Language of document : ECLI:EU:C:2021:640

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

2 de agosto de 2021 (*)

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental — Regulamento (CE) n.o 2201/2003 — Âmbito de aplicação — Artigo 2.o, ponto 11 — Conceito de “deslocação ou retenção ilícitas de uma criança” — Convenção de Haia de 25 de outubro de 1980 — Pedido de regresso de uma criança de tenra idade de que os progenitores têm a guarda conjunta — Nacionais de países terceiros — Transferência da criança e da sua mãe para o Estado‑Membro responsável pelo exame de um pedido de proteção internacional em aplicação do Regulamento (UE) n.o 604/2013 (Dublim III)»

No processo C‑262/21 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Korkein oikeus (Supremo Tribunal, Finlândia), por Decisão de 23 de abril de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 23 de abril de 2021, no processo

A

contra

B,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot (relator), presidente de secção, L. Bay Larsen, C. Toader, M. Safjan e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos e após a audiência de 28 de junho de 2021,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de A, por J. Kuusivaara, asianajaja,

–        em representação de B, por E. Wehka‑aho e A. Saarikoski, luvan saaneet oikeudenkäyntiavustajat,

–        em representação do Governo finlandês, por H. Leppo, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo sueco, por O. Simonsson, J. Lundberg, C. Meyer‑Seitz, A. M. Runeskjöld, M. Salborn Hodgson, H. Shev, H. Eklinder e R. Shahsavan Eriksson, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Huttunen, W. Wils e A. Azema, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de julho de 2021,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, ponto 11, e do artigo 11.o, n.o 4, do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000 (JO 2003, L 338, p. 1, a seguir «Regulamento Bruxelas II‑A»), do artigo 13.o, primeiro parágrafo, alínea b), e do artigo 20.o da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, assinada em Haia em 25 de outubro de 1980 (a seguir «Convenção de Haia»), bem como do artigo 24.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe A a B, nacionais de um país terceiro, respetivamente pai e mãe de um filho menor, a respeito de um pedido apresentado pelo pai com fundamento na Convenção de Haia, com vista a obter o regresso do filho à Suécia, na sequência da transferência deste e da sua mãe para a Finlândia em execução de uma decisão adotada com fundamento no Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31; a seguir «Regulamento Dublim III»).

 Quadro jurídico

 Direito internacional

3        O artigo 1.o da Convenção de Haia prevê:

«A presente Convenção tem por objeto:

a) Assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente;

b) Fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante.»

4        O artigo 13.o, primeiro parágrafo, da referida Convenção estipula:

«Sem prejuízo das disposições contidas no anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:

a)      Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou

b)      Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.»

5        O artigo 20.o da referida Convenção prevê:

«O regresso da criança de acordo com as disposições contidas no artigo 12.o poderá ser recusado quando não for consentâneo com os princípios fundamentais do Estado requerido relativos à proteção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais».

 Direito da União


 Regulamento Bruxelas IIA

6        Os considerandos 5, 17 e 33 do Regulamento Bruxelas II‑A enunciam:

«(5)      A fim de garantir a igualdade de tratamento de todas as crianças, o presente regulamento abrange todas as decisões em matéria de responsabilidade parental, incluindo as medidas de proteção da criança, independentemente da eventual conexão com um processo matrimonial.

[…]

(17)      Em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de uma criança, deve ser obtido sem demora o seu regresso; para o efeito, deverá continuar a aplicar‑se a [Convenção de Haia], completada pelas disposições do presente regulamento, nomeadamente o artigo 11.o […]

[…]

(33)      O presente regulamento reconhece os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; pretende, designadamente, garantir o pleno respeito dos direitos fundamentais da criança enunciados no artigo 24.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia».

7        O artigo 1.o deste regulamento, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe, nos seus n.os1 e 2:

«1. O presente regulamento é aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas:

[…]

b)      À atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental.

[…]

2.      As matérias referidas na alínea b) do n.o 1 dizem, nomeadamente, respeito:

a)      Ao direito de guarda e ao direito de visita;

b)      À tutela, à curatela e a outras instituições análogas;

c)      À designação e às funções de qualquer pessoa ou organismo encarregado da pessoa ou dos bens da criança e da sua representação ou assistência;

d)      À colocação da criança ao cuidado de uma família de acolhimento ou de uma instituição;

e)      Às medidas de proteção da criança relacionadas com a administração, conservação ou disposição dos seus bens.»

