Language of document : ECLI:EU:C:2002:80

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

ANTONIO TIZZANO

apresentadas em 7 de Fevereiro de 2002 (1)

Processo C-471/99

Martínez Domínguez e o.

contra

Bundesanstalt für Arbeit, Kindergeldkasse

(pedido de decisão prejudicial

apresentado pelo Sozialgericht Nürnberg)

«Interpretação dos artigos 77.° e 78.° do Regulamento n.° 1408/71 - Determinação do Estado-Membro competente para conceder prestações por filhos a cargo ou por órfãos - Direitos adquiridos por força do princípio da totalização previsto pelo Regulamento n.° 1408/71 ou em virtude de uma convenção bilateral»

1.
    Através do despacho apresentado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 9 de Dezembro de 1999, o Socialgericht Nürnberg submeteu ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, duas questões prejudiciais relativas à interpretação dos artigos 77.°, n.° 2, alínea b), e 78.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade (a seguir «regulamento») (2). O reenvio foi apresentado no âmbito de quatro processo apensos pelo órgão jurisdicional nacional, que tinham por objecto outras tantas decisões do Bündesanstalt für Arbeit, Kindergeldkasse (Administração Federal do Trabalho, Caixa de Abonos de Família; a seguir «BAK»), através das quais foram indeferidos pedidos de abonos de família apresentados a este organismo, a diversos títulos, por cidadãos espanhóis.

O quadro jurídico de referência

A legislação comunitária

2.
    O artigo 77.° do regulamento (na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento (CEE) n.° 2001/83 do Conselho, de 2 de Junho de 1983) (3), relativo às prestações por filhos a cargo de titulares de pensões ou de rendas, dispõe:

«1. O termo ‘prestações’, na acepção do presente artigo, designa os abonos de família previstos em relação aos titulares de uma pensão ou de uma renda de velhice, invalidez, acidente de trabalho ou doença profissional, bem como os acréscimos ou os suplementos dessas pensões ou rendas previstos em beneficio dos descendentes daqueles titulares, com excepção dos suplementos concedidos em consequência dos seguros de acidentes de trabalho e doenças profissionais.

2. Independentemente do Estado-Membro em cujo território residem o titular de pensões ou de rendas ou os descendentes, as prestações serão concedidas em conformidade com as seguintes regras:

a) Ao titular de uma pensão ou de uma renda devida ao abrigo da legislação de um único Estado-Membro, em conformidade com a legislação do Estado-Membro competente em relação à pensão ou à renda;

b)    Ao titular de pensões ou de rendas devidas ao abrigo das legislações de vários Estados-Membros:

i)    Em conformidade com a legislação do Estado em cujo território resida, quando o direito a uma das prestações referidas no n.° 1 foi adquirido, por força da legislação desse Estado, tomando em conta, se for caso disso, o disposto no n.° 1, alínea a), do artigo 79.°, ou

ii)    Nos outros casos, em conformidade com a legislação do Estado-Membro à qual o interessado esteve sujeito mais tempo, quando o direito a uma das prestações referidas no n.° 1 for adquirido por força dessa legislação, tomando em conta, se for caso disso, o disposto no n.° 1, alínea a), do artigo 79.°; se nenhum direito for adquirido por força da referida legislação, as condições de aquisição do direito serão examinadas em relação às legislações dos outros Estados-Membros em causa, por ordem degressiva da duração dos períodos de seguro ou de residência cumpridos ao abrigo da legislação desses Estados-Membros.»

3.
    Em termos análogos, o artigo 78.° do regulamento, relativo às prestações por órfãos, dispõe:

«1. O termo ‘prestações’, na acepção do presente artigo, designa os abonos de família e, se for caso disso, os abonos suplementares ou especiais previstos em benefício dos órfãos, bem como as pensões ou rendas de órfãos, à excepção das rendas de órfãos concedidas ao abrigo de seguros de acidentes de trabalho e doenças profissionais.

