Language of document : ECLI:EU:T:2023:314

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Sexta Secção)

7 de junho de 2023 (*)

«Marca da União Europeia — Procedimento de revogação de decisões ou de cancelamento de inscrições — Revogação de uma decisão que padece de um erro manifesto imputável ao EUIPO — Artigo 103.o, n.o 1, do Regulamento (UE) 2017/1001 — Inexistência de erro manifesto»

No processo T‑519/22,

Société des produits Nestlé SA, com sede em Vevey (Suíça), representada por A. Jaeger‑Lenz, A. Lambrecht e A‑C Salger, advogados,

recorrente,

contra

Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO), representado por V. Ruzek, na qualidade de agente,

recorrido,

sendo a outra parte no processo na Câmara de Recurso do EUIPO, interveniente no Tribunal Geral,

European Food SA, com sede em Păntășești (Roménia), representada por I. Speciac, advogada,

O TRIBUNAL GERAL (Sexta Secção),

composto por: M. J. Costeira, presidente, U. Öberg e P. Zilgalvis (relator), juízes,

secretário: V. Di Bucci,

vistos os autos,

visto não terem as partes apresentado um pedido de marcação de audiência no prazo de três semanas a contar da notificação do encerramento da fase escrita do processo e tendo sido decidido, nos termos do artigo 106.o, n.o 3, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, julgar o recurso sem fase oral,

profere o presente

Acórdão

1        Através do seu recurso interposto ao abrigo do artigo 263.o TFUE, a recorrente, a Société des produits Nestlé SA, pede a anulação da Decisão da Primeira Câmara de Recurso do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO) de 27 de junho de 2022 (processo R 894/2020‑1) (a seguir «decisão impugnada»).

 Antecedentes do litígio

2        Em 20 de novembro de 2001, a recorrente apresentou ao EUIPO um pedido de registo de marca da União Europeia para o sinal nominativo FITNESS ao abrigo do Regulamento (CE) n.o 40/94 do Conselho, de 20 de dezembro de 1993, sobre a marca comunitária (JO 1994, L 11, p. 1), conforme alterado [substituído pelo Regulamento (CE) n.o 207/2009 do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca da UE (JO 2009, L 78, p. 1), conforme alterado, por sua vez, substituído pelo Regulamento (UE) 2017/1001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, sobre a marca da União Europeia (JO 2017, L 154, p. 1)].

3        Os produtos para os quais o registo foi pedido pertencem às classes 29, 30 e 32 na aceção do Acordo de Nice relativo à Classificação Internacional de Produtos e Serviços para efeitos de Registo de Marcas, de 15 de junho de 1957, conforme revisto e alterado.

4        O pedido de marca foi publicado no Boletim de Marcas Comunitárias n.o 3/2003, de 6 de janeiro de 2003. Essa marca foi registada em 30 de maio de 2005 sob o número 2470326.

5        Em 2 de setembro de 2011, a interveniente, a European Food SA, apresentou um pedido de declaração de nulidade da marca controvertida para todos os produtos por ela abrangidos.

6        Os motivos invocados em apoio do pedido de declaração de nulidade eram os referidos no artigo 52.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 207/2009 [atual artigo 59.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento 2017/1001], lido em conjugação com o artigo 7.o, n.o 1, alíneas b) e c), do mesmo regulamento [atual artigo 7.o, n.o 1, alíneas b) e c), do Regulamento 2017/1001].

7        Em 18 de outubro de 2013, a Divisão de Anulação indeferiu na íntegra o pedido de declaração de nulidade.

8        Em 16 de dezembro de 2013, a interveniente interpôs recurso da decisão da Divisão de Anulação. No processo de recurso, a interveniente apresentou novas provas em apoio da sua alegação de que o termo «fitness» tinha um conteúdo descritivo para os produtos em causa.

