Language of document : ECLI:EU:C:2010:206

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

22 de Junho de 2010 (*)

«Reenvio prejudicial – Artigo 267.° TFUE – Exame da conformidade de uma lei nacional quer com o direito da União quer com a Constituição nacional – Legislação nacional que prevê o carácter prioritário de um procedimento incidental de fiscalização de constitucionalidade – Artigo 67.° TFUE – Livre circulação de pessoas – Supressão do controlo nas fronteiras internas – Regulamento (CE) n.° 562/2006 – Artigos 20.° e 21.° – Legislação nacional que autoriza controlos de identidade na zona compreendida entre a fronteira terrestre da França com os Estados partes na Convenção de aplicação do acordo de Schengen e uma linha traçada a 20 quilómetros desta em território francês»

Nos processos apensos C‑188/10 e C‑189/10,

que têm por objecto pedidos de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentados pela Cour de cassation (França), por decisões de 16 de Abril de 2010, entrados no Tribunal de Justiça na mesma data, nos processos contra

Aziz Melki (C‑188/10),

Sélim Abdeli (C‑189/10),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts, J.‑C. Bonichot, R. Silva de Lapuerta e C. Toader, presidentes de secção, K. Schiemann, E. Juhász, T. von Danwitz (relator), J.‑J. Kasel e M. Safjan, juízes,

advogado‑geral: J. Mazák,

secretário: M.‑A. Gaudissart, chefe de unidade,

visto o despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2010, que decidiu submeter os reenvios prejudiciais a tramitação acelerada, em conformidade com o disposto no artigo 23.°‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça e no artigo 104.°‑A, primeiro parágrafo, do Regulamento de Processo,

vistos os autos e após a audiência de 2 de Junho de 2010,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de A. Melki e S. Abdeli, por R. Boucq, avocat,

–        em representação do Governo francês, por E. Belliard, G. de Bergues e B. Beaupère‑Manokha, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo belga, por C. Pochet, M. Jacobs e T. Materne, na qualidade de agentes, assistidos por F. Tulkens, avocat,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo alemão, por J. Möller, B. Klein e N. Graf Vitzthum, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo helénico, por T. Papadopoulou e L. Kotroni, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo neerlandês, por C. Wissels e M. de Ree, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo polaco, por J. Faldyga, M. Jarosz e M. Szpunar, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo eslovaco, por B. Ricziová, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por J.‑P. Keppenne e M. Wilderspin, na qualidade de agentes,

ouvido o advogado‑geral,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objecto a interpretação dos artigos 67.° TFUE e 267.° TFUE.

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de dois processos movidos contra, respectivamente, A. Melki e S. Abdeli, ambos de nacionalidade argelina, destinados a obter a prorrogação da sua manutenção em retenção em locais que não estão sob a autoridade da Administração Penitenciária.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Nos termos do preâmbulo do Protocolo (n.° 19) relativo ao acervo de Schengen integrado no âmbito da União Europeia, anexo ao Tratado de Lisboa (JO 2010, C 83, p. 290, a seguir «Protocolo n.° 19»):

«As Altas Partes Contratantes,

registando que os acordos relativos à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinados por alguns dos Estados‑Membros da União Europeia em Schengen, em 14 de Junho de 1985 e 19 de Junho de 1990, bem como os acordos conexos e as disposições adoptadas com base nesses acordos, foram integrados no âmbito da União Europeia pelo Tratado de Amesterdão de 2 de Outubro de 1997;

desejando preservar o acervo de Schengen, tal como desenvolvido desde a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, e desenvolver esse acervo a fim de contribuir para a consecução do objectivo de proporcionar aos cidadãos da União um espaço de liberdade, de segurança e de justiça sem fronteiras internas;

[…]

acordaram nas disposições seguintes, que vêm anexas ao Tratado da União Europeia e ao Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.»

4        O artigo 2.° deste protocolo enuncia:

«O acervo de Schengen é aplicável aos Estados‑Membros a que se refere o artigo 1.°, sem prejuízo do disposto no artigo 3.° do Acto de Adesão de 16 de Abril de 2003 e no artigo 4.° do Acto de Adesão de 25 de Abril de 2005. O Conselho substitui o Comité Executivo criado pelos acordos de Schengen.»

5        Faz parte do referido acervo, designadamente, a Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (JO 2000, L 239, p. 19), assinada em Schengen (Luxemburgo), em 19 de Junho de 1990 (a seguir «CAAS»), cujo artigo 2.° dizia respeito à passagem das fronteiras internas.

6        Nos termos do artigo 2.°, n.os 1 a 3, da CAAS:

«1.      As fronteiras internas podem ser transpostas em qualquer local sem que o controlo das pessoas seja efectuado.

2.      Todavia, por razões de ordem pública ou de segurança nacional, uma parte contratante pode, após consulta das outras partes contratantes, decidir que, durante um período limitado, serão efectuados nas fronteiras internas controlos fronteiriços nacionais adaptados à situação. Se razões de ordem pública ou de segurança nacional exigirem uma acção imediata, a parte contratante em causa tomará as medidas necessárias e informará desse facto, o mais rapidamente possível, as outras partes contratantes.

3.      A supressão do controlo das pessoas nas fronteiras internas não prejudica o disposto no artigo 22.°, nem o exercício das competências em matéria de polícia pelas autoridades competentes, por força da legislação de cada parte contratante no conjunto do seu território, nem as obrigações de detenção, posse e apresentação de títulos e documentos previstas pela sua legislação.»

7        O artigo 2.° da CAAS foi revogado com efeitos a partir de 13 de Outubro de 2006, em conformidade com o artigo 39.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 562/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen) (JO L 105, p. 1).