2. Independentemente do Estado-Membro em cujo território residem o órfão ou a pessoa singular ou colectiva que o tenha efectivamente a cargo, as prestações em benefício dos órfãos são concedidas, em conformidade com as seguintes regras:

a) Em relação ao órfão de um trabalhador assalariado ou não assalariado falecido que esteve sujeito à legislação de um único Estado-Membro, em conformidade com a legislação deste Estado;

b) Em relação ao órfão de um trabalhador assalariado ou não assalariado falecido que esteve sujeito às legislações de vários Estados-Membros:

i)    Em conformidade com a legislação do Estado em cujo território resida o órfão, quando o direito a uma das prestações referidas no n.° 1 for adquirido por força da legislação desse Estado, tomando em conta, se for caso disso, o disposto no n.° 1, alínea a), do artigo 79.° ou

ii)    Nos outros casos, em conformidade com a legislação do Estado-Membro à qual o trabalhador falecido esteve sujeito durante mais tempo, quando o direito a uma das prestações referidas no n.° 1 for adquirido por força da referida legislação, tomando em conta, se for caso disso, o disposto no n.° 1, alínea a), do artigo 79.°; se não tiver sido adquirido direito nos termos dessa legislação, as condições de aquisição do direito serão examinadas em relação às legislações dos outros Estados-Membros em causa, por ordem degressiva da duração dos períodos de seguro ou de residência cumpridos ao abrigo da legislação desses Estados-Membros.

No entanto, a legislação do Estado-Membro aplicável à concessão das prestações referidas no artigo 77.° em favor dos descendentes de um titular de pensões ou de rendas continua a aplicar-se à concessão das prestações aos órfãos do referido titular, após a morte deste.»

4.
    Em referência a ambas as disposições acima transcritas, o artigo 79.°, n.° 1, estabelece, além disso, que «as prestações na acepção dos artigos 77.° e 78.° são concedidas, em conformidade com a legislação determinada nos termos dos referidos artigos, pela instituição que aplica essa legislação e por sua conta, como se o titular de pensões ou de rendas ou o falecido apenas tivesse estado sujeito à legislação do Estado competente». Contudo, no n.° 1, alínea a), desta disposição prevê-se que «se essa legislação fizer depender da duração dos períodos de seguro de emprego, de actividade não assalariada ou de residência, a aquisição, manutenção ou a recuperação do direito às prestações, tal duração será determinada tendo em conta, se for caso disso, o disposto no artigo 45.° [sobre a totalização dos períodos de seguro] ou no artigo 72.° [sobre a totalização dos períodos de emprego], conforme o caso».

A legislação nacional

5.
    Em Espanha, o Real Decreto Legislativo 1/1994, que estabelece uma disciplina geral em matéria de segurança social, prevê o pagamento aos titulares de pensões de um abono de família por cada um dos filhos a seu cargo que ainda não tenha completado 18 anos, com a condição de o rendimento familiar não superar um determinado montante. Para os filhos deficientes, com um grau de invalidez superior a 65%, o referido decreto prevê, ao invés, a atribuição de um abono de família sem qualquer limite de idade ou de rendimento; o pagamento deste subsídio para os filhos maiores é, porém, incompatível com o recebimento da contribuição especial prevista pela Lei n.° 13/1982 sobre a integração social dos deficientes, com a consequência de, quando se verificarem as circunstâncias, os interessados terem que optar por um dos dois regimes alternativos.

6.
    No que diz respeito à legislação alemã, o Bundeskindergeldgesetz (lei federal relativa aos abonos de família; a seguir «BKGG»), na versão vigente até finais de 1995, atribuía aos titulares de pensões um direito a abonos de família por cada filho a cargo, até que os filhos atingissem os 16 anos de idade e, no caso de ser mais do que um, com a condição de não ser ultrapassado um dado nível de rendimento. A partir de 1996, o limite de idade foi elevado para 18 anos e foram abolidos os limites de rendimento; além disso, foi previsto o pagamento do abono até ao cumprimento dos vinte e sete anos de idade, nos casos em que os filhos prossigam os estudos a fim de obter uma formação profissional e até aos vinte e um anos quando os mesmos estejam desempregados. Para os filhos que, em virtude de uma deficiência, não estejam em condições de prover às suas necessidades, o BKGG prevê, finalmente, o pagamento de um abono sem qualquer limite de idade.

Factos e questões prejudiciais

7.
    Como referimos, o presente reenvio prejudicial foi apresentado no âmbito de quatro processos apensos pelo órgão jurisdicional a quo, que têm em comum o facto de dizerem respeito, a diversos títulos, a cidadãos espanhóis que, por um certo período, trabalharam na Alemanha, na qualidade de trabalhadores migrantes.

