CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

M. POIARES MADURO

apresentadas em 18 de Janeiro de 2006 1(1)

Processo C‑459/03

Comissão das Comunidades Europeias

contra

Irlanda

«Diferendo entre a Irlanda e o Reino Unido – Tribunal arbitral criado nos termos do anexo VII da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982 – Competência do Tribunal de Justiça – Artigo 292.° CE – Artigo 193.° EA – Dever de cooperação – Artigo 10.° CE – Artigo 192.° EA»





1.        Na presente acção por incumprimento, o Tribunal de Justiça é pela primeira vez chamado a pronunciar‑se sobre uma alegada violação dos artigos 292.° CE e 193.° EA cometida por um Estado‑Membro. A Comissão entende que a Irlanda violou estas disposições, bem como os artigos 10.° CE e 192.° EA, ao submeter a um tribunal arbitral criado nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (a seguir «CNUDM») um diferendo que a opõe a outro Estado‑Membro (o Reino Unido).

2.        Nos termos do artigo 292.° CE e do correspondente artigo 193.° EA, que tem a mesma redacção, «[o]s Estados‑Membros comprometem‑se a não submeter qualquer diferendo relativo à interpretação ou aplicação do presente Tratado a um modo de resolução diverso dos que nele estão previstos». Para apurar se estas disposições foram violadas, o Tribunal de Justiça tem de determinar se as matérias submetidas pela Irlanda ao tribunal arbitral são abrangidas pelo direito comunitário.

I –    Factos e fase pré‑contenciosa do processo

3.        O presente processo tem por base um diferendo entre a Irlanda e o Reino Unido relativamente ao funcionamento de uma instalação MOX localizada em Sellafield, no Noroeste de Inglaterra, na costa do Mar da Irlanda. A instalação destina‑se a reciclar plutónio resultante de combustível nuclear usado, misturando dióxido de plutónio com dióxido de urânio empobrecido e transformando‑o em combustível de óxidos mistos (dito MOX), que pode ser utilizado como fonte de energia nas centrais nucleares.

4.        O Reino Unido autorizou a British Nuclear Fuel plc (a seguir «BNFL») a construir a instalação MOX, após aquela ter publicado um estudo de impacto ambiental em 1993. A instalação ficou concluída em 1996. Em 3 de Outubro de 2001, depois de efectuar cinco inquéritos públicos sobre a viabilidade económica da instalação MOX, o Reino Unido autorizou a BNFL a explorar a instalação e a produzir MOX.

5.        Em 25 de Outubro de 2001, a Irlanda, alegando que o Reino Unido tinha violado diversas disposições da CNUDM, intentou uma acção contra o Reino Unido, tendo por objecto a instalação MOX, no tribunal arbitral criado nos termos do anexo VII da CNUDM (2).

6.        Em 20 de Junho de 2002, realizou‑se uma reunião entre a Irlanda e os serviços da Comissão, que teve por objecto as questões relativas à instalação MOX (3). Em 15 de Maio de 2003, a Comissão enviou à Irlanda uma notificação para cumprir, referindo que, ao ter intentado uma acção contra o Reino Unido ao abrigo da CNUDM, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem nos termos do disposto nos artigos 10.° CE e 292.° CE e nos artigos 192.° EA e 193.° EA.

7.        Por carta de 15 de Julho de 2003, a Irlanda explicou que discordava da opinião da Comissão. Em 19 de Agosto de 2003, a Comissão enviou à Irlanda um parecer fundamentado relativo à instauração de um procedimento arbitral contra o Reino Unido, nos termos da CNUDM, tendo por objecto a instalação MOX. Em 16 de Setembro de 2003, a Irlanda respondeu que mantinha a discordância em relação à opinião da Comissão. A Comissão intentou a presente acção em 15 de Outubro de 2003.

II – Questões suscitadas

8.        Raras foram as vezes em que o Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar‑se sobre diferendos entre dois Estados‑Membros (4). No entanto, por força do artigo 220.° CE, conjugado com o artigo 227.° CE, e do artigo 136.° EA, conjugado com o artigo 142.° EA, o Tribunal de Justiça é competente para conhecer dos litígios relativos à aplicação e à interpretação do Tratado CE ou do Tratado EA (5).

9.        O artigo 292.° CE e o artigo 193.° EA dispõem que esta competência é exclusiva. Estas disposições conjugadas estabelecem o que tem sido designado como «monopólio da competência» do Tribunal de Justiça relativamente aos diferendos entre os Estados‑Membros quanto à aplicação e à interpretação do direito comunitário (6).

10.      A competência exclusiva do Tribunal de Justiça em diferendos entre os Estados‑Membros, que tenham por objecto o direito comunitário, constitui um modo de preservar a autonomia da ordem jurídica comunitária (7). Serve para garantir que os Estados‑Membros não assumam obrigações jurídicas decorrentes do direito internacional público, que possam contrariar as obrigações que lhes incumbem por força do direito comunitário. Essencialmente, o artigo 292.° CE e o artigo 193.° EA são a expressão do dever de lealdade ao sistema judicial instituído pelos Tratados comunitários. Os Estados‑Membros acordaram resolver os seus diferendos através dos mecanismos previstos nos Tratados, devendo abster‑se de submeter os diferendos decorrentes desses Tratados a outros modos de resolução (8).

11.      A Comissão afirma que a Irlanda violou esta regra ao submeter o diferendo que a opõe ao Reino Unido, que tem por objecto a instalação MOX, à arbitragem de um tribunal criado ao abrigo da CNUDM. A questão central que se coloca ao Tribunal é a de saber se o diferendo tem por objecto o direito comunitário. O Tribunal tem de analisar e comparar, por um lado, o âmbito da sua competência e, por outro, a matéria que é objecto do diferendo submetido ao tribunal arbitral.

12.      No tribunal arbitral, a Irlanda alegou que o Reino Unido violou três tipos de obrigações. Em primeiro lugar, a obrigação de efectuar uma avaliação correcta dos efeitos potenciais da autorização da instalação MOX no meio marinho do Mar da Irlanda. A este respeito, a Irlanda remete para o artigo 206.° da CNUDM. Em segundo lugar, a obrigação de cooperar com a Irlanda, que é também um Estado ribeirinho do semifechado Mar da Irlanda, tomando as medidas necessárias para preservar o meio marinho desse mar. A este propósito, a Irlanda remete para os artigos 123.° e 197.° da CNUDM. Em terceiro lugar, a obrigação de tomar todas as medidas necessárias para proteger e preservar o meio marinho do Mar da Irlanda. A este propósito, a Irlanda invoca os artigos 192.°, 193.°, 194.°, 207.°, 211.°, 213.° e 217.° da CNUDM.