8        Nos termos do artigo 2.o do referido regulamento:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

7)      “Responsabilidade parental” o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou coletiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança. O termo compreende, nomeadamente, o direito de guarda e o direito de visita.

[…]

11)      “Deslocação ou retenção ilícitas de uma criança”, a deslocação ou a retenção de uma criança, quando:

a)      Viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor por força da legislação do Estado‑Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção;

e

b)      No momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efetivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê‑lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção. Considera‑se que a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade parental».

9        Por força do artigo 11.o, n.os 1 e 4, do mesmo regulamento:

«1.      Os n.os 2 a 8 são aplicáveis quando uma pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda pedir às autoridades competentes de um Estado‑Membro uma decisão, baseada na [Convenção de Haia], a fim de obter o regresso de uma criança que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida num Estado‑Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas.

[…]

4.      O tribunal não pode recusar o regresso da criança ao abrigo da alínea b) do artigo 13.o da [Convenção de Haia], se se provar que foram tomadas medidas adequadas para garantir a sua proteção após o regresso.»

 Regulamento Dublim III

10      Segundo o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III:

«O interesse superior da criança deve constituir um aspeto fundamental a ter em conta pelos Estados‑Membros relativamente a todos os procedimentos previstos no presente regulamento.»

11      Segundo o artigo 12.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III:

«Se o requente for titular de vários títulos de residência ou de vários vistos válidos, emitidos por diferentes Estados‑Membros, o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional é, pela seguinte ordem:

a)      O Estado‑Membro que tiver emitido o título de residência que confira o direito de residência mais longo ou, caso os títulos tenham períodos de validade idênticos, o Estado‑Membro que tiver emitido o título de residência cuja validade cesse mais tarde;

[…]»

12      Nos termos do artigo 29.o, n.os 1 e 3, deste regulamento:

«1.      A transferência do requerente ou de outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável efetua‑se em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro requerente, após concertação entre os Estados‑Membros envolvidos, logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3.

[…]

3.      Se uma pessoa tiver sido transferida indevidamente, ou se uma decisão de transferência for anulada por recurso ou revista após a transferência ter sido efetuada, o Estado‑Membro que efetuou a transferência retoma imediatamente essa pessoa a cargo.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13      Em maio de 2019, A e B, nacionais de um Estado terceiro que residiam até então na Finlândia desde 2016, foram viver para a Suécia. Em 5 de setembro de 2019, da sua união nasceu um filho. A criança tinha então a sua residência habitual na Suécia e os seus dois progenitores exerciam conjuntamente o direito de guarda.

14      A mãe beneficiava simultaneamente, com fundamento no título de residência concedido ao pai enquanto trabalhador assalariado, de um título de residência familiar na Finlândia para o período compreendido entre 28 de dezembro de 2017 e 27 de dezembro de 2021, e de um título de residência familiar na Suécia para o período compreendido entre 11 de março de 2019 e 16 de setembro de 2020.

15      Por decisão de 11 de novembro de 2019, as autoridades suecas competentes tomaram a criança a cargo e colocaram‑na com a mãe numa casa de acolhimento para mulheres em perigo na Suécia até à sua transferência para a Finlândia em 24 de novembro de 2020. Esta decisão foi confirmada por Sentença de um tribunal administrativo de 17 de janeiro de 2020, que invocou os atos de violência do pai sobre a mãe de que a criança tinha sido testemunha, o risco real para o desenvolvimento e a saúde da criança, bem como o risco de esta ser levada para o país de origem dos progenitores pelo pai sem o consentimento da mãe.

16      Segundo as informações complementares fornecidas pelo Governo sueco em resposta a um pedido do Tribunal de Justiça, o pai, no início da colocação, apenas estava autorizado a ter acesso a fotografias e a gravações vídeo da criança. Posteriormente, foram organizadas visitas na presença de um assistente social, mas limitaram‑se a contactos muito breves devido à idade da criança e porque o pai não era considerado uma pessoa segura para o filho.

17      Em 21 de novembro de 2019, o pai requereu um título de residência para o filho na Suécia devido ao seu vínculo familiar com este último. Em 4 de dezembro de 2019, a mãe requereu igualmente um título de residência para o filho na Suécia.