8.
    O primeiro desses processos foi movido por Martínez Domínguez, cidadão espanhol, residente em Espanha e titular de uma pensão, tanto naquele país como na Alemanha (onde tinha, precisamente, trabalhado durante um certo período de tempo). Não obstante beneficiar de abonos de família em Espanha para a filha menor a seu cargo, não tinha tido direito ao pagamento do referido abono entre Abril de 1991 e Outubro de 1996 e entre Abril e Outubro de 1997, em virtude de ter ultrapassado os limites de rendimento previstos pela legislação daquele país. Com o fim de obter a referida contribuição, em Janeiro de 1996, Martínez Domínguez apresentou, pois, a adequada petição na Alemanha, onde, como se disse, desde 1995 não existe qualquer limite de rendimento para o pagamento de abonos de família. Contudo, o seu pedido foi indeferido pelo BAK, assim como a reclamação subsequente; a decisão definitiva de indeferimento foi, pois, impugnada perante o órgão jurisdicional a quo.

9.
    O segundo processo foi movido por Benítez Urbano, também ele cidadão espanhol, residente em Espanha e titular de uma pensão neste país e na Alemanha (onde tinha igualmente trabalhado durante um certo período). Em Agosto de 1996 apresentou um pedido no sentido de obter na Alemanha abonos de família para a filha maior portadora de uma deficiência, a qual beneficiava em Espanha da contribuição especial prevista pela Lei n.° 13/1982, sobre a integração social dos deficientes e, por este motivo, não podia beneficiar dos abonos de família neste país (que, por esta razão, não foram requeridos). Tal pedido e a subsequente reclamação foram indeferidos pelo BAK, cuja decisão definitiva foi impugnada perante o órgão jurisdicional a quo.

10.
    O terceiro processo foi movido por Mateos Cruz, igualmente cidadão espanhol, residente em Espanha e titular de uma pensão em Espanha e na Alemanha (onde também tinha trabalhado por um certo período). Recebeu, em Espanha, abonos de família para os três filhos a seu cargo até que os mesmos atingiram a maioridade. Terminado o direito a receber os abonos de família em virtude da legislação espanhola apresentou, em Novembro de 1997, um pedido para obter uma contribuição análoga na Alemanha, alegando que os filhos estavam a prosseguir a sua formação profissional e que, portanto, segundo a legislação daquele país, os subsídios deveriam ser atribuídos até aos 27 anos de idade. Também neste caso o pedido e a subsequente reclamação foram indeferidos pelo BAK, cuja decisão definitiva de indeferimento foi impugnada perante o órgão jurisdicional a quo.

11.
    Por sua vez, o quarto processo foi movido por Calvo Fernández, viúva de um cidadão espanhol que havia trabalhado durante um certo período na Alemanha, onde, antes da morte (ocorrida em 1985), obteve o direito a uma pensão, mas não a prestações familiares. Já beneficiária em Espanha de abonos de família para os três filhos a seu cargo (todos residentes em Espanha e titulares de pensões para órfãos em Espanha e na Alemanha), em Junho de 1992, Calvo Fernández requereu abonos de família também na Alemanha; contudo, não é claro se com esse pedido pretendia obter o integral pagamento dos abonos de família também neste país ou somente complementar as contribuições recebidas em Espanha, com o maior montante dos abonos previstos pela legislação alemã. Contudo, como nos outros casos, o BAK indeferiu o pedido e a subsequente reclamação; contra a decisão definitiva de indeferimento foi, pois, interposto recurso para o órgão jurisdicional a quo. Seguidamente, o BAK indeferiu um novo pedido apresentado por Calvo Fernández para obter abonos de família para os filhos que prosseguiam a sua formação profissional, depois de alcançados os 18 anos; também a decisão que indeferiu a reclamação contra tal decisão foi impugnada perante o órgão jurisdicional a quo. Contudo no despacho de reenvio, não se precisa se no caso de Calvo Fernández o processo principal diz respeito a ambos os recursos ou somente a um deles.

12.
    Para efeitos do presente processo é importante sublinhar que do despacho de reenvio resulta claramente que em nenhum dos quatro casos atrás descritos os direitos às prestações da segurança social adquiridos na Alemanha foram obtidos com base apenas nas disposições alemãs em matéria de segurança social, dado que em nenhum dos casos foram pagas naquele país as contribuições mínimas necessárias para esse efeito. Pelo contrário, os direitos em questão só eram atribuídos na Alemanha graças à tomada em consideração das ulteriores contribuições feitas em Espanha: ou seja, nos primeiros três casos, por força das disposições do Regulamento n.° 1408/71 sobre a totalização de contribuições pagas em diversos Estados-Membros; no quarto, ao invés, em aplicação da Convenção bilateral entre a Alemanha e a Espanha relativa à segurança social (Convenção celebrada em 1973 e aplicável no caso concreto, mesmo depois da adesão da Espanha à Comunidade, a seguir «convenção»).

