ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

4 de Fevereiro de 2010 (*)

«Acordo de associação CEE‑Turquia – Decisão n.° 1/80 do Conselho de Associação – Artigo 6.°, n.° 1 – Conceito de ‘trabalhador’ – Exercício de uma actividade assalariada menor – Condição para a perda dos direitos adquiridos»

No processo C‑14/09,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Verwaltungsgericht Berlin (Alemanha), por decisão de 10 de Dezembro de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 12 de Janeiro de 2009, no processo

Hava Genc

contra

Land Berlin,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: J. N. Cunha Rodrigues (relator), presidente de secção, P. Lindh , A. Rosas, A. Ó Caoimh e A. Arabadjiev, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: R. Grass,

vistos os autos,

vistas as observações escritas apresentadas:

–        em representação do Governo alemão, por M. Lumma e N. Graf Vitzthum, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo dinamarquês, por J. Liisberg e R. Holdgaard, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por V. Kreuschitz e G. Rozet, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80 do Conselho de Associação, de 19 de Setembro de 1980, relativa ao desenvolvimento da Associação CEE‑Turquia (a seguir «Decisão n.° 1/80»). O Conselho de Associação foi instituído pelo Acordo que cria uma Associação entre a Comunidade Económica Europeia e a Turquia, assinado em Ancara, em 12 de Setembro de 1963, pela República da Turquia, por um lado, e pelos Estados‑Membros da CEE e a Comunidade, por outro, e que foi concluído, aprovado e confirmado, em nome desta última, através da Decisão 64/732/CEE do Conselho, de 23 de Dezembro de 1963 (JO 1964, 217, p. 3685; EE 11 F1 p. 18; a seguir «acordo de associação CEE‑Turquia»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre H. Genc, de nacionalidade turca, e o Land Berlin, a propósito da recusa de prorrogação de uma autorização de residência na Alemanha.

 Quadro jurídico

3        O artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80 tem a seguinte redacção:

«Sem prejuízo do disposto no artigo 7.° relativamente ao livre acesso ao emprego dos membros da sua família, o trabalhador turco integrado no mercado regular de [emprego] de um Estado‑Membro:

–        tem direito nesse Estado‑Membro, após um ano de emprego regular, à renovação da sua autorização de trabalho para a mesma entidade patronal, se dispuser de um emprego;

–        tem direito nesse Estado‑Membro, após três anos de emprego regular e sem prejuízo da prioridade a conceder aos trabalhadores dos Estados‑Membros da Comunidade, a responder, dentro da mesma profissão, a outra oferta de emprego de uma entidade patronal [da] sua escolha, feita em condições normais e registada nos serviços de emprego desse Estado‑Membro;

–        beneficia nesse Estado‑Membro, após quatro anos de emprego regular, do livre acesso a qualquer actividade assalariada da sua escolha.»

4        O artigo 7.° da referida decisão dispõe:

«Os membros da família de um trabalhador turco integrado no mercado regular de [emprego] de um Estado Membro que tenham sido autorizados a reunir‑se‑lhe:

–        têm o direito de responder – sem prejuízo da prioridade a conceder aos trabalhadores dos Estados‑Membros da Comunidade – a qualquer oferta de emprego, desde que residam regularmente nesse Estado‑Membro há pelo menos três anos;

–        beneficiam nesse Estado‑Membro do livre acesso a qualquer actividade assalariada [da] sua escolha, desde que aí residam regularmente há pelo menos cinco anos.

Os filhos dos trabalhadores turcos que tenham obtido uma formação profissional no país de acolhimento poderão, independentemente da duração da sua residência nesse Estado‑Membro, desde que um dos pais tenha legalmente trabalhado no Estado‑Membro interessado pelo menos três anos, responder a qualquer oferta de emprego nesse Estado.»

5        O artigo 14.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80 dispõe:

«As disposições da presente secção são aplicáveis sem prejuízo das limitações justificadas por razões de ordem pública, de segurança e de saúde públicas.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

6        H. Genc, nascida em 1966, entrou na Alemanha, em 7 de Julho de 2000, com um visto, a fim de se juntar ao marido, nacional turco, que já vivia nesse Estado‑Membro.