8        Nos termos do artigo 2.°, pontos 9 a 11, deste regulamento:

«Para os efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

9)      ‘Controlo fronteiriço’, a actividade que é exercida numa fronteira, nos termos e para efeitos do presente regulamento, unicamente com base na intenção ou no acto de passar essa fronteira, independentemente de qualquer outro motivo, e que consiste nos controlos de fronteira e [na] vigilância de fronteiras;

10)      ‘Controlos de fronteira’, os controlos efectuados nos pontos de passagem de fronteira, a fim de assegurar que as pessoas, incluindo os seus meios de transporte e objectos na sua posse, podem ser autorizadas a entrar no território dos Estados‑Membros ou autorizadas a abandoná‑lo;

11)      ‘Vigilância de fronteiras’, a vigilância das fronteiras entre os pontos de passagem de fronteira e a vigilância dos pontos de passagem de fronteira fora dos horários de abertura fixados, de modo a impedir as pessoas de iludir os controlos de fronteira.»

9        O artigo 20.° do Regulamento n.° 562/2006, intitulado «Passagem das fronteiras internas», dispõe:

«As fronteiras internas podem ser transpostas em qualquer local sem que se proceda ao controlo das pessoas, independentemente da sua nacionalidade.»

10      O artigo 21.° deste regulamento, intitulado «Controlos no interior do território», prevê:

«A supressão do controlo nas fronteiras internas não prejudica:

a)      O exercício das competências de polícia pelas autoridades competentes dos Estados‑Membros, ao abrigo do direito nacional, na medida em que o exercício dessas competências não tenha efeito equivalente a um controlo de fronteira, o mesmo se aplicando nas zonas fronteiriças. Na acepção do primeiro período, o exercício das competências de polícia não pode considerar‑se equivalente ao exercício de controlos de fronteira, nomeadamente nos casos em que essas medidas policiais:

i)      não tiverem como objectivo o controlo fronteiriço,

ii)      se basearem em informações policiais de carácter geral e na experiência em matéria de possíveis ameaças à ordem pública e se destinarem particularmente a combater o crime transfronteiras,

iii)      forem concebidas e executadas de forma claramente distinta dos controlos sistemáticos de pessoas nas fronteiras externas,

iv)      forem aplicadas com base em controlos por amostragem;

[…]

c)      A possibilidade de um Estado‑Membro prever por lei a obrigação de posse ou porte de títulos e documentos;

[…]»

 Direito nacional

 Constituição de 4 de Outubro de 1958

11      A Constituição de 4 de Outubro de 1958, conforme alterada pela Lei Constitucional n.° 2008‑724, de 23 de Julho de 2008, de modernização das instituições da Quinta República (JORF de 24 de Julho de 2008, p. 11890, a seguir «Constituição»), dispõe, no seu artigo 61‑1:

«Quando, num processo pendente num tribunal, for alegado que uma disposição legislativa atenta contra os direitos e liberdades garantidos pela Constituição, pode essa questão ser submetida ao Conseil constitutionnel, através de reenvio do Conseil d’État ou da Cour de cassation, que se pronuncia dentro de um prazo determinado.

Uma lei orgânica determina as condições de aplicação do presente artigo.»

12      O artigo 62, segundo e terceiro parágrafos, da Constituição prevê:

«Uma disposição que seja declarada inconstitucional com fundamento no artigo 61‑1 é revogada a contar da publicação da decisão do Conseil constitutionnel ou de data posterior fixada nessa decisão. O Conseil constitutionnel determina as condições e os limites dentro dos quais os efeitos produzidos pela disposição podem ser postos em causa.

As decisões do Conseil constitutionnel não são passíveis de recurso. São vinculativas para os poderes públicos e para todas as autoridades administrativas e jurisdicionais.»

13      Nos termos do artigo 88‑1 da Constituição:

«A República participa na União Europeia, constituída por Estados que escolheram livremente exercer em comum algumas das suas competências, ao abrigo do Tratado sobre a União Europeia e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, conforme resultam do Tratado assinado em Lisboa, em 1 de Dezembro 2007.»

 Decreto‑Lei n.° 58‑1067

14      Através da Lei Orgânica n.° 2009‑1523, de 10 de Dezembro de 2009, relativa à aplicação do artigo 61‑1 da Constituição (JORF de 11 de Dezembro de 2009, p. 21379), foi inserido um novo capítulo II bis, intitulado «Da questão prioritária de constitucionalidade», no título II do Decreto‑Lei n.° 58‑1067, de 7 de Novembro de 1958, sobre a Lei Orgânica do Conseil constitutionnel. Este capítulo II bis dispõe:

«Secção 1

Disposições aplicáveis nos tribunais cujos órgãos superiores são o Conseil d’État ou a Cour de cassation

Artigo 23‑1

Nos tribunais cujos órgãos superiores são o Conseil d’État ou a Cour de cassation, o fundamento de que uma disposição legislativa atenta contra os direitos e liberdades garantidos pela Constituição deve ser apresentado, sob pena de inadmissibilidade, em documento escrito separado e fundamentado. Tal fundamento pode ser suscitado, pela primeira vez, em instância de recurso. Não pode ser suscitado oficiosamente.

[…]

Artigo 23‑2

O tribunal pronuncia-se sem demora, através de decisão fundamentada, sobre a transmissão da questão prioritária de constitucionalidade ao Conseil d’État ou à Cour de cassation. Procede‑se a essa transmissão desde que estejam preenchidos os seguintes requisitos:

1°      A disposição controvertida seja aplicável ao litígio ou ao processo, ou constitua o fundamento do procedimento criminal;

2°      Não tenha já sido declarada conforme com a Constituição, nos fundamentos e no dispositivo de uma decisão do Conseil constitutionnel, salvo alteração das circunstâncias;

3°      A questão não seja desprovida de carácter sério.

Em qualquer caso, o tribunal, quando lhe sejam submetidos fundamentos contestando a conformidade de uma disposição legislativa, por um lado, com os direitos e liberdades garantidos pela Constituição e, por outro, com os compromissos internacionais da França, deve pronunciar‑se com prioridade sobre a transmissão da questão de constitucionalidade ao Conseil d’État ou à Cour de cassation.

