Language of document : ECLI:EU:C:2019:936

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

7 de novembro de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Transporte ferroviário — Direitos e obrigações dos passageiros — Regulamento (CE) n.o 1371/2007 — Artigo 3.o, ponto 8 — Contrato de transporte — Conceito — Passageiro sem bilhete no momento da entrada no comboio — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Diretiva 93/13/CEE — Artigo 1.o, n.o 2, e artigo 6.o, n.o 1 — Condições gerais de transporte de uma empresa ferroviária — Disposições legislativas ou regulamentares imperativas — Cláusula penal — Poderes do juiz nacional»

Nos processos apensos C‑349/18 a C‑351/18,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo vredegerecht te Antwerpen (Julgado de Paz de Antuérpia, Bélgica), por Decisões de 25 de maio de 2018, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 30 de maio de 2018, nos processos

Nationale Maatschappij der Belgische Spoorwegen (NMBS)

contra

Mbutuku Kanyeba (C‑349/18),

Larissa Nijs (C‑350/18),

JeanLouis Anita Dedroog (C‑351/18),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, I. Jarukaitis (relator), E. Juhász, M. Ilešič e C. Lycourgos, juízes,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo belga, por C. Van Lul, C. Pochet e J.‑C. Halleux, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por N. Ruiz García e P. Vanden Heede, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 11 de junho de 2019,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 9.o, n.o 4, do Regulamento (CE) n.o 1371/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007, relativo aos direitos e obrigações dos passageiros dos serviços ferroviários (JO 2007, L 315, p. 14), bem como do artigo 2.o, alínea a), e dos artigos 3.o e 6.o da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29).

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem o Nationale Maatschappij der Belgische Spoorwegen (NMBS) [Companhia Nacional dos Caminhos de Ferro Belgas (SNCB)] a Mbutuku Kanyeba (processo C‑349/18), a Larissa Nijs (processo C‑350/18) e a Jean‑Louis Anita Dedroog (processo C‑351/18), a respeito das sobretaxas tarifárias exigidas a estes últimos por terem viajado de comboio sem título de transporte.

 Direito da União

 Diretiva 93/13

3        O décimo terceiro considerando da Diretiva 93/13 enuncia:

«Considerando que se parte do princípio de que as disposições legislativas ou regulamentares dos Estados‑Membros que estabelecem, direta ou indiretamente, as cláusulas contratuais com os consumidores não contêm cláusulas abusivas; que, consequentemente, se revela desnecessário submeter ao disposto na presente diretiva as cláusulas que refletem as disposições legislativas ou regulamentares imperativas bem como os princípios ou as disposições de convenções internacionais de que são parte[s] os Estados‑Membros da [União]; que, neste contexto, a expressão “disposições legislativas ou regulamentares imperativas” que consta do n.o 2 do artigo 1.o abrange igualmente as normas aplicáveis por lei às partes contratantes quando não tiverem sido acordadas quaisquer outras disposições;»

4        O artigo 1.o desta diretiva dispõe:

«1.      A presente diretiva tem por objetivo a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas às cláusulas abusivas em contratos celebrados entre profissionais e consumidores.

2.      As disposições da presente diretiva não se aplicam às cláusulas contratuais decorrentes de disposições legislativas ou regulamentares imperativas, bem como das disposições ou dos princípios previstos nas convenções internacionais de que os Estados‑Membros ou a [União] sejam parte, nomeadamente no domínio dos transportes.»

5        O artigo 2.o, alínea a), da referida diretiva precisa:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

a) “Cláusulas abusivas”, as cláusulas de um contrato tal como são definidas no artigo 3.o»

6        O artigo 3.o da mesma diretiva prevê:

«1.      Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

2.      Considera‑se que uma cláusula não foi objeto de negociação individual sempre que a mesma tenha sido redigida previamente e, consequentemente, o consumidor não tenha podido influir no seu conteúdo, em especial no âmbito de um contrato de adesão.

[…]

3.      O anexo contém uma lista indicativa e não exaustiva de cláusulas que podem ser consideradas abusivas.»

7        Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.»

8        O artigo 7.o, n.o 1, desta diretiva tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.»

 Regulamento n.o 1371/2007

9        Os considerandos 1 a 3 do Regulamento n.o 1371/2007 enunciam:

«(1)      No âmbito da política comum de transportes, é importante garantir os direitos dos utilizadores dos serviços ferroviários de passageiros e melhorar a qualidade e a eficácia dos serviços ferroviários de passageiros, de modo a contribuir para o aumento da quota do transporte ferroviário em relação aos outros modos de transporte.

(2)      A comunicação da Comissão intitulada “Estratégia da Política dos Consumidores 2002‑2006” [JO 2002, C 137, p. 2] estabelece como objetivo alcançar um elevado nível de proteção dos consumidores no domínio dos transportes em conformidade com o n.o 2 do artigo 153.o do Tratado.

(3)      Dado que o passageiro dos serviços ferroviários é a parte mais fraca no contrato de transporte, os seus direitos deverão ser salvaguardados.»