13.      As posições da Irlanda e da Comissão sobre o âmbito da competência do Tribunal de Justiça quanto à questão da instalação MOX são diametralmente opostas. Segundo a Irlanda, nenhuma das matérias em litígio é abrangida pela competência do Tribunal de Justiça. A Comissão, por outro lado, alega que o diferendo é totalmente abrangido pela competência deste Tribunal. Contudo, para efeitos do presente processo, não há que determinar se o Tribunal de Justiça é competente para apreciar na íntegra o diferendo sobre a instalação MOX. Basta verificar se pelo menos uma parte da matéria que é objecto do diferendo é regulada pelo direito comunitário. Se assim for, então, na minha opinião, houve violação do artigo 292.° CE ou do artigo 193.° EA, consoante o caso.

14.      Não significa isto que a competência do Tribunal de Justiça abranja todo o diferendo pelo simples facto de parte deste estar sob a alçada do direito comunitário. Pode suceder que um diferendo seja ampla e talvez predominantemente alheio à competência do Tribunal e que apenas uma ou algumas das matérias em litígio sejam abrangidas por essa competência. No entanto, nessas circunstâncias, o artigo 292.° CE – ou o artigo 193.° EA – obsta a que o diferendo, incluindo os elementos abrangidos pelo âmbito do direito comunitário, seja submetido, na íntegra, a um modo de resolução diverso dos que estão previstos para o efeito nos Tratados comunitários. Em última análise, não há limites às regras que estabelecem o monopólio da competência do Tribunal de Justiça. Sempre que esteja em causa o direito comunitário, os Estados‑Membros têm de resolver os seus diferendos dentro da Comunidade (9).

15.      A Comissão formula três críticas. Em primeiro lugar, afirma que as disposições da CNUDM invocadas pela Irlanda no tribunal arbitral fazem parte do direito comunitário e estão, portanto, abrangidas pela competência exclusiva do Tribunal de Justiça para dirimir diferendos entre Estados‑Membros. Consequentemente, ao ter tentado um procedimento arbitral contra outro Estado‑Membro, relativo às disposições da CNUDM em causa, a Irlanda violou o artigo 292.° CE. Em segundo lugar, a Comissão considera que a Irlanda violou os artigos 292.° CE e 193.° EA por ter recorrido a um tribunal arbitral para aplicação das disposições de determinadas directivas comunitárias. Em terceiro lugar, alega que, ao dar início a esse procedimento, a Irlanda violou o dever de cooperação decorrente dos artigos 10.° CE e 192.° EA.

16.      Analisarei sucessivamente estas três críticas.

III – Competência do Tribunal de Justiça relativamente às disposições da CNUDM

17.      A CNUDM é um acordo misto. Quando a Irlanda submeteu ao tribunal arbitral o diferendo que a opõe ao Reino Unido, a Comunidade Europeia e 14 dos seus Estados‑Membros eram partes na CNUDM (10). A Comunidade e os Estados‑Membros que então eram partes na CNUDM assumiram obrigações, nos termos da CNUDM, dentro das suas respectivas esferas de competência (11). Por exemplo, a Comunidade assumiu obrigações no campo da conservação e da gestão dos recursos piscatórios marítimos, ao passo que os Estados‑Membros assumiram obrigações no campo da delimitação das fronteiras marítimas (12).

18.      A Comissão entende que as disposições da CNUDM invocadas pela Irlanda contra o Reino Unido são abrangidas pela competência do Tribunal de Justiça por fazerem parte da competência da Comunidade e por terem sido concluídas por esta. A este propósito, a Comissão sublinha que a protecção do ambiente é um objectivo explícito da Comunidade, para o qual a Comunidade tem competência externa. A Comissão refere ainda que a Decisão 98/392/CE do Conselho (13), por meio da qual a Comunidade Europeia concluiu a CNUDM, se baseou também no artigo 130.°‑S do Tratado CE (actual artigo 175.° CE).

19.      Pelo contrário, a Irlanda entende que não houve transferência de competências dos Estados‑Membros para a Comunidade, nas áreas que são objecto do diferendo entre a Irlanda e o Reino Unido. A Irlanda alega que a Comunidade só é parte contratante na CNUDM relativamente às matérias abrangidas pela sua competência externa exclusiva. Na medida em que há instrumentos da Comunidade sobre as matérias em causa no diferendo relativo à instalação MOX, estes instrumentos contêm normas mínimas e não são afectados pelas disposições da CNUDM. Segundo a Irlanda, daqui resulta que essas disposições não se tornaram parte do direito comunitário e que o Tribunal de Justiça não é competente para analisar o pedido da Irlanda contra o Reino Unido apresentado nos termos da CNUDM.

20.      Antes de analisar estes argumentos, recordarei brevemente a jurisprudência relevante sobre a competência do Tribunal relativamente aos acordos mistos.

21.      O Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado que a sua competência abrange as disposições constantes de acordos mistos (14). Designadamente, no acórdão Haegeman, o Tribunal declarou que as disposições em causa nesse processo faziam parte integrante da ordem jurídica comunitária (15). Consequentemente, o Tribunal é competente para se pronunciar a título prejudicial sobre a sua interpretação e para se pronunciar quando os Estados‑Membros da Comunidade não cumprirem as obrigações que lhes incumbem por força dessas disposições (16). No entanto, não se pode concluir da jurisprudência do Tribunal de Justiça que todas as disposições constantes de um acordo misto são automaticamente abrangidas pela competência do Tribunal. O Tribunal de Justiça adopta uma abordagem mais delicada. Considera que «os acordos mistos celebrados pela Comunidade, pelos seus Estados‑Membros e por países terceiros gozam do mesmo estatuto, na ordem jurídica comunitária, que os acordos puramente comunitários, no que respeita a disposições da competência da Comunidade» (17).

22.      Na medida em que a Comunidade tenha assumido obrigações por força de um acordo misto, as normas por meio das quais a Comunidade se vincula fazem parte do direito comunitário (18). Vinculam, nessa qualidade, a Comunidade e os seus Estados‑Membros (19), e são abrangidas pela competência do Tribunal (20). Não há dúvida de que a Comunidade assumiu obrigações por força de uma disposição constante de um acordo misto, sempre que essa disposição se aplique a matérias abrangidas pelo âmbito da competência exclusiva da Comunidade – como sucedeu com as disposições sobre o comércio no processo Haegeman. Reciprocamente, quando uma disposição se aplique apenas a matérias da competência exclusiva dos Estados‑Membros, são os Estados‑Membros, e não a Comunidade, que assumem obrigações por força dessa disposição (21).