A decisão de transmitir a questão sobe ao Conseil d’État ou à Cour de cassation no prazo de oito dias a contar do dia em que foi proferida, acompanhada dos articulados e pedidos das partes. A decisão não é susceptível de recurso. A recusa de transmissão da questão só pode ser impugnada por ocasião de um recurso interposto da decisão que regule a totalidade ou parte do litígio.

Artigo 23‑3

Transmitida a questão, o tribunal suspende a instância até receber a decisão do Conseil d’État, da Cour de cassation ou do Conseil constitutionnel, caso a questão tenha sido submetida a este último. A instrução não é suspensa e o tribunal pode tomar as medidas provisórias ou cautelares necessárias.

No entanto, a instância não é suspensa quando a pessoa estiver privada de liberdade por causa da instância nem quando a instância se destine a pôr termo a uma medida privativa de liberdade.

O tribunal pode igualmente pronunciar‑se sem esperar pela decisão relativa à questão prioritária de constitucionalidade, se a lei ou o regulamento determinarem que decida num prazo determinado ou com urgência. Se o tribunal de primeira instância se pronunciar sem mais demora e se for interposto recurso da sua decisão, o tribunal de recurso suspende a instância. Este pode, no entanto, não suspender a instância se ele próprio tiver de se pronunciar num prazo determinado ou com urgência.

Além disso, quando a suspensão da instância possa ter consequências irremediáveis ou manifestamente excessivas para os direitos de uma parte, o tribunal que decide transmitir a questão pode pronunciar‑se sobre os aspectos que devem ser resolvidos de imediato.

Se tiver sido interposto recurso de cassação, tendo os juízes de mérito proferido decisão sem esperar pela decisão do Conseil d’État, da Cour de cassation ou do Conseil constitutionnel, quando a questão tenha sido submetida a este último, há que sobrestar em qualquer decisão do recurso, enquanto não tiver sido resolvida a questão prioritária de constitucionalidade. O mesmo não acontece quando o interessado estiver privado de liberdade por causa da instância e a lei previr que a Cour de cassation se pronuncie num prazo determinado.»

Secção 2

Disposições aplicáveis no Conseil d’État e na Cour de cassation

Artigo 23‑4

No prazo de três meses a contar da recepção da transmissão prevista no artigo 23‑2 ou no último parágrafo do artigo 23‑1, o Conseil d’État ou a Cour de cassation pronuncia‑se sobre o reenvio da questão prioritária de constitucionalidade ao Conseil constitutionnel. Procede‑se a esse reenvio quando estiverem preenchidos os requisitos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 23‑2 e a questão for nova ou tiver carácter sério.

Artigo 23‑5

O fundamento de que uma disposição legislativa atenta contra os direitos e liberdades garantidos pela Constituição pode ser suscitado, incluindo pela primeira vez em cassação, por ocasião de uma instância no Conseil d’État ou na Cour de cassation. O fundamento deve ser apresentado, sob pena de inadmissibilidade, em articulado separado e fundamentado. Não pode ser suscitado oficiosamente.

Em qualquer caso, o Conseil d’État ou a Cour de cassation, quando lhe sejam submetidos fundamentos contestando a conformidade de uma disposição legislativa, por um lado, com os direitos e liberdades garantidos pela Constituição e, por outro, com os compromissos internacionais da França, deve pronunciar‑se com prioridade sobre o reenvio da questão de constitucionalidade ao Conseil constitutionnel.

O Conseil d’État ou a Cour de cassation dispõe do prazo de três meses a contar da apresentação do fundamento para proferir a sua decisão. A questão prioritária de constitucionalidade é submetida ao Conseil constitutionnel, quando estiverem preenchidos os requisitos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 23‑2 e a questão for nova ou tiver carácter sério.

Quando seja o Conseil constitutionnel a apreciar a questão, o Conseil d’État ou a Cour de cassation suspende a instância até que ele se tenha pronunciado. O mesmo não acontece quando o interessado estiver privado de liberdade por causa da instância e a lei previr que a Cour de cassation se pronuncie num prazo determinado. Se o Conseil d’État ou a Cour de cassation tiver de se pronunciar com urgência, a instância não pode ser suspensa.

[…]

Artigo 23‑7

A decisão fundamentada do Conseil d’État ou da Cour de cassation de submeter a questão ao Conseil constitutionnel sobe a este último acompanhada dos articulados e pedidos das partes. O Conseil constitutionnel recebe uma cópia da decisão fundamentada através da qual o Conseil d’État ou a Cour de cassation decide não lhe submeter uma questão prioritária de constitucionalidade. Se o Conseil d’État ou a Cour de cassation não se tiver pronunciado nos prazos previstos nos artigos 23‑4 e 23‑5, a questão é transmitida ao Conseil constitutionnel.

[…]

Secção 3

Disposições aplicáveis no Conseil constitutionnel

[…]

Artigo 23‑10

O Conseil constitutionnel pronuncia‑se no prazo de três meses a contar da data em que a questão lhe é submetida. Às partes é dada a oportunidade de apresentar, em contraditório, as suas observações. A audiência é pública, salvo nos casos excepcionais definidos no Regimento Interno do Conseil constitutionnel.

[…]»

 Código de Processo Penal

15      O artigo 78‑2 do Código de Processo Penal, na versão em vigor no momento dos factos, dispõe:

«Os oficiais da polícia judiciária e, sob as ordens e responsabilidade destes, os agentes da polícia judiciária e os agentes adjuntos da polícia judiciária referidos nos artigos 20 e 21‑1 podem pedir a comprovação da identidade, por quaisquer meios, a qualquer pessoa de quem haja razões plausíveis para suspeitar:

–        que cometeu ou tentou cometer uma infracção;

–        ou que se prepara para cometer um crime ou um delito;

–        ou que pode fornecer informações úteis para o inquérito, em caso de crime ou de delito;

–        ou que é objecto de investigações ordenadas por uma autoridade judiciária.

Mediante requisições escritas do Procurador da República, para efeitos de investigação e procedimento contra as infracções por ele indicadas, pode ser igualmente controlada a identidade de qualquer pessoa, segundo as mesmas modalidades, nos locais e pelo período de tempo determinados por este magistrado. Não constitui causa de nulidade dos procedimentos incidentais o facto de o controlo de identidade revelar infracções diferentes das referidas nas requisições do Procurador da República.

