ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

11 de setembro de 2018 (*)

«Reenvio prejudicial — Política social — Diretiva 2000/78/CE — Igualdade de tratamento — Atividades profissionais de igrejas ou de outras organizações cuja ética é baseada na religião ou nas convicções — Exigências profissionais — Atitude de boa‑fé e de lealdade perante a ética da Igreja ou da organização — Conceito — Diferença de tratamento baseada na religião ou nas convicções — Despedimento de um trabalhador de confissão católica, que exerce uma função de enquadramento, em razão de um segundo casamento civil contraído após um divórcio»

No processo C‑68/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Bundesarbeitsgericht (Tribunal Federal do Trabalho, Alemanha), por decisão de 28 de julho de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de fevereiro de 2017, no processo

IR

contra

JQ,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Tizzano, vice‑presidente, R. Silva de Lapuerta, T. von Danwitz, J. L. da Cruz Vilaça, A. Rosas e J. Malenovský, presidentes de secção, E. Juhász, M. Safjan, D. Šváby, A. Prechal, F. Biltgen (relator), K. Jürimäe, M. Vilaras e E. Regan, juízes,

advogado‑geral: M. Wathelet,

secretário: K. Malacek, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 27 de fevereiro de 2018,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da IR, por B. Göpfert, Rechtsanwalt, M. Ruffert e G. Thüsing,

–        em representação do Governo alemão, por T. Henze, J. Möller e D. Klebs, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, A. Siwek e M. Szwarc, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por D. Martin e B.‑R. Killmann, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 31 de maio de 2018,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional (JO 2000, L 303, p. 16).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe JQ ao seu empregador, a IR, a propósito da legalidade do despedimento de JQ, justificado por uma alegada violação do dever de boa‑fé e de lealdade perante a ética da IR.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 4, 23, 24 e 29 da Diretiva 2000/78 enunciam:

«(4)      O direito das pessoas à igualdade perante a lei e à proteção contra a discriminação constitui um direito universal, reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Convenção das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, pelos pactos internacionais das Nações Unidas sobre os direitos civis e políticos e sobre os direitos económicos, sociais e culturais, e pela Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de que todos os Estados‑Membros são signatários. A Convenção n.o 111 da Organização Internacional de Trabalho proíbe a discriminação em matéria de emprego e atividade profissional.

[…]

(23)      Em circunstâncias muito limitadas, podem justificar‑se diferenças de tratamento sempre que uma característica relacionada com a religião ou as convicções, com uma deficiência, com a idade ou com a orientação sexual constitua um requisito genuíno e determinante para o exercício da atividade profissional, desde que o objetivo seja legítimo e o requisito proporcional. Essas circunstâncias devem ser mencionadas nas informações fornecidas pelos Estados‑Membros à Comissão.

(24)      A União Europeia, na sua Declaração n.o 11, relativa ao estatuto das Igrejas e das organizações não confessionais, anexa à ata final do Tratado de Amesterdão, reconhece explicitamente que respeita e não afeta o estatuto de que gozam, ao abrigo do direito nacional, as Igrejas e associações ou comunidades religiosas nos Estados‑Membros, e que respeita igualmente o estatuto das organizações filosóficas e não confessionais. Nesta perspetiva, os Estados‑Membros podem manter ou prever disposições específicas sobre os requisitos profissionais essenciais, legítimos e justificados, suscetíveis de serem exigidos para o exercício de uma atividade profissional nos respetivos territórios.

[…]

(29)      As pessoas que tenham sido vítimas de discriminação em razão da religião, das convicções, de uma deficiência, da idade ou da orientação sexual devem dispor de meios de proteção jurídica adequados. Para assegurar um nível de proteção mais eficaz, as associações ou as pessoas coletivas devem igualmente ficar habilitadas a instaurar ações, nos termos estabelecidos pelos Estados‑Membros, em nome ou em prol de uma vítima, sem prejuízo das regras processuais nacionais relativas à representação e à defesa em tribunal.»

4        O artigo 1.o desta diretiva dispõe:

«A presente diretiva tem por objeto estabelecer um quadro geral para lutar contra a discriminação em razão da religião ou das convicções, de uma deficiência, da idade ou da orientação sexual, no que se refere ao emprego e à atividade profissional, com vista a pôr em prática nos Estados‑Membros o princípio da igualdade de tratamento.»

5        O artigo 2.o, n.os 1 e 2, da referida diretiva prevê:

«1.      Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “princípio da igualdade de tratamento” a ausência de qualquer discriminação, direta ou indireta, por qualquer dos motivos referidos no artigo 1.o

2.      Para efeitos do n.o 1:

a)      Considera‑se que existe discriminação direta sempre que, por qualquer dos motivos referidos no artigo 1.o, uma pessoa seja objeto de um tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou possa vir a ser dado a outra pessoa em situação comparável;

[…]»

6        O artigo 4.o da mesma diretiva tem a seguinte redação:

«1.      Sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 2.o, os Estados‑Membros podem prever que uma diferença de tratamento baseada numa característica relacionada com qualquer dos motivos de discriminação referidos no artigo 1.o não constituirá discriminação sempre que, em virtude da natureza da atividade profissional em causa ou do contexto da sua execução, essa característica constitua um requisito essencial e determinante para o exercício dessa atividade, na condição de o objetivo ser legítimo e o requisito proporcional.

