para a consecução desse objetivo, estabelecer regras específicas relativas à occisão dos animais destinados à produção de alimentos, lã, peles, peles com pelo ou outros produtos, bem como às operações complementares. O presente regulamento não excede o necessário para atingir aquele objetivo.»

22.      O artigo 1.o do Regulamento n.o 1099/2009, sob a epígrafe «Objeto e âmbito de aplicação», estabelece:

«1.      O presente regulamento estabelece regras relativas à occisão dos animais criados ou mantidos para a produção de alimentos, lã, peles, peles com pelo ou outros produtos, bem como à occisão de animais para efeitos de despovoamento e operações complementares.

[…]»

23.      O artigo 2.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Definições», estabelece:

«[…]

b)      “Operações complementares”, operações como a manipulação, a estabulação, a imobilização, o atordoamento e a sangria dos animais, que decorram no contexto e no local da occisão;

[…]

f)      “Atordoamento”, qualquer processo intencional que provoque a perda de consciência e sensibilidade sem dor, incluindo qualquer processo de que resulte a morte instantânea;

g)      “Rito religioso”, uma série de atos relacionados com o abate de animais, prescritos por uma religião;

[…]

j)      “Abate” a occisão de animais destinados ao consumo humano;

[…]»

24.      O artigo 3.o, n.o 1, do mesmo regulamento estabelece que deve poupar‑se aos animais qualquer dor, aflição ou sofrimento evitáveis durante a occisão e as operações complementares.

25.      O artigo 4.o do Regulamento n.o 1099/2009, sob a epígrafe «Métodos de atordoamento», estabelece:

«1.      Os animais só podem ser mortos após atordoamento efetuado em conformidade com os métodos e requisitos específicos relacionados com a aplicação desses métodos especificados no anexo I. A perda de consciência e sensibilidade é mantida até à morte do animal.

Os métodos referidos no anexo I que não resultem em morte instantânea (adiante referidos como “atordoamento simples”) são seguidos, o mais rapidamente possível, por um processo que assegure a morte, tal como sangria, mielotomia, eletrocussão ou exposição prolongada a anóxia.

[…]

4.      Os requisitos previstos no n.o 1 não se aplicam aos animais que são objeto dos métodos especiais de abate requeridos por determinados ritos religiosos, desde que o abate seja efetuado num matadouro.»

26.      O artigo 26.o do Regulamento n.o 1099/2009, sob a epígrafe «Regras nacionais mais estritas», dispõe:

«1.      O presente regulamento não impede os Estados‑Membros de manterem quaisquer disposições nacionais destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão, que estejam em vigor no momento da entrada em vigor do presente regulamento.

Antes de 1 de janeiro de 2013, os Estados‑Membros informam a Comissão acerca de tais disposições nacionais. A Comissão transmite essas informações aos outros Estados‑Membros.

2.      Os Estados‑Membros podem adotar disposições nacionais destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão do que as previstas no presente regulamento, relativamente aos seguintes domínios:

[…]

c)      Abate e operações complementares nos termos do n.o 4 do artigo 4.o

Os Estados‑Membros notificam a Comissão de todas essas disposições nacionais. A Comissão transmite essas informações aos outros Estados‑Membros.

[…]

4.      Os Estados‑Membros não proíbem nem impedem a circulação nos seus territórios de produtos de origem animal provenientes de animais mortos noutros Estados‑Membros com fundamento no facto de os animais em causa não terem sido mortos em conformidade com as suas disposições nacionais destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão.»

B.      Direito belga

27.      O artigo 1.o do decreto impugnado estabelece:

«O presente decreto regula uma matéria com caráter regional.»

28.      O artigo 2.o do referido decreto estabelece:

«O artigo 3.o da Lei de 14 de agosto de 1986 respeitante à proteção e ao bem‑estar dos animais, conforme alterada pelas Leis de 4 de maio de 1995, 9 de julho de 2004, 11 de maio de 2007 e 27 de dezembro de 2012, é alterado do seguinte modo:

1.o os n.os 13 e 14 são substituídos pelos seguintes números:

“13.o occisão: qualquer processo utilizado intencionalmente que provoque a morte de um animal;

14.o abate: a occisão de animais destinados ao consumo humano;”

2.o é introduzido o n.o 14‑bis, que estabelece o seguinte:

“(14‑bis) atordoamento: qualquer processo intencional aplicado a um animal que provoque um estado de inconsciência e insensibilidade sem dor, incluindo qualquer processo de que resulte a morte imediata;”

29.      O artigo 3.o do decreto impugnado estabelece:

«O artigo 15.o da mesma lei é substituído pelo seguinte artigo:

“Artigo 15.o, § 1. Um animal vertebrado só pode ser abatido após atordoamento prévio. O abate apenas pode ser realizado por uma pessoa que possua os conhecimentos e competências necessárias, e através do método menos doloroso, rápido e mais seletivo.

Em derrogação ao § 1, um animal vertebrado pode ser abatido sem atordoamento prévio:

1.o em caso de força maior;

2.o em caso de atividades cinegéticas ou de pesca;

3.o no âmbito de controlo de pragas.

§ 2. Quando os animais são abatidos segundo métodos especiais exigidos por determinados ritos religiosos, o atordoamento deve ser reversível e não pode ter como consequência a morte do animal”.»

30.      O artigo 4.o do decreto impugnado determina:

«O artigo 16.o da mesma lei, conforme alterado pela Lei de 4 de maio de 1995, pelo Decreto Real de 22 de fevereiro de 2001 e pela Lei de 7 de fevereiro de 2014, é substituído pelo seguinte artigo:

“Artigo 16.o, § 1. O Governo da Flandres tem o dever de fixar as condições relativas:

1.o aos métodos de atordoamento e occisão de animais em função das circunstâncias e das espécies animais;

2.o à construção, conceção e equipamento dos matadouros;

3.o à garantia de independência da pessoa responsável pelo bem‑estar dos animais;

4.o à competência da pessoa responsável pelo bem‑estar dos animais, do pessoal dos matadouros e das pessoas que intervêm na occisão de animais, incluindo no que diz respeito ao conteúdo e organização da formação e exames, e à emissão, revogação e suspensão das licenças emitidas para o efeito.

§ 2 O Governo da Flandres pode aprovar estabelecimentos para o abate coletivo de animais destinados ao consumo doméstico privado e fixar as condições do abate fora de um matadouro de animais destinados ao consumo doméstico privado.”»

31.      O artigo 5.o do decreto impugnado dispõe:

«Na mesma lei, conforme alterada pela Lei de 7 de fevereiro de 2014, é introduzido o artigo 45.o ter, que estabelece o seguinte:

“Artigo 45.o ter. Em derrogação ao artigo 15.o, o atordoamento de gado abatido segundo métodos especiais exigidos por determinados ritos religiosos pode ocorrer imediatamente após a incisão na garganta, até à data em que o Governo flamengo decida que o atordoamento reversível é aplicável na prática a estas espécies animais”.»

32.      O artigo 6.o do decreto impugnado estabelece que este entra em vigor em 1 de janeiro de 2019.

III. Factos do processo principal e pedido de decisão prejudicial

33.      Os recorrentes no processo principal interpuseram no Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional) vários recursos de anulação do decreto impugnado.