23.      A questão complica‑se quando uma disposição de um acordo misto se aplicar a uma situação abrangida pela competência paralela da Comunidade e dos seus Estados‑Membros. Há que recordar que, em matérias como a política do ambiente, nas quais o Tratado prevê uma competência paralela (22), tanto a Comunidade como os Estados‑Membros podem assumir obrigações para com países terceiros. No entanto, a partir do momento em que a Comunidade tenha assumido essas obrigações, ou a partir do momento em que tenha adoptado medidas internas, os Estados‑Membros estão proibidos de assumir obrigações que possam incidir nas regras comuns assim estabelecidas (23).

24.      Tanto a Irlanda como o Governo sueco alegam que a Comunidade Europeia, ao concluir a CNUDM, só exerceu a sua competência externa exclusiva na área da protecção do meio marinho. A Irlanda alega ainda que as disposições relevantes no diferendo da instalação MOX não são abrangidas pela competência exclusiva da Comunidade, uma vez que só estabelecem normas mínimas e, consequentemente, não são susceptíveis de incidir nas regras comuns da Comunidade (24). Em favor da sua posição, a Irlanda baseia‑se na Declaração sobre a Competência, emitida pela Comunidade no momento da confirmação da CNUDM (25).

25.      Se fosse correcta a afirmação da Irlanda, segundo a qual a Comunidade só exerceu a sua competência externa exclusiva, o Tribunal teria efectivamente de analisar cuidadosamente o âmbito dessa competência – como fez nos acórdãos de céu aberto (26) –, para determinar se as disposições relevantes da CNUDM estão sujeitas à competência do Tribunal como parte integrante da ordem jurídica comunitária.

26.      Contudo, em minha opinião, a premissa segundo a qual a Comunidade, quando concluiu a CNUDM, agiu apenas no âmbito da sua competência exclusiva é incorrecta.

27.      A CNUDM foi concluída em nome da Comunidade Europeia através da Decisão 98/392. Como refere correctamente a Comissão, esta decisão baseia‑se, entre outros, no artigo 130.°‑S do Tratado. Afigura‑se, portanto, que, relativamente às disposições da CNUDM referentes à protecção do meio marinho, a Comunidade, ao aderir à CNUDM, exerceu a sua competência externa exclusiva e a sua competência externa não exclusiva em matéria de protecção do ambiente.

28.      Este entendimento é, de resto, confirmado pelo facto de, no momento da conclusão da CNUDM, existir já nesta área um vasto conjunto de medidas comunitárias.

29.      A este propósito, a Comissão alega que pode ser estabelecida uma analogia com duas anteriores acções por incumprimento relativas a acordos mistos: o processo Comissão/Irlanda (27) e o processo Comissão/França (28). Nas duas acções, o Tribunal de Justiça declarou‑se competente, referindo que os acordos objecto desses diferendos cobriam «um domínio amplamente abrangido pela competência comunitária» (29). No entanto, só concordo parcialmente com a comparação feita pela Comissão. Em minha opinião, pode traçar‑se um paralelo com o processo Comissão/França, mas não com o processo Comissão/Irlanda.

30.      No acórdão Comissão/Irlanda, o Tribunal analisou a questão da sua competência numa acção por incumprimento relativa à não adesão da Irlanda à Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas (Acto de Paris), dentro do prazo previsto. O Tribunal considerou‑se competente por a Convenção de Berna abranger uma matéria «que é, em larga medida, da competência comunitária» (30). Contudo, esta frase deve ser entendida no contexto da especificidade de que o processo dizia respeito ao incumprimento da obrigação de aderir à Convenção de Berna (31). Como foi referido pelo advogado‑geral J. Mischo, não obstante a Convenção de Berna não ser integralmente abrangida pela competência da Comunidade, trata‑se de uma convenção indivisível e a adesão de um Estado não pode ser parcial. Assim, pelos mesmos motivos, a obrigação decorrente do direito comunitário de aderir à Convenção de Berna é indivisível (32).

31.      Por outro lado, no processo Comissão/França, não estava em causa uma obrigação de aderir a um acordo internacional. Tratou‑se de uma acção por incumprimento intentada contra a França por esta não ter cumprido as obrigações que lhe incumbiam por força de determinadas disposições da Convenção para a Protecção do Mar Mediterrâneo contra a Poluição e do Protocolo a essa Convenção. O Tribunal considerou que, «[u]ma vez que a acção por incumprimento apenas pode ter por objecto o incumprimento de obrigações decorrentes do direito comunitário, há que examinar […] se as obrigações que vinculam a França e que constituem o objecto da acção estão abrangidas pelo direito comunitário» (33). O Tribunal, observando que o objecto da Convenção e do Protocolo coincidiam «amplamente» com o objecto de diversos actos legislativos comunitários, concluiu que havia «um interesse comunitário em que tanto a Comunidade como os Estados‑Membros respeit[assem] os compromissos assumidos no âmbito [da Convenção e do Protocolo]» (34). Por conseguinte, o Tribunal declarou‑se competente, não obstante a acção por incumprimento ter por objecto descargas de água doce e de limos no meio marítimo, matéria que ainda não tinha sido objecto de regulamentação interna na Comunidade (35).

32.      À semelhança da presente situação, o processo Comissão/França tinha por objecto um acordo internacional celebrado conjuntamente pela Comunidade e pelos seus Estados‑Membros. Além disso, no processo Comissão/França, o Estado‑Membro demandado também alegou que o Tribunal de Justiça não era competente para apreciar as obrigações em causa, por não serem abrangidas pela competência externa da Comunidade. O Tribunal rejeitou esta pretensão e analisou o âmbito da sua competência à luz do interesse em proteger a unidade do quadro jurídico comunitário existente.

33.      A observação do Tribunal de Justiça, no n.° 27 do acórdão, segundo a qual as disposições em causa cobrem «um domínio amplamente abrangido pela competência comunitária» (36), pode facilmente ser mal interpretada no sentido de que o Tribunal se pronunciou numa acção por incumprimento relativa a obrigações não abrangidas pelo direito comunitário. Evidentemente, não é esta a situação (37). A leitura que faço deste acórdão é que o Tribunal considerou que, em matéria de descargas de água doce e de limos no meio marinho, a Comunidade, ao concluir a Convenção, exerceu a sua competência não exclusiva. Por outras palavras, a conclusão de uma convenção internacional pode, em si mesma, ser uma forma de exercer uma competência não exclusiva da Comunidade, independentemente da adopção prévia de regulamentação comunitária interna. Tal como no presente caso, isto significa que, ao concluir a Convenção, na medida em que a mesma assenta numa base jurídica que prevê a competência externa, a Comunidade exerceu esta competência tanto em matérias em que essa competência é exclusiva como em matérias em que a mesma não é exclusiva (38). A Comunidade assumiu assim obrigações internacionais nestas matérias, que são consequentemente abrangidas pela competência da Comunidade enquanto obrigações decorrentes do direito comunitário (39).