13.
    Tendo em conta os delicados problemas de direito comunitário levantados pelos processos pendentes, o Sozialgericht Nürnberg considerou, por isso, necessário submeter, a título prejudicial, ao Tribunal de Justiça, as seguintes questões:

«1)    Deve-se interpretar o artigo 77.°, n.° 2, alínea b), conjugado com o artigo 79.°, n.° 1, do Regulamento (CEE) n.° 1408/71, no sentido de que as prestações familiares a favor de descendentes a cargo de pensionistas, cujo direito à pensão num Estado-Membro não decorre apenas da regulamentação desse Estado-Membro, mas também das disposições coordenadoras do direito comunitário em matéria de segurança social, devem ser integralmente pagas, quando o direito à pensão no Estado que não é o da residência subsista por certos períodos de tempo, ou após determinado período de tempo, relativamente aos quais o direito às prestações familiares legalmente previstas no Estado de residência não existe ou deixa de existir, por ter sido ultrapassado certo limite de idade ou um limite de rendimentos ou ainda por falta de apresentação do pedido?

2)    Deve-se interpretar o artigo 78.°, n.° 2, alínea b), conjugado com o artigo 79.°, n.° 1, do Regulamento (CEE) n.° 1408/71, no sentido de que as prestações familiares a favor de órfãos de um trabalhador por conta de outrem ou por conta própria, já falecido, que esteve sujeito à legislação de vários Estados-Membros devem ser integralmente pagas, quando o direito a uma pensão para órfãos num dos Estado-Membros a cuja legislação o trabalhador esteve sujeito não exista nem por força apenas da legislação desse mesmo Estado nem por força das disposições coordenadores do direito comunitário em matéria de segurança social, e quando o direito à pensão para órfãos no Estado que não é o da residência existe relativamente a períodos de tempo, ou após determinado período de tempo, relativamente aos quais o direito às prestações familiares legalmente previstas no Estado de residência não existe ou deixa de existir por ter sido ultrapassado certo limite de idade ou um limite de rendimentos ou ainda por falta de apresentação do pedido?»

14.
    Na acção instaurada perante o Tribunal de Justiça, para além dos recorrentes na causas principais, intervieram os Governos alemão e espanhol e a Comissão. Com o objectivo de reconstruir com maior precisão a legislação nacional relevante e a disciplina prevista pela convenção, o Tribunal de Justiça, por carta datada de 24 de Julho de 2001, pediu alguns esclarecimentos aos governos intervenientes; esses esclarecimentos foram fornecidos por cartas que deram entrada nos dias 2 e 30 de Agosto de 2001.

Análise jurídica

Observação prévia

15.
    Como resulta claramente do seu texto, os artigos 77.° e 78.° do regulamento disciplinam de forma idêntica as prestações para os filhos a cargo dos titulares de pensões ou de rendas e as prestações para os órfãos, seguindo nas duas situações a mesma ratio. Estas disposições prevêem especificamente que, quando os titulares das pensões ou das rendas (no primeiro caso) ou os trabalhadores falecidos (no segundo) tiverem estado sujeitos à legislação de vários Estados-Membros, como na situação em exame, as prestações previstas nessas disposições são, em princípio, concedidas pelo Estado de residência do beneficiário [n.° 2, alínea b), ponto i)]. Quando, todavia, o direito às prestações em questão não seja adquirido com base na legislação desse Estado (tendo também em conta, para esse efeito, as disposições do regulamento sobre a totalização dos períodos de seguro e dos períodos de trabalho para que remete o artigo 79.°), as referidas prestações são concedidas pelo Estado a cuja legislação o titular das pensões ou das rendas ou o trabalhador falecido esteve mais tempo sujeito (sempre que, como é óbvio, o respectivo direito tenha sido adquirido com base na legislação desse Estado, considerando também neste caso as regras sobre a totalização dos períodos de seguro e dos períodos de trabalho) [n.° 2, alínea b), ponto ii)].