7        Nos anos subsequentes, obteve uma autorização de residência e uma autorização de trabalho por tempo indeterminado. O seu marido trabalhou inicialmente como assalariado e, em 5 de Maio de 2003, iniciou uma actividade profissional independente.

8        O casal, registado nos serviços de registo da população até 12 de Janeiro de 2004, separou‑se em data não conhecida com precisão. Em 1 de Agosto de 2005, foi concedida a H. Genc uma última autorização de residência, por um período de dois anos, no quadro do reagrupamento familiar, com base no § 30 da Lei relativa à residência dos estrangeiros (Aufenthaltsgesetz), de 30 de Julho de 2004 (BGBl. 2004 I, p. 1950).

9        H. Genc exerce desde 18 de Junho de 2004 uma actividade profissional de empregada de limpeza na empresa L. Glas‑ und Gebäudereinigungsservice GmbH. Nos termos do contrato de trabalho, reduzido a escrito em 9 de Novembro de 2007, o período de trabalho semanal é de 5,5 horas, mediante a remuneração de 7,87 euros à hora. O contrato prevê que a interessada tem direito a 28 dias de férias pagas e a manter o salário em caso de doença. O referido contrato está, além disso, sujeito à respectiva convenção colectiva. Com base nesta relação de trabalho, H. Genc aufere um salário médio mensal de cerca de 175 euros.

10      Em 7 de Agosto de 2007, H. Genc requereu uma nova prorrogação da sua autorização de residência. Continuava a receber, nessa altura, além dos rendimentos do seu trabalho, prestações sociais ao abrigo do livro II do Código da Segurança Social alemão (Sozialgesetzbuch II). Estas prestações deixaram de ser pagas em Maio de 2008, a requerimento da própria H. Genc.

11      Por decisão de 4 de Fevereiro de 2008, o Landesamt für Bürger‑ und Ordnungsangelegenheiten Berlin recusou prorrogar a autorização de residência e ameaçou H. Genc de expulsão. Segundo esta autoridade administrativa, H. Genc não podia invocar a Decisão n.° 1/80, uma vez que não preenchia os requisitos do artigo 6.° da mesma. Com efeito, atendendo ao número particularmente reduzido de horas de trabalho efectuadas para a empresa L. Glas‑ und Gebäudereinigungsservice GmbH, a actividade profissional de H. Genc não podia ser considerada um emprego regular. Segundo a mesma autoridade, H. Genc também não tinha adquirido direitos ao abrigo do artigo 7.°, primeiro parágrafo, primeiro travessão, da Decisão n.° 1/80, dado que o seu marido, enquanto trabalhador independente, já não pertencia ao mercado de emprego como assalariado, desde o mês de Maio de 2003. Finalmente, aquela autoridade considerava não haver um interesse digno de protecção que justificasse que a recorrente no processo principal permanecesse no território da República Federal da Alemanha.

12      Em 22 de Fevereiro de 2008, H. Genc interpôs recurso da referida decisão para o Verwaltungsgericht Berlin.° Por outro lado, apresentou um pedido de protecção jurídica provisória, a qual lhe foi concedida.

13      Seguidamnte, H. Genc apresentou um contrato de trabalho por tempo indeterminado, datado de 30 de Abril de 2008, válido desde 2 de Maio de 2008, na qualidade de auxiliar de escritório, com um horário semanal de 25 horas e um salário líquido mensal de 422 euros.

14      Por considerar que, nestas condições, a solução do litígio que lhe incumbe decidir impõe a interpretação do direito da União, o Verwaltungsgericht Berlin decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Um cidadão turco que está integrado no mercado regular de trabalho de um Estado‑Membro e que, de modo continuado, realiza por conta e sob a direcção de outrem prestações com certo valor económico, em contrapartida das quais recebe uma remuneração, é trabalhador na acepção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80 do Conselho de Associação CEE‑Turquia […], mesmo quando a duração da actividade só equivale a aproximadamente 14% do horário laboral de um trabalhador a tempo inteiro, fixado [na convenção] colectiv[a] (neste caso 5,5 horas, em vez de 39 horas de trabalho por semana), [auferindo] rendimentos laborais provenientes apenas desta actividade, que cobrem tão‑só cerca de 25% do montante necessário, nos termos do direito nacional do Estado‑Membro, para garantir a subsistência (neste caso, cerca de 175 euros, em vez de cerca de 715 euros)?