Pode ser igualmente controlada a identidade de qualquer pessoa, independentemente do seu comportamento, segundo as modalidades previstas no primeiro parágrafo, a fim de prevenir qualquer infracção à ordem pública, designadamente à segurança das pessoas ou dos bens.

Numa zona compreendida entre a fronteira terrestre da França com os Estados Partes na Convenção assinada em Schengen, em 19 de Junho de 1990, e uma linha traçada a 20 quilómetros dessa fronteira, em território francês, bem como nas zonas, acessíveis ao público, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias abertos ao tráfego internacional e designados por portaria, a identidade de qualquer pessoa pode também ser objecto de controlo, segundo as modalidades previstas no primeiro parágrafo, tendo em vista verificar o respeito das obrigações de posse, porte e apresentação dos títulos e documentos previstos na lei. Quando este controlo seja feito num comboio que efectue uma ligação internacional, pode ter lugar durante a parte do trajecto entre a fronteira e a primeira paragem situada para além dos 20 quilómetros da fronteira. No entanto, no caso de linhas ferroviárias que efectuem uma ligação internacional e apresentem características especiais de serviço, o controlo pode igualmente ter lugar entre essa paragem e uma outra situada dentro dos 50 quilómetros seguintes. Estas linhas e paragens são designadas por portaria ministerial. Quando haja um troço de auto‑estrada com início na zona referida no primeiro período do presente parágrafo e a primeira portagem se situe para além da linha de 20 quilómetros, o controlo pode ainda ter lugar, até esta primeira portagem, nas áreas de estacionamento, bem como na própria portagem e nas áreas de estacionamento contíguas a esta. As portagens abrangidas por esta disposição são designadas por portaria. Não constitui causa de nulidade dos procedimentos incidentais o facto de o controlo de identidade revelar uma infracção diferente do não respeito das obrigações acima referidas.

[…]»

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

16      A. Melki e S. Abdeli, nacionais argelinos em situação irregular em França, foram controlados pela polícia, em aplicação do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal, na zona situada entre a fronteira terrestre de França com a Bélgica e uma linha traçada a 20 quilómetros dessa fronteira em território francês. Em 23 de Março de 2010, foram emitidos pelo prefeito, em relação a cada um deles, um despacho de condução à fronteira e uma decisão de manutenção em detenção.

17      Perante o juiz competente em matéria de liberdades e de detenção, ao qual o prefeito apresentou um pedido de prorrogação da detenção, A. Melki e S. Abdeli impugnaram a regularidade do controlo de que foram objecto e suscitaram a inconstitucionalidade do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal, alegando que esta disposição atenta contra os direitos e liberdades garantidos pela Constituição.

18      Através de dois despachos de 25 de Março de 2010, o juiz competente em matéria de liberdades e de detenção ordenou, por um lado, a transmissão à Cour de cassation da questão de saber se o artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal atenta contra os direitos e liberdades garantidos pela Constituição e, por outro, a prorrogação da detenção de A. Melki e S. Abdeli por um período de quinze dias.

19      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, A. Melki e S. Abdeli sustentam que o artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal é contrário à Constituição, dado que os compromissos da República Francesa resultantes do Tratado de Lisboa têm valor constitucional, tendo em conta o artigo 88‑1 da Constituição, e que a referida disposição do Código de Processo Penal, na medida em que autoriza controlos nas fronteiras com os outros Estados‑Membros, é contrária ao princípio da livre circulação de pessoas enunciado no artigo 67.°, n.° 2, TFUE, que prevê que a União Europeia assegura a ausência de controlos das pessoas nas fronteiras internas.

20      O órgão jurisdicional de reenvio considera, em primeiro lugar, que se coloca a questão da conformidade do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal, quer com o direito da União quer com a Constituição.

21      Em segundo lugar, a Cour de cassation infere dos artigos 23‑2 e 23‑5 do Decreto‑Lei n.° 58‑1067, bem como do artigo 62 da Constituição, que os tribunais que conhecem de mérito, assim como ela própria, estão privados, por efeito da Lei Orgânica n.° 2009‑1523, que inseriu os referidos artigos no Decreto‑Lei n.° 58‑1067, da possibilidade de submeterem uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia, quando uma questão prioritária de constitucionalidade é transmitida ao Conseil constitutionnel.

22      Considerando que a sua decisão sobre o reenvio da questão prioritária de constitucionalidade ao Conseil constitutionnel depende da interpretação do direito da União, a Cour de cassation decidiu, em cada um dos processos pendentes, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as questões prejudiciais seguintes:

«1)      O artigo 267.° [TFUE] opõe‑se a uma legislação como a resultante dos artigos 23‑2, segundo parágrafo, e 23‑5, segundo parágrafo, do [Decreto‑Lei] n.° 58‑1067, de 7 de Novembro de 1958, introduzidos pela Lei Orgânica n.° 2009‑1523, de 10 de Dezembro de 2009, na medida em que impõem aos tribunais que se pronunciem com prioridade sobre a transmissão, ao Conseil constitutionnel, da questão de constitucionalidade que lhes seja colocada, [uma vez] que nessa questão é alegado que um diploma legal interno não está em conformidade com a Constituição, pelo facto de ser contrário a disposições de direito da União?