16.
    Como se viu, nos casos que deram origem ao presente reenvio prejudicial, os titulares das prestações para filhos a seu cargo ou para órfãos residiam em Espanha, onde, em princípio, as referidas prestações eram devidas. Porém, com base na legislação daquele Estado, o direito às prestações em causa:

-    ou cessava por certos períodos em virtude da ultrapassagem dos limites de rendimento previstos pela legislação desse país (processo Martínez Domínguez);

-    ou cessava pelo facto de os filhos a cargo atingirem uma certa idade (processo Mateos Cruz e Calvo Fernández);

-    ou não podia ser exercido por opção do interessado, para receber outras prestações incompatíveis com a prestação em causa (processo Benítez Urbano);

-    ou, por fim (como talvez se possa deduzir das indicações relativas ao processo Calvo Fernández), implicava o pagamento de somas inferiores às já atribuídas no Estado que não o de residência.

17.
    Considerando, pois, que os titulares das pensões (nos casos Martínez Domínguez, Mateos Cruz e Benítez Urbano) e o trabalhador falecido (no caso Calvo Fernández) estiveram sujeitos, durante um certo período, à legislação alemã, o órgão jurisdicional a quo, com as duas questões prejudiciais, pretende, na prática, saber se, por força dos artigos 77.°, 78.° e 79.° do regulamento, a administração daquele país é obrigada a atribuir as prestações não recebidas em Espanha, pelas razões referidas (ou a complementá-las), na medida em que essas prestações teriam sido atribuídas se se aplicasse a legislação alemã tout court.

18.
    Para responder a estas questões, que convém analisar em conjunto, introduziremos, antes de mais, algumas considerações gerais sobre a interpretação das disposições pertinentes do regulamento à luz da jurisprudência comunitária, para depois avaliar mais especificamente a solução a dar às questões, com referência às diversas situações de facto que se apresentam nos processos principais.

Considerações gerais

19.
    Como vimos, os artigos 77.° e 78.° do regulamento estabelecem os critérios para a determinação do Estado-Membro competente para conceder as prestações aos filhos a cargo ou aos órfãos, concretamente para as hipóteses em que os titulares das pensões ou das rendas (no primeiro caso) ou os trabalhadores falecidos (no segundo) tenham estado sujeitos à legislação de mais do que um Estado-Membro. O Estado-Membro determinado segundo estes critérios é obrigado a atribuir as prestações em causa, ainda que o respectivo direito não tenha sido adquirido naquele Estado, com base apenas na legislação nacional, mas em aplicação das disposições do regulamento sobre a totalização dos períodos de seguro e dos períodos de emprego.

20.
    Em princípio, e de acordo com o princípio da unicidade da lei aplicável, enunciado no artigo 13.°, n.° 1, do regulamento (4), o referido Estado-Membro é o único competente para conceder as prestações em causa, atribuindo-as de acordo com a legislação nele vigente e dentro dos limites por esta definidos. Contudo, pode acontecer que, seguindo esse princípio, os interessados sejam privados dos direitos a prestações mais favoráveis adquiridos noutros Estados-Membros, com base unicamente nas respectivas legislações nacionais; o que iria contrariar o princípio, por diversas vezes sublinhado pela jurisprudência comunitária, segundo o qual «não seria alcançado o objectivo dos artigos 48.° a 51.° do Tratado se os trabalhadores, na sequência do exercício do seu direito de livre circulação, perdessem benefícios de segurança social que, em todo o caso, lhe são garantidos apenas pela legislação de um Estado-Membro».

21.
    Precisamente para evitar esta incongruência, o Tribunal de Justiça estabeleceu, assim, em diversas ocasiões «que as disposições do regulamento [n.° 1408/71] não podem intervir se o seu efeito for o de diminuir as prestações às quais o interessado pode pretender, em virtude da legislação de um único Estado-Membro, com base apenas nos períodos de seguro cumpridos no âmbito dessa legislação» (5). Com interesse para a questão em análise, o Tribunal de Justiça esclareceu, em particular, que os artigos 77.° e 78.° do regulamento devem ser interpretados «no sentido de que o direito a prestações familiares a cargo do Estado em cujo território reside o titular de uma pensão ou de uma renda de invalidez ou de velhice, ou o órfão, não faz cessar o direito a prestações familiares mais elevadas anteriormente concedido a cargo de outro Estado-Membro. Nestas circunstâncias, é devido pelo Estado-Membro referido em último lugar um complemento de prestação igual à diferença entre os dois montantes» (6).