34.      Contrariamente ao que é alegado pela Irlanda, a declaração «relativa à competência da Comunidade Económica Europeia em matérias reguladas pela Convenção» não conduz a um entendimento diverso.

35.      No título «Matérias da competência comum da Comunidade e dos seus Estados‑Membros», a declaração dispõe:

«Relativamente às disposições sobre transportes marítimos, segurança na navegação e prevenção da poluição marinha [...] a Comunidade só tem competência exclusiva se essas disposições da Convenção ou os instrumentos jurídicos adoptados em cumprimento da Convenção tiverem incidência nas regras comuns estabelecidas pela Comunidade. Não sendo afectadas regras da Comunidade já existentes, especialmente no caso de disposições da Comunidade que apenas estabelecem normas mínimas, os Estados‑Membros são competentes, sem prejuízo da competência da Comunidade para agir nesta matéria. Nas restantes situações, essa competência cabe aos Estados‑Membros.

O anexo contém uma lista das regras comunitárias relevantes. O âmbito da competência da Comunidade decorrente destes actos deve ser analisado por referência às disposições específicas de cada medida, especialmente quando essas disposições prevêem regras comuns.»

36.      Sou da opinião de que esta redacção tenta reflectir a jurisprudência do Tribunal de Justiça, designadamente do processo AETR e do parecer 2/91. Não obstante faltar clareza e elegância a este texto, o mesmo não considera que a Comunidade apenas exerceu a sua competência externa em matéria de protecção do meio marinho.

37.      A Comissão tem razão, portanto, ao alegar que a Irlanda invocou disposições da CNUDM que passaram a fazer parte do direito comunitário, sendo consequentemente abrangidas pela competência do Tribunal de Justiça.

38.      A Irlanda entende que insistir na exclusividade da competência do Tribunal em matérias abrangidas pela CNUDM equivale a privar a Irlanda de uma solução adequada prevista nessa Convenção.

39.      Não sou desta opinião. Há novamente que referir o procedimento previsto no artigo 227.° CE e a possibilidade de, nos termos do artigo 243.° CE, se requerer que sejam decretadas medidas provisórias. Além disso, há que notar que o artigo 282.° da CNUDM prevê expressamente modos de resolução diversos dos previstos pela CNUDM (40). Acresce que, ainda que sejam confrontados com dificuldades reais, os Estados‑Membros não estão autorizados a agir fora do contexto da Comunidade pelo simples facto de considerarem que essa forma de actuação é mais adequada (41).

40.      Através de um argumento subsidiário, a Irlanda alega que se as disposições da CNUDM passaram a fazer parte do direito comunitário, o mesmo é válido para as disposições da CNUDM relativas à resolução de diferendos. Os métodos de resolução previstos na CNUDM passaram consequentemente a ser métodos de resolução previstos no «presente Tratado», na acepção do artigo 292.° CE.

41.      Não sou da opinião de que o regime de resolução de diferendos previsto na CNUDM passou a integrar, e consequentemente alterou, o sistema judicial da Comunidade. O artigo 292.° CE opõe‑se a que a competência exclusiva do Tribunal de Justiça seja atribuída, por meio de um acordo internacional, a outro tribunal (42). Não é consequentemente possível que a conclusão da CNUDM tenha conduzido a uma transferência da competência do Tribunal de Justiça para resolver diferendos entre os Estados‑Membros da Comunidade, sobre a interpretação ou a aplicação do direito comunitário, para uma jurisdição criada nos termos da CNUDM.

42.      Por estes motivos, proponho ao Tribunal que declare que a Irlanda, ao submeter o diferendo que mantém com o Reino Unido sobre a instalação MOX, ao tribunal arbitral criado nos termos do anexo VII da CNUDM, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do disposto no artigo 292.° CE.

43.      Visto que a Euratom não é parte da CNUDM, a argumentação acima apresentada não permite concluir no mesmo sentido relativamente ao artigo 193.° EA. Para analisar a acusação de que a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do disposto no artigo 193.° EA, há que examinar a segunda crítica formulada pela Comissão.

IV – Invocação, por parte da Irlanda, das normas comunitárias no tribunal arbitral

44.      Segundo a Comissão, a Irlanda, ao submeter a interpretação e a aplicação de instrumentos de direito comunitário a um tribunal não comunitário, violou as suas obrigações decorrentes dos artigos 292.° CE e 193.° EA. O Reino Unido apoia este entendimento. A Comissão e o Reino Unido observam que, no pedido submetido ao tribunal arbitral, a Irlanda menciona as Directivas 85/337/CEE (43), 90/313/CEE (44), 80/836/Euratom (45), 92/3/Euratom (46) e 96/29/Euratom (47), bem como as disposições da Convenção OSPAR (48).

45.      A Irlanda alega que não requereu ao tribunal arbitral que aplicasse o direito comunitário, mas que apenas remeteu para as directivas para auxiliar a interpretação das obrigações decorrentes da CNUDM. Salienta que, por carta de 16 de Setembro de 2003, enviada à Comissão, assumiu o compromisso formal de que continuaria a remeter para instrumentos de direito comunitário apenas com a finalidade de auxiliar a interpretação da CNUDM e de que não convidaria o tribunal da CNUDM a investigar se o Reino Unido teria violado qualquer regra ou instrumento de direito comunitário. A Irlanda afirma que não violou as obrigações que lhe incumbem por força do disposto no artigo 292.° CE, nem no artigo 193.° EA, uma vez que não invocou nenhuma violação, por parte do Reino Unido, de uma obrigação prevista no direito comunitário.

46.      Em minha opinião, este argumento não procede.

47.      Resulta dos pedidos apresentados pela Irlanda ao tribunal arbitral que as referências aos instrumentos de direito comunitário foram feitas à luz do artigo 293.°, n.° 1, da CNUDM. Nos termos desta disposição, o tribunal arbitral «deve aplicar a presente Convenção e outras normas de direito internacional que não forem incompatíveis com esta Convenção».

48.      No n.° 3 da exposição da pretensão de 25 de Outubro de 2001, a Irlanda indica que «pede igualmente ao tribunal arbitral que tome em consideração, da forma que melhor entender, as disposições de outros instrumentos internacionais, incluindo convenções internacionais e a regulamentação de direito comunitário». No n.° 34 da sua exposição da pretensão, a Irlanda remete para o artigo 293.°, n.° 1, da CNUDM, alegando que «as disposições da CNUDM devem ser interpretadas por referência a outras regras de direito internacional que vinculam o Reino Unido, incluindo a Convenção OSPAR de 1992 para a Protecção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste, a Directiva 85/337/CEE e as Directivas 80/836/Euratom e 96/239/Euratom».