18      Em 7 de agosto de 2020, a mãe apresentou um pedido de asilo na Suécia para si própria e para o filho, baseando‑se nos atos de violência doméstica que sofreu por parte do pai e no risco sério de ser vítima, em caso de regresso ao seu país de origem, de violência por parte da família do pai em nome da honra.

19      Em 27 de agosto de 2020, a Finlândia indicou ser responsável pela análise dos pedidos de asilo da mãe e da criança, em aplicação do artigo 12.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III, com o fundamento de que a validade do título de residência que lhe tinha sido concedido pela República da Finlândia (27 de dezembro de 2021) cessava mais tarde do que a validade do título de residência emitido pelo Reino da Suécia (16 de setembro de 2020).

20      Por decisão de 27 de outubro de 2020, as autoridades suecas arquivaram o pedido de título de residência apresentado pelo pai para o filho, julgaram inadmissível o pedido de asilo apresentado pela mãe para si própria e para o filho e ordenaram a transferência da criança e da sua mãe para a Finlândia. Resulta desta decisão que o interesse superior da criança foi apreciado aquando da sua adoção, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III. A este respeito, considerou‑se que o pai constituía uma ameaça para o filho e que, tendo em conta o facto de este não ter contactos com o pai, uma separação do pai e do filho durante um certo tempo não era contrária ao interesse superior da criança. Além disso, uma vez que o pai tem um título de residência na Finlândia, a transferência da criança para esse Estado não foi considerada um obstáculo ao exercício pelo pai de um direito de visita.

21      Em 24 de novembro de 2020, a mãe cumpriu voluntariamente a decisão de transferência para a Finlândia dela própria e do filho, tomada pelas autoridades suecas em aplicação do artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III.

22      Em 7 de dezembro de 2020, o pai interpôs recurso da decisão das autoridades suecas de arquivarem o seu pedido de título de residência para o filho e de transferirem este para a Finlândia.

23      Por Sentença de 21 de dezembro de 2020, o Migrationsdomstolen i Stockholm (Tribunal da Imigração, Estocolmo, Suécia) anulou essa decisão e remeteu o processo à autoridade sueca da imigração, tendo em conta que o pai da criança não tinha sido ouvido durante o processo.

24      Por decisão de 29 de dezembro de 2020, a autoridade sueca da imigração arquivou os processos na sequência da partida da criança para a Finlândia. Em 19 de janeiro de 2021, o pai interpôs recurso dessa decisão para o Migrationsdomstolen i Stockholm (Tribunal da Imigração, Estocolmo, Suécia), ao qual foi negado provimento por Sentença de 6 de abril de 2021.

25      Em 5 de janeiro de 2021, o pai apresentou um novo pedido de título de residência para o filho às autoridades suecas, por motivos familiares. A análise deste pedido de título de residência na Suécia está em curso.

26      Em 11 de janeiro de 2021, a mãe apresentou um pedido de asilo para si própria e para o filho na Finlândia. Em 26 de março de 2021, as autoridades finlandesas retiraram o título de residência de que a mãe beneficiava na Finlândia e cuja validade devia, em princípio, cessar em 27 de dezembro de 2021. Está em curso o tratamento dos pedidos de asilo na Finlândia.

27      Quanto ao direito de guarda, em novembro de 2020, ou seja, pouco tempo antes da transferência da mãe e do filho para a Finlândia, o Västmanlands tingsrätt (Tribunal de Primeira Instância de Västmanland, Suécia) manteve a guarda conjunta dos progenitores sobre o filho. A mãe contestou a competência deste tribunal sueco para conhecer do litígio na sequência da transferência do filho para a Finlândia. Em 29 de abril de 2021, o referido tribunal decretou o divórcio dos progenitores, atribuiu a guarda exclusiva da criança à mãe e indeferiu o pedido relativo ao direito de visita do pai da criança. Por Acórdão do Svea hovrätt (Tribunal de Recurso de Estocolmo, Suécia) de 23 e 24 de junho de 2021, foi indeferido o pedido do pai de que o seu recurso do acórdão do tribunal de primeira instância fosse admitido.