2.      Os Estados‑Membros podem manter na sua legislação nacional em vigor à data de aprovação da presente diretiva, ou prever em futura legislação que retome as práticas nacionais existentes à data de aprovação da presente diretiva, disposições em virtude das quais, no caso das atividades profissionais de igrejas e de outras organizações públicas ou privadas cuja ética seja baseada na religião ou em convicções, uma diferença de tratamento baseada na religião ou nas convicções de uma pessoa não constitua discriminação sempre que, pela natureza dessas atividades ou pelo contexto da sua execução, a religião ou as convicções constituam um requisito profissional essencial, legítimo e justificado no âmbito da ética da organização. Esta diferença de tratamento deve ser exercida no respeito das disposições e dos princípios constitucionais dos Estados‑Membros, bem como dos princípios gerais do direito comunitário, e não pode justificar uma discriminação baseada noutro motivo.

Sob reserva de outras disposições da presente diretiva as igrejas e as outras organizações públicas ou privadas cuja ética é baseada na religião ou nas convicções, atuando de acordo com as disposições constitucionais e legislativas nacionais, podem, por conseguinte, exigir das pessoas que para elas trabalham uma atitude de boa‑fé e de lealdade perante a ética da organização.»

7        O artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2000/78 prevê:

«Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que todas as pessoas que se considerem lesadas pela não aplicação, no que lhes diz respeito, do princípio da igualdade de tratamento, possam recorrer a processos judiciais e/ou administrativos, incluindo, se considerarem adequado, os processos de conciliação, para exigir o cumprimento das obrigações impostas pela presente diretiva, mesmo depois de extintas as relações no âmbito das quais a discriminação tenha alegadamente ocorrido.»

8        O artigo 10.o, n.o 1, desta diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias, de acordo com os respetivos sistemas judiciais, para assegurar que, quando uma pessoa que se considere lesada pela não aplicação, no que lhe diz respeito, do princípio da igualdade de tratamento apresentar, perante um tribunal ou outra instância competente, elementos de facto constitutivos da presunção de discriminação direta ou indireta, incumba à parte requerida provar que não houve violação do princípio da igualdade de tratamento.»

 Direito alemão

 GG

9        O artigo 4.o, n.os 1 e 2, da Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha), de 23 de maio de 1949 (BGBl. 1949 I, p. 1, a seguir «GG»), dispõe:

«(1)      A liberdade de religião e de consciência, bem como a liberdade de professar convicções religiosas ou filosóficas, são invioláveis.

(2)      É garantida a liberdade de culto.»

10      Em conformidade com o artigo 140.o da GG, o disposto nos artigos 136.o a 139.o e 141.o da Weimarer Reichsverfasssung (Constituição de Weimar), de 11 de agosto de 1919 (a seguir «WRV»), constitui parte integrante da GG.

11      O artigo 137.o da WRV prevê:

«1.      O Estado é laico.

2.      É garantida a liberdade de associação religiosa. Podem ser criadas congregações religiosas sem qualquer restrição no território do Reich.

3.      As congregações religiosas regulam e administram os seus assuntos com independência, dentro dos limites da lei geral. A organização das suas estruturas é independente do Governo central ou das autoridades locais.

[…]

7.      As associações cuja finalidade consiste em propagar uma convicção filosófica na comunidade gozarão do mesmo estatuto das congregações religiosas.»

12      Segundo a jurisprudência do Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal, Alemanha), os titulares do direito à autodeterminação eclesiástica garantido no artigo 140.o da GG, conjugado com o artigo 137.o, n.o 3, da WRV, são não só as próprias igrejas enquanto comunidades religiosas mas igualmente todas as instituições nestas especificamente filiadas, se e na medida em que estas últimas sejam chamadas, segundo a consciência eclesiológica e em conformidade com o seu objetivo ou com a sua missão, a assumir tarefas e missões eclesiásticas.

 Lei relativa à proteção contra os despedimentos

13      A Kündigungsschutzgesetz (Lei relativa à proteção contra os despedimentos), de 25 de agosto de 1969 (BGBl. 1969 I, p. 1317), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, prevê, no seu § 1:

«Despedimentos socialmente injustificados

(1)      O despedimento de um trabalhador por conta de outrem cujo contrato tenha durado mais de seis meses ininterruptos na mesma empresa é juridicamente ineficaz se for socialmente injustificado.

(2)      O despedimento é socialmente injustificado quando não for devido a motivos relativos à pessoa ou ao comportamento do trabalhador por conta de outrem ou motivado por necessidades imperiosas da empresa que se oponham à manutenção do emprego do trabalhador por conta de outrem na referida empresa. […]»

 AGG

14      A Allgemeines Gleichbehandlungsgesetz (Lei geral relativa à igualdade de tratamento), de 14 de agosto de 2006 (BGBl. 2006 I., p. 1897, a seguir «AGG»), visa transpor a Diretiva 2000/78 para o direito alemão.

15      O § 1 da AGG, que determina o objetivo da lei, estabelece:

«A presente lei tem por objetivo impedir ou eliminar qualquer tratamento desfavorável com base na raça ou na origem étnica, no sexo, na religião ou nas convicções, numa deficiência, na idade ou na orientação sexual.»

16      O § 7, n.o 1, da AGG dispõe:

«Os trabalhadores não podem ser alvo de discriminação em razão de um dos motivos referidos no § 1; esta proibição é igualmente aplicável quando o autor da discriminação se limita a presumir a existência de uma das formas de discriminação referidas no § 1.»