49.      Além disso, no articulado que submeteu ao tribunal da CNUDM, a Irlanda alega que «as regras de direito internacional que o tribunal criado nos termos do anexo VII tem de aplicar […] acham‑se tanto nas disposições relevantes da CNUDM como ‘noutras regras de direito internacional que não são incompatíveis’ com a Convenção» (49). A Irlanda refere ainda que «destas duas formas – através da interpretação das disposições gerais da CNUDM à luz de um quadro mais amplo de direito internacional e através da aplicação de outras regras, normas e práticas internacionais –, a CNUDM assume uma função integradora, conjugando normas convencionais e consuetudinárias com normas regionais e globais» (50).

50.      No ponto 6.19 do seu articulado, a Irlanda observa que são feitas referências às regras comunitárias relevantes não por se pedir ao tribunal que as aplique enquanto tais, mas «porque mostram como é que as obrigações gerais decorrentes da CNUDM devem ser interpretadas e aplicadas». No entanto, nos pedidos posteriormente formulados ao tribunal arbitral, a Irlanda faz referência a diversas regras comunitárias relacionadas com o artigo 293.° , n.° 1, da CNUDM. Por exemplo, na parte do articulado da Irlanda, relativa à obrigação de proceder a uma avaliação adequada do impacto ambiental, sob o título «Fundamentação jurídica das obrigações», a Irlanda remete, entre outros instrumentos, para a Directiva 85/337 e afirma que «[e]stes instrumentos são relevantes como orientação para a interpretação dos deveres impostos pelo artigo 206.° da CNUDM e como exemplos de [outras regras de direito internacional] que o presente tribunal deve aplicar ao caso pendente por força do artigo 293.°, n.° 1, da CNUDM» (51). Na sua resposta, a Irlanda declara que, «em acções relativas ao meio marinho, que envolvam a infracção de determinadas regras e normas internacionais estabelecidas por uma organização internacional ou por uma conferência diplomática competente», o tribunal arbitral «deve tomar em consideração, e aplicar, essas regras e normas internacionais» (52).

51.      À luz destes pedidos, não vejo como é que a Irlanda não alegou que o Reino Unido violou qualquer obrigação decorrente do direito comunitário (53). Seja como for, a Irlanda pede ao tribunal arbitral que declare que o Reino Unido violou as obrigações decorrentes da CNUDM, que, segundo a própria interpretação da CNUDM pela Irlanda, coincidem com as obrigações decorrentes do direito comunitário. Para este efeito, a Irlanda convida aquele tribunal a interpretar as obrigações que vinculam o Reino Unido por força da legislação CE e da legislação EA (54).

52.      À luz do exposto, deve declarar‑se que a Irlanda, ao submeter a um tribunal arbitral, criado nos termos do anexo VII da CNUDM, um diferendo relativo à interpretação e à aplicação do Tratado CE e do Tratado EA, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do disposto nos artigos 292.° CE e 193.° EA.

V –    Dever de cooperação

53.      A Comissão entende que, além de não ter cumprido as obrigações que lhe incumbem por força do disposto nos artigos 292.° CE e 193.° EA, a Irlanda violou os artigos 10.°, n.° 2, CE e 192.°, n.° 2, EA. Ambas as disposições prevêem que os Estados‑Membros se absterão «de tomar quaisquer medidas susceptíveis de pôr em perigo a realização dos objectivos do presente Tratado». A Comissão invoca dois argumentos.

54.      Em primeiro lugar, a Comissão alega que, em matéria de acordos mistos, os Estados‑Membros estão obrigados a um dever de cooperação por força do disposto no artigo 10.°, n.° 2, CE. Segundo a Comissão, a Irlanda violou este dever ao recorrer a um procedimento de resolução de diferendos relativamente a disposições abrangidas pela competência da Comunidade; esta actuação é susceptível de criar confusões nos países terceiros quanto à representação externa e à coesão interna da Comunidade enquanto parte contratante, e prejudica gravemente a eficácia e a coerência da acção externa da Comunidade.

55.      Creio que não é necessário que o Tribunal de Justiça analise esta questão. O objecto da crítica da Comissão e o da crítica formulada nos termos do artigo 292.° CE são essencialmente idênticos. Em minha opinião o artigo 292.° CE constitui uma manifestação específica do princípio geral de lealdade consagrado no artigo 10.°, n.° 2, CE (55). A apreciação nos termos do artigo 292.° CE é, portanto, suficiente.

56.      A Comissão invoca também um segundo argumento para sustentar que a Irlanda violou o dever de cooperação. Entende que a Irlanda, antes de recorrer ao procedimento de resolução do diferendo nos termos da CNUDM, devia, por força dos artigos 10.° CE e 192.° EA, ter informado e consultado as instituições comunitárias competentes.

57.      Concordo com a Comissão neste ponto. Os artigos 10.° CE e 192.° EA impõem um dever mútuo de cooperação leal entre as instituições comunitárias e os Estados‑Membros (56). Este dever é especialmente importante na área das relações externas (57) e aplica‑se, a fortiori, num contexto em que a Comunidade e os Estados‑Membros assumiram conjuntamente obrigações para com países terceiros (58).

58.      O dever de cooperação pode, em determinadas situações, implicar a obrigação de os Estados‑Membros consultarem a Comissão, a fim de evitar o risco de violar as regras comunitárias ou de dificultar a realização das políticas comunitárias (59). Em minha opinião, atendendo às circunstâncias do presente caso, a Irlanda estava vinculada por essa obrigação. A Irlanda decidiu intentar um procedimento contra outro Estado‑Membro, ao abrigo de um acordo internacional em que a Comunidade Europeia também é parte, relativamente a uma matéria que poderá ser abrangida pela competência exclusiva do Tribunal de Justiça. Como refere correctamente a Comissão, as consultas poderiam ter sido úteis para clarificar em que medida o diferendo tinha por objecto o direito comunitário. Além disso, teria permitido uma troca de opiniões sobre a questão de saber se podia ser intentado um procedimento contra o Estado‑Membro que alegadamente violou uma obrigação decorrente de um acordo internacional. No entanto, a Irlanda só procurou obter a opinião da Comissão depois de ter intentado o procedimento de resolução de diferendos.

59.      Pelos fundamentos expostos, sou da opinião de que a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do disposto nos artigos 10.° CE e 192.° EA.