10      O artigo 1.o, alínea a), deste regulamento prevê:

«O presente regulamento estabelece regras relativas às seguintes matérias:

a)      As informações a facultar pelas empresas ferroviárias, a celebração de contratos de transporte, a emissão de bilhetes e a aplicação de um sistema informatizado de informação e de reserva para os transportes ferroviários;»

11      O artigo 3.o do referido regulamento inclui as seguintes definições:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

2)      “Empresa transportadora”, a empresa ferroviária contratual com a qual o passageiro celebrou o contrato de transporte, ou uma série de empresas ferroviárias sucessivas que sejam responsáveis com base nesse contrato;

[…]

8)      “Contrato de transporte”, um contrato de transporte a título oneroso ou gratuito celebrado entre uma empresa ferroviária ou um vendedor de bilhetes e o passageiro para prestação de um ou mais serviços de transporte;

[…]

10)      “Bilhete único”, um ou mais bilhetes que representem um contrato de transporte relativo a uma série de serviços ferroviários explorados por uma ou várias empresas ferroviárias;

[…]

16)      “Condições gerais de transporte”, as condições da empresa transportadora sob a forma de condições gerais ou tarifas legalmente em vigor em cada Estado‑Membro e que, com a celebração do contrato de transporte, se tenham tornado parte integrante do mesmo;

[…]»

12      O capítulo II do Regulamento n.o 1371/2007, com a epígrafe «Contrato de transporte, informação e bilhetes», compreende os artigos 4.o a 10.o O artigo 4.o do referido regulamento, com a epígrafe «Contrato de transporte», prevê:

«Sob reserva do presente capítulo, a celebração e execução de um contrato de transporte e a prestação de informações e fornecimento de bilhetes regem‑se pelos títulos II e III do anexo I.»

13      O artigo 9.o do referido regulamento, relativo à disponibilidade de bilhetes, bilhetes únicos e reservas, dispõe, nos seus n.os 2 a 4:

«2.      Sem prejuízo do n.o 4, as empresas ferroviárias devem distribuir bilhetes aos passageiros pelo menos através de um dos seguintes postos de venda:

a)      Bilheteiras ou máquinas de venda automática;

b)      Telefone, Internet ou qualquer outra tecnologia de informação generalizadamente disponível;

c)      A bordo do comboio.

3.      Sem prejuízo dos n.os 4 e 5, as empresas ferroviárias devem distribuir bilhetes para serviços prestados no quadro de contratos de serviço público pelo menos através de um dos seguintes postos de venda:

a)      Bilheteiras ou máquinas de venda automática;

b)      A bordo do comboio.

4.      As empresas ferroviárias devem dar a possibilidade de se obterem bilhetes para o serviço respetivo a bordo do comboio, salvo se isso for restringido ou recusado por questões de segurança ou de política antifraude, por reserva obrigatória do comboio ou por motivos comerciais fundamentados.»

14      O anexo I do Regulamento n.o 1371/2007, com a epígrafe «Extrato das regras uniformes relativas ao Contrato de Transporte Internacional Ferroviário de Passageiros e Bagagens (CIV)», é constituído pelos títulos II a VII do apêndice A da Convenção relativa aos Transportes Internacionais Ferroviários (COTIF), de 9 de maio de 1980, alterada pelo Protocolo de 3 de junho de 1999 que altera a COTIF (a seguir «COTIF»). Neste anexo I figura o título II do referido apêndice, com a epígrafe «Celebração e execução do contrato de transporte», que compreende os artigos 6.o a 11.o do mesmo.

15      O artigo 6.o do apêndice A da COTIF, com a epígrafe «Contrato de transporte», prevê:

«1.      Mediante um contrato de transporte, o transportador compromete‑se a transportar o passageiro e, se for caso disso, bagagens e veículos ao local de destino, bem como entregar as bagagens e os veículos no local de destino.

2.      O contrato de transporte deve constar num ou mais títulos de transporte entregues ao passageiro. Todavia, sem prejuízo do artigo 9.o, a ausência, a irregularidade ou a perda do título de transporte não afeta nem a existência nem a validade do contrato que permanece sujeito às presentes regras uniformes.

3.      O título de transporte faz fé, até prova em contrário, da celebração e do conteúdo do contrato de transporte.»

16      O artigo 7.o, que tem por objeto o «Título de transporte», deste apêndice A, dispõe, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      As condições gerais de transporte determinam a forma e o conteúdo dos títulos de transporte assim como a língua e os carateres em que os mesmos devem ser impressos e preenchidos.

2.      Devem constar no título de transporte, pelo menos:

[…]

c)      Qualquer outra indicação necessária que comprove a celebração e o conteúdo do contrato de transporte e que permita ao passageiro fazer valer os seus direitos decorrentes do contrato.»

17      O artigo 8.o, n.o 1, do referido apêndice A precisa que, «[s]alvo convenção em contrário entre o passageiro e o transportador, o preço de transporte é pago antecipadamente».

18      O artigo 9.o do mesmo apêndice A tem a epígrafe «Direito ao transporte. Não admissão ao transporte». Nos termos do seu n.o 1:

«Desde o início da viagem, o passageiro deve ser portador de um título de transporte válido e apresentá‑lo no momento de controlo dos títulos de transporte. As condições gerais de transporte podem prever:

a)      O pagamento, pelo passageiro que não apresentar um título de transporte válido, de uma sobretaxa para além do preço do transporte;

b)      A exclusão do passageiro que recusar o pagamento imediato do preço do transporte ou da sobretaxa;

c)      A possibilidade de reembolso da sobretaxa e respetivas condições.»

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

19      Em 2015, M. Kanyeba foi autuado quatro vezes por ter efetuado o mesmo número de viagens de comboio sem possuir título de transporte (processo C‑349/18), em violação dos artigos 156.o a 160.o das condições de transporte da SNCB então aplicáveis. Em 2013 e 2015, L. Nijs foi autuada cinco vezes em circunstâncias similares (processo C‑350/18). Da mesma forma, em 2014 e 2015, J. L. Dedroog foi autuado onze vezes por factos similares (processo C‑351/18).