9        Por Decisão de 19 de junho de 2015 no processo R 2542/2013‑4, a Quarta Câmara de Recurso do EUIPO negou provimento ao recurso. Em especial, rejeitou por serem extemporâneas, sem as tomar em consideração, as provas que foram apresentadas perante ela pela primeira vez.

10      Por petição que deu entrada na Secretaria do Tribunal Geral em 19 de agosto de 2015, a interveniente interpôs recurso da decisão da Quarta Câmara de Recurso.

11      Por Acórdão de 28 de setembro de 2016, European Food/EUIPO — Société des produits Nestlé (FITNESS) (T‑476/15, a seguir «primeiro acórdão de anulação», EU:T:2016:568), o Tribunal Geral anulou a decisão da Quarta Câmara de Recurso. Concluiu que, ao considerar que os elementos de prova produzidos pela interveniente pela primeira vez na Câmara de Recurso não deviam ser tomados em consideração devido à sua apresentação tardia, a Câmara de Recurso tinha cometido um erro de direito.

12      O EUIPO interpôs recurso do primeiro acórdão de anulação. Com o seu Acórdão de 24 de janeiro de 2018, EUIPO/European Food (C‑634/16 P, a seguir «acórdão proferido em sede de recurso», EU:C:2018:30), o Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso.

13      Por Decisão de 6 de junho de 2018 no processo R 755/2018‑2, a Segunda Câmara de Recurso anulou a decisão da Divisão de Anulação. Considerou, em especial, que decorria do primeiro acórdão de anulação e do acórdão proferido em sede de recurso que estava obrigada a apreciar o recurso que lhe tinha sido submetido tendo em conta elementos de prova apresentados pela interveniente pela primeira vez na Quarta Câmara de Recurso no processo R 2542/2013‑4. Tendo em conta os referidos elementos, a Câmara de Recurso considerou que a marca controvertida era descritiva e totalmente desprovida de caráter distintivo.

14      Por petição que deu entrada na Secretaria do Tribunal Geral em 11 de setembro de 2018, a recorrente interpôs recurso da decisão da Segunda Câmara de Recurso.

15      Por Acórdão de 10 de outubro de 2019, Société des produits Nestlé/EUIPO — European Food (FITNESS) (T‑536/18, não publicado, a seguir «segundo acórdão de anulação», EU:T:2019:737), o Tribunal Geral anulou a decisão da Segunda Câmara de Recurso. Declarou, em especial, que a Segunda Câmara de Recurso tinha erradamente considerado que decorria do primeiro acórdão de anulação e do acórdão proferido em sede de recurso que estava obrigada a tomar em consideração os elementos de prova apresentados pela interveniente pela primeira vez na Quarta Câmara de Recurso.

16      O EUIPO interpôs recurso do segundo acórdão de anulação. Por Despacho de 18 de março de 2020, European Food/EUIPO (C‑908/19 P, não publicado, EU:C:2020:212), o Tribunal de Justiça decidiu não receber o recurso.

17      Por Decisão de 12 de outubro de 2021 (a seguir «decisão de 2021»), a Primeira Câmara de Recurso do EUIPO negou provimento ao recurso interposto pela interveniente. No que respeita aos elementos de prova apresentados na Quarta Câmara de Recurso, considerou que a interveniente não tinha justificado de forma adequada a apresentação tardia dos referidos elementos e, por conseguinte, estava obrigada a exercer o seu poder de apreciação de forma negativa e a não os aceitar.

18      Em 24 de dezembro de 2021 a interveniente interpôs no Tribunal Geral recurso da decisão de 2021, registado sob o número T‑799/21.

19      Por comunicação de 15 de fevereiro de 2022, a Câmara de Recurso informou as partes da sua intenção de revogar a decisão de 2021 em aplicação do artigo 103.o do Regulamento 2017/1001.