VI – Quanto às despesas

60.      Visto que a Comissão pediu a condenação da Irlanda nas despesas, proponho que a Irlanda, tendo sido vencida, seja condenada nas despesas por força do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo.

VII – Conclusão

61.      Proponho que o Tribunal de Justiça:

«–      Declare que a Irlanda, ao intentar um procedimento de resolução de diferendos contra o Reino Unido, relativamente à instalação MOX localizada em Sellafield, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do disposto nos artigos 292.° CE e 193.° EA.

–      Declare que a Irlanda, ao intentar o referido procedimento sem previamente consultar a Comissão, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do disposto nos artigos 10.° CE e 192.° EA.

–      Condene a Irlanda nas despesas.»


1 – Língua original: português.


2 – Além disso, em 9 de Novembro de 2001, a Irlanda submeteu, nos termos do artigo 290.°, n.° 5, da CNUDM, um pedido de medidas provisórias ao Tribunal Internacional do Direito do Mar (TIDM), requerendo designadamente a suspensão da autorização da instalação MOX e que cessassem as transferências internacionais de materiais radioactivos associadas à instalação MOX. O TIDM decretou determinadas medidas provisórias diferentes das que haviam sido pedidas pela Irlanda: v. TIDM, despacho de 3 de Dezembro de 2001, processo n.° 10, The MOX Plant Case (Irlanda/Reino Unido), Medidas Provisórias, Colectânea dos acórdãos, pareceres consultivos e despachos 5 (2001), parte II, pp. 51‑54.


3 – A Irlanda tinha intentado uma acção para resolução dos diferendos nos termos da Convenção para a Protecção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste (OSPAR). A Irlanda alegou que o Reino Unido tinha violado o artigo 9.° da Convenção OSPAR. O Tribunal OSPAR declarou improcedentes as pretensões da Irlanda: v. decisão final de 2 de Julho de 2003 na questão relativa ao acesso à informação nos termos do artigo 9.° da Convenção OSPAR (Irlanda/Reino Unido). A presente acção por incumprimento contra a Irlanda tem apenas por objecto o procedimento de resolução de divergências intentado nos termos da CNUDM.


4 – Até hoje, foram propostas no Tribunal de Justiça cinco acções entre Estados‑Membros. O Tribunal pronunciou‑se por meio de acórdãos em duas situações: acórdãos de 4 de Outubro de 1979, França/Reino Unido (141/78, Recueil, p. 2923), e de 16 de Maio de 2000, Bélgica/Espanha (C‑388/95, Colect., p. I‑3123). Houve desistência em dois processos, que foram cancelados no registo (despachos de 15 de Fevereiro de 1977, Irlanda/França, 58/77, não publicado na Colectânea, e de 27 de Novembro de 1992, Espanha/Reino Unido, C‑349/92, não publicado na Colectânea). Está actualmente pendente o processo C‑145/04, Espanha/Reino Unido.


5 – Os artigos 88.°, n.° 2, CE, 95.°, n.° 9, CE, 239.° CE, 298.° CE e 154.° EA são outras disposições do Tratado CE e do Tratado EA nos termos das quais os litígios entre Estados‑Membros podem ser suscitados perante o Tribunal de Justiça.


6 – Mackel, N. – «Article 292 (ex‑article 219)», in Léger, P. (ed.), Commentaire article par article des traités UE et CE, Dalloz/Bruylant, Paris/Bruxelas, 2000, p. 1874. Em termos semelhantes: Lasok, K.; Lasok, D. – Law and institutions of the European Union, Reed Elsevier, 2001, p. 371. O Tratado CECA continha uma disposição semelhante no artigo 87.° CA. Quanto à diferença de redacção entre esta disposição e o artigo 292.° CE/139.° EA, v., Herzog, P. – «Article 219.°» in Smit/Herzog, The law of the European Community: a commentary on the EEC Treaty, Bender, Nova Iorque, (1976‑), 6‑170.1‑2.


7 – Parecer 1/91, de 14 de Dezembro de 1991 (Colect., p. I‑6079, n.° 35).


8 – Van Panhuys, H. F. – «Conflicts between the law of the European Communities and other rules of international law», 3 Common Market Law Review 420 (1966), p. 445.


9 – Isto não significa necessariamente que os Estados‑Membros devem sempre isolar cuidadosamente os elementos comunitários de um litígio entre eles, de modo a apresentar apenas esses elementos ao Tribunal de Justiça, submetendo ao mesmo tempo o remanescente do litígio a outro modo de resolução. Em teoria, essa solução seria conforme com os artigos 292.° CE ou 193.° EA. No entanto, na prática, poderá ser preferível submeter ao Tribunal de Justiça a totalidade dos «litígios híbridos» entre Estados‑Membros – relativos tanto a matérias abrangidas pela competência do Tribunal de Justiça como a matérias não abrangidas por essa competência – nos termos do artigo 239.° CE ou do artigo 154.° EA.


10 – Todos os Estados‑Membros, com excepção da Dinamarca, tinham ratificado a CNUDM. Actualmente, todos os Estados‑Membros ratificaram a CNUDM.


11 – V. artigos 4.° e 5.° do anexo IX da CNUDM, e a Declaração de 1 de Abril de 1998 da Comunidade Europeia nos termos do artigo 5.°, n.° 1, do anexo IX da CNUDM e do artigo 4.°, n.° 4, do Acordo relativo à implementação da parte XI da CNUDM. A declaração será adiante analisada, nos n.° 35 e 36.


12 – Em última análise, são matérias abrangidas pela competência exclusiva, respectivamente, da Comunidade e dos Estados‑Membros.


13 – Decisão de 23 de Março de 1998, relativa à celebração pela Comunidade Europeia da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 10 de Dezembro de 1982 e do Acordo de 28 de Julho de 1994, relativo à aplicação da parte XI da Convenção (JO L 179, p. 1).


14 – Conclusões do advogado‑geral G. Tesauro apresentadas no processo Hermès (C‑53/96, Colect. 1998, pp. I‑3603, I‑3606, n.° 8).


15 – No processo Haegeman, pedia‑se ao Tribunal de Justiça, através de um pedido de decisão prejudicial, que interpretasse determinadas disposições sobre o comércio constantes do acordo de associação CEE‑Grécia. Relativamente à sua competência, o Tribunal considerou que «[a]s disposições do acordo constituem, a partir da sua entrada em vigor, parte integrante da sua ordem jurídica comunitária […] O Tribunal é assim competente, no âmbito da referida ordem jurídica, para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação de tal acordo» (acórdão de 30 de Abril de 1974, Haegeman, 181/73, Colect., p. 251, n.os 5 e 6). V., igualmente, acórdão de 26 de Outubro de 1982, Hauptzollamt Mainz/Kupferberg (104/81, Recueil, p. 3641, n.° 13), e parecer 1/91, de 14 de Dezembro de 1991 (Colect., p. 6079, n.os 37 e 38).