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

2)      Um cidadão turco pode invocar [o direito de] livre circulação, ao abrigo do acordo de associação, como trabalhador, na acepção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80, mesmo quando o seu objectivo ao entrar no país (neste caso, o reagrupamento conjugal) deixou de existir, não podem ser alegados outros interesses dignos de protecção a favor da sua permanência no Estado contratante e a possibilidade de continuar a exercer uma actividade profissional [menor] no Estado contratante não pode ser considerada uma justificação para a sua permanência porque não se verifica, em especial, um esforço sério no sentido de se integrar de forma estável, do ponto de vista económico, sem recorrer a prestações sociais para garantir a subsistência?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

15      Através desta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se um nacional turco, que pertence ao mercado regular de emprego de um Estado‑Membro e que efectua, por um período prolongado, a favor de outra pessoa e sob a direcção desta, prestações em contrapartida das quais recebe uma remuneração, é um trabalhador, na acepção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80, não obstante o tempo de trabalho que consagra a essa actividade profissional representar cerca de 14% do tempo de trabalho previsto na convenção colectiva para um trabalhador que trabalha a tempo inteiro e o salário que aufere corresponder a 25% do rendimento mínimo necessário, em aplicação do direito nacional do Estado‑Membro em causa, para que uma pessoa possa suprir às suas necessidades.

16      Em conformidade com o artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80, os nacionais turcos que pretendam invocar, no Estado‑Membro de acolhimento, direitos previstos nesta disposição, devem satisfazer três requisitos: terem a qualidade de trabalhador, pertencerem ao mercado regular de emprego e terem um emprego regular.

17      Uma jurisprudência constante inferiu do teor dos artigos 12.° do acordo de associação CEE‑Turquia e 36.° do Protocolo adicional, assinado em 23 de Novembro de 1970, em Bruxelas, anexado ao referido acordo e concluído, aprovado e confirmado, em nome da Comunidade, pelo Regulamento (CEE) n.° 2760/72 do Conselho, de 19 de Dezembro de 1972 (JO L 293, p. 1; EE 11 F1 p. 213), bem como do objectivo da Decisão n.° 1/80 que os princípios admitidos no quadro dos artigos 48.° e 49.° do Tratado CE (que passaram, após alteração, a artigos 39.° CE e 40.° CE) e 50.° do Tratado CE (actual artigo 41.° CE) devem ser transpostos, na medida do possível, para os nacionais turcos que beneficiam dos direitos reconhecidos pela referida decisão (v., neste sentido, designadamente, acórdãos de 6 de Junho de 1995, Bozkurt, C‑434/93, Colect., p. I‑1475, n.os 14, 19 e 20, e de 30 de Setembro de 2004, Ayaz, C‑275/02, Colect., p. I‑8765, n.° 44).

18      A fim de verificar se o primeiro requisito estabelecido pelo artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80 está preenchido, importa, consequentemente, ter presente a interpretação do conceito de trabalhador no direito da União.

19      Como o Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado, o conceito de «trabalhador», na acepção do artigo 39.° CE, tem um significado autónomo no âmbito do direito da União, não podendo ser interpretado de forma restritiva. Deve ser considerada «trabalhador» qualquer pessoa que exerça actividades reais e efectivas, com exclusão de actividades de tal forma reduzidas que sejam puramente marginais e acessórias. A característica da relação de trabalho é, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o facto de uma pessoa efectuar, durante certo tempo, a favor de outra pessoa e sob a direcção desta, prestações em contrapartida das quais recebe uma remuneração (v., designadamente, acórdãos de 3 de Julho de 1986, Lawrie‑Blum, 66/85, Colect., p. 2121, n.os 16 e 17, bem como de 11 de Setembro de 2008, Petersen, C‑228/07, Colect., p. I‑6989, n.° 45).