17      Nos termos do § 9 da AGG:

«1.      Sem prejuízo do disposto no § 8 [da presente lei], as diferenças de tratamento baseadas na religião ou em convicções são igualmente admitidas nos casos de emprego em comunidades religiosas, em instituições nestas filiadas, independentemente da sua forma jurídica, ou em associações cujo objetivo seja estar ao serviço de uma religião ou convicções, quando, tendo em conta a própria perceção da comunidade religiosa ou da associação, uma religião ou uma convicção determinadas constituam um requisito profissional justificado atendendo ao direito à autodeterminação [da comunidade religiosa ou da associação] ou atendendo à natureza das suas atividades.

2.      A proibição de diferenças de tratamento em razão da religião ou das convicções não afeta o direito das comunidades religiosas referidas no n.o 1, das entidades que lhes estão afiliadas, qualquer que seja a sua forma jurídica, e das associações que tenham por missão a prática em comunidade de uma religião ou convicção, de poderem exigir aos seus empregados uma atitude de boa‑fé e de lealdade, de acordo com a sua própria consciência.»

 Direito canónico

18      Nos termos do cânone 1085 do Codex Iuris Canonici (Código de Direito Canónico):

«§ 1.      [Contra um casamento inválido] a pessoa que esteja vinculada por casamento anterior, ainda que não consumado.

§ 2.      Ainda que o primeiro casamento seja inválido ou seja dissolvido por qualquer causa, não é permitido contrair um outro antes de a nulidade ou a dissolução do primeiro seja legitimamente declarada com certeza.»

19      O Grundordnung des kirchlichen Dienstes im Rahmen kirchlicher Arbeitsverhältnisse (Regulamento de base aplicável ao serviço eclesiástico no âmbito das relações de trabalho na Igreja), de 22 de setembro de 1993 (Amtsblatt des Erzbistums Köln, 1993, p. 222, a seguir «GrO 1993»), prevê, no seu artigo 1.o:

«Princípios de base do serviço eclesiástico

Todos aqueles que trabalham numa instituição da Igreja Católica, participam em conjunto, através do seu trabalho, independentemente da sua posição laboral no que respeita ao direito do trabalho, para que a instituição possa participar na missão da Igreja (comunidade de serviço). […]»

20      O artigo 4.o do GrO 1993, com a epígrafe «Deveres de lealdade», tem a seguinte redação:

«(1)      Todos os empregados católicos devem reconhecer e observar os princípios da doutrina católica relativos à fé e aos costumes. A vida pessoal dos trabalhadores deve testemunhar dos princípios da doutrina católica no que respeita à fé e aos costumes; isso é especialmente válido para os que se ocupam do serviço pastoral, do serviço de catequese e do serviço educativo, bem como para os que exerçam atividades de missão canónica. O mesmo é igualmente válido para os empregados que exercem funções de enquadramento.

(2)      Os trabalhadores cristãos não católicos são obrigados a respeitar as verdades e os valores do Evangelho e contribuir para os valorizar na instituição.

[…]

(4)      Todos os trabalhadores se devem abster de atitudes hostis para com a Igreja. Não devem, através do seu estilo de vida pessoal e do seu comportamento durante o serviço, comprometer a credibilidade da Igreja e da instituição para a qual trabalham.»

21      O artigo 5.o do GrO 1993, com a epígrafe «Violação dos deveres de lealdade», dispõe:

«(1)      Se um empregado deixar de cumprir os requisitos de emprego, o empregador deve tentar, através de aconselhamento, convencer o empregado a pôr termo a esse incumprimento de modo duradouro. […] O despedimento é a última medida a ser tida em consideração.

(2)      Em especial, as seguintes violações aos deveres de lealdade são consideradas graves pela Igreja para fins do despedimento por motivos específicos à Igreja:

[…]

–        Celebração de um casamento inválido segundo a conceção da fé e a ordem jurídica da Igreja,

[…]

(3)      Quando seja imputado [a empregados] que exerçam funções de enquadramento […] um comportamento que, em conformidade com o n.o 2, é geralmente tido em conta como motivo de despedimento, exclui a possibilidade de esses empregados se manterem no emprego. Em casos excecionais, pode renunciar‑se ao despedimento quando resulte de motivos graves ligados ao caso concreto que o despedimento é uma medida excessiva.»

22      O Grundordnung für katholische Krankenhäuser in Nordrhein‑Westfalen (Regulamento de base dos hospitais católicos no Land da Renânia do Norte‑Vestefália), de 5 de novembro de 1996 (Amtsblatt des Erzbistums Köln, p. 321), prevê:

«A.      Elo de ligação à Igreja

[…]

(6)      O [GrO 1993] adotado com base na declaração dos bispos alemães relativa ao serviço eclesiástico, incluindo as respetivas alterações e aditamentos, vincula o organismo responsável. Os membros da direção do hospital e os chefes de serviço são considerados empregados que exercem funções de direção na aceção do referido regulamento.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

23      A IR é uma sociedade de responsabilidade limitada de direito alemão. O seu objeto social consiste na realização, designadamente através da gestão de hospitais, das missões da Caritas (Confederação Internacional de Organizações Católicas sem Fins Lucrativos), enquanto expressão da existência e da natureza da Igreja Católica Romana. A IR não prossegue fins lucrativos a título principal e está sujeita à supervisão do arcebispo católico de Colónia (Alemanha).