20      A SNCB ofereceu a cada uma destas pessoas a possibilidade de regularizar a sua situação mediante o pagamento imediato do preço do bilhete, acrescido da denominada «tarifa de bordo», ou, num prazo de catorze dias a contar da constatação da infração, de um montante fixo de 75 euros ou, no caso das infrações anteriores a 2015, do preço do transporte acrescido de 60 euros. Após o termo desse prazo de 14 dias, os demandados nos processos principais tinham ainda a possibilidade de pagar um montante fixo de 225 euros ou, no caso das infrações anteriores a 2015, o preço do transporte acrescido de 200 euros.

21      Uma vez que nenhum dos demandados nos processos principais fez uso dessas possibilidades, a SNCB intentou uma ação contra cada um deles perante o órgão jurisdicional de reenvio, o vredegerecht te Antwerpen (Julgado de Paz de Antuérpia, Bélgica), pedindo que fossem condenados a pagar‑lhe, nos processos C‑349/18 a C‑351/18, os montantes de 880,20 euros, de 1 103,90 euros e de 2 394 euros respetivamente, acrescidos, em cada caso, das despesas do processo. No âmbito desses pedidos, a SNCB alega que as relações jurídicas entre esta e cada um dos demandados nos processos principais não são de natureza contratual, mas regulamentar, na medida em que estes não adquiriram um título de transporte. Estes últimos não compareceram perante o órgão jurisdicional de reenvio.

22      Este órgão jurisdicional considera que, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, está obrigado a analisar oficiosamente a aplicação das regras relativas às cláusulas abusivas se o serviço for prestado a um consumidor. Observa que, nos processos de que é chamado a conhecer, estão em causa, por um lado, «consumidores», na aceção da teoria das cláusulas abusivas, conceito que, na sua opinião, se refere a «qualquer pessoa singular que atue com fins que não se enquadrem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou liberal» e, por outro, uma «empresa», na aceção da mesma teoria, remetendo a este respeito para um acórdão da Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação, Bélgica). Afirma, por conseguinte, que está obrigado a analisar a aplicação da referida teoria e, a este respeito, questiona a natureza da relação jurídica entre a SNCB e os demandados nos processos principais e, consequentemente, se foi ou não celebrado um contrato de transporte.

23      A este respeito, observa que a base jurídica das condições gerais de transporte da SNCB, que determinam os direitos e obrigações respetivos desta e dos passageiros, não é clara. De acordo com uma primeira tese, trata‑se de cláusulas puramente contratuais. De acordo com uma segunda tese, trata‑se de regulamentos, na aceção do direito administrativo. Existe também uma controvérsia, no direito belga, quanto à natureza da relação jurídica entre a SNCB e o passageiro. De acordo com uma primeira tese, essa relação é sempre de natureza contratual, mesmo quando o passageiro não disponha de um título de transporte válido. O simples facto de se deslocar na zona onde é necessário ser portador de um título de transporte cria um contrato de transporte, que é então um puro contrato de adesão. De acordo com a segunda tese, a relação é contratual quando o passageiro tiver adquirido um título de transporte, mas regulamentar na falta desse título. Alega que, com efeito, não existe um acordo de vontades, uma vez que o passageiro não tem a intenção de pagar pelo transporte e a sociedade de transporte não tem a intenção de efetuar o transporte sem contrapartida. O órgão jurisdicional de reenvio indica que esta discussão parece já não ser atual no direito belga, dado o Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional, Bélgica) e o Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação) terem declarado que a teoria das cláusulas abusivas se aplica igualmente a uma relação jurídica regulamentar.

24      O órgão jurisdicional de reenvio salienta, no entanto, que a teoria das cláusulas abusivas pressupõe a existência de um contrato e considera que o conceito de «contrato» é um conceito de direito da União. A este respeito, remete para o artigo 9.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1371/2007 e interroga‑se sobre o momento da celebração do contrato de transporte, e mais precisamente sobre a questão de saber se esta tem lugar no momento da entrada na zona em que se deve, em princípio, estar na posse de um título de transporte ou no momento da aquisição do título de transporte.

25      Além disso, considera que a questão da celebração do contrato de transporte deve ser conjugada com o artigo 2.o, alínea a), e o artigo 3.o da Diretiva 93/13. Nos processos de que é chamado a conhecer, as condições gerais de transporte da SNCB, quer sejam de natureza contratual ou regulamentar, devem ser consideradas condições que não foram objeto de negociação individual na aceção desta última disposição.

26      Atendendo a estas considerações, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se é sempre estabelecida uma relação jurídica contratual entre uma sociedade de transporte e um passageiro, mesmo quando esse passageiro utiliza os serviços da referida transportadora sem adquirir um título de transporte. Se tal não for o caso, pergunta‑se se a teoria das cláusulas abusivas é aplicável ao passageiro que utiliza os transportes públicos sem ter adquirido um título de transporte.

27      No caso de o Tribunal de Justiça considerar que as condições gerais de transporte da SNCB devem ser analisadas à luz da teoria das cláusulas abusivas, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, no direito belga, uma cláusula abusiva é sancionada com a nulidade e que, segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, o direito da União se opõe, em substância, a que o juiz nacional, que declara a nulidade de uma cláusula abusiva num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, integre esse contrato alterando o conteúdo da referida cláusula. No entanto, a doutrina belga criticou a proibição de efeito supletivo do direito comum por não ser suficientemente matizada. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta‑se, por conseguinte, se podem existir circunstâncias em que o profissional disponha de um interesse em que uma cláusula seja mantida, mas em que o consumidor tenha interesse em que o juiz atenue o seu alcance e, nesse caso, se essas circunstâncias podem ser definidas de forma abstrata.