28      Em 21 de dezembro de 2020, o pai intentou uma ação no Helsingin hovioikeus (Tribunal de Recurso de Helsínquia, Finlândia), pedindo que fosse ordenado o regresso imediato do filho à Suécia. Num documento de 26 de janeiro de 2021 comunicado a esse órgão jurisdicional pelas autoridades suecas, estas recordaram que a criança e a mãe não dispunham de um título de residência válido na Suécia e que, portanto, não tinham o direito de entrar na Suécia nem de aí residir.

29      Por Decisão de 25 de fevereiro de 2021, o Helsingin hovioikeus (Tribunal de Recurso de Helsínquia) negou provimento ao recurso, observando, nomeadamente, que não havia que considerar que a mãe tinha deslocado ilicitamente o filho a partir do seu país de residência. O pai interpôs recurso de anulação desta decisão para o órgão jurisdicional de reenvio.

30      Nestas circunstâncias, o Korkein oikeus (Supremo Tribunal, Finlândia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 2.o, ponto 11, do Regulamento [Bruxelas II‑A], relativo à deslocação ilícita de uma criança, ser interpretado no sentido de que a essa qualificação corresponde a situação em que um dos progenitores, sem o consentimento do outro, desloca a criança do seu Estado de residência para outro Estado‑Membro, que é o Estado‑Membro responsável em virtude de uma decisão de transferência tomada por uma autoridade em aplicação do Regulamento [Dublim III]?

2)      Em caso de resposta negativa à primeira questão, deve o artigo 2.o, ponto 11, do Regulamento Bruxelas II‑A, relativo à retenção ilícita, ser interpretado no sentido de que a essa qualificação corresponde a situação em que um órgão jurisdicional do Estado de residência da criança anulou a decisão de transferir a apreciação do processo tomada por uma autoridade, mas em que a criança cujo regresso é [requerido] já não dispõe de [um título] de residência válid[o] no seu Estado de residência nem do direito de entrar ou de residir no Estado em causa?

3)      Se, atendendo à resposta dada à primeira ou à segunda questão, o Regulamento Bruxelas II‑A for de interpretar no sentido de que se trata de uma deslocação ou retenção ilícitas da criança, e que esta deveria, por conseguinte, ser reenviada para o seu Estado de residência, deve o artigo 13.o, primeiro parágrafo, alínea b), da [Convenção de Haia] ser interpretado no sentido de que obsta ao regresso da criança ou

i)      porque existe um risco grave, na aceção dessa disposição, de [que] o regresso de um bebé de que mãe tomou conta pessoalmente, se tiver de regressar sozinho, [o exponha] a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, [o coloque] numa situação intolerável; ou

ii)      porque a criança, no seu Estado de residência, seria tomada a cargo e colocada numa casa de acolhimento, sozinha ou com a mãe, o que indicaria que existe um risco grave, na aceção dessa disposição, de [que] o regresso da criança a [exponha] a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a [coloque] numa situação intolerável; ou ainda

iii)      porque a criança, sem [título] de residência válido, ficaria numa situação intolerável na aceção dessa disposição?

4)      Se, atendendo à resposta dada à terceira questão, for possível interpretar os fundamentos de recusa do artigo 13.o, primeiro parágrafo, alínea b), da Convenção de Haia […] no sentido de que existe um risco grave de [que] o regresso da criança a [exponha] a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a [coloque] numa situação intolerável, deve o artigo 11.o, n.o 4, do Regulamento Bruxelas II‑A, juntamente com o conceito de interesse superior da criança, a que se refere o artigo 24.o da Carta […], bem como esse mesmo regulamento, ser interpretado no sentido de que, numa situação em que nem a criança nem a mãe têm [um título] de residência válid[o] no Estado de residência da criança, e, portanto, não têm o direito de entrar nem de residir nesse país, o Estado de residência da criança deve tomar as medidas adequadas para garantir a residência regular da criança e da mãe no Estado‑Membro em causa? Caso o Estado de residência da criança tenha essa obrigação, deve o princípio da confiança mútua entre Estados‑Membros ser interpretado no sentido de que o Estado que entrega a criança pode, em conformidade com esse princípio, presumir que o Estado de residência da criança cumprirá essas obrigações, ou exigirá o interesse da criança que se obtenham esclarecimentos por parte das autoridades do Estado de residência sobre as medidas concretas que foram ou serão tomadas para sua proteção, a fim de o Estado‑Membro que entrega a criança poder nomeadamente apreciar a adequação dessas medidas na perspetiva do interesse da criança?