24      JQ é católico. É médico de formação e trabalha desde 2000 na IR como chefe do serviço de medicina interna de um hospital, com base num contrato de trabalho celebrado com fundamento no GrO 1993.

25      JQ era casado segundo o rito católico. A sua primeira mulher separou‑se dele em 2005 e o divórcio foi decretado em março de 2008. No mês de agosto de 2008, JQ contraiu um casamento civil com a sua nova companheira, sem que o seu primeiro casamento tenha sido anulado.

26      Tendo tomado conhecimento deste novo casamento, a IR despediu JQ por carta de 30 de março de 2009, com efeitos em 30 de setembro de 2009.

27      JQ interpôs recurso desse despedimento no Arbeitsgericht (Tribunal do Trabalho, Alemanha), alegando que o seu novo casamento não constituía um motivo válido para o referido despedimento. Segundo JQ, o seu despedimento viola o princípio da igualdade de tratamento, uma vez que, em conformidade com o GrO 1993, o novo casamento de um chefe de serviço de confissão protestante ou sem confissão religiosa não teria tido qualquer consequência na relação de trabalho deste último com a IR.

28      A IR alegou que o despedimento de JQ era socialmente justificado. Uma vez que este exercia funções de enquadramento na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do GrO 1993, ao contrair um casamento inválido segundo o direito canónico, violou de forma caracterizada as suas obrigações decorrentes do contrato de trabalho celebrado com a IR.

29      O Arbeitsgericht (Tribunal do Trabalho) julgou procedente o pedido de JQ. Uma vez que o Landesarbeitsgericht (Tribunal Superior do Trabalho, Alemanha) negou provimento ao recurso interposto pela IR contra esta decisão, a mesma interpôs um recurso de «Revision» no Bundesarbeitsgericht (Tribunal Federal do Trabalho, Alemanha), o qual lhe negou provimento, por Acórdão de 8 de setembro de 2011, considerando, em substância, que o despedimento de JQ não era justificado, uma vez que a IR não despediria, em caso de novo casamento, trabalhadores que ocupam o mesmo tipo de posto de trabalho que JQ e que não são de confissão católica.

30      A IR submeteu o processo ao Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal, Alemanha). Por Despacho de 22 de outubro de 2014, esse órgão jurisdicional anulou o acórdão do Bundesarbeitsgericht (Tribunal Federal do Trabalho) e remeteu o processo a este último.

31      O Bundesarbeitsgericht (Tribunal Federal do Trabalho) considera que a solução do litígio no processo principal depende da questão de saber se o despedimento de JQ pela IR é lícito à luz do § 9, n.o 2, da AGG. Esse órgão jurisdicional salienta, contudo, que esta disposição deve ser interpretada em conformidade com o direito da União e que, por conseguinte, a solução deste litígio depende da interpretação do artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2000/78, cuja transposição para o direito nacional é feita pelo § 9, n.o 2, da AGG.

32      Mais precisamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta‑se, em primeiro lugar, sobre se, enquanto sociedade de capitais de direito privado detida pela Igreja Católica, a IR está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2000/78 e tem, portanto, o direito de exigir dos seus trabalhadores uma atitude de boa‑fé e de lealdade para com a ética desta Igreja. Segundo esse órgão jurisdicional, não está excluído que o direito da União se oponha a que tal sociedade, constituída segundo o direito privado e ativa no setor da saúde, seguindo as práticas do mercado, possa invocar direitos específicos da Igreja.

33      A este respeito, interroga‑se quanto à questão de saber se as igrejas ou outras organizações públicas ou privadas cuja ética é baseada na religião ou em convicções podem elas próprias determinar, de maneira definitiva, o que constitui uma atitude de boa‑fé e de lealdade «perante a ética da organização», na aceção do artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2000/78, e, quanto a este ponto, se estas podem prever igualmente de maneira autónoma — como o direito constitucional alemão as autoriza a fazer — uma graduação dos deveres de lealdade para as mesmas funções de enquadramento unicamente tendo em conta a religião dos trabalhadores.

34      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, depois de o Tribunal de Justiça ter interpretado o artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2000/78, caber‑lhe‑á, tendo em conta todas as regras do direito nacional e aplicando os métodos de interpretação reconhecidos por este, decidir se e em que medida o § 9, n.o 2, da AGG é suscetível de ser interpretado de maneira conforme com o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2000/78, bem como, na hipótese de esta disposição nacional não poder ser objeto de uma interpretação conforme, se a aplicação da referida disposição deve ser total ou parcialmente afastada.

35      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta‑se, por um lado, sobre se a proibição da discriminação em razão da religião ou das convicções, consagrada no artigo 21.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), confere a um particular um direito subjetivo que este possa invocar perante os órgãos jurisdicionais nacionais e que, nos litígios entre pessoas privadas, obrigue esses órgãos jurisdicionais a não aplicar disposições nacionais não conformes com essa proibição. Apesar de reconhecer que a Carta só entrou em vigor em 1 de dezembro de 2009, ao passo que o despedimento em causa no processo principal se verificou em março de 2009, o referido órgão jurisdicional precisa que não se pode excluir que, antes mesmo da entrada em vigor da Carta, já existisse uma proibição de qualquer discriminação em razão da religião ou das convicções enquanto princípio geral do direito da União. Ora, em conformidade com o princípio do primado do direito da União, este teria primazia sobre o direito nacional, incluindo sobre o direito constitucional.