28      Foi nestas condições que o vredegerecht te Antwerpen (Julgado de Paz de Antuérpia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, redigidas de forma idêntica em todos processos apensos:

«1)      Deve o artigo 9.o, n.o 4, do [Regulamento n.o 1371/2007], em conjugação com o artigo 2.o, alínea a), e o artigo 3.o da [Diretiva 93/13], ser interpretado no sentido de que existe uma relação contratual entre a transportadora e o passageiro mesmo quando este usufrui dos serviços prestados pela transportadora sem adquirir o respetivo título de transporte?

2)      Em caso de resposta negativa à questão anterior, a proteção contra cláusulas abusivas estende‑se aos passageiros que utilizam os transportes públicos sem terem adquirido o respetivo título de transporte e que, por esse motivo, devem pagar, além do preço do transporte, uma sobretaxa nos termos das condições gerais da transportadora, consideradas vinculativas por força da sua natureza regulamentar ou da sua publicação no jornal oficial do Estado?

3)      O artigo 6.o da Diretiva 93/13, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, que dispõe que “[o]s Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas”, opõe‑se, em qualquer caso, a que o tribunal atenue a cláusula abusiva ou, em alternativa, aplique o direito geral?

4)      Em caso de resposta negativa à questão anterior, quais são as circunstâncias em que o tribunal nacional pode proceder à atenuação da cláusula considerada abusiva ou à sua substituição pelo direito geral?

5)      Se estas questões não puderem ser respondidas em abstrato, coloca‑se a questão de saber se — no caso de uma companhia nacional de caminhos de ferro aplicar uma sanção de natureza civil ao passageiro apanhado a viajar sem ter adquirido o respetivo título de transporte, designadamente, cobrando uma sobretaxa para além do preço de transporte, e caso o tribunal considere que a sobretaxa aplicada é abusiva na aceção do artigo 2.o, alínea a), em conjugação com o artigo 3.o da Diretiva 93/13 — o artigo 6.o da Diretiva 93/13 se opõe a que o tribunal declare a nulidade da cláusula e aplique o direito geral da responsabilidade civil para efeitos da indemnização dos prejuízos sofridos pela companhia nacional de caminhos de ferro?»

 Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

29      Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 11 de julho de 2018, os processos C‑349/18 a C‑351/18 foram apensados para efeitos da fase escrita e do acórdão.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

30      A título preliminar, há que salientar, por um lado, que, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende obter uma interpretação do artigo 9.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1371/2007 à luz da Diretiva 93/13. Contudo, o referido regulamento não contém nenhuma remissão para a Diretiva 93/13. Além disso, resulta da comparação entre os respetivos artigos 1.os que o referido regulamento e a referida diretiva têm objetos diferentes. Por conseguinte, as disposições da Diretiva 93/13 não podem ser pertinentes para a interpretação do Regulamento n.o 1371/2007 (v., por analogia, Acórdãos de 9 de setembro de 2004, Meiland Azewijn, C‑292/02, EU:C:2004:499, n.o 40; de 15 de dezembro de 2011, Møller, C‑585/10, EU:C:2011:847, n.os 37 e 38; e de 11 de setembro de 2014, Comissão/Alemanha, C‑525/12, EU:C:2014:2202, n.o 40).

31      Por outro lado, se, com esta primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio se questiona sobre a interpretação do artigo 9.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1371/2007, há que observar que esta disposição é relativa à possibilidade que, em princípio, as empresas ferroviárias devem proporcionar de adquirir bilhetes para o serviço em causa a bordo do comboio. No entanto, resulta das decisões de reenvio que não é tanto esta possibilidade que está em causa nos processos principais, mas a questão de saber se se deve considerar que um passageiro que efetua uma viagem de comboio sem ter adquirido bilhete, devido a ter entrado no comboio, celebrou uma relação contratual com a empresa ferroviária, na aceção daquele regulamento. Por conseguinte, não é este artigo 9.o, n.o 4, enquanto tal, que deve ser interpretado para efeitos dos litígios nos processos principais.

32      No entanto, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe, se necessário, ao Tribunal de Justiça reformular as questões que lhe são submetidas. A circunstância de um órgão jurisdicional nacional ter, num plano formal, formulado o seu pedido prejudicial com base em certas disposições do direito da União não obsta a que o Tribunal de Justiça forneça a esse órgão jurisdicional todos os elementos de interpretação que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do direito da União que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio (Acórdão de 27 de junho de 2017, Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania, C‑74/16, EU:C:2017:496, n.o 36 e jurisprudência referida).

33      Tendo em conta estas considerações e os fundamentos dos pedidos de decisão prejudicial, há que entender que, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, ponto 8, do Regulamento n.o 1371/2007 deve ser interpretado no sentido de que uma situação em que um passageiro entra num comboio com vista a realizar um trajeto sem ter adquirido bilhete está abrangida pelo conceito de «contrato de transporte», na aceção da referida disposição.

34      Nos termos do artigo 3.o, ponto 8, do Regulamento n.o 1371/2007, o conceito de «contrato de transporte», para efeitos deste regulamento, tem por objeto «um contrato de transporte a título oneroso ou gratuito celebrado entre uma empresa ferroviária ou um vendedor de bilhetes e o passageiro para prestação de um ou mais serviços de transporte».

35      Há que recordar que, para a interpretação de uma disposição de direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdãos de 7 de junho de 2005, VEMW e o., C‑17/03, EU:C:2005:362, n.o 41 e jurisprudência referida, e de 22 de novembro de 2012, Westbahn Management, C‑136/11, EU:C:2012:740, n.o 33 e jurisprudência referida).