22.
    Todavia, importa sublinhar que a jurisprudência mencionada se refere unicamente às hipóteses em que os sujeitos interessados tenham adquirido os direitos a prestações da segurança social num Estado-Membro que não o da sua residência, em virtude, unicamente, da legislação desse Estado (e não das disposições do regulamento sobre a totalização dos períodos de seguro e dos períodos de emprego), uma vez que só nesse caso a aplicação do regulamento poderia privá-los de prestações mais favoráveis a que, de outra maneira, teriam direito.

23.
    Esta delimitação da jurisprudência em causa resulta claramente do acórdão Bastos Moriana, onde se estabelece «que os artigos 77.°, n.° 2, alínea b), i), e 78.°, n.° 2, alínea b), i), do regulamento devem ser interpretados no sentido de que a instituição competente de um Estado-Membro não é obrigada a conceder aos titulares de pensões ou de rendas ou aos órfãos que residem noutro Estado-Membro um complemento de abono de família (7) no caso de o montante das prestações familiares pagas pelo Estado-Membro de residência ser inferior ao das prestações previstas na legislação do primeiro Estado-Membro, quando o direito à pensão ou à renda, ou o direito do órfão, não tenha sido adquirido exclusivamente em virtude dos períodos de seguro cumpridos nesse Estado» (8). E isto porque, como já referimos, «quando os direitos do titular de pensões ou de rendas ou do órfão sejam apenas concedidos por aplicação das regras de totalização previstas no regulamento [...] a aplicação dos artigos 77.° e 78.° não priva os interessados das prestações concedidas apenas nos termos da legislação de outro Estado-Membro» (9).

24.
    Da mesma forma, no acórdão posterior Gomez Rodriguez, o Tribunal de Justiça esclareceu que «quando o direito às prestações concedido no Estado de residência desapareceu em virtude da superveniência do limite da idade, a instituição competente doutro Estado-Membro não é obrigada a conceder prestações aos interessados, a menos que estes aí tenham adquirido o seu direito com base apenas nos períodos de seguro cumpridos nesse Estado» (10). O Tribunal de Justiça concluiu, portanto, que «o artigo 78.°, n.° 2, alínea b), do regulamento deve ser interpretado no sentido de que as disposições que constam do ponto ii) não são aplicáveis numa situação em que o direito a uma pensão de órfão, que, num primeiro tempo, tenha sido concedido nos termos do ponto i) no Estado-Membro de residência do beneficiário desapareceu em virtude da superveniência do limite de idade, quando, noutro Estado-Membro a cuja legislação o segurado também esteve sujeito, o direito a uma pensão de órfão seria concedido mesmo após essa data, no caso de aplicação da regra da totalização prevista no artigo 79.° do regulamento» (11).

Avaliação da presente situação de facto

25.
    Feitos estes esclarecimentos no plano geral, parece-nos que as questões formuladas pelo Sozialgericht Nürnberg em referência às diversas situações de facto dos processos principais podem ser facilmente resolvidas à luz da referida jurisprudência comunitária e, designadamente, dos acórdãos Bastos Moriana e Gómez Rodríguez. Tal como a Comissão e o Governo alemão, consideramos, de facto, que na situação em exame, o direito às prestações de segurança social foi adquirido no Estado de residência, com a consequência de, nos termos da jurisprudência em causa, as ulteriores prestações requeridas num Estado-Membro diferente, não deverem ser concedidas a não ser que o respectivo direito resultasse somente da legislação deste último Estado.

26.
    Com efeito, não cremos que se possa negar, como parecem fazer, ao invés, os recorrentes principais e o Governo espanhol, que, nos quatro casos em exame, o direito às prestações por filho a cargo ou por órfãos tenha sido adquirido no país de residência. Não podem certamente subsistir dúvidas a este respeito nos casos Mateos Cruz e Calvo Fernández, dado que, precisamente como nos referidos processos Bastos Moriana e Gómez Rodríguez, as prestações de segurança social tinham sido efectivamente atribuídas no Estado de residência, ainda que por períodos mais curtos ou de montantes menos elevados do que os previstos pela legislação do outro Estado-Membro a cuja legislação os segurados tinham estado igualmente sujeitos. A mesma solução deve, pois, ser acolhida no processo Martínez Domínguez, dado que também neste caso as prestações de segurança social tinham sido efectivamente atribuídas no Estado de residência, ainda que com algumas interrupções devidas à superação momentânea dos limites de rendimento previstos para esse efeito pela legislação daquele país. A mesma solução se impõe também, em nosso entender, no caso Benítez Urbano, uma vez que o interessado tinha, em princípio, direito às prestações controvertidas no Estado de residência e a falta de atribuição das mesmas devia-se, exclusivamente, à sua opção de beneficiar de diversas prestações incompatíveis com as mesmas.