16 – Parecer 1/91, já referido, n.° 38.


17 – Acórdão de 7 de Outubro de 2004, Comissão/França (C‑239/03, Colect., p. I‑9325, n.° 25) (o sublinhado é meu). V. igualmente acórdão de 19 de Março de 2002, Comissão/Irlanda (C‑13/00, Colect., p. I‑2943, n.° 14); e, no mesmo sentido, acórdão de 30 de Setembro de 1987, Demirel (12/86, Colect., p. 3719, n.° 9).


18 – Acórdão de 14 de Dezembro de 2000, Dior e o. (C‑300/98 e C‑392/98, Colect., p. I‑11307, n.° 33). V., igualmente, conclusões do advogado‑geral G. Reischl apresentadas no processo Razanatsimba (65/77, Colect. 1977, pp. 819, 826, em especial, p. 828): «A única condição exigida a este respeito [para que o Tribunal de Justiça tenha competência para analisar questões que tenham sido suscitadas] é a de que a Comunidade esteja vinculada à convenção em questão e que o vínculo abranja também a disposição cuja interpretação se pede».


19 – A este propósito, v. acórdão de 19 de Novembro de 1975, Nederlandse Spoorwegen (38/75, Colect., p. 479, n.° 16).


20 – Por força dos artigos 300.°, n.° 2, CE e 220.° CE. V. igualmente: Schermers, H. G.; Waelbroeck, D. F. – Judicial protection in the European Union, Kluwer Law International, Haia/Londres/Nova Iorque, 2001, pp. 296 a 297.


21 – Neste caso, o Tribunal de Justiça não tem competência relativamente a essa disposição (v., a este propósito, conclusões do advogado‑geral G. Tesauro apresentadas no processo Hermès, já referidas, n.° 19). Contudo, uma disposição constante de um acordo misto poderá também aplicar‑se tanto a situações abrangidas pelo âmbito da legislação nacional como a situações abrangidas pelo âmbito do direito comunitário. Há que recordar que, nessas situações, o Tribunal é competente para interpretar a disposição no contexto de um pedido de decisão prejudicial, mesmo relativamente a situações abrangidas pelo âmbito da legislação nacional (conclusões no processo Hermès, já referidas, n.os 32 e 33); v., igualmente, acórdão de 13 de Setembro de 2001, Schieving‑Nijstad e o. (C‑89/99, Colect., p. I‑5851, n.° 30). Na base desta orientação da competência do Tribunal, está o dever de cooperação entre os Estados‑Membros e as instituições da Comunidade (acórdão Dior e o., já referido, n.° 38). Sobre este assunto: Heliskoski, J. – «The Jurisdiction of the European Court of Justice to Give Preliminary Rulings on the Interpretation of Mixed Agreements», 2000, 4 Nordic Journal of International Law, pp. 395 a 412; Koutrakos, P. – «The Interpretation of Mixed Agreements under the Preliminary Reference Procedure», 2002, 7 European Foreign Affairs Review, pp. 25 a 52.


22 – Título XIX do Tratado. A competência da Comunidade para celebrar acordos com terceiros está expressamente consagrada no artigo 174.°, n.° 4, CE.


23 – Acórdão de 31 de Março de 1971, Comissão/Conselho, dito «AETR» (22/70, Colect., p. 69, n.° 17). V., igualmente, os acórdãos de 5 de Novembro de 2002, ditos «de céu aberto», Comissão/Reino Unido (C‑466/98, Colect., p. I‑9427), Comissão/Dinamarca (C‑467/98, Colect., p. I‑9519), Comissão/Suécia (C‑468/98, Colect., p. I‑9575), Comissão/Luxemburgo (C‑472/98, Colect., p. I‑9741), Comissão/Áustria (C‑475/98, Colect., p. I‑9797), e Comissão/Alemanha (C‑476/98, Colect., p. I‑9855).


24 – A este respeito, a Irlanda baseia‑se no parecer 2/91, de 19 de Março de 1993 (Colect., p. I‑1061, em especial, n.° 18).


25 – Declaração de 1 de Abril de 1998 emitida pela Comunidade Europeia nos termos do artigo 5.°, n.° 1, do anexo IX da CNUDM e do artigo 4.°, n.° 4, do Acordo relativo à interpretação da parte XI da CNUDM (a seguir «declaração)».


26 – Referidos na nota n.° 23, supra.


27 – Já referido.


28 – Já referido.


29 – Acórdãos, já referidos, Comissão/França, n.° 27, e Comissão/Irlanda, n.° 16.


30 – Acórdão Comissão/Irlanda, já referido, n.° 16.


31 – V., em especial, n.os 19 e 23 do acórdão.


32 – N.° 52 das conclusões do advogado‑geral J. Mischo apresentadas no processo Comissão/Irlanda.


33 – Acórdão, já referido, n.° 23.


34 – N.° 29 do acórdão.


35 – N.os 30 e 31 do acórdão. V., igualmente, acórdão de 15 de Julho de 2004, Pêcheurs de l’étang de Berre (C‑213/03, Colect., p. I‑7357), proferido no seguimento da apresentação de um pedido de decisão prejudicial que tinha por objecto a mesma Convenção. O Tribunal, sem analisar expressamente a sua competência relativamente às disposições da Convenção e do Protocolo, respondeu às questões submetidas pelo órgão jurisdicional nacional.


36 – O sublinhado é meu.


37 – Como referiu o Tribunal no n.° 23 do acórdão, uma acção por incumprimento «apenas pode ter por objecto o incumprimento de obrigações decorrentes do direito comunitário». Nessa conformidade, o Tribunal analisou «se as obrigações que vinculam a França e que constituem o objecto da acção estão abrangidas pelo direito comunitário». Evidentemente, é possível, especialmente no contexto dos acordos mistos, que o incumprimento, por parte de um Estado‑Membro, de uma obrigação decorrente de um acordo, mas que não está abrangida pela competência da Comunidade, possa comprometer a realização dos objectivos da Comunidade e prejudique os interesses desta. Nestas situações, o Tribunal é competente para conhecer de uma acção por incumprimento. No entanto, a acção por incumprimento não pode ser directamente intentada por causa do incumprimento de obrigações decorrentes do acordo misto. A acção deve antes ser intentada devido ao incumprimento de uma obrigação comunitária decorrente do artigo 10.° CE. V., igualmente, Hillion, C. – The evolving system of European Union external relations as evidenced in the EU Partnerships with Russia and Ukraine, tese, Leyden 2005, p. 130.