36      Quanto à redação do artigo 3.o, ponto 8, do Regulamento n.o 1371/2007, há que salientar, por um lado, que o termo «contrato», no seu sentido corrente, designa um acordo de vontades concordantes destinado a produzir efeitos jurídicos. Por outro lado, no âmbito do domínio regulado por este regulamento e tendo em conta a redação da referida disposição, esse efeito consiste principalmente na obrigação de a empresa ferroviária prestar ao passageiro um ou vários serviços de transporte e na obrigação de o passageiro pagar o preço, a menos que o serviço de transporte seja prestado a título gratuito.

37      Resulta assim das considerações do número anterior que, por um lado, ao permitir um livre acesso ao seu comboio e, por outro, ao entrar nesse comboio para efetuar um trajeto, tanto a empresa ferroviária como o passageiro manifestam as suas vontades concordantes de estabelecer uma relação contratual, de forma que os requisitos necessários para a existência de um contrato de transporte estão, em princípio, preenchidos. A redação do artigo 3.o, ponto 8, do Regulamento n.o 1371/2007 não permite, contudo, determinar se a posse, pelo passageiro, de um bilhete é um elemento indispensável para considerar que existe um «contrato de transporte», na aceção desta disposição.

38      Quanto ao contexto em que se integra o artigo 3.o, ponto 8, do Regulamento n.o 1371/2007, há que salientar, em primeiro lugar, que a expressão «contrato de transporte» figura em várias outras disposições deste regulamento.

39      Assim, o artigo 3.o, ponto 10, do referido regulamento define o conceito de «bilhete único» como «um ou mais bilhetes que representem um contrato de transporte relativo a uma série de serviços ferroviários explorados por uma ou várias empresas ferroviárias».

40      O artigo 4.o do mesmo regulamento, que se refere especificamente ao «contrato de transporte», prevê, por sua vez, que, «[s]ob reserva do [capítulo II do Regulamento n.o 1371/2007], a celebração e execução de um contrato de transporte e a prestação de informações e fornecimento de bilhetes [se regem] pelos títulos II e III do anexo I» do referido regulamento.

41      A este respeito, no referido anexo I do Regulamento n.o 1371/2007 consta, nomeadamente, o título II do apêndice A da COTIF, relativo à celebração e execução do contrato de transporte. Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, deste apêndice, «[m]ediante um contrato de transporte, o transportador compromete‑se a transportar o passageiro e, se for caso disso, bagagens e veículos ao local de destino, bem como entregar as bagagens e os veículos no local de destino», precisando o n.o 2 do referido artigo 6.o que o contrato de transporte deve constar num ou mais títulos de transporte entregues ao passageiro e que, sem prejuízo do artigo 9.o do referido apêndice, a ausência, a irregularidade ou a perda do título de transporte não afeta nem a existência nem a validade do contrato que permanece sujeito às regras uniformes estabelecidas pela COTIF. O artigo 6.o, n.o 3, do mesmo apêndice acrescenta que o título de transporte faz fé, até prova em contrário, da celebração e do conteúdo do contrato de transporte.

42      Além disso, o artigo 7.o do apêndice A da COTIF prevê, no seu n.o 1, que as condições gerais de transporte determinam, nomeadamente, a forma e o conteúdo dos títulos de transporte e, no seu n.o 2, alínea c), que deve, nomeadamente constar do título de transporte qualquer indicação necessária que comprove a celebração e o conteúdo do contrato de transporte e que permita ao passageiro fazer valer os seus direitos decorrentes do contrato.

43      A este respeito, importa sublinhar, igualmente, que resulta do artigo 9.o, n.os 2 e 3, do Regulamento n.o 1371/2007 que, sem prejuízo do n.o 4 do mesmo artigo, as empresas ferroviárias devem distribuir bilhetes aos passageiros pelo menos através de um de três — ou de dois, quando se trate de bilhetes para serviços prestados no quadro de contratos de serviço público — dos canais de distribuição que estas disposições indicam, entre os quais figura distribuição a bordo do comboio.

44      Em segundo lugar, há que salientar que resulta do artigo 8.o, n.o 1, do apêndice A da COTIF, que figura no anexo I do referido regulamento, que salvo convenção em contrário entre o passageiro e a transportadora, o preço de transporte é pago antecipadamente.

45      Além disso, é certo que o artigo 9.o daquele apêndice A, sob reserva do qual é aplicável o seu artigo 6.o, prevê, no seu n.o 1, primeiro período, que, desde o início da viagem, o passageiro deve ser portador de um título de transporte válido e apresentá‑lo no momento do controlo dos títulos de transporte. No entanto, o artigo 9.o especifica, no segundo período, respetivamente nas alíneas a) e b), que as condições gerais de transporte podem prever o pagamento, por um passageiro que não apresente um título de transporte válido, de uma sobretaxa, além do preço do transporte, e a exclusão do passageiro que recusar o pagamento imediato do preço do transporte ou da sobretaxa.

46      Ora, de acordo com o artigo 3.o, ponto 16, do Regulamento n.o 1371/2007, o conceito de «condições gerais de transporte», para efeitos deste regulamento, visa «as condições da empresa transportadora sob a forma de condições gerais ou tarifas legalmente em vigor em cada Estado‑Membro e que, com a celebração do contrato de transporte, se tenham tornado parte integrante do mesmo», sendo a «empresa transportadora» definida no artigo 3.o, ponto 2, deste regulamento como «a empresa ferroviária contratual com a qual o passageiro celebrou o contrato de transporte, ou uma série de empresas ferroviárias sucessivas que sejam responsáveis com base nesse contrato».