2)      O artigo 67.° [TFUE] opõe‑se a uma legislação como a resultante do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal, que prevê que ‘numa zona compreendida entre a fronteira terrestre de França com os Estados Parte na Convenção assinada em Schengen, em 19 de Junho de 1990, e uma linha traçada a 20 quilómetros [dessa fronteira], em território francês, bem como nas zonas, acessíveis ao público, de portos, aeroportos, [estações] ferroviárias ou rodoviárias abertos ao tráfego internacional e designados por [portaria], a identidade de qualquer pessoa pode também ser objecto de controlo, segundo as modalidades previstas no primeiro parágrafo, tendo em vista verificar o respeito das obrigações de [posse, porte] e apresentação [dos títulos] e documentos previstos [na] lei. Quando este controlo seja feito num comboio que efectue uma ligação internacional, pode ter lugar durante a parte do trajecto entre a fronteira e a primeira paragem [situada para além dos] 20 quilómetros da fronteira. No entanto, no caso de linhas ferroviárias que efectuem uma ligação internacional e apresentem características especiais de serviço, o controlo pode igualmente ter lugar entre essa paragem e uma outra situada [dentro] dos 50 quilómetros seguintes. Estas linhas e paragens são designadas por [portaria] ministerial. Quando haja um troço de auto‑estrada com início na zona referida [no primeiro período] do presente parágrafo e a primeira portagem se situe [para] além da linha d[e] 20 quilómetros, o controlo pode ainda ter lugar, até esta primeira portagem, nas áreas de estacionamento, bem como na própria portagem e nas áreas de estacionamento contíguas a esta. As portagens abrangidas por esta disposição são designadas por [portaria]’.»

23      Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 20 de Abril de 2010, os processos C‑188/10 e C‑189/10 foram apensados para efeitos da fase escrita, da fase oral e do acórdão.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

24      O Governo francês considera que os pedidos prejudiciais são inadmissíveis.

25      O Governo francês considera que a primeira questão tem carácter meramente hipotético. Com efeito, em sua opinião, esta questão assenta na premissa de que o Conseil constitutionnel, ao examinar a conformidade de uma lei com a Constituição, pode ter de examinar a conformidade dessa lei com o direito da União. No entanto, segundo a jurisprudência do Conseil constitutionnel, não incumbe a este, no âmbito da fiscalização da constitucionalidade das leis, mas às jurisdições comuns das ordens administrativa e judicial, examinar a conformidade de uma lei com o direito da União. Daí resulta que, por força do direito nacional, o Conseil d’État e a Cour de cassation não são obrigados a remeter ao Conseil constitutionnel questões relativas à compatibilidade de disposições nacionais com o direito da União, uma vez que tais questões não têm por objecto a fiscalização da constitucionalidade.

26      No que diz respeito à segunda questão prejudicial, o Governo francês sustenta que uma resposta a esta questão seria inútil. Com efeito, A. Melki e S. Abdeli deixaram de ser objecto, desde 9 de Abril de 2010, de qualquer medida privativa de liberdade e, a partir dessa data, os dois despachos do juiz competente em matéria de liberdades e de detenção deixaram de produzir efeitos. A questão da compatibilidade do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal com o artigo 67.° TFUE também não é pertinente no âmbito da única instância ainda pendente na Cour de cassation, uma vez que o Conseil constitutionnel, como recordou na sua Decisão n.° 2010‑605 DC, de 12 de Maio de 2010, considera não ter competência para examinar a compatibilidade de uma lei com o direito da União, quando procede à fiscalização da constitucionalidade dessa lei.

27      A este respeito, basta recordar que, segundo jurisprudência assente, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que este define sob a sua responsabilidade, e cuja exactidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só se pode recusar pronunciar sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional, quando for manifesto que a interpretação solicitada do direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objecto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (v., designadamente, acórdãos de 22 de Dezembro de 2008, Regie Networks, C‑333/07, Colect., p. I‑10807, n.° 46; de 8 de Setembro de 2009, Budejovicky Budvar, C‑478/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 63; e de 20 de Maio de 2010, Zanotti, C‑56/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 15).

28      Ora, no caso vertente, as questões submetidas têm por objecto a interpretação dos artigos 67.° TFUE e 267.° TFUE. Não resulta dos fundamentos das decisões de reenvio que os despachos proferidos pelo juiz competente em matéria de liberdades e de detenção, relativamente a A. Melki e S. Abdeli, tenham deixado de produzir efeitos. Além disso, não é manifesto que a interpretação, feita pela Cour de cassation, do mecanismo da questão prioritária de constitucionalidade esteja excluída de modo evidente, tendo em conta o teor das disposições nacionais.

29      Assim, a presunção de pertinência de que goza o pedido de decisão prejudicial em cada um dos processos não é ilidida pelas objecções formuladas pelo Governo francês.

30      Nestas circunstâncias, o pedido de decisão prejudicial apresentado nestes processos deve ser declarado admissível.

 Quanto à primeira questão

31      Através desta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 267.° TFUE se opõe à legislação de um Estado‑Membro que institui um processo incidental de fiscalização da constitucionalidade das leis nacionais que obriga os órgãos jurisdicionais desse Estado‑Membro a pronunciarem‑se com prioridade sobre a transmissão, ao órgão jurisdicional nacional incumbido da fiscalização da constitucionalidade das leis, de uma questão relativa à conformidade de uma disposição de direito interno com a Constituição, quando está em causa, ao mesmo tempo, a incompatibilidade dessa disposição com o direito da União.

 Observações submetidas ao Tribunal de Justiça

32      A. Melki e S. Abdeli consideram que a legislação nacional em causa no processo principal é conforme com o direito da União, desde que o Conseil constitutionnel examine o direito da União e que, em caso de dúvida sobre a interpretação deste, submeta ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial, pedindo que o reenvio seja submetido a tramitação acelerada em aplicação do artigo 104.°‑A do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

33      O Governo francês considera que o direito da União não se opõe à legislação nacional controvertida, uma vez que esta não altera nem põe em causa o papel e as competências do juiz nacional na aplicação do direito da União. A fim de sustentar esta argumentação, este governo baseia‑se, em substância, na mesma interpretação da referida legislação nacional que a efectuada, posteriormente à transmissão das decisões de reenvio da Cour de cassation ao Tribunal de Justiça, tanto pelo Conseil constitutionnel, na sua Decisão n.° 2010‑605 DC, de 12 de Maio de 2010, como pelo Conseil d’État, na sua Decisão n.° 312305, de 14 de Maio de 2010.