36      Em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta quais são os critérios com base nos quais há que determinar se a exigência de uma atitude de boa‑fé e de lealdade é conforme com o artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2000/78.

37      Nestas condições, o Bundesarbeitsgericht (Tribunal Federal do Trabalho) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da [Diretiva 2000/78] ser interpretado no sentido de que a [I]greja pode determinar [de maneira vinculativa], no que respeita a uma organização como a demandada no presente processo[,] que, ao exigir de trabalhadores com funções de direção um comportamento leal e de boa‑fé, faça uma distinção entre os trabalhadores que pertencem à [I]greja e outros que pertencem a outra [I]greja ou não pertencem a nenhuma?

2)      No caso de resposta negativa à primeira questão:

a)      Deve uma disposição do direito nacional, como, no caso vertente, o § 9, n.o 2, da [AGG], segundo a qual essa desigualdade de tratamento baseada na religião do trabalhador é justificada pela própria identidade da [I]greja, deixar de ser aplicada no presente litígio?

b)      Quais os requisitos aplicáveis, por força do artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva [2000/78], a uma exigência de comportamento leal e de boa‑fé imposta aos trabalhadores de uma igreja ou de uma das organizações aí mencionadas perante a ética da organização?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão e à segunda parte da segunda questão

38      Com a primeira questão e com a segunda parte da segunda questão, que há que analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2000/78 deve ser interpretado no sentido de que uma igreja ou outra organização cuja ética é baseada na religião ou nas convicções, e que gere um estabelecimento hospitalar sob a forma de sociedade de capitais de direito privado, pode decidir, de maneira definitiva, sujeitar os seus trabalhadores que exercem funções de enquadramento a exigências de uma atitude de boa‑fé e de lealdade distintas em função da confissão religiosa ou da inexistência de confissão religiosa desses trabalhadores e, não sendo esse o caso, com base em que critérios se deve verificar, em cada caso concreto, se essas exigências estão em conformidade com esta disposição.

39      Tendo em conta as explicações dadas pelo órgão jurisdicional de reenvio quanto à sua primeira questão, importa, em primeiro lugar, no que se refere ao âmbito de aplicação pessoal do artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2000/78, determinar se a circunstância de, no processo principal, a entidade que exigiu dos seus trabalhadores uma atitude de boa‑fé e de lealdade ser uma sociedade de capitais de direito privado é suscetível de impedir esta última de invocar esta disposição.

40      A este respeito, importa constatar que, tendo em conta o caráter geral dos termos utilizados no artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2000/78 para definir o referido âmbito de aplicação pessoal, a saber, «igrejas e […] outras organizações públicas ou privadas», considerações quanto à natureza ou à forma jurídicas da entidade em causa não são suscetíveis de ter impacto na aplicação desta disposição a uma situação como a que está em causa no processo principal. Em especial, a referência às organizações privadas abrange estabelecimentos que, como a IR, são constituídas segundo o direito privado.

41      Assim sendo, importa precisar, por um lado, que o disposto no artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2000/78 se aplica unicamente às igrejas e às outras organizações públicas ou privadas «cuja ética seja baseada na religião ou em convicções».

42      Por outro lado, o artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo da Diretiva 2000/78 faz referências às «pessoas que […] trabalham» para essas igrejas ou organizações, o que significa que o âmbito de aplicação desta disposição abrange, à semelhança do artigo 4.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da referida diretiva, as atividades profissionais destas.

43      Em segundo lugar, no que se refere à questão da fiscalização, pelos órgãos jurisdicionais nacionais, da aplicação do artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2000/78, há que recordar que o Tribunal de Justiça já decidiu, no âmbito de um processo que dizia respeito à interpretação do artigo 4.o, n.o 2, primeiro parágrafo, desta diretiva, que esta disposição deve ser interpretada no sentido de que, quando uma igreja ou outra organização cuja ética seja baseada na religião ou em convicções alega, em apoio de uma decisão ou de um ato ou de uma decisão como a rejeição de uma candidatura a um emprego na mesma, que, pela natureza das atividades em causa ou pelo contexto no qual essas atividades são exercidas, a religião constitui uma exigência profissional essencial, legítima e justificada tendo em conta a ética dessa igreja ou dessa organização, essa alegação deve poder, sendo caso disso, ser objeto de uma fiscalização jurisdicional efetiva que exige que se garanta que, no caso concreto, estão preenchidos os critérios enunciados na referida disposição (Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 59).

44      Por outro lado, a circunstância de o artigo 4.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2000/78 se referir às legislações nacionais em vigor à data da adoção desta diretiva, bem como às práticas nacionais existentes nessa mesma data, não pode ser interpretada no sentido de autorizar os Estados‑Membros a subtrair o respeito dos critérios enunciados nesta disposição a uma fiscalização jurisdicional efetiva (v., neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 54).

45      As considerações enunciadas pelo Tribunal de Justiça em apoio desta exigência de fiscalização jurisdicional efetiva e baseadas no objetivo da Diretiva 2000/78, no contexto em que se inscreve o seu artigo 4.o, n.o 2, nas garantias exigidas aos Estados‑Membros pelos seus artigos 9.o e 10.o, para efeitos do respeito das obrigações decorrentes da referida diretiva e da proteção das pessoas que se consideram vítimas de uma discriminação, bem como no direito a uma proteção jurisdicional efetiva consagrado no artigo 47.o da Carta (v., neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.os 47 a 49), valem, da mesma maneira, em circunstâncias, como as do processo principal, nas quais uma organização privada alega, em apoio de uma decisão de despedimento de um dos seus empregados, o desrespeito por este de uma atitude boa‑fé e de lealdade para com a ética desta organização, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da referida diretiva.