20      Através da decisão impugnada, a Primeira Câmara de Recurso revogou a decisão de 2021. Em primeiro lugar, considerou que a abordagem adotada na referida decisão, segundo a qual a regra 50, n.o 1, terceiro parágrafo, do Regulamento (CE) n.o 2868/95 da Comissão, de 13 de dezembro de 1995, relativo à execução do Regulamento n.o 40/94 (JO 1995, L 303, p. 1), se aplicava por analogia no âmbito de um processo de declaração de nulidade baseado em causas de nulidade absoluta era manifestamente errada, na medida em que resultava do acórdão proferido em sede de recurso que esta disposição não era aplicável no âmbito de um processo de declaração de nulidade baseado em causas de nulidade absoluta. Em segundo lugar, a Câmara de Recurso considerou que a referência, nos n.os 57 e 58 da decisão de 2021, ao Acórdão de 22 de setembro de 2011, Cesea Group/IHMI — Mangini & C. (Mangiami) (T‑250/09, não publicado, EU:T:2011:516), era igualmente errada, na medida em que o referido acórdão se tinha baseado na regra 22, n.o 2, do Regulamento n.o 2868/95, que constitui lex specialis aplicável especificamente à prova de utilização e não pode, assim, ser transposta para os processos de declaração de nulidade.

 Pedidos das partes

21      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão impugnada;

–        condenar o EUIPO nas despesas.

22      O EUIPO conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a recorrente nas despesas por ele efetuadas em caso de realização de audiência.

23      A interveniente conclui, em substância, pedindo que o Tribunal Geral se digne negar provimento ao recurso.

 Questão de direito

24      A recorrente invoca três fundamentos de recurso, relativos, o primeiro, à violação do artigo 103.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001, lido em conjugação com o artigo 70.o do Regulamento Delegado (UE) 2018/625 da Comissão, de 5 de março de 2018, que complementa o Regulamento 2017/1001 e que revoga o Regulamento Delegado (UE) 2017/1430 (JO 2018, L 104, p. 1), o segundo, à violação do artigo 72.o, n.o 6, do Regulamento 2017/1001 e, o terceiro, à violação do artigo 94.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001, lido em conjugação com o artigo 70.o do Regulamento Delegado 2018/625.

 Quanto ao primeiro fundamento, relativo à violação do artigo 103.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001, lido em conjugação com o artigo 70.o do Regulamento Delegado 2018/625

25      A recorrente sustenta que a revogação da decisão de 2021 ao abrigo do artigo 103.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001 é ilegal. A este respeito, não se pode considerar que a citação errada pela Câmara de Recurso da regra 50, n.o 1, do Regulamento n.o 2868/95 e da jurisprudência relativa à regra 22, n.o 2, do mesmo regulamento consiste num erro manifesto na aceção do artigo 103.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001 e não justifica, por si só, a revogação da decisão de 2021. Segundo a recorrente, o conceito de «erro manifesto» é composto por dois níveis: deve ser facilmente percetível e de uma tal gravidade excecional que torne o dispositivo da decisão anterior implausível. Ora, no caso em apreço, as conclusões formuladas pela Câmara de Recurso nos n.os 60 a 62 da decisão de 2021 não assentam numa aplicação por analogia da regra 50, n.o 1, do Regulamento n.o 2868/95. A citação desta disposição é um erro puramente formal e sem impacto na fundamentação ou na plausibilidade do dispositivo da decisão de 2021.

26      Além disso, a recorrente considera que, nos n.os 61 e 62 da decisão de 2021, a Câmara de Recurso tinha, com razão, insistido particularmente na justificação adequada da apresentação tardia das provas como um fator que prevalecia sobre as considerações a favor da tomada em consideração das referidas provas. A exigência de uma justificação adequada não está ligada nem à regra 50, n.o 1, do Regulamento n.o 2868/95 nem à regra 22, n.o 2, do mesmo regulamento. Esta abordagem é conforme com a jurisprudência e, em especial, com o n.o 44 do segundo acórdão de anulação.