34      Segundo esta interpretação, está excluído que uma questão prioritária de constitucionalidade tenha por objecto submeter ao Conseil constitutionnel uma questão de compatibilidade de uma lei com o direito da União. Não incumbe a este, mas às jurisdições comuns das ordens administrativa e judicial, examinar a conformidade de uma lei com o direito da União, aplicar elas próprias e segundo a sua própria apreciação o direito da União, bem como submeter, simultaneamente ou posteriormente à transmissão da questão prioritária de constitucionalidade, questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça.

35      A este respeito, o Governo francês sustenta, designadamente, que, segundo a legislação nacional em causa no processo principal, o órgão jurisdicional nacional pode, em certas condições, quer pronunciar‑se quanto ao mérito, sem aguardar a decisão da Cour de cassation, do Conseil d’État ou do Conseil constitutionnel sobre a questão prioritária de constitucionalidade, quer tomar as medidas provisórias e cautelares necessárias a fim de garantir uma tutela imediata dos direitos que decorrem para os litigantes do direito da União.

36      Tanto o Governo francês como o Governo belga alegam que o mecanismo processual da questão prioritária de constitucionalidade de uma disposição nacional se destina a garantir aos litigantes que o seu pedido de exame da constitucionalidade de uma disposição nacional será efectivamente tratado, sem que a remessa ao Conseil constitutionnel possa ser afastada com fundamento na incompatibilidade da disposição em questão com o direito da União. Além disso, a remessa ao Conseil constitutionnel apresenta a vantagem de este último poder revogar uma lei incompatível com a Constituição, produzindo essa revogação efeitos erga omnes. Em contrapartida, os efeitos de uma decisão de uma jurisdição da ordem administrativa ou judiciária, que declara que uma disposição nacional é incompatível com o direito da União, estão limitados ao litígio específico decidido por essa jurisdição.

37      O Governo checo, por sua vez, propõe que se responda que decorre do princípio do primado do direito da União que o juiz nacional é obrigado a assegurar o pleno efeito do direito da União, examinando a compatibilidade do direito nacional com o direito da União e deixando de aplicar as disposições de direito nacional contrárias a este último, sem ter de submeter previamente a questão ao Tribunal Constitucional nacional ou a outro órgão jurisdicional nacional. Segundo o Governo alemão, o exercício do direito de submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial, conferido pelo artigo 267.° TFUE a qualquer órgão jurisdicional nacional, não deve ser obstruído por uma disposição de direito nacional que faça depender o recurso ao Tribunal de Justiça, destinado a obter a interpretação do direito da União, da decisão de outro órgão jurisdicional nacional. O Governo polaco considera que o artigo 267.° TFUE não se opõe a uma legislação como a que é objecto da primeira questão submetida, dado que o processo nela previsto não atenta contra a substância dos direitos e das obrigações dos órgãos jurisdicionais nacionais resultantes do referido artigo.

38      A Comissão considera que o direito da União, em particular o princípio do primado deste direito e o artigo 267.° TFUE, se opõe a uma regulamentação nacional como a descrita nas decisões de reenvio, na hipótese de qualquer contestação relativa à conformidade de uma disposição legislativa com o direito da União permitir ao litigante invocar uma violação da Constituição por essa disposição legislativa. Nesse caso, o dever de assegurar o respeito do direito da União é implícito, mas necessariamente transferido do juiz de mérito para o Conseil constitutionnel. Consequentemente, segundo a Comissão, o mecanismo da questão prioritária de constitucionalidade conduz a uma situação como a que foi julgada contrária ao direito da União, pelo Tribunal de Justiça, no acórdão de 9 de Março de 1978, Simmenthal (106/77, Colect., p. 243). O facto de a jurisdição constitucional poder, ela própria, submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça não sana esta situação.

39      Se, em contrapartida, a contestação da conformidade de uma disposição legislativa com o direito da União não permitir ao litigante invocar ipso facto uma contestação da conformidade da mesma disposição legislativa com a Constituição, com a consequência de que o juiz de mérito continuaria a ser competente para aplicar o direito da União, este não se oporia a uma regulamentação nacional como a que é objecto da primeira questão submetida, desde que estejam preenchidos vários critérios. Segundo a Comissão, o juiz nacional deve ter liberdade para submeter ao Tribunal de Justiça qualquer questão prejudicial que considere necessária e, concomitantemente, para adoptar quaisquer medidas necessárias para garantir a tutela jurisdicional provisória dos direitos garantidos pelo direito da União. É igualmente necessário, por um lado, que o processo incidental de fiscalização da constitucionalidade não conduza à suspensão da instância de mérito por um período excessivo e, por outro, que, concluído esse processo incidental e independentemente do seu resultado, o juiz nacional continue a ser totalmente livre de apreciar a conformidade da disposição legislativa nacional com o direito da União, de não a aplicar se entender que a mesma é contrária ao direito da União e de submeter ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais, caso o considere necessário.

 Resposta do Tribunal de Justiça

40      O artigo 267.° TFUE atribui ao Tribunal de Justiça competência para decidir, a título prejudicial, quer sobre a interpretação dos Tratados e dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União, quer sobre a validade desses actos. Este artigo dispõe, no segundo parágrafo, que um órgão jurisdicional nacional pode submeter tais questões ao Tribunal de Justiça, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, e, no terceiro parágrafo, que é obrigado a fazê‑lo se as suas decisões não forem susceptíveis de recurso jurisdicional previsto no direito interno.

41      Daqui resulta, em primeiro lugar, que, embora possa ser vantajoso, segundo as circunstâncias, que os problemas de puro direito nacional estejam resolvidos no momento do reenvio ao Tribunal de Justiça (v. acórdão de 10 de Março de 1981, Irish Creamery Milk Suppliers Association e o., 36/80 e 71/80, Recueil, p. 735, n.° 6), os órgãos jurisdicionais nacionais dispõem da mais ampla faculdade para recorrer ao Tribunal de Justiça, se considerarem que um processo perante eles pendente suscita questões sobre as quais têm de decidir e que implicam uma interpretação ou uma apreciação da validade de disposições do direito da União (v., designadamente, acórdão de 16 de Janeiro de 1974, Rheinmühlen‑Düsseldorf, 166/73, Colect., p. 17, n.° 3; de 27 de Junho de 1991, Mecanarte, C‑348/89, Colect., p. I‑3277, n.° 44; e de 16 de Dezembro de 2008, Cartesio, C‑210/06, Colect., p. I‑9641, n.° 88).