34.      Em apoio dos seus recursos de anulação no Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional), os recorrentes alegam, no essencial, o seguinte:

Em primeiro lugar, a violação do Regulamento n.o 1099/2009, conjugado com o princípio da igualdade e da não discriminação, pelo facto de os fiéis judeus e muçulmanos terem sido privados da garantia, contida no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, de não sujeição dos abates rituais à exigência de atordoamento prévio, e pelo facto de, em violação do artigo 26.o, n.o 2, do referido regulamento, a Comissão Europeia não ter sido notificada atempadamente do decreto impugnado;

Em segundo lugar, a violação da liberdade de religião, pelo facto de os fiéis judeus e muçulmanos terem sido impossibilitados, por um lado, de abater os animais de acordo com os preceitos da sua religião e, por outro, de obter carne proveniente de animais abatidos de acordo com os referidos preceitos religiosos;

Em terceiro lugar, a violação do princípio da separação entre a Igreja e o Estado, pelo facto de as disposições do decreto impugnado alegadamente prescreverem o modo como deve ser realizado um rito religioso;

Em quarto lugar, a violação do direito ao trabalho e à livre escolha da atividade profissional, da liberdade de empreendimento e da livre circulação de bens e serviços, pelo facto de os profissionais de abate segundo ritos religiosos terem sido impossibilitados de exercer a sua profissão, pelo facto de os profissionais do abate e de os matadouros terem sido impossibilitados de oferecer aos seus clientes carne que podiam garantir que provinha de animais abatidos de acordo com os preceitos religiosos, e pelo facto de haver uma distorção da concorrência entre os matadouros instalados na Região da Flandres e os matadouros instalados na Região de Bruxelas‑Capital ou noutro Estado‑Membro da União Europeia onde é permitido o abate de animais sem atordoamento;

Em quinto lugar, a violação do princípio da igualdade e da não discriminação, pelo facto de:

os fiéis judeus e muçulmanos, sem uma justificação razoável, serem tratados da mesma forma que as pessoas que não estão sujeitas a preceitos alimentares específicos de ordem religiosa;

as pessoas que matam animais no exercício de atividades cinegéticas ou de pesca, ou para efeitos de luta contra organismos prejudiciais, por um lado, e as pessoas que matam animais segundo métodos de abate especiais, prescritos pelos costumes de um culto religioso, por outro, serem tratadas de forma diferente, sem uma justificação razoável; e

os fiéis judeus, por um lado, e os fiéis muçulmanos, por outro, serem tratados de igual forma, sem uma justificação razoável.

35.      Em contrapartida, o Governo da Flandres e o Governo da Valónia consideram que o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 autoriza expressamente os Estados‑Membros a derrogarem o artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento (7).

36.      O órgão jurisdicional de reenvio observa que a exceção ao princípio da obrigação de atordoamento dos animais antes do abate prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 é baseada no princípio da liberdade de religião, conforme consagrado no artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

37.      No entanto, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, os Estados‑Membros podem estabelecer derrogações à referida exceção. Afinal, o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 autoriza os Estados‑Membros, com vista à promoção do bem‑estar animal, a derrogarem o artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento. A este respeito, não são especificados os limites que os Estados‑Membros da União têm de respeitar (8).

38.      O órgão jurisdicional de reenvio observa que, consequentemente, se coloca a questão de saber se o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 pode ser interpretado no sentido de que autoriza os Estados‑Membros da União Europeia a adotarem disposições nacionais como as que constam do decreto impugnado, e se a referida disposição, caso seja interpretada neste sentido, é compatível com a liberdade de religião, conforme garantida pelo artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

39.      Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o Regulamento n.o 1099/2009 apenas estabelece uma exceção condicional à obrigação de atordoamento prévio relativamente à occisão de animais por métodos de abate ritual, ao passo que a occisão de animais durante atividades cinegéticas ou de pesca e manifestações desportivas e culturais está totalmente isenta desta obrigação nos termos do artigo 1.o, n.o 3, alínea a), ii), do Regulamento n.o 1099/2009. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o Regulamento n.o 1099/2009 dá origem a uma discriminação injustificada, na medida em que autoriza os Estados‑Membros a limitarem a exceção no caso do abate exigido por determinados ritos religiosos, ao passo que a occisão de animais sem atordoamento é permitida em atividades cinegéticas ou de pesca e em manifestações desportivas e culturais.

40.      Neste contexto, o Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do [Regulamento n.o 1099/2009] ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros podem, em derrogação à disposição contida no artigo 4.o, n.o 4, do referido regulamento e com vista à promoção do bem‑estar animal, adotar regras como as contidas no [decreto impugnado], as quais preveem, por um lado, uma proibição de abate sem atordoamento dos animais que também se aplica ao abate realizado durante um rito religioso e, por outro lado, um procedimento de atordoamento alternativo para o abate realizado durante um rito religioso, baseado no atordoamento reversível e na regra de que o atordoamento não pode ter como consequência a morte do animal?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do referido regulamento, na interpretação referida na primeira questão, viola o artigo 10.o, n.o 1, da [Carta]?

3)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), conjugado com o artigo 4.o, n.o 4, do referido regulamento, na interpretação referida na primeira questão, viola os artigos 20.o, 21.o e 22.o da [Carta], porquanto apenas está prevista, para a occisão de animais segundo métodos especiais de abate requeridos por determinados ritos religiosos, uma exceção condicional à obrigação de atordoar o animal (artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 26.o, n.o 2), ao passo que estão previstas, para a occisão de animais durante atividades cinegéticas ou de pesca e em manifestações desportivas e culturais, pelos motivos mencionados no preâmbulo do regulamento, disposições que excluem essas atividades do âmbito de aplicação do regulamento, ou não as sujeitam à obrigação de atordoamento do animal no momento da occisão (artigo 1.o, n.o 1, segundo parágrafo, e n.o 3)?»

IV.    Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

41.      O Centraal Israëlitisch Consistorie van België e o., o Executief van de Moslims van België e o., a Coördinatie Comité van Joodse Organisaties van België. Section belge du Congrès juif mondial et Congrès juif européen VZW, a LI, o Vlaamse Regering, o Waalse Regering, a Global Action in the Interest of Animals VZW (GAIA), os Governos dinamarquês, finlandês e sueco, o Conselho Europeu e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas sobre as questões submetidas pelo Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional).

42.      Na audiência no Tribunal de Justiça de 8 de julho de 2020, o Centraal Israëlitisch Consistorie van België e o., a Unie Moskeeën Antwerpen VZW, o Executief van de Moslims van België e o., a Coördinatie Comité van Joodse Organisaties van België. Section belge du Congrès juif mondial et Congrès juif européen VZW, a LI, o Vlaamse Regering, o Waalse Regering, a Global Action in the Interest of Animals VZW (GAIA), os Governos dinamarquês e finlandês, o Conselho Europeu e a Comissão apresentaram alegações. No caso do Governo finlandês, o seu agente foi autorizado a apresentar alegações por videoconferência.

V.      Análise

43.      No seu pedido de decisão prejudicial, o Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional) submeteu três questões ao Tribunal de Justiça. Conforme solicitado por este Tribunal, as presentes conclusões incidirão sobre a primeira e segunda questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio no seu pedido de decisão prejudicial.