27.
    Considerando, portanto, que em todos os casos o direito às prestações para os filhos a cargo ou para os órfãos foi adquirido no Estado de residência, as prestações ulteriores requeridas num Estado-Membro diferente só devem ser atribuídas, com base na jurisprudência Bastos Moriana e Gómez Rodríguez, se o respectivo direito tiver sido adquirido em virtude unicamente da legislação do referido Estado. Não incumbe, contudo, ao Tribunal de Justiça avaliar se, nas diversas situações de facto que aqui importam, essa condição está ou não satisfeita (questão sobre a qual se detiveram alguns dos recorrentes principais), tratando-se, como é evidente, de uma questão de direito interno que deve ser resolvida pelo órgão jurisdicional nacional.

28.
    Aqui, limitamo-nos a realçar que no caso Calvo Fernández se levanta, a este propósito, um problema particular. Com efeito, resulta do despacho de reenvio que neste caso o direito à pensão para órfãos foi adquirido na Alemanha, por força da referida Convenção de 1973 entre este país e a Espanha. Segundo as informações fornecidas pelo Governo alemão em resposta a uma oportuna questão do Tribunal de Justiça, essa convenção continuou a aplicar-se no caso concreto mesmo depois da adesão da Espanha à Comunidade e à consequente entrada em vigor do regulamento neste país; e isto na medida em que as prestações concedidas em virtude daquela convenção eram mais favoráveis para o interessado do que as atribuídas pelo regulamento. Acrescentamos a este respeito que a aplicação da convenção nos parece, no caso concreto, correcta, uma vez que o trabalhador falecido tinha adquirido os direitos dela derivados, antes da adesão da Espanha à Comunidade, com a consequência de, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, tais direitos (e os direitos dos seus sucessores) não poderiam cessar por efeito da entrada em vigor do regulamento (12).

29.
    Dito isto, entendemos que, para efeitos da aplicação do princípio enunciado nos acórdãos Bastos Moriana e Gómez Rodríguez ao caso específico ora em exame, os direitos adquiridos num Estado-Membro em virtude de uma convenção bilateral com um outro Estado-Membro, devem ser, sem mais, equiparados aos que derivam da legislação de segurança social do primeiro Estado. De facto, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de precisar que a sua jurisprudência sobre os complementos de prestações de segurança social deve ser interpretada «no sentido de que, por prestações concedidas por força da legislação de um Estado-Membro, devem entender-se tanto as previstas pelo direito nacional, estabelecido pelo legislador nacional, como as resultantes das disposições de convenções internacionais de segurança social em vigor entre dois ou mais Estados-Membros e integradas no seu direito nacional, que conduzem, para o trabalhador em causa, a uma situação mais favorável que a resultante da regulamentação comunitária» (13). De resto, é evidente que se assim não fosse, seria violado o princípio, diversa vezes referido, segundo o qual a aplicação do regulamento não deve privar os trabalhadores migrantes de prestações mais favoráveis a que, de outra forma, teriam direito.

30.
    Do que ficou dito resulta que, no caso Calvo Fernández, as prestações de segurança social adquiridas na Alemanha por força da convenção bilateral devem ser equiparadas às adquiridas em virtude da legislação sobre segurança social daquele país. Incumbe, pois, ao órgão jurisdicional nacional estabelecer se as prestações familiares controvertidas no presente processo são efectivamente devidas na Alemanha por força da convenção.

31.
    À luz de tais considerações, entendemos, portanto, que se deve responder ao Sozialgericht Nürnberg que o artigo 77.°, n.° 2, alínea b), e o artigo 78.°, n.° 2, alínea b), do regulamento, conjugados com o disposto no artigo 79.°, n.° 1, do mesmo regulamento, devem ser interpretados no sentido de que, quando o direito às prestações por filhos a cargo ou por órfãos neles previsto, seja adquirido no Estado de residência do seu titular, as prestações ulteriores requeridas num Estado-Membro diferente só devem ser atribuídas se o respectivo direito tiver sido adquirido neste último Estado, em virtude exclusivamente da sua própria legislação nacional ou de uma convenção entre esse Estado e outro Estado-Membro aplicável mesmo depois da entrada em vigor do regulamento.