27      Por último, a recorrente alega que a fundamentação dada pela Câmara de Recurso, no n.o 29 da decisão impugnada, é bastante incompleta. Do mesmo modo, indica que existe uma divergência no enunciado dos erros alegados entre a comunicação da Câmara de Recurso de 15 de fevereiro de 2022 e a fundamentação da decisão impugnada. Afirma que a referida comunicação sugeriu que o alegado erro residia na «abordagem estrita da apresentação de novos elementos de prova».

28      O EUIPO entende que a Câmara de Recurso não violou o artigo 103.o do Regulamento 2017/1001. Sustenta que os erros manifestos identificados na decisão impugnada afetaram a apreciação de fundo efetuada pela Câmara de Recurso na decisão de 2021 e que eram de natureza tal, que não permitiam a manutenção do dispositivo desta última decisão sem uma nova análise. Mais precisamente, segundo o EUIPO, a aplicação por analogia das regras em questão desempenhou um papel determinante na conclusão da Câmara de Recurso, formulada no n.o 61 da decisão de 2021, segundo a qual era necessário adotar uma abordagem estrita no que respeita à apresentação de novos elementos de prova a fim de proporcionar um grau suficiente de segurança jurídica e de previsibilidade aos procedimentos. Esta conclusão constitui o fundamento das outras conclusões da Câmara de Recurso. Em especial, esta «abordagem estrita no que respeita à apresentação de novos elementos de prova» levou a referida Câmara a considerar que estava obrigada a exercer o seu poder de apreciação de forma negativa.

29      No que respeita à exigência de justificação adequada da apresentação tardia dos elementos de prova, o EUIPO entende que a interveniente a tinha apresentado, já que tinha invocado a necessidade de responder às conclusões da Divisão de Anulação, mas que a Câmara de Recurso a tinha, erradamente, rejeitado, no n.o 54 da decisão de 2021, baseando‑se na jurisprudência relativa à regra 22, n.o 2, do Regulamento n.o 2868/95. No que respeita ao n.o 43 do acórdão proferido em sede de recurso, o EUIPO entende que o segmento da frase segundo o qual «cabe à parte que apresenta as provas pela primeira vez na Câmara de Recurso justificar as razões pelas quais estas provas são apresentadas nesta fase do processo bem como demonstrar que foi impossível apresentá‑las no decurso da instância que correu na Divisão de Anulação» não pode ser interpretado, à luz da jurisprudência anterior, no sentido de que exige que a parte demonstre a impossibilidade de apresentar os elementos de prova em causa numa fase anterior do processo. Tal abordagem não só privaria o artigo 95.o, n.o 2, do Regulamento 2017/1001 do seu efeito útil como seria igualmente inconciliável com as considerações do Tribunal de Justiça no acórdão proferido em sede de recurso.

30      Por último, o EUIPO recorda, à semelhança da Câmara de Recurso, que o presente processo tem uma história particularmente longa devido a erros processuais. Seria, portanto, benéfico para as partes e benéfico para o processo que se corrigisse o erro cometido na decisão de 2021 em vez de aguardar o acórdão do Tribunal Geral, o que atrasaria ainda mais o processo.

31      A interveniente sustenta que o erro em questão pode ser facilmente detetado e apresenta um caráter altamente evidente. Em seu entender, na decisão de 2021, a Câmara de Recurso efetuou toda a sua análise partindo do postulado de que a regra 50, n.o 1, do Regulamento n.o 2868/95 era aplicável no caso em apreço. Devido a este erro, a Câmara de Recurso sentiu‑se obrigada a exercer o seu poder de apreciação no sentido da inadmissibilidade dos elementos de prova, apesar de ter considerado que estes últimos eram à primeira vista pertinentes. Ao fazê‑lo, a referida Câmara cometeu um erro de direito na medida em que limitou as hipóteses em que podia ter exercido o seu poder de apreciação no sentido da admissibilidade dos elementos de prova tardios às situações caracterizadas por novas circunstâncias.

32      Nos termos do artigo 103.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001, caso o EUIPO tome uma decisão que enferme de um erro manifesto, imputável ao EUIPO, este procede à revogação dessa decisão.