44.      Com a sua primeira questão, o Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional) pergunta como deve ser interpretado o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009. Em particular, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber qual é o alcance do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 e se este permite que os Estados‑Membros, em derrogação à disposição contida no artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento e com vista à promoção do bem‑estar dos animais, adotem disposições como as que constam do decreto impugnado. Em função da interpretação dada ao artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009, o Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional), pretende saber, com a sua segunda questão, se esta disposição do direito da União viola o artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

45.      Tendo em consideração a ligação intrínseca entre as primeiras duas questões, considero que é mais adequado responder‑lhes em conjunto.

A.      Observações preliminares

46.      Resulta do pedido de decisão prejudicial que o decreto impugnado foi notificado à Comissão em 29 de novembro de 2017 (9), nos termos do artigo 26.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento n.o 1099/2009. Segundo as alegações escritas apresentadas no Tribunal de Justiça, a notificação em causa foi extemporânea (10) e, por conseguinte, o decreto impugnado é inválido. A este propósito, importa observar que o Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional) referiu especificamente a notificação em causa no seu pedido de decisão prejudicial. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio não suscitou qualquer dúvida quanto à validade do decreto impugnado a este respeito. Além disso, nenhuma das questões colocadas refere especificamente esta matéria ou visa uma interpretação do artigo 26.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento n.o 1099/2009. Assim, considero que esta questão, especialmente na falta de uma verdadeira discussão entre as partes sobre tal matéria, está fora do âmbito do presente processo.

47.      Também tem sido objeto de alguma discussão no Tribunal de Justiça a questão de saber se o atordoamento prévio reversível que não provoca a morte do animal ou o atordoamento após a incisão de animais vertebrados respeita os métodos específicos de abate exigidos pelos ritos religiosos judaicos e muçulmanos. A este propósito, parecem existir pontos de vista divergentes sobre a matéria em ambas as religiões (11). Conforme salientei nas Conclusões que apresentei no processo C‑243/19, A/Veselibas Ministrija (12), um tribunal laico não pode decidir em matéria de ortodoxia religiosa: em meu entender, é suficiente referir que existe um grupo significativo de crentes muçulmanos e judeus que considera que o abate de animais sem o referido atordoamento constitui um aspeto essencial de um rito religioso necessário. Por conseguinte, proponho continuar com base nesta premissa (13).

48.      O Tribunal de Justiça, em todo o caso, declarou expressamente no n.o 51 do Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335) que a existência de eventuais divergências teológicas sobre este assunto não pode, em si mesma, invalidar a qualificação como «rito religioso» da prática relativa ao abate ritual, conforme descrita pelo órgão jurisdicional de reenvio (14).

49.      Embora o órgão jurisdicional de reenvio tenha explicado pormenorizadamente que o decreto impugnado foi adotado na sequência de um extenso processo de consulta dos representantes de diferentes grupos religiosos e a legislação flamengo tenha efetuado um esforço considerável durante um período prolongado (desde 2006) para conciliar os objetivos de promoção do bem‑estar animal com o respeito pelo espírito do abate ritual (15), este órgão jurisdicional referiu no seu pedido de decisão prejudicial que o decreto impugnado impõe a proibição do abate ritual sem atordoamento que anteriormente era permitido ao abrigo do direito nacional e da derrogação prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento 1099/2009 (16).

B.      Artigo 4.o, n.os 1 e 4, do Regulamento n.o 1099/2009 e atual jurisprudência relativa a estas disposições

50.      O Regulamento n.o 1099/2009 estabelece regras relativas, designadamente, à occisão dos animais criados ou mantidos para a produção de alimentos. Conforme resulta do título e do artigo 3.o, n.o 1, do próprio regulamento, o principal objetivo deste é proteger os animais e poupá‑los a qualquer dor, aflição ou sofrimento evitáveis durante o abate e operações complementares.

51.      O artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009 dispõe inequivocamente que os «animais só podem ser mortos após atordoamento».

52.      Em meu entender, o artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009 é a pedra angular deste regulamento e reflete e materializa a obrigação clara que a primeira parte do artigo 13.o TFUE impõe quer à União quer aos Estados‑Membros de terem plenamente em conta as exigências de bem‑estar dos animais, que são seres sencientes. A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou, no n.o 47 do Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, Oeuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (C‑497/17, EU:C:2019:137), que estudos científicos demonstraram que o atordoamento constitui a técnica que menos afeta o bem‑estar dos animais no momento do abate.

53.      Embora o artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009 esteja redigido em termos estritos, o artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento prevê, no entanto, que, em derrogação a essa regra, aos animais que são objeto dos métodos especiais de abate exigidos por determinados ritos religiosos, «[o]s requisitos previstos no n.o 1 não se aplicam […] desde que o abate seja efetuado num matadouro» (17). Assim, o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 responde à necessidade de garantir que os seguidores de determinadas religiões têm o direito de manter ritos religiosos essenciais e de consumir carne de animais abatidos segundo preceitos religiosos.

54.      A validade do direito previsto no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 de efetuar o abate ritual num matadouro à luz das disposições do artigo 10.o, n.o 1, da Carta foi apreciada pelo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335). Nos n.os 43 a 45 deste acórdão, o Tribunal de Justiça recordou que, segundo a jurisprudência, o direito à liberdade de consciência e de religião previsto no artigo 10.o, n.o 1, da Carta inclui, designadamente, a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou coletivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos. Além disso, a Carta utiliza a palavra «religião» em sentido amplo, abrangendo quer o forum internum, que corresponde ao facto de existir uma convicção, quer o forum externum, que corresponde à manifestação de fé religiosa em público. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça concluiu que os métodos específicos de abate exigidos por determinados rituais religiosos na aceção do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 10.o, n.o 1, da Carta enquanto parte dessa manifestação pública de fé religiosa (18).

55.      O Tribunal de Justiça considerou que a derrogação prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, que está sujeita à exigência de o abate ser efetuado num matadouro (19), não estabelece nenhuma proibição da prática do abate ritual na União, mas, pelo contrário, concretiza o compromisso positivo do legislador da União de permitir a prática do abate de animais sem atordoamento prévio, a fim de garantir o respeito efetivo da liberdade de religião (20).

56.      Assim, a derrogação estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 à regra prevista no artigo 4.o, n.o 1, do mesmo regulamento admite a prática do abate ritual, em que os animais podem ser mortos sem atordoamento prévio unicamente a fim de assegurar o respeito da liberdade religiosa, uma vez que esta forma de abate não atenua a dor, a aflição ou o sofrimento dos animais tão eficazmente como o abate precedido de atordoamento, que, de acordo com o artigo 2.o, alínea f), deste regulamento, lido à luz do seu considerando 20, é necessário para provocar nos animais uma perda de consciência e de sensibilidade para reduzir consideravelmente o seu sofrimento (21).

57.      Por conseguinte, o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 reflete a vontade do legislador da União Europeia de respeitar a liberdade de religião e o direito de manifestação da religião ou convicção através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos, consagrados no artigo 10.o da Carta, apesar do sofrimento evitável causado aos animais no âmbito do abate ritual sem atordoamento prévio (22). Esta disposição concretiza, em meu entender, o compromisso da União Europeia numa sociedade tolerante e plural onde coexistem opiniões e convicções divergentes e, por vezes, contraditórias, que devem ser conciliadas.