42      O Tribunal de Justiça concluiu que a existência de uma norma de direito interno que vincula os órgãos jurisdicionais que não decidem em última instância à apreciação jurídica feita por um órgão jurisdicional de grau superior não pode, por esse simples facto, privá‑los da faculdade, prevista no artigo 267.° TFUE, de submeter ao Tribunal de Justiça questões de interpretação do direito da União (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Rheinmühlen‑Düsseldorf, n.os 4 e 5, e Cartesio, n.° 94). O órgão jurisdicional que não decide em última instância deve, designadamente se considerar que a apreciação jurídica feita pelo tribunal de grau superior o pode levar a proferir uma sentença contrária ao direito da União, poder submeter ao Tribunal de Justiça as questões que o preocupam (acórdão de 9 de Março de 2010, ERG e o., C‑378/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 32).

43      Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça já declarou que o juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito da União tem a obrigação de garantir a plena eficácia dessas normas, não aplicando, se necessário e no exercício da sua própria autoridade, qualquer disposição contrária da legislação nacional, mesmo posterior, sem que tenha de pedir ou aguardar a sua revogação prévia por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., designadamente, acórdão Simmenthal, já referido, n.os 21 e 24; e acórdãos de 20 de Março de 2003, Kutz‑Bauer, C‑187/00, Colect., p. I‑2741, n.° 73, de 3 de Maio de 2005, Berlusconi e o., C‑387/02, C‑391/02 e C‑403/02, Colect., p. I‑3565, n.° 72, e de 19 de Novembro de 2009, Filipiak, C‑314/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 81).

44      Com efeito, seria incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito da União qualquer disposição de uma ordem jurídica nacional ou qualquer prática, legislativa, administrativa ou judicial, que tivesse como efeito diminuir a eficácia do direito da União pelo facto de recusar ao juiz competente para aplicar esse direito o poder de fazer, no momento exacto dessa aplicação, tudo o que é necessário para afastar as disposições legislativas nacionais que eventualmente constituam um obstáculo à plena eficácia das normas da União (v. acórdãos Simmenthal, já referido, n.° 22, e de 19 de Junho de 1990, Factortame e o., C‑213/89, Colect., p. I‑2433, n.° 20). Seria esse o caso se, na hipótese de uma disposição do direito da União ser contrária a uma lei nacional, a solução desse conflito fosse reservada a uma autoridade diferente do juiz chamado a assegurar a aplicação do direito da União, investida de um poder de apreciação próprio, mesmo que o obstáculo daí resultante para a plena eficácia desse direito fosse apenas temporário (v., neste sentido, acórdão Simmenthal, já referido, n.° 23).

45      Por último, o Tribunal de Justiça declarou que um órgão jurisdicional nacional ao qual tenha sido submetido um litígio relativo ao direito da União, que considere que uma disposição nacional é não só contrária ao direito da União mas padece igualmente de vícios de inconstitucionalidade, não fica privado da faculdade ou dispensado da obrigação, previstas no artigo 267.° TFUE, de submeter ao Tribunal de Justiça questões sobre a interpretação ou a validade do direito da União, pelo facto de a declaração da inconstitucionalidade de uma regra de direito interno estar sujeita a recurso obrigatório para o tribunal constitucional. Com efeito, a eficácia do direito da União ficaria ameaçada se a existência de um recurso obrigatório para o tribunal constitucional pudesse impedir o juiz nacional, chamado a pronunciar‑se sobre um litígio regido pelo direito da União, de exercer a faculdade, que lhe é atribuída pelo artigo 267.° TFUE, de submeter ao Tribunal de Justiça questões sobre a interpretação ou a validade do direito da União, a fim de lhe permitir decidir se uma norma nacional é ou não compatível com este (v. acórdão Mecanarte, já referido, n.os 39, 45 e 46).

46      No que diz respeito às consequências que devem ser inferidas da jurisprudência atrás mencionada, relativamente a disposições nacionais como as que são objecto da primeira questão submetida, refira‑se que o órgão jurisdicional de reenvio parte da premissa de que, segundo essas disposições, ao examinar uma questão de constitucionalidade que assenta na incompatibilidade da lei em causa com o direito da União, o Conseil constitutionnel aprecia igualmente a conformidade dessa lei com o direito da União. Nesse caso, o juiz de mérito que procede à transmissão da questão de constitucionalidade não pode, antes dessa transmissão, pronunciar‑se sobre a compatibilidade da lei em questão com o direito da União, nem submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial relativa à referida lei. Além disso, na hipótese de o Conseil constitutionnel considerar que a lei em causa é conforme com o direito da União, o juiz de mérito também não pode, posteriormente à decisão proferida pelo Conseil constitutionnel que vincula todas as autoridades jurisdicionais, submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial. O mesmo acontece quando o fundamento relativo à inconstitucionalidade de uma disposição legislativa é suscitado no âmbito de um procedimento perante o Conseil d’État ou a Cour de cassation.

47      Segundo esta interpretação, a legislação nacional em causa no processo principal tem como consequência impedir, quer antes da transmissão de uma questão de constitucionalidade quer, sendo caso disso, posteriormente à decisão do Conseil constitutionnel sobre essa questão, as jurisdições das ordens administrativa e judiciária nacionais de exercerem a sua faculdade ou de cumprirem a sua obrigação, previstas no artigo 267.° TFUE, de submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça. Observe‑se que decorre dos princípios enunciados pela jurisprudência, recordados nos n.os 41 a 45 do presente acórdão, que o artigo 267.° TFUE se opõe a uma legislação nacional como a descrita nas decisões de reenvio.