5)      Caso o Estado de residência da criança não tenha a obrigação, referida supra, na quarta questão prejudicial, de tomar as medidas adequadas, deve, à luz do artigo 24.o da Carta […], o artigo 20.o da Convenção de Haia […], nas situações a que se referem as alíneas i) a iii) da terceira questão prejudicial, ser interpretado no sentido de que obsta ao regresso da criança porque esse regresso poderia, na aceção dessa disposição, ser considerado contrário aos princípios fundamentais relativos à proteção dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais?»

 Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

31      Em 21 de maio de 2021, em resposta a um pedido de informações do Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio precisou, nomeadamente, que o pedido do pai destinado a obter um despacho para efeitos do regresso da criança com fundamento no Regulamento Dublim III tinha sido julgado inadmissível.

32      Nestas condições, o órgão jurisdicional de reenvio precisou a formulação da segunda questão prejudicial nos seguintes termos:

«Em caso de resposta negativa à primeira questão, deve o artigo 2.o, ponto 11, do Regulamento Bruxelas II‑A, relativo à retenção ilícita, ser interpretado no sentido de que a essa qualificação corresponde a situação em que um órgão jurisdicional do Estado de residência da criança anulou a decisão de transferir a apreciação do processo tomada por uma autoridade, o qual foi arquivado depois de a criança e a mãe terem deixado o seu Estado de residência, mas em que a criança cujo regresso é [requerido] já não dispõe de [um título] de residência válid[o] no seu Estado de residência nem do direito de entrar ou de residir no Estado em causa?»

33      Por articulado de 31 de maio de 2021, o Governo sueco respondeu às perguntas escritas do Tribunal de Justiça e apresentou os documentos por este pedidos.

 Quanto à tramitação prejudicial urgente

34      O órgão jurisdicional de reenvio requereu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

35      Em apoio do seu pedido, sublinhou que as respostas do Tribunal de Justiça às questões prejudiciais serão determinantes para a solução do litígio na medida em que o levarão a ordenar ou não o regresso da criança à Suécia. O órgão jurisdicional de reenvio invocou, nomeadamente, o considerando 17 do Regulamento Bruxelas II‑A, que dispõe que, em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de uma criança, deve ser obtido sem demora o seu regresso, e precisou que, atendendo à idade da criança, à duração da sua permanência na Finlândia e ao facto de o prolongamento do processo poder ser prejudicial ao desenvolvimento de uma relação entre o pai e o filho, a aplicação da tramitação urgente se lhe afigurava absolutamente indispensável.

36      A este respeito, há que salientar, em primeiro lugar, que o presente reenvio prejudicial tem por objeto a interpretação do Regulamento Bruxelas II‑A, adotado com fundamento, nomeadamente, no artigo 61.o, alínea c), CE, atual artigo 67.o TFUE, que figura no título V da parte III do Tratado FUE, relativo ao espaço de liberdade, segurança e justiça. É, por conseguinte, suscetível de ser submetido à tramitação prejudicial urgente.

37      Em segundo lugar, a ação em causa no processo principal foi intentada por um pai, separado há vários meses do filho de menos de dois anos, com o objetivo de obter o regresso imediato deste último à Suécia com fundamento na Convenção de Haia.

38      Nestas condições, a Primeira Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 6 de maio de 2021, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de submeter o presente reenvio prejudicial à tramitação prejudicial urgente.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira e segunda questões

39      Com as suas primeira e segunda questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, ponto 11, do Regulamento Bruxelas II‑A deve ser interpretado no sentido de que pode constituir uma deslocação ilícita ou uma retenção ilícita, na aceção desta disposição, a situação em que um dos progenitores, sem o acordo do outro, leva o filho do seu Estado de residência habitual para outro Estado‑Membro em execução de uma decisão de transferência tomada pelo primeiro Estado‑Membro com fundamento no Regulamento Dublim III, e, em seguida, permanece no primeiro Estado‑Membro depois de a referida decisão de transferência ter sido anulada, sem que, no entanto, as autoridades do primeiro Estado‑Membro tenham decidido retomar a cargo as pessoas transferidas ou autorizá‑las a residir.