58.      Não obstante, resulta dos n.os 56 e seguintes do Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335) que podem ser impostos requisitos técnicos ou especificações para minimizar o sofrimento dos animais no momento da occisão e garantir a saúde de todos os consumidores de carne, aplicáveis de forma indiferenciada e não discriminatória, à liberdade de realizar o abate sem atordoamento prévio com fins religiosos para organizar e enquadrar este abate. Assim, conforme referido, o Tribunal de Justiça considerou no n.o 68 do Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335) que a exigência de tal abate ocorrer num matadouro (23)não constitui uma limitação do direito à liberdade de religião (24).

59.      Além disso, no Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, Oeuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (C‑497/17, EU:C:2019:137, n.os 48 a 50), o Tribunal de Justiça declarou, no essencial, que embora o bem‑estar dos animais possa, em certa medida, ser afetado para permitir a prática do abate ritual, a derrogação prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 não excede o estritamente necessário para assegurar a observância da liberdade de religião. A substância das convicções em causa estende‑se ao consumo da carne dos animais abatidos segundo ritos religiosos.

60.      Além disso, considero que resulta do referido acórdão que a prática do abate ritual de animais sem atordoamento prévio fará com que, em determinadas circunstâncias, os produtos provenientes deste ritual sejam tratados de forma diferente dos produtos provenientes do abate efetuado segundo padrões mais elevados no domínio do bem‑estar dos animais.

61.      É evidente que o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, enquanto derrogação à disposição contida no artigo 4.o, n.o 1, do mesmo regulamento, deve ser interpretado em sentido estrito. Isto é necessário para garantir a maior proteção possível dos animais no momento da occisão e, simultaneamente, assegurar o respeito pela liberdade de religião e por convicções religiosas profundas. Apesar da evidente tensão entre estes dois objetivos ‑ por vezes contraditórios ‑ o aspeto mais significativo da articulação entre estas disposições do Regulamento n.o 1099/2009 é, em meu entender, a linguagem muito estrita utilizada no artigo 4.o, n.o 1, do mesmo regulamento e o alcance da proibição que aí figura. Isto contrasta com a inexistência de quaisquer limites concretos ou específicos à derrogação contida no artigo 4.o, n.o 4, para além da exigência de o abate em questão ser exigido por um determinado rito religioso e ser efetuado num matadouro (25).

62.      Neste contexto, não posso deixar de observar que a expressão «animais que são objeto dos métodos especiais de abate requeridos por determinados ritos religiosos» contida no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 é lamentavelmente vaga e, por conseguinte, suscetível de ser interpretada em sentido amplo em prejuízo do bem‑estar dos animais (26). O legislador da União deve atribuir uma importância e um significado concretos à proteção do bem‑estar dos animais prevista no artigo 13.o TFUE. Embora deva submeter‑se em determinadas circunstâncias ao objetivo ainda mais fundamental de garantir as liberdades e convicções religiosas, estas circunstâncias devem ser, em si mesmas, claras e precisas. É legitimamente possível questionar se todos os produtos provenientes de animais abatidos ao abrigo da derrogação prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 se destinam efetivamente ao consumo por parte de pessoas que, para cumprirem os preceitos da sua religião, necessitam que o abate seja efetuado desta forma? Nos autos do processo no Tribunal de Justiça existem provas de que os produtos provenientes de animais abatidos sem terem sido previamente atordoados são destinados ao consumo por pessoas que, para além de não terem conhecimento deste facto, não necessitam que o abate seja assim efetuado para cumprirem determinadas regras alimentares impostas pela religião (27). Com efeito, podem perfeitamente existir consumidores com objeções religiosas, de consciência ou de moral ao consumo de tais produtos devido ao sofrimento evitável suportado pelos animais em causa.

63.      Embora o artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009 esteja redigido em termos claros, é difícil evitar a conclusão de que a única forma de um consumidor da União ter a certeza de que os produtos animais cumprem o disposto no artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009 é através do consumo de produtos com o logótipo biológico da União. Tudo isto para dizer que, embora os Estados‑Membros sejam obrigados a respeitar as convicções religiosas profundas de muçulmanos e judeus, permitindo‑lhes realizar o abate ritual de animais de acordo com as suas convicções, têm também obrigações relativas ao bem‑estar destas criaturas sencientes. Especificamente, uma situação em que a carne proveniente do abate de animais segundo ritos religiosos é simplesmente autorizada a entrar na cadeia alimentar geral para ser consumida por consumidores que não têm conhecimento ‑ e que não foram informados — sobre a forma como os animais foram abatidos não respeitaria nem o espírito nem a letra do artigo 13.o TFUE.

64.      Os autos do processo no Tribunal de Justiça referem que um número crescente de Estados‑Membros procura definir ou limitar de várias maneiras o âmbito da derrogação prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009. Isto inclui a proibição do abate de animais sem atordoamento prévio ou a proibição do abate de animais sem atordoamento prévio (reversível) ou após a incisão, com base, designadamente, no artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do mesmo regulamento.

65.      É a legitimidade desta prática à luz das disposições do Regulamento n.o 1099/2009, designadamente, do seu artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), que está no cerne do presente pedido de decisão prejudicial e que analisarei em seguida.

C.      Artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009

66.      O artigo 26.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009 e o artigo 26.o, n.o 2, do mesmo regulamento permitem que os Estados‑Membros mantenham ou adotem disposições nacionais destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais (28) no momento da occisão do que as contidas no referido regulamento. Com efeito, o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 estabelece que os Estados‑Membros podem conceder uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão em relação ao abate e atordoamento (29) dos animais nos termos do artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento.

67.      Considero que a própria redação do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 não prevê a eliminação ou a eliminação praticamente total (30), pelos Estados‑Membros, da prática do abate ritual. Isto resulta claramente da derrogação prevista no artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento, que se destina a proteger a liberdade de religião. Os termos genéricos do artigo 26.o, n.o 2, não podem ser lidos da forma que se poderia depreender das disposições específicas do artigo 4.o, n.o 4.

68.      Ao invés, o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 mantém a referida derrogação, embora permita, em conformidade com o princípio da subsidiariedade e para ter em conta sensibilidades nacionais relativas ao bem‑estar dos animais, a adoção, por parte dos Estados‑Membros, de regras nacionais adicionais ou mais estritas para além da exigência expressa prevista no artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento, segundo a qual o abate de animais sujeito a métodos específicos de abate exigidos por determinados ritos religiosos deve ser feito num matadouro.

69.      Estas regras adicionais podem incluir, por exemplo, a exigência de estar sempre presente um veterinário qualificado durante o abate ritual (além das exigências relativas ao responsável pelo bem‑estar dos animais previstas no artigo 17.o do Regulamento n.o 1099/2009) e de a pessoa que realiza esta forma específica de abate possuir uma formação adequada, assim como regras sobre o tipo, dimensão e afiação da faca utilizada e obrigatoriedade de uma segunda faca para o caso de a primeira se danificar durante o abate.

70.      Assim, a adoção, por parte dos Estados‑Membros, de regras mais estritas nos termos do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 deve ocorrer no âmbito e tendo plenamente em conta a natureza da derrogação estabelecida no artigo 4. o, n. o 4, do mesmo regulamento. No entanto, isto não significa que os Estados‑Membros podem exercer a faculdade prevista no artigo 26.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1099/2009 de um modo que invalide efetivamente a derrogação prevista no artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento, uma derrogação que, afinal de contas, foi concebida para respeitar as liberdades religiosas dos crentes das religiões judaicas e muçulmanas para os quais o ritual de abate de animais constituía um elemento fundamental das suas tradições religiosas, práticas e, inclusivamente, identidade.