47      Na medida em que, nos termos do artigo 9.o do apêndice A da COTIF, que consta do anexo I do Regulamento n.o 1371/2007, se podem opor a um passageiro que não apresente um título de transporte válido ou recuse o pagamento imediato do título de transporte as condições gerais de transporte e na medida em que, nos termos do artigo 3.o, ponto 16, do referido regulamento, lido em conjugação com o seu artigo 3.o, ponto 2, estas se tornem, para efeitos do referido regulamento, parte integrante do contrato de transporte entre a empresa ferroviária e o passageiro mediante a celebração do mesmo, daqui resulta que a empresa que dê livre acesso aos seus comboios e o passageiro que entre nesse comboio para efetuar um trajeto devem ser considerados partes de um «contrato de transporte», na aceção do referido regulamento, dado que esse passageiro se encontra no comboio. Com efeito, caso contrário, com base no Regulamento n.o 1371/2007, não poderiam ser opostas ao referido passageiro aquelas condições gerais de transporte.

48      Decorre assim claramente desses elementos contextuais que o bilhete, também designado, nesse apêndice A, pelos termos «título de transporte», é apenas o instrumento que materializa o contrato de transporte na aceção do Regulamento n.o 1371/2007.

49      A redação do artigo 3.o, ponto 8, do Regulamento n.o 1371/2007 e o contexto em que esta disposição se inscreve levam, por conseguinte, a considerar que o conceito de «contrato de transporte», na aceção da referida disposição, deve ser entendido, para efeitos deste regulamento, como independente da posse de um bilhete pelo passageiro e no sentido de que engloba uma situação em que um passageiro entra num comboio de livre acesso para realizar um trajeto sem ter adquirido um bilhete.

50      Esta interpretação é confirmada pelos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 1371/2007. Por um lado, nos termos do seu artigo 1.o, alínea a), este regulamento tem designadamente por objeto estabelecer regras relativas à celebração de contratos de transporte. Por outro, o considerando 1 do referido regulamento sublinha, nomeadamente, que, no âmbito da política comum de transportes, é importante garantir os direitos dos utilizadores dos serviços ferroviários. Além disso, resulta do considerando 2 do mesmo regulamento que deve ser alcançado um elevado nível de proteção dos consumidores no domínio dos transportes e, segundo o considerando 3, dado que o passageiro dos serviços ferroviários é a parte mais fraca no contrato de transporte, os seus direitos deverão ser salvaguardados.

51      Seria contrário a esses objetivos considerar que o conceito de «contrato de transporte», na aceção do Regulamento n.o 1371/2007, deve ser interpretado no sentido de que não abrange uma situação em que um passageiro entra num comboio de livre acesso para efetuar um trajeto sem ter adquirido um bilhete. Com efeito, se fosse permitido considerar que esse passageiro pode, apenas com o fundamento de que não dispõe de bilhete quando entra no comboio, ser considerado como não sendo parte numa relação contratual com a empresa ferroviária que deixou os seus comboios em livre acesso, esse passageiro poderia, por circunstâncias que não lhe são imputáveis, ficar privado dos direitos que o referido regulamento atribui à celebração de um contrato de transporte, o que seria contrário ao objetivo de proteção dos passageiros dos serviços ferroviários prosseguido pelo referido regulamento e recordado nos seus considerandos 1 a 3.

52      Além disso, na falta de disposições a este respeito no Regulamento n.o 1371/2007, essa interpretação não prejudica a validade do referido contrato ou as consequências que possam estar associadas ao incumprimento, por uma das partes, das suas obrigações contratuais, as quais, na falta de disposição a esse respeito naquele regulamento, continuam a ser reguladas pelo direito nacional aplicável.

53      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 3.o, ponto 8, do Regulamento n.o 1371/2007 deve ser interpretado no sentido de que uma situação em que um passageiro entra num comboio de livre acesso com vista a realizar um trajeto sem ter adquirido bilhete está abrangida pelo conceito de «contrato de transporte», na aceção da referida disposição.

 Quanto à segunda questão

54      Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

 Quanto à terceira e quinta questões

55      Com a sua terceira e quinta questões, que devem ser analisadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um juiz nacional, que declara o caráter abusivo de uma cláusula penal prevista num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, module o montante da sanção imposta por essa cláusula ao referido consumidor ou substitua a referida cláusula por uma disposição de direito nacional de caráter supletivo. Neste contexto, o referido órgão jurisdicional interroga‑se igualmente sobre se a Diretiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a que, em circunstâncias como as que estão em causa nos processos principais, o juiz nacional aplique, além disso, disposições do seu direito nacional relativas à responsabilidade extracontratual.

56      A este respeito, há que salientar, a título preliminar, que, no caso em apreço, segundo as indicações constantes dos pedidos de decisão prejudicial, a cláusula penal que o órgão jurisdicional de reenvio poderia eventualmente declarar abusiva faz parte das condições gerais de transporte da SNCB, a propósito das quais o mesmo órgão jurisdicional precisa que são «consideradas de aplicação geral com base na sua natureza regulamentar» e objeto de «comunicação numa publicação oficial do Estado».

57      Atendendo a estas precisões, há que recordar que, nos termos do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 93/13, as disposições da referida diretiva não se aplicam às cláusulas contratuais decorrentes, nomeadamente, de disposições legislativas ou regulamentares imperativas.

58      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, como resulta do décimo terceiro considerando da Diretiva 93/13, a exclusão prevista no seu artigo 1.o, n.o 2, abrange as disposições de direito nacional aplicáveis entre as partes contratantes, independentemente da sua escolha, e as aplicáveis supletivamente, isto é, na falta de um acordo diferente entre as partes a este respeito, bem como as cláusulas contratuais que reflitam as referidas disposições (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de março de 2013, RWE Vertrieb, C‑92/11, EU:C:2013:180, n.o 26; de 30 de abril de 2014, Barclays Bank, C‑280/13, EU:C:2014:279, n.os 30, 31 e 42; e Despacho de 7 de dezembro de 2017, Woonhaven Antwerpen, C‑446/17, não publicado, EU:C:2017:954, n.o 25).