33      Em conformidade com o artigo 70.o, n.o 1, do Regulamento Delegado 2018/625, se o EUIPO considerar que uma decisão ou inscrição no Registo está sujeita a revogação nos termos do artigo 103.o do Regulamento 2017/1001, informará a parte afetada sobre a revogação prevista.

34      Resulta da jurisprudência que um erro só pode ser qualificado de manifesto quando puder ser detetado de forma evidente, à luz dos critérios aos quais o legislador entendeu subordinar o exercício pela administração do seu poder de apreciação, e os elementos de prova apresentados forem suficientes para retirar plausibilidade à apreciação feita por essa administração, sem que essa apreciação possa ser admitida como justificada e coerente [v. Acórdão de 22 de setembro de 2021, Marina Yachting Brand Management/EUIPO — Industries Sportswear (MARINA YACHTING), T‑169/20, EU:T:2021:609, n.o 112 e jurisprudência referida].

35      No que respeita à aplicação do artigo 103.o do Regulamento 2017/1001, foi declarado que o caráter «manifesto» ou flagrante do erro que justifica a adoção de uma decisão de revogação de uma decisão anterior qualificava erros com um elevado grau de evidência que não permitiam a manutenção do dispositivo dessa decisão anterior sem uma nova análise que seria efetuada posteriormente pela instância que tinha tomado a referida decisão (v., neste sentido, Acórdão de 22 de setembro de 2021, MARINA YACHTING, T‑169/20, EU:T:2021:609, n.o 111 e jurisprudência referida).

36      No caso em apreço, a Câmara de Recurso invocou dois fundamentos que justificaram a revogação da decisão de 2021. Em primeiro lugar, considerou, nos n.os 26 e 27 da decisão impugnada, que a abordagem segundo a qual era possível basear‑se na regra 50, n.o 1, do Regulamento n.o 2868/95 e considerar que esta regra se aplicava, por analogia, no âmbito de um processo de declaração de nulidade era manifestamente errada, na medida em que, como resultava dos n.os 48 e 49 do acórdão proferido em sede de recurso, a referida regra não era aplicável no âmbito de um processo de declaração de nulidade. A este respeito, a Câmara de Recurso acrescentou, no n.o 29 da decisão impugnada, que se tratava de um erro manifesto na aceção do artigo 103.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001, na medida em que a Câmara de Recurso parecia ter ignorado o acórdão do Tribunal de Justiça no mesmo processo, violando assim o princípio da autoridade de caso julgado. Em segundo lugar, a Câmara de Recurso entendeu, no n.o 28 da decisão impugnada, que era errado fazer referência, nos n.os 57 e 58 da decisão de 2021, ao Acórdão de 22 de setembro de 2011, Mangiami (T‑250/09, não publicado, EU:T:2011:516), relativo à aplicação da regra 22, n.o 2, do Regulamento n.o 2868/95, que se aplicava à prova de utilização, e considerar que essa jurisprudência era plenamente transponível para o contexto de nulidade em causa.

37      Há que apreciar se, à luz da jurisprudência recordada no n.o 35, supra, as circunstâncias salientadas pela Câmara de Recurso podem ser qualificadas de erros manifestos na aceção do artigo 103.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001.

38      No que respeita, num primeiro momento, à citação, no n.o 40 da decisão de 2021, da regra 50, n.o 1, do Regulamento n.o 2868/95, é facto assente que esta disposição não é aplicável no âmbito de um processo de declaração de nulidade baseado em causas de nulidade absoluta, conforme foi decidido pelo Tribunal Geral e confirmado pelo Tribunal de Justiça (acórdão proferido em sede de recurso, n.o 49, e primeiro acórdão de anulação, n.o 60).