71.      Com efeito, o considerando 18 do Regulamento n.o 1099/2009 explica que a possibilidade de os Estados‑Membros manterem ou adotarem disposições nacionais mais estritas reflete a vontade do legislador da União de deixar «um certo nível de subsidiariedade a cada Estado‑Membro» embora mantendo, não obstante, a derrogação ao atordoamento de animais antes do abate prevista no artigo 4. o, n. o 4, do Regulamento n. o 1099/2009 (31).

72.      Por conseguinte, o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 permite a adoção de disposições nacionais mais estritas para proteger o bem‑estar dos animais desde que o «núcleo» da prática religiosa em causa, nomeadamente o abate ritual, não seja afetado. Assim, não autoriza os Estados‑Membros a proibirem o abate de animais exigido por determinados ritos religiosos e expressamente permitido pelo artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 (32).

73.      Em meu entender, qualquer outra interpretação do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009, além de ser contrária à própria redação da disposição em causa (33) e à intenção clara do legislador da União (34), constituiria uma limitação à liberdade de religião garantida pelo artigo 10.o, n.o 1, da Carta e exigiria uma justificação explícita e detalhada em conformidade com o critério triplo estabelecido no artigo 52.o, n.o 1, da Carta. Neste contexto, basta observar que tal justificação está ausente do Regulamento n.o 1099/2009.

74.      Uma vez que tanto os considerandos do Regulamento n.o 1099/2009 como a própria linguagem legislativa do artigo 4.o, n.o 4, indicam claramente uma vontade de preservar o abate ritual de animais, a competência alargada atribuída aos Estados‑Membros pelo artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 (35) em relação ao abate de animais previsto no artigo 4.o, n.o 4, visa simplesmente permitir‑lhes tomar as medidas adicionais que considerem adequadas para promover o bem‑estar dos animais em causa.

75.      Assim, dito novamente, estas medidas adicionais não se estendem à proibição do abate ritual sem atordoamento prévio ou após a incisão, uma vez que isso equivaleria a negar a própria natureza da isenção prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009. Pelo contrário, isto comprometeria a essência das garantias religiosas previstas no artigo 10.o, n.o 1, da Carta para os seguidores do judaísmo e do islamismo, respetivamente, que, conforme vimos, atribuem uma profunda importância a estes rituais religiosos. Assim, considero que nos termos do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 e em linha com o Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335), os Estados‑Membros podem, por exemplo, adotar requisitos técnicos ou especificações (36) para minimizar o sofrimento dos animais no momento da occisão e promover o seu bem‑estar para além do requisito previsto no artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento, segundo o qual o abate ritual deve ser efetuado num matadouro.

76.      Não considero útil especular sobre o tipo de medidas que os Estados‑Membros poderiam legalmente adotar com fundamento no artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009, ou mesmo com fundamento em qualquer outra base jurídica, uma vez que isto está claramente fora do âmbito do presente processo e, por conseguinte, não foi objeto de qualquer debate sério (37). O Tribunal de Justiça não emite pareceres consultivos sobre esta matéria. Basta dizer que este poder não abrange a proibição do abate ritual sem atordoamento tal como previsto no presente processo pelo legislador flamengo.

77.      Assim, a minha conclusão provisória é que o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009, conjugado com o artigo 4.o, n.os 1 e 4, do referido regulamento, e à luz do artigo 10.o da Carta e do artigo 13.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros não estão autorizados a adotar disposições que estabeleçam, por um lado, uma proibição de abate sem atordoamento dos animais que também seja aplicável ao abate realizado durante um rito religioso e, por outro, um procedimento de atordoamento alternativo para o abate realizado durante um rito religioso, baseado no atordoamento reversível e na regra de que o atordoamento não pode ter como consequência a morte do animal.

78.      A apreciação das questões não revelou quaisquer elementos suscetíveis de pôr em causa a validade do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009, à luz do artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

79.      Estas conclusões não são afetadas pelo facto de estar sempre em aberto a possibilidade — em princípio, em todo o caso — de as comunidades judaica e muçulmana importarem, respetivamente, carne kosher e carne halal. Independentemente de a dependência de tais importações ser algo precária ‑ o Tribunal de Justiça foi, por exemplo, informado na audiência de 8 de julho de 2020 que alguns Estados‑Membros, como a República Federal da Alemanha e o Reino dos Países Baixos, impuseram proibições de exportação a tais produtos de carne, dificilmente se poderia aceitar que esta abordagem fosse seguida por todos os Estados‑Membros. A verdade é que o núcleo do direito garantido pelo artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 é aplicável sem restrições em cada Estado‑Membro e o poder de adotar regras adicionais nos termos do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 não pode daí ser extraído.

80.      Não obstante, o presente processo, à sua maneira, chama a atenção para a insuficiência do atual regime regulamentar. Caso os requisitos do artigo 13.o TFUE devam ser entendidos no sentido de que impõem obrigações concretas aos Estados‑Membros (o que, em meu entender, deve suceder), caberá ao legislador da União, no mínimo, assegurar que os consumidores são clara e inequivocamente informados sempre que os produtos provenham de animais abatidos sem atordoamento prévio.

81.      Esta abordagem, que é indiferenciada e não discriminatória, de prestação de informações adicionais a todos os consumidores através da rastreabilidade e rotulagem de produtos provenientes de animais permitir‑lhes‑á fazer escolhas livres e informadas em relação ao consumo de tais produtos (38). Além disso, contribuiria para a melhoria do bem‑estar animal, reduzindo o sofrimento dos animais no momento da occisão, e, ao mesmo tempo, também protegeria a liberdade de religião (39).

D.      Artigo 26.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009

82.      O poder concedido aos Estados‑Membros de adotarem disposições nacionais adicionais ou mais estritas é, aliás, também definido ou limitado pelo artigo 26.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009. Esta disposição estabelece que tais regras nacionais não podem dificultar a livre circulação dos produtos de origem animal abatidos noutro Estado‑Membro com proteção menos ampla Assim, conforme referido no considerando 57 do Regulamento n.o 1099/2009, é permitida uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão, desde que tal não afete o funcionamento do mercado interno.

83.      O órgão jurisdicional de reenvio refere no seu despacho de reenvio que o legislador flamengo considerou «que o decreto impugnado não teve qualquer impacto na possibilidade de os crentes obterem carne proveniente de animais sujeitos ao abate requerido por determinados ritos religiosos, uma vez que nenhuma disposição proíbe a importação de tal carne para a Região da Flandres».

84.      Considero que o requisito imposto pelo artigo 26.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, segundo a qual as regras adotadas pelos Estados‑Membros com base no artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 não devem afetar o funcionamento do mercado interno não altera o facto de que as medidas adotadas pelos Estados‑Membros com base nesta disposição devem ser aplicadas no âmbito e em plena conformidade com a derrogação estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento. O facto de os produtos animais que respeitam métodos específicos de abate exigidos por determinados ritos religiosos poderem ser obtidos a partir de outro Estado‑Membro não sanará, por si só, o incumprimento dos requisitos do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009.