59      Essa exclusão justifica‑se pelo facto de ser, em princípio, legítimo presumir que o legislador nacional estabeleceu um equilíbrio entre todos os direitos e obrigações das partes em determinados contratos, equilíbrio esse que o legislador da União pretendeu expressamente preservar (v., neste sentido, Acórdão de 30 de abril de 2014, Barclays Bank, C‑280/13, EU:C:2014:279, n.o 41 e jurisprudência referida, e Despacho de 7 de dezembro de 2017, Woonhaven Antwerpen, C‑446/17, não publicado, EU:C:2017:954, n.o 26).

60      A referida exclusão do âmbito de aplicação da Diretiva 93/13 pressupõe assim, segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, que estejam preenchidos dois requisitos. Por um lado, a cláusula contratual deve refletir uma disposição legislativa ou regulamentar e, por outro, essa disposição deve ser imperativa (Acórdãos de 10 de setembro de 2014, Kušionová, C‑34/13, EU:C:2014:2189, n.o 78, e de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C‑186/16, EU:C:2017:703, n.o 28).

61      Além disso, resulta, em substância, da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a referida exclusão abrange as normas legislativas ou regulamentares imperativas que não sejam relativas ao controlo das cláusulas abusivas, designadamente as relativas ao âmbito das competências do juiz nacional para apreciar o caráter abusivo de uma cláusula contratual (v., neste sentido, Acórdãos de 30 de abril de 2014, Barclays Bank, C‑280/13, EU:C:2014:279, n.os 39 e 40 e jurisprudência referida, e de 7 de agosto de 2018, Banco Santander e Escobedo Cortés, C‑96/16 e C‑94/17, EU:C:2018:643, n.o 44).

62      A verificação de que estes requisitos estão preenchidos é da competência do órgão jurisdicional nacional em cada caso concreto (v., neste sentido, Acórdãos de 30 de maio de 2013, Asbeek Brusse e de Man Garabito, C‑488/11, EU:C:2013:341, n.o 33, e de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C‑186/16, EU:C:2017:703, n.o 29 e jurisprudência referida).

63      Ao proceder a essa verificação, este órgão jurisdicional deve considerar o facto de que, tendo em conta em especial o objetivo da Diretiva 93/13, ou seja, a proteção dos consumidores contra as cláusulas abusivas inseridas nos contratos celebrados com estes últimos por profissionais, a exceção instituída pelo artigo 1.o, n.o 2, desta diretiva é de interpretação estrita (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de setembro de 2014, Kušionová, C‑34/13, EU:C:2014:2189, n.o 77, e de 20 de setembro de 2018, OTP Bank e OTP Faktoring, C‑51/17, EU:C:2018:750, n.o 54 e jurisprudência referida).

64      Feitas as especificações precedentes, cabe ao Tribunal de Justiça efetuar a análise da terceira e quinta questões, baseando‑se na premissa, cuja exatidão caberá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, de que a cláusula que este pretende declarar abusiva não está excluída do âmbito de aplicação da Diretiva 93/13 por força do seu artigo 1.o, n.o 2.

65      Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.

66      O Tribunal de Justiça interpretou esta disposição no sentido de que o juiz nacional deve retirar todas as consequências que, segundo o direito nacional, decorrem do reconhecimento do caráter abusivo da cláusula em questão, para se certificar de que o consumidor não está vinculado por essa cláusula. A este respeito, o Tribunal de Justiça especificou que, quando o juiz nacional considera uma cláusula contratual abusiva, está obrigado a abster‑se de aplicá‑la a fim de que não produza efeitos vinculativos para o consumidor, salvo se o consumidor a isso se opuser (v., neste sentido, Acórdãos de 30 de maio de 2013, Asbeek Brusse e de Man Garabito, C‑488/11, EU:C:2013:341, n.o 49 e jurisprudência referida, e de 26 de março de 2019, Abanca Corporación Bancaria e Bankia, C‑70/17 e C‑179/17, EU:C:2019:250, n.o 52).

67      O Tribunal de Justiça já declarou igualmente que, quando o juiz nacional declara a nulidade de uma cláusula abusiva num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regra de direito nacional que permite ao juiz nacional completar esse contrato alterando o conteúdo dessa cláusula (Acórdãos de 30 de abril de 2014, Kásler e Káslerné Rábai, C‑26/13, EU:C:2014:282, n.o 77 e jurisprudência referida, e de 26 de março de 2019, Abanca Corporación Bancaria e Bankia, C‑70/17 e C‑179/17, EU:C:2019:250, n.o 53). Em especial, o Tribunal de Justiça declarou que essa disposição não pode ser interpretada no sentido de que permite ao juiz nacional, quando reconheça o caráter abusivo de uma cláusula penal num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, reduzir o montante da pena imposta ao consumidor, em lugar de afastar inteiramente a aplicação da cláusula em questão em relação a esse consumidor (Acórdãos de 30 de maio de 2013, Asbeek Brusse e de Man Garabito, C‑488/11, EU:C:2013:341, n.o 59, e de 21 de janeiro de 2015, Unicaja Banco e Caixabank, C‑482/13, C‑484/13, C‑485/13 e C‑487/13, EU:C:2015:21, n.o 29).