39      Todavia, não resulta da decisão impugnada, nem in fine da decisão de 2021, que a referência, no n.o 40 desta última, à regra 50, n.o 1, do Regulamento n.o 2868/95 tenha tido influência nas conclusões da Câmara de Recurso no que respeita à possibilidade de aceitar os elementos de prova apresentados tardiamente pela interveniente, pelo que o erro cometido não permitia a manutenção do dispositivo da decisão de 2021 sem uma nova análise.

40      Com efeito, no n.o 62 da decisão de 2021, a Câmara de Recurso chegou à conclusão de que, não havendo uma justificação aceitável relativamente à apresentação tardia dos elementos de prova, estava obrigada a exercer o seu poder de apreciação de forma negativa e não devia aceitar os elementos de prova adicionais. Ora, esta exigência, como resulta dos critérios mencionados pela Câmara de Recurso, no n.o 43 da decisão de 2021, decorre nomeadamente do n.o 44 do segundo acórdão de anulação.

41      No que respeita ao raciocínio que a levou à conclusão acima referida, a Câmara de Recurso referiu‑se, antes de mais, no n.o 41 da sua decisão de 2021, ao segundo acórdão de anulação, do qual resultava nomeadamente que os elementos de prova apresentados tardiamente não eram automaticamente admissíveis e que cabia à parte que apresentava essas provas justificar as razões pelas quais essas provas tinham sido apresentadas nessa fase do processo, bem como demonstrar a impossibilidade de tal apresentação durante a instância na Divisão de Anulação.

42      Em seguida, depois de ter especificado, no n.o 43 da decisão de 2021, os critérios a ter em conta, a Câmara de Recurso considerou, no n.o 47 da referida decisão, que os elementos apresentados pela primeira vez na fase de recurso eram, à primeira vista, pertinentes. Todavia, segundo a referida Câmara, nada provava que esses elementos de prova eram novos, porque não estavam disponíveis ou porque não tinha sido possível apresentá‑los durante o procedimento anulação. Por conseguinte, a Câmara de Recurso considerou que os elementos de prova adicionais já podiam ter sido apresentados na Divisão de Anulação.

43      Por último, a Câmara de Recurso considerou, no n.o 54 da decisão de 2021, que a justificação da apresentação tardia dos elementos de prova em causa por parte da interveniente, a saber, a constatação, pela Divisão de Anulação, da insuficiência dos elementos de prova inicialmente juntos, não podia ser considerada um elemento novo que justificava a apresentação de provas adicionais na fase de recurso.

44      Daqui resulta que não foi demonstrado que a referência errada à regra 50, n.o 1, do Regulamento n.o 2868/95 teve impacto no raciocínio efetuado pela Câmara de Recurso ou na sua conclusão.

45      Quanto à consideração que consta do n.o 61 da decisão de 2021, no que respeita à necessidade de adotar uma abordagem estrita relativamente à apresentação de novos elementos de prova, não resulta de forma evidente do raciocínio da Câmara de Recurso que aquela se baseou na regra 50, n.o 1, do Regulamento n.o 2868/95.

46      No que respeita, num segundo momento, à possibilidade de transpor, para o caso em apreço, os princípios enunciados no n.o 27 do Acórdão de 22 de setembro de 2011, Mangiami (T‑250/09, não publicado, EU:T:2011:516), a Câmara de Recurso entendeu, no n.o 57 da decisão de 2021, que admitir provas adicionais apresentadas pela primeira vez na fase de recurso sem justificação válida privaria do respetivo efeito a regra 37, alínea b), iv), e a regra 39, n.o 3, do Regulamento n.o 2868/95. Para chegar a esta conclusão, a referida câmara considerou nomeadamente, no n.o 58 da decisão de 2021, que os princípios enunciados no referido acórdão, proferido no contexto da prova de utilização, eram plenamente transponíveis para o contexto da nulidade.