40      Em primeiro lugar, quanto ao âmbito de aplicação material do Regulamento Bruxelas II‑A, resulta do artigo 1.o, n.o 1, alínea b), deste regulamento que este é aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas, nomeadamente, à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental. Neste âmbito, o conceito de «matérias civis» deve ser concebido não de maneira restritiva, mas como um conceito autónomo de direito da União que abrange, em especial, todos os pedidos, medidas ou decisões em matéria de «responsabilidade parental», na aceção do referido regulamento, em conformidade com o objetivo recordado no considerando 5 deste (Acórdão de 21 de outubro de 2015, Gogova, C‑215/15, EU:C:2015:710, n.o 26 e jurisprudência referida).

41      A este respeito, o conceito de «responsabilidade parental» é objeto, no artigo 2.o, ponto 7, do Regulamento Bruxelas II‑A, de uma definição ampla, no sentido de que compreende o conjunto dos direitos e das obrigações conferidos a uma pessoa singular ou coletiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança Por outro lado, embora o artigo 1.o, n.o 2, deste regulamento contenha uma enumeração das matérias abrangidas pelo referido regulamento a título da «responsabilidade parental», esta enumeração não é exaustiva, mas simplesmente indicativa, como demonstra a utilização do termo «nomeadamente» (Acórdão de 21 de outubro de 2015, Gogova, C‑215/15, EU:C:2015:710, n.o 27 e jurisprudência referida).

42      Para determinar se um pedido é abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas II‑A, há que atender ao objeto desse pedido (Acórdão de 21 de outubro de 2015, Gogova, C‑215/15, EU:C:2015:710, n.o 28 e jurisprudência referida).

43      Resulta da decisão de reenvio que o pai da criança apresentou o seu pedido ao órgão jurisdicional de reenvio para obter o regresso imediato desta à Suécia com fundamento na Convenção de Haia. Assim, dado que o objeto de um pedido como o que está em causa no processo principal é relativo à responsabilidade parental, o Regulamento Bruxelas II‑A é aplicável.

44      Em segundo lugar, no que se refere à qualificação de ilícita da deslocação ou da retenção de uma criança, resulta dos próprios termos do artigo 2.o, ponto 11, do Regulamento Bruxelas II‑A que se deve considerar como tal a deslocação ou a retenção de uma criança que viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor por força da legislação do Estado‑Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção, desde que, no momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efetivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê‑lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção.

45      Como salientou o advogado‑geral no n.o 34 das suas conclusões, resulta desta disposição que a qualificação de ilícita da deslocação ou da retenção de uma criança implica que estejam reunidas duas condições, a saber, por um lado, uma deslocação em violação de um direito de guarda concedido pelo direito do Estado‑Membro no qual a criança tinha a sua residência habitual, o que obriga a identificar a residência habitual da criança antes da sua deslocação (v., neste sentido, Acórdão de 8 de junho de 2017, OL, C‑111/17 PPU, EU:C:2017:436, n.o 53), e, por outro lado, que o direito de guarda esteja a ser efetivamente exercido ou devesse estar a sê‑lo caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção ilícitas.

46      Isto é corroborado, de resto, pelo objetivo prosseguido pelo Regulamento Bruxelas II‑A. Com efeito, embora este regulamento vise, como resulta do seu preâmbulo, criar um espaço judiciário baseado no princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais através do estabelecimento de regras que regulam a competência, o reconhecimento e a execução das decisões em matéria de responsabilidade parental, enquanto a Convenção de Haia tem por objeto, de acordo com o seu artigo 1.o, alínea a), assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado contratante ou nele retidas indevidamente, há uma conexão estreita entre estes dois instrumentos, que têm como objetivo comum, em substância, dissuadir os raptos de crianças entre Estados e, em caso de rapto, obter o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual (v., neste sentido, Acórdão de 19 de setembro de 2018, C. E. e N.E, C‑325/18 PPU e C‑375/18 PPU, EU:C:2018:739, n.os 47 e jurisprudência referida).