85.      É certo que o TEDH no Acórdão Cha’are Shalom Ve Tsedek/França (TEDH, 20 de junho de 2000, CE:ECHR:2000:0627JUD002741795) considerou que apenas existiria uma interferência na liberdade de manifestar a própria religião se a ilegalidade da realização do abate ritual tornasse impossível o consumo de carne de animais abatidos de acordo com os preceitos religiosos relevantes. Assim, segundo o TEDH, não existe interferência na liberdade de manifestar a própria religião se carne compatível com os preceitos religiosos de uma pessoa puder ser facilmente obtida a partir de outro Estado (40).

86.      Embora o direito garantido no artigo 10.o, n.o 1, da Carta corresponda ao direito garantido no artigo 9.o da CEDH, da qual todos os Estados‑Membros são signatários e, nos termos do artigo 52.o, n.o 3, da Carta, tenham o mesmo sentido e âmbito, é evidente que o legislador da União, ao adotar o artigo 4.o, n.o 4, e ao exigir que o artigo 26.o do Regulamento n.o 1099/2009 seja aplicável dentro dos limites da disposição anterior, que visa conceder uma proteção mais específica à liberdade de religião do que a que foi eventualmente exigida pelo artigo 9.o da CEDH.

87.      Em meu entender, não há como evitar que a preservação de ritos religiosos relativos ao abate de animais seja muitas vezes difícil de conciliar com as modernas conceções de bem‑estar animal. Não obstante, a derrogação prevista no artigo 4.o, n.o 4, é uma opção política que o legislador da União tinha certamente o direito de tomar. Daqui resulta que o Tribunal de Justiça não pode permitir que esta opção política específica seja ignorada por cada Estado‑Membro que adote medidas específicas em nome do bem‑estar animal que tenham como efeito substantivo invalidar a derrogação que beneficia determinados praticantes religiosos. No entanto, isto não torna o artigo 26.o do Regulamento n.o 1099/2009, nomeadamente, o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), deste regulamento, incompatível com o artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

VI.    Conclusão

88.      Por conseguinte, proponho responder à primeira e à segunda questões submetidas pelo Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional, Bélgica) o seguinte:

O artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento (CE) n.o 1099/2009 do Conselho de 24 de setembro de 2009, relativo à proteção dos animais no momento da occisão, conjugado com o artigo 4.o, n.os 1 e 4, do referido regulamento, e à luz do artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do artigo 13.o TFUE, deve ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros não estão autorizados a adotar disposições que estabeleçam, por um lado, uma proibição de abate dos animais sem atordoamento que também seja aplicável ao abate realizado durante um rito religioso e, por outro, um procedimento de atordoamento alternativo para o abate realizado durante um rito religioso, baseado no atordoamento reversível e na regra de que o atordoamento não pode ter como consequência a morte do animal.

A apreciação das questões não revelou quaisquer elementos suscetíveis de pôr em causa a validade do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009, à luz do artigo 10.o, n.o 1, da Carta.


1      Língua original: inglês.


2      O âmbito das regras nacionais em causa está limitado aos animais vertebrados e não aos animais em geral. Assim, o âmbito do processo no Tribunal de Justiça é limitado.


3      O órgão jurisdicional de reenvio referiu igualmente que através do Decreto de 18 de maio de 2017, «que altera os artigos 3.o, 15.o e 16.o e introduz o artigo 45.o ter na Lei de 14 de agosto de 1986 respeitante à proteção e ao bem‑estar dos animais», a Região da Valónia adotou regras com um conteúdo muito semelhante ao do decreto da Região da Flandres. Além disso, resulta dos autos no Tribunal de Justiça que vários Estados‑Membros estabeleceram proibições semelhantes em matéria de occisão de animais sem atordoamento a fim de proteger o bem‑estar animal.


4      Regulamento (CE) n.o 1099/2009 do Conselho, de 24 de setembro de 2009, relativo à proteção dos animais no momento da occisão (JO 2009, L 303, p. 1).


5      V. considerando 18 do Regulamento n.o 1099/2009 e Acórdãos de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335, n.os 53 e 55 a 57), e de 26 de fevereiro de 2019, Oeuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (C‑497/17, EU:C:2019:137, n.o 48).


6      V. considerando 18 do Regulamento n.o 1099/2009.


7      Para uma apresentação mais detalhada destes argumentos, bem como quanto aos argumentos das restantes partes perante o tribunal de reenvio, ver pedido de decisão preliminar apresentado no presente processo.


8      V. ponto B.23.2 do pedido de decisão prejudicial e p. 6 da tradução de língua inglesa.


9      A Comissão declara que a referida notificação ocorreu em 27 de novembro de 2018.


10      A este respeito, importa observar que o Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional), no ponto B.22.3 do pedido de decisão prejudicial, considerou que o decreto impugnado foi notificado à Comissão atempadamente, uma vez que o artigo 26.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento n.o 1099/2009 não fixa prazo algum e o artigo 6.o deste decreto, por exemplo, só entrou em vigor em 1 de janeiro de 2019.


11      V., igualmente, Conclusões apresentadas pelo advogado‑geral N. Wahl no processo Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2017:926, n.os 51 a 54) e Conclusões apresentadas pelo advogado‑geral N. Wahl no processo Oeuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs  (C‑497/17, EU:C:2018:747, n.os 46 e 47). No n.o 51 destas últimas conclusões, o advogado‑geral N. Wahl declarou que «existem atualmente no mercado produtos rotulados como “halal” provenientes do abate de animais realizado com atordoamento prévio. Mais, foi evidenciado que a carne proveniente de animais abatidos sem atordoamento é distribuída no circuito tradicional, sem que os consumidores sejam informados. […] Em suma, a aposição do rótulo “halal” em produtos indica muito pouco sobre o recurso ao atordoamento no abate de animais e, se for caso disso, sobre o método de atordoamento escolhido.»


12      C‑243/19, EU:C:2020:325, n.o 5.


13      Admito que esta abordagem — que se baseia no necessário respeito por diferentes convicções e tradições religiosas, característica indispensável da garantia da liberdade de religião prevista no n.o 1 do artigo 10.o da Carta — pode não ser totalmente compatível com o facto de o n.o 4 do artigo 4.o do Regulamento n.o 1099/2009, enquanto derrogação ao n.o 1 do artigo 4.o, dever ser interpretado de forma estrita.


14      V., igualmente, Conclusões apresentadas pelo advogado‑geral N. Wahl no processo Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2017:926, n.o 57). V., igualmente, a declaração comum parcialmente contrária dos juízes Bratza, Fischbach, Thomassen, Tsatsa‑Nikolovska, Panţîru, Levits e Traja do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») no processo Cha’are Shalom Ve Tsedek/França (TEDH, 20 de junho de 2000, CE:ECHR:2000:0627JUD002741795, § 1), na qual afirmaram que «embora possa ser originada tensão quando uma comunidade, nomeadamente uma comunidade religiosa, está dividida, esta é uma das consequências inevitáveis da necessidade de respeitar o pluralismo. Em tal situação, o papel das autoridades públicas não é remover qualquer causa de tensão através da eliminação do pluralismo, mas sim adotar todas as medidas necessárias para assegurar que grupos concorrentes se tolerem uns aos outros». O TEDH, no n.o 34 do seu Acórdão de 17 de março de 2014, Vartic/Roménia (CE:ECHR:2013:1217JUD001415008) declarou que «[a] liberdade de pensamento, de consciência e de religião evidencia pontos de vista com um determinado nível de conhecimento, de seriedade, de coesão e de importância […] Ainda assim, o Tribunal declarou que o dever de neutralidade e de imparcialidade do Estado, conforme definido na sua jurisprudência […] é incompatível com qualquer poder do Estado para avaliar a legitimidade das convicções religiosas […]»


15      Este acolhimento de convicções religiosas é evidenciado pelas exceções previstas no decreto impugnado relativamente ao atordoamento reversível que não tem como consequência a morte do animal e ao atordoamento de gado após a incisão.