47      Além disso, nos n.os 43 e 54 da decisão de 2021, a Câmara de Recurso referiu‑se igualmente ao Acórdão de 22 de setembro de 2011, Mangiami (T‑250/09, não publicado, EU:T:2011:516). Por um lado, no n.o 43 dessa decisão, citando o n.o 24 do referido acórdão, a Câmara de Recurso considerou que devia, designadamente, examinar se a requerente da declaração de nulidade se referia a novos elementos de facto para contestar a possibilidade de registar a marca anterior em causa ou se as provas adicionais não estavam disponíveis no momento em que deviam ser apresentadas, podendo estas circunstâncias justificar nomeadamente a apresentação tardia de provas adicionais. Por outro lado, no n.o 54 da decisão de 2021, referindo‑se aos n.os 26 e 27 do acórdão acima referido, a referida Câmara considerou que a conclusão, a que a Divisão de Anulação chegou, relativa à insuficiência dos elementos de prova não podia ser considerada um elemento que justificava que se apresentassem provas adicionais juntas pela primeira vez na Câmara de Recurso. Consequentemente, a referida câmara considerou que a decisão da Divisão de Anulação não era um elemento novo.

48      A este respeito, importa salientar que, nos n.os 26 e 27 do Acórdão de 22 de setembro de 2011, Mangiami (T‑250/09, não publicado, EU:T:2011:516), foi declarado que o raciocínio da Divisão de Anulação, que tinha levado à conclusão da insuficiência da prova de utilização da marca anterior, não podia ser considerado, em si mesmo, um elemento novo que justificava que se apresentassem provas adicionais pela primeira vez na Câmara de Recurso. Admitir que tal raciocínio da Divisão de Anulação constituía um elemento novo teria limitado consideravelmente o alcance do prazo previsto na regra 22, n.o 2, do Regulamento n.o 2868/95. O Tribunal Geral declarou que isso significava que a Câmara de Recurso, de cada vez que considerava que a Divisão de Anulação tinha erradamente entendido que as provas de utilização apresentadas eram insuficientes, poderia aceitar as provas adicionais de utilização apresentadas pela primeira vez perante si.

49      Ora, admitindo que as considerações relativas à justificação da apresentação de provas adicionais num contexto de aplicação da regra 22, n.o 2, do Regulamento n.o 2868/95 não são transponíveis para um processo regido pela regra 37, alínea b), iv), e pela regra 39, n.o 3, do mesmo regulamento, o eventual erro cometido pela Câmara de Recurso não pode ser qualificado de manifesto na aceção da jurisprudência acima referida no n.o 35.

50      A este respeito, há que salientar, em primeiro lugar, que a Câmara de Recurso não aplicou a regra 22, n.o 2, do Regulamento n.o 2868/95 num processo de declaração de nulidade, tendo‑se antes referido, por analogia, a uma jurisprudência relativa à aplicação desta disposição.

51      Em segundo lugar, deve salientar‑se, por um lado, que resulta da regra 22, n.o 2, do Regulamento n.o 2868/95 que, se o oponente tiver de provar a utilização ou a existência de motivos justificados para a não utilização, o EUIPO convidá‑lo‑á a fornecer a necessária prova no prazo por ele fixado. Se o oponente não fornecer a prova no prazo fixado, o EUIPO rejeitará a oposição. Por outro lado, resulta da regra 37, alínea b), iv), do Regulamento n.o 2868/95 que o pedido de anulação ou de declaração de extinção ou nulidade da marca da União Europeia deve incluir a indicação de factos, comprovativos e argumentos apresentados em apoio do pedido. Por seu turno, a regra 39, n.o 3, do mesmo regulamento enuncia que, quando tal pedido não cumpre o disposto na regra 37 do referido regulamento, o EUIPO convidará o requerente a corrigir as irregularidades detetadas, num prazo a determinar pelo EUIPO, e, se as irregularidades não forem corrigidas no prazo fixado, o EUIPO rejeitará o pedido por inadmissibilidade.