46      Com efeito, esse segundo parágrafo contém, com referência ao primeiro parágrafo do artigo 4.o, n.o 2, da referida diretiva, a precisão segundo a qual, entre os requisitos profissionais que uma igreja ou outra organização pública ou privada cuja ética é baseada na religião ou em convicções podem exigir das pessoas que trabalham para elas, figura a exigência de que essas pessoas tenham uma atitude de boa‑fé ou de lealdade perante a ética dessa igreja ou organização. Como resulta nomeadamente da expressão «[s]ob reserva de outras disposições da presente diretiva», essa faculdade deve, contudo, ser exercida no respeito das restantes disposições da Diretiva 2000/78 e, em particular, dos critérios enunciados no artigo 4.o, n.o 2, primeiro parágrafo, desta diretiva, os quais devem, sendo caso disso, poder ser objeto de uma fiscalização jurisdicional efetiva, como foi recordado no n.o 43 do presente acórdão.

47      Contrariamente ao que alegam a IR e o Governo alemão, a apreciação da legalidade de uma exigência de uma atitude de boa‑fé e de lealdade exigida por uma igreja ou por outra organização cuja ética é baseada na religião ou em convicções não pode, pois, efetuar‑se apenas à luz do direito nacional, mas deve ter em conta o disposto no artigo 4.o n.o 2, da Diretiva 2000/78, bem como os critérios aí enunciados, cujo respeito não pode ser subtraído a uma fiscalização jurisdicional efetiva.

48      O artigo 17.o TFUE não é suscetível de infirmar esta conclusão. Com efeito, por um lado, a redação desta disposição corresponde, em substância, à da Declaração n.o 11, relativa ao estatuto das igrejas e das organizações não confessionais, anexa à ata final do Tratado de Amesterdão. Ora, o facto de esta declaração ser expressamente referida no considerando 24 da Diretiva 2000/78 demonstra que o legislador da União teve necessariamente em conta a referida declaração quando da adoção desta diretiva, em especial o seu artigo 4.o, n.o 2, uma vez que esta disposição remete precisamente para as legislações e para as práticas nacionais em vigor à data da adoção da referida diretiva. Por outro lado, o artigo 17.o TFUE exprime, de facto, a neutralidade da União no que respeita à organização pelos Estados‑Membros das suas relações com as igrejas e as associações ou comunidades religiosas, mas não é suscetível de dispensar de uma fiscalização jurisdicional efetiva o respeito dos critérios enunciados no artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2000/78 (v., neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.os 56 a 58).

49      Em terceiro lugar, no que se refere às condições de aplicação do artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2000/78, importa sublinhar, atendendo ao que foi salientado no n.o 46 do presente acórdão, que uma diferença de tratamento tendo em conta a exigência de uma atitude de boa‑fé e de lealdade perante a ética do empregador, como a que está em causa no processo principal, relativamente à qual não é contestado que esta se funda exclusivamente na religião dos trabalhadores, deve respeitar, designadamente, os critérios enunciados no artigo 4.o, n.o 2, primeiro parágrafo, dessa diretiva.

50      A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que decorre expressamente dessa disposição que é tendo em consideração a «natureza» das atividades em causa ou o «contexto» em que são exercidas que a religião ou as convicções podem, sendo caso disso, constituir uma exigência profissional essencial, legítima e justificada tendo em conta a ética da igreja ou da organização em causa, na aceção da referida disposição. Assim, a legalidade, à luz desta última disposição, de uma diferença de tratamento baseada na religião ou nas convicções depende da existência objetivamente verificável de um nexo direto entre o requisito profissional imposto pelo empregador e a atividade em causa. Esse nexo pode decorrer quer da natureza dessa atividade, por exemplo quando esta implica participar na determinação da ética da igreja ou da organização em causa ou colaborar na sua missão de proclamação, quer das condições em que a referida atividade deve ser exercida, como a necessidade de assegurar uma representação credível da igreja ou da organização no exterior desta (v., neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.os 62 e 63).

51      No que respeita, mais precisamente, aos três critérios estabelecidos no artigo 4.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2000/78, o Tribunal de Justiça precisou, em primeiro lugar, que o recurso ao adjetivo «essencial» significa que a pertença à religião ou a adesão às convicções em que assenta a ética da igreja ou da organização em causa deve afigurar‑se necessária em razão da importância da atividade profissional em causa para a afirmação dessa ética ou para o exercício por essa igreja ou por essa organização do seu direito à autonomia, tal como este é reconhecido no artigo 17.o TFUE e no artigo 10.o da Carta (v., neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.os 50 e 65).

52      Em seguida, o Tribunal de Justiça indicou que a utilização, pelo legislador da União, do termo «legítimo» demonstra que este pretendeu assegurar que o requisito relativo à pertença à religião ou à adesão às convicções em que assenta a ética da igreja ou da organização em causa não serve para prosseguir um fim alheio a essa ética ou ao exercício por essa igreja ou por essa organização do seu direito à autonomia (Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 66).