38 – A Convenção para a Protecção do Mar Mediterrâneo contra a Poluição e o Protocolo relativo à Protecção do Mar Mediterrâneo contra a Poluição de Origem Telúrica foram adoptados, respectivamente, através da Decisão 77/585/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1977 (JO L 240, p. 1; EE 15 F2 p. 3), e da Decisão 83/101/CEE do Conselho, de 28 de Fevereiro de 1983 (JO L 67, p. 1; EE 15 F4 p. 100), tendo‑se ambos baseado no artigo 235.° do Tratado CE (actual artigo 308.° CE)


39 – Acórdão Dior e o., n.° 33. V., igualmente, n.° 22 supra.


40 – O artigo 282.° da CNUDM, que tem por epígrafe «Obrigações decorrentes de acordos gerais, regionais ou bilaterais», prevê: «Se os Estados Partes que são partes numa controvérsia relativa à interpretação ou aplicação da presente Convenção tiverem ajustado, por meio de acordo geral, regional ou bilateral, ou de qualquer outra forma, em que tal controvérsia seja submetida, a pedido de qualquer das partes na mesma, a um procedimento conducente a uma decisão obrigatória, esse procedimento será aplicado em lugar do previsto na presente parte, salvo acordo em contrário das partes na controvérsia.»


41 – V., por analogia, acórdão de 25 de Setembro de 1979, Comissão/França (232/78, Recueil, p. 2729, n.os 7 a 9).


42 – Parecer 1/91, já referido, n.° 35.


43 – Directiva do Conselho, de 27 de Junho de 1985, relativa à avaliação dos efeitos de determinados projectos públicos e privados no ambiente (JO L 175, p. 40; EE 15 F6 p. 9), alterada pela Directiva 97/11/CE do Conselho, de 3 de Março de 1997 (JO L 73, p. 5). A directiva foi posteriormente alterada pela Directiva 2003/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Maio de 2003 (JO L156, p. 17).


44 – Directiva do Conselho, de 7 de Junho de 1990, relativa à liberdade de acesso à informação em matéria de ambiente (JO L 158, p. 56).


45 – Directiva do Conselho, de 15 de Julho de 1980, que altera as directivas que fixam as normas de base relativas à protecção sanitária da população e dos trabalhadores contra os perigos resultantes das radiações ionizantes (JO L 246, p. 1; EE 12 F3 p. 214).


46 – Directiva do Conselho, de 3 de Fevereiro de 1992, relativa à fiscalização e ao controlo das transferências de resíduos radioactivos entre Estados‑Membros e para dentro e fora da Comunidade (JO L 35, p. 24).


47 – Directiva do Conselho, de 13 de Maio de 1996, que fixa as normas de segurança de base relativas à protecção sanitária da população e dos trabalhadores contra os perigos resultantes das radiações ionizantes (JO L 159, p. 1).


48 – Convenção para a Protecção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste, celebrada em nome das Comunidades através da Decisão 98/249/CE do Conselho, de 7 de Outubro de 1997 (JO 1998, L 104, p. 1).


49 – Ponto 6.1. do articulado da Irlanda (o sublinhado consta do documento original).


50 – Ponto 6.7 do articulado da Irlanda.


51 – Ponto 7.6 do articulado da Irlanda.


52 – Ponto 5.14 da resposta da Irlanda. V., igualmente, ponto 5.36: «Cabe ao tribunal criado nos termos do anexo VII determinar, com base em fundamentos objectivos, a extensão das obrigações de um Estado decorrentes da CNUDM. Esta determinação exige necessariamente que o tribunal aprecie se um Estado adoptou ou não as medidas necessárias para a aplicação das regras e normas internacionais para as quais a CNUDM remete. Ao tornar‑se parte na CNUDM, o Reino Unido deu o seu consentimento para que o tribunal criado nos termos do anexo VII proceda a essa apreciação».


53 – Como efectivamente também foi observado por um dos membros do tribunal arbitral. V: The Mox Plant Case, Proceedings Day Two, p. 44 in fine (pergunta de Sir Arthur Watts, KCMG QC, ao Prof. Vaughan Lowe, agindo na qualidade de representante da Irlanda).


54 – V., por exemplo, as alegações da Irlanda relativas às obrigações do Reino Unido decorrentes da Directiva 85/337, nos pontos 7.28, 8.102 e 8.114 do seu articulado.


55 – V. n.° 10, supra.


56 – V., por exemplo, acórdãos de 10 de Fevereiro de 1983, Luxemburgo/Parlamento (230/81, Recueil, p. 255, n.° 37); de 22 de Outubro de 1998, Kellinghusen e Ketelsen (C‑36/97 e C‑37/97, Colect., p. I‑6337, n.° 30); de 4 de Março de 2004, Alemanha/Comissão (C‑344/01, Colect., p. I‑2081, n.° 79); e de 13 de Julho de 2004, Comissão/Itália (C‑82/03, Colect., p. I‑6635, n.° 15).


57 – V., por exemplo, acórdão AETR, já referido, n.os 21 e 22; acórdão de 14 de Julho de 1976, Kramer (3/76, 4/76 e 6/76, Colect., p. 515, n.os 42 a 45); decisão 1/78, de 14 de Novembro de 1978 (Colect., p. 711, n.° 33); acórdão Hauptzollamt Mainz/Kupferberg, já referido, n.° 13; e acórdão de 2 de Junho de 2005, Comissão/Luxemburgo (C‑266/03, ainda não publicado na Colectânea, n.os 57 a 66).


58 – A este propósito: parecer 2/91, já referido, n.° 36; parecer 1/94, de 15 de Novembro de 1994 (Colect., p. I‑5267, n.° 108); acórdão de 19 de Março de 1996, Comissão/Conselho (C‑25/94, Colect., p. I‑1469, n.° 48).


59 – V., como exemplos de casos em que o Tribunal declarou que o artigo 10.° CE implica o dever de proceder a consultas com a Comissão, acórdão de 4 de Outubro de 1979, França/Reino Unido (já referido, n.os 8 e 9); de 5 de Maio de 1981, Comissão/Reino Unido (804/79, Recueil, p. 1045, n.° 31); de 7 de Maio de 1987, Comissão/Bélgica (186/85, Colect., p. 2029, n.° 40); acórdão Comissão/Luxemburgo (já referido, n.os 61 a 66); e acórdão de 14 de Julho de 2005, Comissão/Alemanha (C‑433/03, ainda não publicado na Colectânea, n.os 68 a 73).