47      O processo de regresso previsto pela Convenção de Haia e pelo Regulamento Bruxelas II‑A tem por finalidade que um dos progenitores não possa reforçar a sua posição quanto à questão da guarda da criança subtraindo‑se, através de um comportamento ilícito, à competência dos órgãos jurisdicionais em princípio designados, em conformidade com as regras previstas designadamente por este regulamento, para decidir sobre a responsabilidade parental relativamente a esta última (v., neste sentido, Acórdãos de 23 de dezembro de 2009, Detiček, C‑403/09 PPU, EU:C:2009:810, n.o 49; de 9 de outubro de 2014, C, C‑376/14 PPU, EU:C:2014:2268, n.o 67; e de 8 de junho de 2017, OL, C‑111/17, EU:C:2017:436, n.o 63 e jurisprudência referida).

48      Ora, o facto de um progenitor que tem o direito de guarda do filho se deslocar com este para um Estado‑Membro diferente daquele em que a criança tinha a sua residência habitual, a fim de dar cumprimento a uma decisão de transferência, que visa tanto esse progenitor como o seu filho, tomada pelas autoridades nacionais competentes em aplicação do Regulamento Dublim III, não pode ser considerado um comportamento ilícito, na aceção da jurisprudência referida no número anterior, suscetível de caracterizar uma deslocação na aceção do artigo 2.o, ponto 11, do Regulamento Bruxelas II-A, não sendo necessário verificar previamente se as condições referidas no n.o 45 do presente acórdão, designadamente a condição relativa à deslocação em violação de um direito de guarda efetivamente exercido, estão preenchidas.

49      Com efeito, o cumprimento de uma decisão de transferência que se impunha ao progenitor e à criança em causa, no caso de, à data da transferência, ter caráter executório e de, nessa data, não ter sido suspensa nem anulada, deve ser considerada uma simples consequência legal dessa decisão que não pode ser imputada a esse progenitor.

50      Do mesmo modo, não se pode considerar que a manutenção no território do Estado‑Membro responsável pelo tratamento do pedido de proteção internacional constitua uma conduta ilícita, mesmo após a anulação da decisão de transferência, quando o progenitor e o filho em causa não tenham sido objeto de uma decisão de retomada a cargo, adotada pelas autoridades do Estado‑Membro que procedeu à transferência, com fundamento no artigo 29.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III posteriormente à data da transferência e quando não estão autorizados a residir neste último Estado‑Membro.

51      Em tal situação, a retenção da criança constitui, com efeito, uma simples consequência da sua situação administrativa, conforme determinada por decisões executórias do Estado‑Membro onde tinha a sua residência habitual.

52      Por último, importa acrescentar que uma interpretação segundo a qual um requerente de proteção internacional, como a mãe no litígio no processo principal, deveria abster‑se de dar cumprimento a uma decisão de transferência pelo facto de o seu comportamento poder ser considerado ilícito por força do Regulamento Bruxelas II‑A violaria o princípio da segurança jurídica e a realização dos objetivos do Regulamento Dublim III.

53      Por conseguinte, há que responder à primeira e segunda questões prejudiciais que o artigo 2.o, ponto 11, do Regulamento Bruxelas II deve ser interpretado no sentido de que não pode constituir uma deslocação ilícita ou uma retenção ilícitas, na aceção desta disposição, a situação em que um dos progenitores, sem o acordo do outro, leva o filho do seu Estado de residência habitual para outro Estado‑Membro em execução de uma decisão de transferência tomada pelo primeiro Estado‑Membro com fundamento no Regulamento Dublim III e, em seguida, permanece no segundo Estado‑Membro depois de a referida decisão de transferência ter sido anulada, sem que, no entanto, as autoridades do primeiro Estado‑Membro tenham decidido retomar a cargo as pessoas transferidas ou autorizá‑las a residir.

 Quanto à terceira a quinta questões

54      Tendo em conta a resposta dada às duas primeiras questões, não há que responder à terceira a quinta questões.

 Quanto às despesas

55      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 2.o, ponto 11, do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que não pode constituir uma deslocação ilícita ou uma retenção ilícitas, na aceção desta disposição, a situação em que um dos progenitores, sem o acordo do outro, leva o filho do seu Estado de residência habitual para outro EstadoMembro em execução de uma decisão de transferência tomada pelo primeiro EstadoMembro com fundamento no Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do EstadoMembro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos EstadosMembros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, e, em seguida, permanece no segundo EstadoMembro depois de a referida decisão de transferência ter sido anulada, sem que, no entanto, as autoridades do primeiro EstadoMembro tenham decidido retomar a cargo as pessoas transferidas ou autorizálas a residir.

Assinaturas


*      Língua do processo: finlandês.