20      O nível limitado da referida remuneração, a origem dos recursos destinados a esta última ou o facto de a pessoa em causa tentar completar a sua remuneração através de outros meios de subsistência, como o recurso a um auxílio financeiro pago por intermédio dos fundos públicos do Estado de residência, não podem ter consequências no que respeita à qualidade de «trabalhador» na acepção do direito da União (v., neste sentido, acórdãos de 3 de Junho de 1986, Kempf, 139/85, Colect., p. 1741, n.° 14; de 31 de Maio de 1989, Bettray, 344/87, Colect., p. 1621, n.° 15; e de 30 de Março de 2006, Mattern e Cikotic, C‑10/05, Colect., p. I‑3145, n.° 22).

21      Ao dar como provado que H. Genc efectua prestações a favor e sob a direcção de um empregador em contrapartida de uma remuneração, o órgão jurisdicional de reenvio reconheceu a existência dos elementos constitutivos de qualquer relação de trabalho assalariada, isto é, a relação de subordinação e o pagamento de uma remuneração em contrapartida das prestações fornecidas (v., neste sentido, acórdão de 7 de Setembro de 2004, Trojani, C‑456/02, Colect., p. I‑7573, n.° 22).

22      O órgão jurisdicional nacional interroga‑se, porém, se, tendo em conta o número particularmente reduzido de horas de trabalho efectuadas pela interessada e a remuneração por ela auferida, que só parcialmente lhe assegura os meios de subsistência necessários, uma actividade profissional menor como a exercida por H. Genc permite conferir‑lhe o estatuto de trabalhador, na acepção da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

23      A este respeito, importa recordar que, no acórdão de 14 de Dezembro de 1995, Megner e Scheffel (C‑444/93, Colect., p. I‑4741), o Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar‑se, designadamente, sobre a questão de saber se duas nacionais da União, que trabalhavam na Alemanha como empregadas da limpeza, com um horário de trabalho de dez horas semanais e uma remuneração que não excedia, mensalmente, um sétimo da base mensal de referência, pertenciam à população activa, na acepção da Directiva 79/7/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social (JO 1979, L 6, p. 24; EE 05 F2 p. 174).

24      No referido acórdão, o Tribunal de Justiça rejeitou o argumento do Governo alemão segundo o qual as pessoas que têm um emprego menor não fazem parte da população activa, porque o fraco rendimento auferido nesse emprego não lhes permite suprir às suas necessidades (acórdão Megner e Scheffel, já referido, n.os 17 e 18).

25      O Tribunal declarou que o facto de o rendimento do trabalhador não cobrir todas as suas necessidades não lhe retira a qualidade de pessoa activa e que uma actividade assalariada cujos rendimentos são inferiores ao mínimo de subsistência ou cuja duração normal de trabalho não excede sequer as dez horas semanais não impede que a pessoa que a exerce seja considerada trabalhador, na acepção do artigo 39.° CE (v., neste sentido, acórdão de 18 de Julho de 2007, Geven, C‑213/05, Colect., p. I‑6347, n.° 27, e acórdão Megner e Scheffel, já referido, n.° 18).

26      Embora seja verdade que a circunstância de uma pessoa apenas efectuar um número reduzido de horas no quadro de uma relação de trabalho pode ser um elemento indicador de que as actividades exercidas são meramente marginais e acessórias (acórdão de 26 de Fevereiro de 1992, Raulin, C‑357/89, Colect., p. I‑1027, n.° 14), não é menos certo que, independentemente do nível limitado da remuneração auferida no exercício de uma actividade profissional e do número de horas dedicado a essa actividade, não se pode excluir que esta, numa apreciação global da relação de trabalho em causa, possa ser considerada pelas autoridades nacionais como uma actividade real e efectiva, permitindo, assim, atribuir ao seu titular a qualidade de «trabalhador», na acepção do artigo 39.° CE.

27      A apreciação global da relação de trabalho de H. Genc implica que sejam tomados em conta elementos relativos não apenas à duração do trabalho e ao nível da remuneração mas também ao direito a 28 dias de férias pagas, à manutenção do salário em caso de doença, à sujeição do contrato de trabalho à respectiva convenção colectiva, bem como ao facto de a sua relação contratual com a mesma empresa se ter prolongado durante quase quatro anos.

28      Estes últimos elementos são susceptíveis de constituir um indício de que a actividade profissional em questão tem um carácter real e efectivo.