Conclusão

32.
    Com base nas considerações que antecedem, propomos que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais formuladas pelo Sozialgericht Nürnberg nos seguintes termos:

«Os artigos 77.°, n.° 2, alínea b), e 78.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento n.° 1408/71 do Conselho, de 4 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, conjugados com o disposto no artigo 79.°, n.° 1, do mesmo regulamento, devem ser interpretados no sentido de que, quando o direito às prestações por filhos a cargo ou por órfãos neles previsto seja adquirido no Estado de residência do seu titular, as prestações ulteriores requeridas num Estado-Membro diferente devem ser atribuídas somente se o respectivo direito tiver sido adquirido neste último Estado, em virtude exclusivamente da sua própria legislação nacional ou de uma convenção entre esse Estado e outro Estado-Membro, aplicável mesmo depois da entrada em vigor do Regulamento n.° 1408/71.»


1: -     Língua original: italiano.


2: -     JO L 149, p. 2; EE 05 F1 p. 98.


3: -     JO L 230, p. 6.


4: -     V., a este respeito, o acórdão de 7 de Maio de 1998, Gómez Rodríguez (C-113/96, Colect., p. I-2461, n.° 27).


5: -     Acórdão de 27 de Fevereiro de 1997, Bastos Moriana e o. (C-59/95, Colect., p. I-1071, n.° 17), que remete especialmente para o acórdão de 21 de Outubro de 1975, Petroni (24/75, Colect., p. 391, n.os 13 e 16).


6: -     Acórdão Bastos Moriana, referido no n.° 16, que remete para os acórdãos de 12 de Junho de 1980, Laterza (733/79, Recueil, p. 1915) e de 9 de Julho de 1980, Gravina (807/79, Recueil, p. 2205).


7: -     No sentido de esclarecer o que deve entender-se por «complemento de abono de família» importa remeter para o n.° 5 do acórdão Bastos Moriana aqui citado, onde se estabelece: «As recorrentes apresentaram ao Bundesanstalt für Arbeit pedidos no sentido de lhes serem concedidos abonos por filho a cargo nos termos da lei alemã relativamente aos seus filhos, na medida em que esses abonos sejam concedidos por períodos mais longos, ou de montante mais elevado do que os concedidos pelo seu Estado de residência. As recorrentes pretendem, assim, um complemento igual à diferença entre o abono alemão e o do Estado de residência (a seguir ‘abono complementar’).»


8: -     Acórdão referido no n.° 23.


9: -     N.° 19.


10: -     Acórdão referido no n.° 32.


11: -     N.° 33.


12: -    V., a este respeito, o acórdão de 7 de Fevereiro de 1991, Rönfeldt (C-227/89, Colect., p. I-323), no qual o Tribunal de Justiça declarou que «os artigos 48.°, n.° 2, e 51.° do Tratado devem ser interpretados no sentido de que se opõem à perda de benefícios da segurança social que decorreriam, para os trabalhadores interessados, da inaplicabilidade, na sequência da entrada em vigor do Regulamento n.° 1408/71 do Conselho, das convenções em vigor entre dois ou vários Estados-Membros e integradas no seu direito nacional» (n.° 29). O âmbito dessa jurisprudência foi, seguidamente, determinado pelo acórdão de 9 de Novembro de 1995, Thévenon (C-475/93, Colect., p. I-3813), onde se esclarece que o princípio consagrado por essa jurisprudência só vale para os casos em que o direito à livre circulação tenha sido exercido antes da entrada em vigor do Regulamento. No acórdão Gómez Rodríguez diversas vezes referido determina-se, por outro lado, que o princípio do acórdão Rönfeldt se aplica num caso como o caso em exame, em que o trabalhador falecido completou o seu período de seguro na Alemanha e em Espanha, antes da adesão deste último país à Comunidade (n.° 41). Para uma confirmação posterior v., em último lugar, o acórdão de 5 de Fevereiro de 2002, Kaske (C-277/99, Colect., p. I-0000).


13: -     Acórdão Rönfeldt, referido no n.° 27.