16      O órgão jurisdicional de reenvio declarou no seu pedido de decisão prejudicial que resulta claramente da história legislativa que o legislador flamengo partiu do princípio de que o abate sem atordoamento provoca um sofrimento evitável ao animal. Assim, com o decreto impugnado, o legislador pretendia promover o bem‑estar dos animais. Além disso, o legislador flamengo estava consciente de que o decreto impugnado afetava a liberdade de religião e pretendeu encontrar um equilíbrio entre, por um lado, o seu objetivo de promover o bem‑estar dos animais e, por outro, o respeito pela liberdade de religião.


17      V. Acórdãos de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335, n.os 53 e 55 a 57), e de 26 de fevereiro de 2019, Oeuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (C‑497/17, EU:C:2019:137, n.o 48).


18      No Acórdão de 14 de março de 2017, G4S Secure Solutions (C‑157/15, EU:C:2017:203, n.o 27), o Tribunal de Justiça declarou que conforme resulta das Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17), o direito garantido no artigo 10.o, n.o 1, da mesma corresponde ao direito garantido no artigo 9.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH») e, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, da Carta, tem o mesmo sentido e o mesmo âmbito que aquele. É jurisprudência assente que a CEDH não constitui, enquanto a União Europeia não aderir à mesma, um instrumento jurídico formalmente integrado na ordem jurídica da União. Assim, a apreciação da validade do Regulamento n.o 1099/2009 deve ser realizada unicamente à luz dos direitos fundamentais garantidos pela Carta. V. Acórdão de 28 de julho de 2016, Ordre des barreaux francophones et germanophone e o. (C‑543/14, EU:C:2016:605, n.o 23 e jurisprudência referida).


19      Trata‑se de um estabelecimento que está sujeito a uma autorização concedida pelas autoridades nacionais competentes e que, para o efeito, cumpre os requisitos técnicos relativos à construção, conceção e equipamento impostos pelo Regulamento (CE) n.o 853/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece regras específicas de higiene aplicáveis aos géneros alimentícios de origem animal (JO 2004, L 139, p. 55), e retificação (JO 2004, L 226, p. 22).


20      Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335, n.o 56).


21      Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, Oeuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (C‑497/17, EU:C:2019:137, n.o 48). O Tribunal de Justiça observou no n.o 49 deste acórdão que «embora o Regulamento n.o 1099/2009 especifique, no seu considerando 43, que o abate sem atordoamento prévio exige uma incisão precisa na garganta com uma faca afiada para “minimizar” o sofrimento, a utilização de tal técnica não permite reduzir “ao mínimo” o sofrimento […]».


22      V. considerando 18 do Regulamento n.o 1099/2009.


23      V., por analogia, TEDH 27 de junho de 2000, Cha’are Shalom Ve Tsedek/França (CE:ECHR:2000:0627JUD002741795, §§ 76 e 77) no qual a Grande Secção do TEDH declarou «[…] que, ao estabelecer uma exceção ao princípio de que os animais devem ser atordoados antes do abate, a legislação francesa concretizou, na prática, um compromisso positivo do Estado de assegurar o respeito efetivo da liberdade de religião. O Decreto de 1980, longe de restringir o exercício desta liberdade, é, pelo contrário, concebido para enquadrar e organizar o seu livre exercício. O Tribunal considera ainda que o facto de as regras excecionais destinadas a regular a prática do abate ritual apenas permitirem que este seja efetuado em matadouros rituais autorizados por organismos religiosos aprovados não permite concluir, por si só, pela existência de interferência na liberdade de manifestação da respetiva religião. O Tribunal considera, tal como o Governo, que é do interesse geral evitar o abate não regulado, realizado em condições de higiene duvidosas, e que, assim, é preferível, em caso de abate ritual, que o mesmo seja efetuado em matadouros supervisionados pelas autoridades públicas […]».


24      Uma vez que a exigência em causa não constituía uma limitação ou uma restrição à liberdade de religião reconhecida pelo n.o 1 do artigo 10.o da Carta, esta exigência não teve de ser apreciada à luz do critério triplo estabelecido no n.o 1 do artigo 52.o da Carta. Este critério exige que uma restrição ao exercício, designadamente, da liberdade de religião (i) deve ser prevista por lei (ii) respeitar o conteúdo essencial desta liberdade e (iii) respeitar o princípio da proporcionalidade nos termos do qual as restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros. Embora possa ser difícil superar o critério triplo em causa em determinadas circunstâncias, considero que resulta do raciocínio do Tribunal de Justiça nos n.os 58 e seguintes do Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335) que a exigência de o abate ritual ser efetuado num matadouro ‑ se tivesse sido considerada uma restrição ‑ cumpriria este critério triplo.


25      Daqui não decorre que o abate ritual não está sujeito a quaisquer outras exigências nos termos do Regulamento n.o 1099/2009, com vista a limitar o sofrimento dos animais no momento da morte. Conforme o advogado‑geral N. Wahl declarou nas Conclusões que apresentou no processo Oeuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (C‑497/17, EU:C:2018:747, n.os 79 e 80), os abates rituais de animais nos termos do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 devem «ser efetuados em condições que garantam uma limitação do sofrimento dos animais». Neste sentido, o considerando 2 do Regulamento n.o 1099/2009 estabelece, nomeadamente, que «[o]s operadores das empresas ou quaisquer pessoas envolvidas na occisão de animais deverão tomar as medidas necessárias para evitar a dor e minimizar a aflição e sofrimento dos animais durante o processo de abate ou occisão, tendo em conta as melhores práticas neste domínio e os métodos autorizados ao abrigo do presente regulamento». O considerando 43 do mesmo regulamento estabelece que «[n]o abate sem atordoamento deverá ser praticada uma incisão precisa na garganta com uma faca afiada, para minimizar o sofrimento». Além disso, nos termos do artigo 9.o, n.o 3, e do primeiro parágrafo do artigo 15.o, n.o 2, do referido regulamento, os animais devem ser imobilizados individualmente e apenas podem ser imobilizados quando «a pessoa encarregada do atordoamento ou sangria esteja pronta para os atordoar ou sangrar o mais rapidamente possível». Por ultimo, de acordo com o artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1099/2009, «[s]empre que, para efeitos do n.o 4 do artigo 4.o, os animais sejam mortos sem atordoamento prévio, as pessoas responsáveis pelo abate realizem verificações sistemáticas a fim de assegurar que os animais não apresentem sinais de consciência ou sensibilidade antes de serem libertados da imobilização e não apresentem sinais de vida antes de serem preparados ou escaldados».


26      É o que sucede, nomeadamente, quando está em causa uma derrogação à disposição muito estrita e inequívoca contida no artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009.