29      O órgão jurisdicional nacional salienta, porém, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça no domínio da interpretação do conceito de trabalhador não contém um limite, determinado em função do tempo de trabalho e do nível da remuneração, abaixo do qual uma actividade deve ser considerada marginal e acessória, e que tal circunstância contribui para a falta de precisão do conceito de actividade marginal e acessória.

30      A este respeito, cabe recordar que o processo de reenvio prejudicial previsto no artigo 234.° CE estabelece uma cooperação estreita entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, assente numa repartição de funções entre eles, e constitui um instrumento graças ao qual o Tribunal de Justiça fornece aos órgãos jurisdicionais nacionais os elementos de interpretação do direito da União necessários para a solução dos litígios que lhes são submetidos (acórdãos de 7 de Novembro de 2002, Lohmann e Medi Bayreuth, C‑260/00 a C‑263/00, Colect., p. I‑10045, n.° 27, e de 21 de Junho de 2007, Omni Metal Service, C‑259/05, Colect., p. I‑4945, n.° 16).

31      Uma das características essenciais do sistema de cooperação judiciária estabelecido pelo artigo 234.° CE implica que o Tribunal de Justiça responda em termos abstractos e gerais a uma questão de interpretação do direito da União que lhe é submetida, competindo ao órgão jurisdicional de reenvio decidir da causa que é chamado a julgar, levando em conta a resposta do Tribunal de Justiça (acórdão de 15 de Novembro de 2007, International Mail Spain, C‑162/06, Colect., p. I‑9911, n.° 24).

32      A análise das consequências que o conjunto dos elementos que caracterizam uma relação de trabalho, designadamente os enunciados no n.° 27 do presente acórdão, pode ter no reconhecimento do carácter real e efectivo da actividade assalariada exercida por H. Genc e, por conseguinte, na sua qualidade de trabalhador é da competência do órgão jurisdicional nacional. Com efeito, só este tem um conhecimento directo dos factos no processo principal, pelo que está em melhor posição para proceder às verificações necessárias.

33      Tendo em conta as considerações que precedem, há que responder à primeira questão que uma pessoa numa situação como a da recorrente no processo principal é um trabalhador, na acepção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80, desde que a actividade assalariada em causa tenha carácter real e efectivo. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio proceder às verificações de facto necessárias para apreciar se é esse o caso no processo que lhe incumbe decidir.

 Quanto à segunda questão

34      Através desta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se um trabalhador turco, na acepção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80, pode invocar o direito de livre circulação que lhe é conferido pelo acordo de associação CEE‑Turquia, mesmo quando o objectivo com que entrou no Estado‑Membro de acolhimento deixou de existir, quando nenhum outro interesse digno de protecção justifica que permaneça no território desse Estado e quando a possibilidade de nele prosseguir uma actividade profissional menor não pode ser considerada um motivo suficiente que justifique que esse nacional permaneça no território deste Estado.

35      A título preliminar, importa observar que, tendo formulado a segunda questão referindo‑se a «um trabalhador turco, na acepção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80», o órgão jurisdicional de reenvio tomou como premissa dessa questão que J. Genc preenche os requisitos estabelecidos por esta disposição, ou seja, que, além da qualidade de trabalhadora, pertence ao mercado regular de emprego e dispõe de um emprego regular.

36      Segundo jurisprudência bem assente, resulta tanto do primado do direito da União relativamente ao direito interno dos Estados‑Membros como do efeito directo de uma disposição como o artigo 6.° da Decisão n.° 1/80 que um Estado‑Membro não pode modificar unilateralmente o alcance do sistema de integração progressiva dos nacionais turcos no mercado de emprego do Estado‑Membro de acolhimento (v., designadamente, acórdãos de 26 de Novembro de 1998, Birden, C‑1/97, Colect., p. I‑7747, n.° 37, e de 19 de Novembro de 2002, Kurz, C‑188/00, Colect., p. I‑10691, n.° 66).

37      Os Estados‑Membros não podem, assim, aplicar uma medida relativa à residência de um nacional turco no respectivo território, que seja susceptível de entravar o exercício dos direitos expressamente conferidos a esse nacional pelo direito da União.