53      Por último, o termo «justificado» implica não só que a fiscalização do respeito dos critérios que figuram no artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2000/78 pode ser feita por um órgão jurisdicional nacional mas também que a igreja ou a organização que impuseram esse requisito têm a obrigação de demonstrar, à luz de circunstâncias factuais do caso concreto, que o risco alegado de ofensa à sua ética ou ao seu direito à autonomia é provável e sério, pelo que a instauração dessa exigência se afigura efetivamente necessária (v. neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 67).

54      A este respeito, a exigência referida no artigo 4.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2000/78 deve ser conforme com o princípio da proporcionalidade, o que implica que os órgãos jurisdicionais nacionais devem verificar se a referida exigência é adequada e não vai além do que é necessário para alcançar o objetivo prosseguido (Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 68).

55      Resulta do exposto nos n.os 49 a 54 do presente acórdão que uma igreja ou uma outra organização pública ou privada cuja ética é baseada na religião ou em convicções só pode tratar de forma diferente, em termos de exigência de uma atitude de boa‑fé e de lealdade para com essa ética, os seus empregados que ocupam lugares de enquadramento, em função da sua pertença à religião ou da sua adesão às convicções dessa igreja ou dessa outra organização, se, tendo em conta a natureza das atividades profissionais em causa e o contexto em que estas são exercidas, a religião ou as convicções constituírem uma exigência profissional essencial, legítima e justificada tendo em conta a referida ética.

56      A este respeito, há que salientar que, embora caiba em última instância ao juiz nacional, o único com competência para apreciar os factos, determinar se a imposição de uma atitude de boa‑fé e de lealdade apenas aos trabalhadores que ocupam lugares de enquadramento que partilhem a religião ou as convicções nas quais assenta a ética da igreja ou da organização em causa corresponde a uma exigência profissional essencial, legítima e justificada, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2000/78, o Tribunal de Justiça é, não obstante, competente para fornecer indicações, baseadas nos autos do processo principal e nas observações escritas e orais que lhe foram apresentadas, suscetíveis de permitir a esse mesmo juiz decidir o litígio concreto sobre qual se deve pronunciar.

57      No caso em apreço, a exigência em causa no processo principal refere‑se ao respeito de um determinado elemento da ética da Igreja Católica, a saber, o caráter sagrado e indissolúvel do casamento religioso.

58      Ora, a adesão a esse conceção do casamento não se afigura necessária para a afirmação da ética da IR tendo em conta a importância das atividades profissionais exercidas por JQ, isto é, a prestação, em meio hospitalar, de aconselhamento e cuidados médicos, bem como a gestão do serviço de medicina interna do qual era chefe. Não se afigura, pois, que esta seja um requisito essencial da atividade profissional, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2000/78, o que cabe, contudo, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

59      A afirmação segundo a qual a adesão a esta componente da ética da organização em causa não pode constituir, no caso vertente, um requisito profissional essencial é corroborada pela circunstância, confirmada pela IR na audiência no Tribunal de Justiça e recordada pelo advogado‑geral no n.o 67 das suas conclusões, de que lugares de responsabilidade médica que comportam funções de enquadramento, análogas àquele que era ocupado por JQ, foram confiados a empregados da IR que não são de confissão católica e, portanto, que não estão obrigados à mesma exigência de atitude de boa‑fé e de lealdade para com a ética da IR.

60      Em seguida, cumpre salientar que, à luz dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça, o requisito em causa no processo principal não se afigura justificado, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2000/78. Cabe, contudo, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a IR demonstrou que, à luz das circunstâncias do processo principal, há um risco provável e sério de violação da sua ética ou do seu direito à autonomia (v., neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 67).

61      Resulta do exposto que há que responder à primeira questão e à segunda parte da segunda questão que o artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2000/78 deve ser interpretado no sentido de que:

–        por um lado, uma igreja ou uma outra organização cuja ética seja baseada na religião ou em convicções, e que gere um estabelecimento hospitalar constituído sob a forma de uma sociedade de capitais de direito privado, não pode decidir sujeitar os seus empregados que exercem funções de enquadramento a exigências de uma atitude de boa‑fé e de lealdade para com essa ética distintas em função da confissão religiosa ou da inexistência de confissão religiosa desses empregados, sem que essa decisão possa, sendo caso disso, ser objeto de uma fiscalização jurisdicional efetiva que exija que se assegure que os critérios estabelecidos no artigo 4.o, n.o 2, dessa diretiva estão satisfeitos; e,

–        por outro, uma diferença de tratamento, em termos de exigências de uma atitude de boa‑fé e de lealdade para com a referida ética, entre empregados que ocupam lugares de enquadramento, em função da sua religião ou da inexistência de confissão religiosa, só é conforme com a referida diretiva se, tendo em conta a natureza das atividades profissionais em causa e o contexto em que estas são exercidas, a religião ou as convicções constituírem uma exigência profissional que é essencial, legítima e justificada tendo em conta a ética da organização em causa e conforme com o princípio da proporcionalidade, o que cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar.

 Quanto à primeira parte da segunda questão

62      Com a primeira parte da segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se, por força do direito da União, um órgão jurisdicional nacional tem a obrigação, no âmbito de um litígio entre particulares, de afastar a aplicação de uma disposição nacional que não é suscetível de ser interpretada de uma maneira conforme com o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2000/78.

63      A este respeito, importa recordar que cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais, tendo em conta o conjunto das regras do direito nacional e em aplicação dos métodos de interpretação por este reconhecidos, decidir se e em que medida uma disposição nacional, como o § 9, n.o 2, da AGG, é suscetível de ser interpretada em conformidade com o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2000/78 sem proceder a uma interpretação contra legem dessa disposição nacional (v., neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 71 e jurisprudência referida).