68      O contrato deve assim subsistir, em princípio, sem nenhuma modificação a não ser a resultante da supressão das cláusulas abusivas, na medida em que, em conformidade com as regras de direito interno, a subsistência do contrato seja juridicamente possível (Acórdãos de 30 de maio de 2013, Asbeek Brusse e de Man Garabito, C‑488/11, EU:C:2013:341, n.o 57 e jurisprudência referida, e de 21 de janeiro de 2015, Unicaja Banco e Caixabank, C‑482/13, C‑484/13, C‑485/13 e C‑487/13, EU:C:2015:21, n.o 28).

69      Se fosse possível ao juiz nacional alterar o conteúdo das cláusulas abusivas desse contrato, essa faculdade seria suscetível de frustrar a realização do objetivo a longo prazo previsto no artigo 7.o da Diretiva 93/13. Na verdade, essa faculdade contribuiria para eliminar o efeito dissuasivo exercido sobre os profissionais pela não aplicação pura e simples de tais cláusulas abusivas ao consumidor, pois os profissionais seriam tentados a utilizar as referidas cláusulas, sabendo que, mesmo que viessem a ser invalidadas, o contrato poderia sempre ser integrado, na medida do necessário, pelo juiz nacional, garantindo desse modo o interesse dos referidos profissionais (Acórdãos de 30 de maio de 2013, Asbeek Brusse e de Man Garabito, C‑488/11, EU:C:2013:341, n.o 58, e de 26 de março de 2019, Abanca Corporación Bancaria e Bankia, C‑70/17 e C‑179/17, EU:C:2019:250, n.o 54 e jurisprudência referida).

70      Além disso, é verdade que o Tribunal de Justiça admitiu uma exceção a este princípio ao declarar que o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 não se opõe a que o juiz nacional, em aplicação dos princípios do direito dos contratos, suprima a cláusula abusiva substituindo‑a por uma disposição de direito nacional supletiva, desde que essa substituição seja conforme com o objetivo do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 e permita restaurar um equilíbrio real entre os direitos e obrigações das partes contratantes suscetível de restabelecer a igualdade entre estes. No entanto, o Tribunal de Justiça limitou essa possibilidade às situações em que a invalidação da cláusula abusiva obrigasse o tribunal nacional a anular o contrato no seu todo, expondo assim o consumidor a consequências particularmente prejudiciais, de modo que este seria penalizado por isso (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de janeiro de 2015, Unicaja Banco e Caixabank, C‑482/13, C‑484/13, C‑485/13 e C‑487/13, EU:C:2015:21, n.o 33 e jurisprudência referida, e de 26 de março de 2019, Abanca Corporación Bancaria e Bankia, C‑70/17 e C‑179/17, EU:C:2019:250, n.os 56 e 57).

71      No entanto, nos processos principais, e sob reserva das verificações a efetuar a este respeito pelo órgão jurisdicional de reenvio, não se afigura que a eventual invalidação da cláusula penal em questão seja suscetível de implicar a anulação dos contratos no seu conjunto e a expor assim os consumidores a consequências particularmente prejudiciais.

72      Quanto à questão de saber se, em circunstâncias como as que estão em causa nos processos principais, seria possível, para o órgão jurisdicional de reenvio, aplicar normas do seu direito nacional relativas à responsabilidade extracontratual, basta salientar que a Diretiva 93/13, nos termos do seu artigo 1.o, n.o 1, tem por objetivo a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas às cláusulas abusivas em contratos celebrados entre profissionais e consumidores e não contém nenhuma disposição relativa à responsabilidade extracontratual.

73      Por conseguinte, a questão de saber se circunstâncias como as que estão em causa nos processos principais podem, por outro lado, ser abrangidas pelo direito da responsabilidade extracontratual, não recai no âmbito da Diretiva 93/13, mas no do direito nacional. Consequentemente, não há que analisá‑la no âmbito dos presentes pedidos de decisão prejudicial.

74      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à terceira e quinta questões que o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que se opõe, por um lado, a que um juiz nacional, que declara o caráter abusivo de uma cláusula penal prevista num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, module o montante da sanção imposta por essa cláusula ao referido consumidor e, por outro, a que um juiz nacional substitua a referida cláusula, em aplicação de princípios do seu direito dos contratos, por uma disposição de direito nacional de caráter supletivo, exceto se o contrato em questão não puder subsistir em caso de supressão da cláusula abusiva e se a anulação do contrato no seu conjunto expuser o consumidor a consequências particularmente prejudiciais.

 Quanto à quarta questão

75      Tendo em conta a resposta dada à terceira e quinta questões, não há que responder à quarta questão.

 Quanto às despesas

76      Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

1)      O artigo 3.o, ponto 8, do Regulamento (CE) n.o 1371/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007, relativo aos direitos e obrigações dos passageiros dos serviços ferroviários, deve ser interpretado no sentido de que uma situação em que um passageiro entra num comboio de livre acesso com vista a realizar um trajeto sem ter adquirido bilhete está abrangida pelo conceito de «contrato de transporte», na aceção da referida disposição.

2)      O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, deve ser interpretado no sentido de que se opõe, por um lado, a que um juiz nacional, que declara o caráter abusivo de uma cláusula penal prevista num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, module o montante da sanção imposta por essa cláusula ao referido consumidor e, por outro, a que um juiz nacional substitua a referida cláusula, em aplicação de princípios do seu direito dos contratos, por uma disposição de direito nacional de caráter supletivo, exceto se o contrato em questão não puder subsistir em caso de supressão da cláusula abusiva e se a anulação do contrato no seu conjunto expuser o consumidor a consequências particularmente prejudiciais.

Assinaturas


*      Língua do processo: neerlandês.