38      Desde que o nacional turco preencha os requisitos estabelecidos por uma disposição da Decisão n.° 1/80 e, desse modo, já esteja regularmente integrado num Estado‑Membro, este deixa de dispor da faculdade de restringir a aplicação desses direitos, sob pena de privar a referida decisão do seu efeito útil (v., designadamente, acórdãos, já referidos, Birden, n.° 37, e Kurz, n.° 68).

39      Mais concretamente, o exercício dos direitos que a Decisão n.° 1/80 confere aos nacionais turcos não depende de nenhuma condição relativa ao motivo pelo qual lhes foi inicialmente concedido um direito de entrada e de residência no Estado‑Membro de acolhimento (v., neste sentido, acórdãos de 16 de Dezembro de 1992, Kus, C‑237/91, Colect., p. I‑6781, n.os 21 e 22, e de 24 de Janeiro de 2008, Payir e o., C‑294/06, Colect., p. I‑203, n.° 40).

40      Nestas condições, o artigo 6.° da Decisão n.° 1/80 não subordina o reconhecimento do direito de acesso ao mercado de emprego do Estado‑Membro de acolhimento e, correlativamente, o direito de residência de um trabalhador turco nesse Estado às circunstâncias em que ele obteve o direito de entrada e de residência.

41      O órgão jurisdicional nacional indica, além disso, que nenhum interesse digno de protecção, nem tão‑pouco a possibilidade de prosseguir uma actividade económica menor justificam a prorrogação da residência de H. Genc na Alemanha.

42      Basta recordar, a este respeito, que os limites aos direitos reconhecidos pela Decisão n.° 1/80 aos nacionais turcos que preenchem os requisitos nela enunciados apenas podem ser de duas ordens: ou a presença do migrante turco no território do Estado‑Membro de acolhimento constitui, em razão do seu comportamento pessoal, um perigo real e grave para a ordem pública, a segurança ou a saúde públicas, na acepção do artigo 14.°, n.° 1, da mesma decisão, ou a circunstância de o interessado ter abandonado o território desse Estado durante um período significativo e sem motivos legítimos (v., neste sentido, acórdão de 25 de Setembro de 2008, Er, C‑453/07, Colect., p. I‑7299, n.° 30).

43      O carácter exaustivo dos limites enunciados no número anterior seria posto em causa se as autoridades nacionais pudessem sujeitar o direito de residência do interessado a requisitos adicionais relativos à existência de interesses susceptíveis de justificar a residência ou à natureza do emprego (v., neste sentido, acórdão de 18 de Dezembro de 2008, Altun, C‑337/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 63).

44      Tendo em conta o que precede, há que responder à segunda questão que um trabalhador turco, na acepção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80, pode invocar o direito de livre circulação que lhe é conferido pelo acordo de associação CEE‑Turquia, mesmo quando o objectivo com que entrou no Estado‑Membro de acolhimento deixou de existir. Desde que esse trabalhador preencha os requisitos enunciados no referido artigo 6.°, n.° 1, o seu direito de residência no Estado‑Membro de acolhimento não pode ser submetido a requisitos adicionais relativos à existência de interesses susceptíveis de justificar a residência ou à natureza do emprego.

 Quanto às despesas

45      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

1)      Uma pessoa numa situação como a da recorrente no processo principal é um trabalhador, na acepção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80, de 19 de Setembro de 1980, relativa ao desenvolvimento da associação, adoptada pelo Conselho de Associação instituído pelo Acordo que cria uma Associação entre a Comunidade Económica Europeia e a Turquia, desde que a actividade assalariada em causa tenha carácter real e efectivo. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio proceder às verificações de facto necessárias para apreciar se é esse o caso no processo que lhe incumbe decidir.

2)      Um trabalhador turco, na acepção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão n.° 1/80, pode invocar o direito de livre circulação que lhe é conferido pelo Acordo que cria uma Associação entre a Comunidade Económica Europeia e a Turquia, mesmo quando o objectivo com que entrou no Estado‑Membro de acolhimento deixou de existir. Desde que esse trabalhador preencha os requisitos enunciados no referido artigo 6.°, n.° 1, o seu direito de residência no Estado‑Membro de acolhimento não pode ser submetido a requisitos adicionais relativos à existência de interesses susceptíveis de justificar a residência ou à natureza do emprego.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.