64      O Tribunal de Justiça decidiu, por outro lado, que a exigência de uma interpretação conforme inclui a obrigação de os órgãos jurisdicionais nacionais alterarem, sendo caso disso, uma jurisprudência assente, caso esta se baseie numa interpretação do direito nacional incompatível com os objetivos de uma diretiva (Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 72 e jurisprudência referida).

65      Por conseguinte, um órgão jurisdicional nacional não pode validamente considerar que lhe é impossível interpretar uma disposição nacional em conformidade com o direito da União pelo simples facto de essa disposição ter, de forma constante, sido interpretada num sentido que não é compatível com este direito (Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 73 e jurisprudência referida).

66      Assim, no caso vertente, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a disposição nacional em causa no processo principal pode ser objeto de uma interpretação conforme com a Diretiva 2000/78.

67      Caso lhe seja impossível proceder a essa interpretação conforme da disposição nacional em causa no processo principal, há que recordar, por um lado, que a Diretiva 2000/78 não instaura ela própria o princípio da igualdade de tratamento em matéria de emprego e de trabalho, princípio esse que tem a sua origem em diversos instrumentos internacionais e nas tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, mas tem unicamente por objeto estabelecer, nessas mesmas matérias, um quadro geral para lutar contra a discriminação baseada em diversos motivos, entre os quais figuram a religião ou as convicções, conforme resulta da epígrafe e do artigo 1.o desta diretiva (Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 75 e jurisprudência referida).

68      Por outro lado, um órgão jurisdicional nacional que se encontre na situação evocada no número anterior tem a obrigação de assegurar, no quadro das suas competências, a proteção jurídica que decorre, para os particulares, do direito da União e garantir o pleno efeito deste, afastando, se necessário, a aplicação de qualquer disposição da regulamentação nacional contrária ao princípio da não discriminação em razão da religião ou das convicções (v., no que respeita ao princípio da não discriminação em razão da idade, Acórdão de 19 de abril de 2016, DI, C‑441/14, EU:C:2016:278, n.o 35).

69      Com efeito, antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, que conferiu à Carta o mesmo valor jurídico que os Tratados, este princípio decorria das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros. A proibição de qualquer discriminação em razão da religião ou de convicções reveste caráter imperativo enquanto princípio geral de direito da União atualmente consagrado no artigo 21.o da Carta, e basta, por si só, para conferir aos particulares um direito que pode ser invocado enquanto tal num litígio que os oponha num domínio abrangido pelo direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger, C‑414/16, EU:C:2018:257, n.o 76).

70      Por conseguinte, no processo principal, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, caso considere que lhe é impossível assegurar uma interpretação da disposição nacional em causa conforme com o direito da União, afastar a aplicação dessa disposição.

71      Tendo em conta o exposto, há que responder à primeira parte da segunda questão que um órgão jurisdicional nacional que conhece de um litígio que opõe dois privados é obrigado, quando não lhe é possível interpretar o direito nacional de maneira conforme com o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2000/78, a assegurar, no quadro das suas competências, a proteção jurídica que decorre, para os litigantes, dos princípios gerais do direito da União, tais como o princípio da não discriminação em razão da religião ou das convicções, atualmente consagrado no artigo 21.o da Carta, e a garantir o pleno efeito dos direitos daí decorrentes, se necessário afastando a aplicação de qualquer disposição nacional contrária.

 Quanto às despesas

72      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1)      O artigo 4.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional, deve ser interpretado no sentido de que:

–        por um lado, uma igreja ou uma outra organização cuja ética seja baseada na religião ou em convicções, e que gere um estabelecimento hospitalar constituído sob a forma de uma sociedade de capitais de direito privado, não pode decidir sujeitar os seus empregados que exercem funções de enquadramento a exigências de uma atitude de boafé e de lealdade para com essa ética distintas em função da confissão religiosa ou da inexistência de confissão religiosa desses empregados, sem que essa decisão possa, sendo caso disso, ser objeto de uma fiscalização jurisdicional efetiva que exija que se assegure que os critérios estabelecidos no artigo 4.o, n.o 2, dessa diretiva estão satisfeitos; e,

–        por outro, uma diferença de tratamento, em termos de exigências de uma atitude de boafé e de lealdade para com a referida ética, entre empregados que ocupam lugares de enquadramento, em função da sua religião ou da inexistência de confissão religiosa, só é conforme com a referida diretiva se, tendo em conta a natureza das atividades profissionais em causa e o contexto em que estas são exercidas, a religião ou as convicções constituírem uma exigência profissional que é essencial, legítima e justificada tendo em conta a ética da organização em causa e conforme com o princípio da proporcionalidade, o que cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar.

2)      Um órgão jurisdicional nacional que conhece de um litígio que opõe dois privados é obrigado, quando não lhe é possível interpretar o direito nacional de maneira conforme com o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2000/78, a assegurar, no quadro das suas competências, a proteção jurídica que decorre, para os litigantes, dos princípios gerais do direito da União, tais como o princípio da não discriminação em razão da religião ou das convicções, atualmente consagrado no artigo 21.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e a garantir o pleno efeito dos direitos daí decorrentes, se necessário afastando a aplicação de qualquer disposição nacional contrária.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.