27      Por exemplo, a Comissão referiu nas observações que apresentou no Tribunal de Justiça que as estatísticas relativas ao abate de animais na Flandres entre 2010 e 2016 publicadas durante o processo legislativo que conduziu à adoção do decreto impugnado «parecem indicar de forma evidente que uma elevada proporção da carne proveniente de abate ritual sem atordoamento provavelmente entrou na cadeia alimentar normal que, é claro, não está sujeita a qualquer “exigência” religiosa». A Comissão declarou igualmente que a razão subjacente a este facto é económica, uma vez que a indústria de abate tem interesse em manter o destino final da carne proveniente de animais abatidos sem atordoamento tão aberto quanto possível e, por exemplo, em disponibilizar determinadas partes mais baratas do animal no mercado halal (sob a forma de salsichas merguez, por exemplo), enquanto outras partes mais caras (como o filete) acabam na cadeia alimentar normal. Além disso, a Comissão afirma que, em regra, cerca de metade de um animal abatido é rejeitada por não respeitar as exigências relativas à carne kosher, pelo que, muito provavelmente, esta carne irá acabar na cadeia alimentar normal.


28      Estes termos são indefinidos. No entanto, não tenho dúvidas de que ao exigir o atordoamento reversível prévio dos animais ou o atordoamento do gado após a incisão, o decreto impugnado concede uma proteção mais ampla do que a do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 e, por conseguinte, em princípio, encontra‑se abrangido pelo artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c).


29      V. utilização da expressão «operações complementares». Importa observar que esta expressão que também se refere à manipulação do animal no momento do abate é muito abrangente e não se limita de forma alguma ao «atordoamento» de animais nem o visa especificamente.


30      Assim, compromete o efeito útil da derrogação prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009.


31      V., igualmente, considerando 57 do Regulamento n.o 1099/2009, que refere o facto de ser «adequado dar aos Estados‑Membros uma certa flexibilidade para manter ou, em certos domínios específicos, adotar normas nacionais mais exigentes». O sublinhado é meu.


32      Além disso, apesar do esforço considerável do legislador flamengo para acolher, tanto quanto possível, os pontos de vista das comunidades muçulmana e judaica através da introdução das exceções relativas ao atordoamento reversível prévio que não tem como consequência a morte do animal ou ao atordoamento após a incisão no caso do gado, resulta dos autos do processo no Tribunal de Justiça, sujeito a verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, que tal acolhimento não cumpre os princípios fundamentais dos ritos religiosos em causa no que diz respeito a determinados elementos dessas comunidades.


33      E, assim, contra legem.


34      O considerando 18 do Regulamento n.o 1099/2009 estabelece que «o presente regulamento respeita a liberdade de religião e o direito de manifestar a sua religião […], consagrados no artigo 10.o da Carta […]».


35      E, de facto, o princípio da subsidiariedade. É evidente que o legislador da União não pretendeu uma harmonização total desta matéria específica.


36      Os autos do processo no Tribunal de Justiça referem que vários Estados‑Membros interpretaram os conceitos de «proteção mais ampla» ou de «regras nacionais mais estritas» no sentido de que os autorizam a impor requisitos técnicos adicionais relativos à forma como os animais são abatidos, nomeadamente, exigindo atordoamento prévio ou após a incisão. Considero que uma proteção mais ampla ou tais regras também podem dizer respeito a medidas que não se dirigem especificamente à forma como os animais são abatidos individualmente, mas sim a medidas que visam assegurar que o número de animais abatidos em conformidade com a derrogação prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 não excede o que é necessário para satisfazer as exigências alimentares de determinados grupos religiosos. A este respeito, admito que existe uma certa sobreposição conceptual entre o artigo 4.o, n.o 4, e o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009. Isto deve‑se, sem dúvida, ao caráter relativamente vago da disposição anterior. No entanto, é evidente que a substância destes rituais ‑ que para muitos crentes das religiões judaica e muçulmana são uma parte essencial da sua tradição e experiência religiosa ‑ deve beneficiar de proteção ao abrigo do Regulamento n.o 1099/2009, tal como interpretado à luz do artigo 10.o, n.o 1, da Carta.


37      No n.o 69 das presentes conclusões foram apresentados exemplos de tais medidas técnicas. A rotulagem dos produtos em causa para informar claramente os consumidores de que a carne provém de um animal que não foi objeto de atordoamento pode também ser considerada uma alteração legislativa desejável. A indicação de que a carne é kosher ou halal dirige‑se apenas a determinados grupos religiosos e não a todos os consumidores de produtos provenientes de animais, o que, em meu entender, não é suficiente a este respeito. V. n.os 80 e 81 das presentes conclusões.


38      V., por analogia, artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1169/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativo à prestação de informação aos consumidores sobre os géneros alimentícios, que altera os Regulamentos (CE) n.o 1924/2006 e (CE) n.o 1925/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho e revoga as Diretivas 87/250/CEE da Comissão, 90/496/CEE do Conselho, 1999/10/CE da Comissão, 2000/13/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, 2002/67/CE e 2008/5/CE da Comissão e o Regulamento (CE) n.o 608/2004 (JO 2011, L 304, p. 18) que estabelece que «[a] prestação de informação sobre os géneros alimentícios tem por objetivo obter um elevado nível de proteção da saúde e dos interesses dos consumidores, proporcionando uma base para que os consumidores finais possam fazer escolhas informadas e utilizar os géneros alimentícios com segurança, tendo especialmente em conta considerações de saúde, económicas, ambientais, sociais e éticas». O sublinhado é meu. O papel das considerações éticas na rotulagem dos géneros alimentícios no âmbito do Regulamento n.o 1169/2011 foi apreciado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 12 de novembro de 2019, Organisation juive européenne e Vignoble Psagot (C‑363/18, EU:C:2019:954) e nas Conclusões que apresentei nesse processo (C‑363/18, EU:C:2019:494).


39      Tanto daqueles cuja religião requer o abate ritual como daqueles que têm objeções religiosas, de consciência ou de moral ao abate de animais sem atordoamento.


40      Na declaração comum parcialmente contrária que apresentaram no processo Cha’are Shalom Ve Tsedek/França  (TEDH, 20 de junho de 2000, CE:ECHR:2000:0627JUD002741795), os juízes Bratza, Fischbach, Thomassen, Tsatsa‑Nikolovska, Panţîru, Levits e Traja consideraram que o mero facto de já ter sido concedida a uma entidade religiosa a autorização para realizar um abate ritual não isentava as autoridades francesas da obrigação de apreciarem minuciosamente qualquer pedido posterior apresentado por outras entidades religiosas que professassem a mesma religião. Consideraram que a recusa da autorização à associação requerente, apesar de esta autorização ser concedida a outra associação e lhe conferir, assim, o direito exclusivo de autorizar matadouros rituais, equivalia a não garantir o pluralismo religioso ou a não assegurar uma relação razoável de proporcionalidade entre os meios empregues e o objetivo pretendido. Além disso, o facto de a carne «glatt» (o animal abatido não deve ter qualquer impureza) poder ser importada para França a partir da Bélgica não justificava, em seu entender, a conclusão de que não havia interferência no direito de alguém praticar a sua religião através da realização do rito do abate ritual. Consideraram que a possibilidade de obter tal carne por outros meios era irrelevante para efeitos da avaliação do alcance de um ato ou omissão por parte do Estado destinado a limitar o exercício do direito à liberdade de religião.