52      Impõe‑se observar que estes dois contextos processuais são certamente distintos, embora, no entanto, comparáveis, na medida em que o EUIPO fixa, em ambos, um prazo para a apresentação dos elementos de prova e rejeita os pedidos quando essas provas não sejam apresentadas. Assim, esta diferença de procedimentos não pode constituir, em si mesma, uma razão suficiente para se considerar que a jurisprudência relativa à prova de utilização é manifestamente intransponível para os processos de declaração de nulidade. A este respeito, deve salientar‑se que alguns outros acórdãos aos quais a Câmara de Recurso se referiu, a saber, os Acórdãos de 18 de julho de 2013, New Yorker SHK Jeans/IHMI (C‑621/11 P, EU:C:2013:484), e de 29 de setembro de 2011, New Yorker SHK Jeans/IHMI — Vallis K.‑Vallis A. (FISHBONE) (T‑415/09, não publicado, EU:T:2011:550), também abordam a questão da utilização séria.

53      Em todo o caso, deve salientar‑se que a referência ao Acórdão de 22 de setembro de 2011, Mangiami (T‑250/09, não publicado, EU:T:2011:516), que teve um impacto na conclusão da Câmara de Recurso no que respeita à justificação da apresentação tardia dos elementos de prova, é feita no n.o 54 da decisão de 2021 e não nos n.os 57 e 58 desta.

54      Daqui resulta que a mera aplicação por analogia da jurisprudência relativa à interpretação da regra 22, n.o 2, do Regulamento n.o 2868/95 no caso em apreço não pode constituir um erro manifesto na aceção do artigo 103.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001.

55      Quanto ao argumento do EUIPO segundo o qual a interveniente apresentou a justificação da apresentação tardia dos elementos de prova, a saber, a necessidade de responder às conclusões da Divisão de Anulação, mas que a Câmara de Recurso a rejeitou erradamente, no n.o 54 da decisão de 2021, basta salientar que essa argumentação não faz parte dos fundamentos nos quais a decisão impugnada se baseia. Ora, a fundamentação de uma decisão deve constar do próprio corpo desta e não pode ser apresentada através de explicações posteriores fornecidas pelo EUIPO, salvo circunstâncias excecionais, que, inexistindo urgência, não estão reunidas. Daqui resulta que a decisão deve, em princípio, ser suficiente em si mesma e a sua fundamentação não pode resultar das explicações escritas ou orais dadas posteriormente, quando a decisão em questão já é objeto de recurso interposto perante o juiz da União [v. Acórdão de 12 de dezembro de 2017, Sony Computer Entertainment Europe/EUIPO — Vieta Audio (Vita), T‑35/16, não publicado, EU:T:2017:886, n.o 57 e jurisprudência referida].

56      Sucede o mesmo com os outros argumentos do EUIPO, nomeadamente os que são relativos ao facto de o presente processo ter uma história particularmente longa e de ser benéfico para as partes e para o processo corrigir o erro cometido na decisão de 2021. A este respeito, basta observar que nenhuma destas circunstâncias assim alegadas pode constituir um erro manifesto na aceção do artigo 103.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001.

57      À luz do que precede, há que julgar procedente o presente fundamento e anular a decisão impugnada, sem que seja necessário examinar os outros argumentos apresentados pela recorrente, bem como o segundo e terceiro fundamentos.

 Quanto às despesas

58      Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

59      O EUIPO e a interveniente foram vencidos no presente caso. Todavia, a recorrente pediu apenas a condenação do EUIPO nas despesas. Nestas condições, atendendo a que a decisão de proceder à revogação da decisão de 2021 é imputável à Câmara de Recurso, o EUIPO suportará, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas pela recorrente, e a interveniente suportará as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Sexta Secção)

decide:

1)      A Decisão da Primeira Câmara de Recurso do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO) de 27 de junho de 2022 (processo R 894/20201) é anulada.

2)      O EUIPO suportará, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas pela Société des produits Nestlé SA.

3)      A European Food SA suportará as suas próprias despesas.

Costeira

Öberg

Zilgalvis

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 7 de junho de 2023.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.