48      No entanto, como resulta dos n.os 33 a 36 do presente acórdão, os Governos francês e belga apresentaram uma interpretação diferente da legislação francesa objecto da primeira questão submetida, baseando‑se, designadamente, nas decisões do Conseil constitutionnel n.° 2010‑605 DC, de 12 de Maio de 2010, e do Conseil d’État n.° 312305, de 14 de Maio de 2010, proferidas posteriormente à transmissão das decisões de reenvio da Cour de cassation ao Tribunal de Justiça.

49      A este respeito, recorde‑se que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, nos processos que lhe são submetidos, qual a interpretação correcta do direito nacional.

50      Segundo jurisprudência assente, cabe ao órgão jurisdicional nacional dar à lei interna que deve aplicar, na medida do possível, uma interpretação conforme com as exigências do direito da União (acórdãos de 26 de Setembro de 2000, Engelbrecht, C‑262/97, Colect., p. I‑7321, n.° 39; de 27 de Outubro de 2009, ČEZ, C‑115/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 138; e de 13 de Abril de 2010, Wall, C‑91/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 70). Tendo em conta as decisões atrás referidas do Conseil constitutionnel e do Conseil d’État, não pode ser excluída uma tal interpretação das disposições nacionais que instituíram o mecanismo de fiscalização da constitucionalidade em causa no processo principal.

51      O exame da questão de saber se é possível uma interpretação, conforme com as exigências do direito da União, do mecanismo da questão prioritária de constitucionalidade não pode pôr em causa as características essenciais do sistema de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, instituído pelo artigo 267.° TFUE, como decorrem da jurisprudência recordada nos n.os 41 a 45 do presente acórdão.

52      Com efeito, segundo a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, para assegurar o primado do direito da União, o funcionamento do referido sistema de cooperação requer que o juiz nacional possa livremente, em qualquer momento do processo que considere adequado, e mesmo depois de concluído um procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade, submeter ao Tribunal de Justiça qualquer questão prejudicial que entenda ser necessária.

53      Na medida em que o direito nacional preveja a obrigação de desencadear um procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade, susceptível de impedir o juiz nacional de deixar imediatamente de aplicar uma disposição legislativa nacional que considere contrária ao direito da União, o funcionamento do sistema instituído pelo artigo 267.° TFUE exige, no entanto, que esse juiz tenha liberdade, por um lado, para adoptar qualquer medida necessária a fim de assegurar a tutela jurisdicional provisória dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União e, por outro, para não aplicar, concluído esse procedimento incidental, a referida disposição legislativa nacional em causa, se entender que é contrária ao direito da União.

54      Sublinhe‑se, por outro lado, que o carácter prioritário de um procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade de uma lei nacional cujo conteúdo se limita a transpor as disposições imperativas de uma directiva da União não pode prejudicar a competência exclusiva do Tribunal de Justiça de declarar a invalidade de um acto da União, designadamente de uma directiva, competência que tem por objecto garantir a segurança jurídica, preservando a aplicação uniforme do direito da União (v., neste sentido, acórdãos de 22 de Outubro de 1987, Foto‑Frost, 314/85, Colect., p. 4199, n.os 15 a 20; de 10 de Janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C‑344/04, Colect., p. I‑403, n.° 27; e de 18 de Julho de 2007, Lucchini, C‑119/05, Colect., p. I‑6199, n.° 53).

55      Com efeito, na medida em que o carácter prioritário de um procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade conduza à revogação de uma lei nacional, que se limita a transpor as disposições imperativas de uma directiva da União, pelo facto de essa lei ser contrária à Constituição nacional, o Tribunal de Justiça pode, na prática, ficar privado da possibilidade de proceder, a pedido dos órgãos jurisdicionais de mérito do Estado‑Membro em causa, à fiscalização da validade da referida directiva com base nos mesmos motivos inerentes às exigências do direito primário, designadamente dos direitos reconhecidos pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, à qual o artigo 6.° TUE confere o mesmo valor jurídico que é reconhecido aos Tratados.

56      Antes de poder efectuar a fiscalização incidental da constitucionalidade de uma lei cujo conteúdo se limita a transpor as disposições imperativas de uma directiva da União, com base nos mesmos motivos que põem em causa a validade da directiva, os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não são susceptíveis de recurso jurisdicional de direito interno são, em princípio, por força do artigo 267.°, terceiro parágrafo, TFUE, obrigados a interrogar o Tribunal de Justiça sobre a validade dessa directiva e, em seguida, a inferir as consequências que decorrem do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça a título prejudicial, a menos que o órgão jurisdicional que tenha desencadeado a fiscalização incidental da constitucionalidade tenha, ele próprio, submetido ao Tribunal de Justiça esta questão com base no segundo parágrafo do referido artigo. Com efeito, tratando‑se de uma lei nacional de transposição com tal conteúdo, a questão de saber se a directiva é válida reveste carácter prévio, tendo em conta a obrigação de transposição desta. Além disso, a fixação de um prazo estrito para a duração do exame pelos órgãos jurisdicionais nacionais não pode impedir o reenvio prejudicial relativo à validade da directiva em causa.

57      Por conseguinte, deve responder‑se à primeira questão submetida que o artigo 267.° TFUE se opõe à legislação de um Estado‑Membro que institui um procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade das leis nacionais, na medida em que o carácter prioritário desse procedimento tenha como consequência impedir, quer antes da transmissão de uma questão de constitucionalidade ao tribunal nacional encarregado de exercer a fiscalização da constitucionalidade das leis quer, sendo caso disso, posteriormente à decisão desse tribunal sobre a referida questão, todos os outros órgãos jurisdicionais nacionais de exercerem a sua faculdade ou de cumprirem a sua obrigação de submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça. Em contrapartida, o artigo 267.° TFUE não se opõe a essa legislação nacional, desde que os outros órgãos jurisdicionais nacionais continuem a poder:

–        em qualquer momento do processo que considerem adequado, mesmo depois de concluído o procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade, submeter ao Tribunal de Justiça qualquer questão prejudicial que entendam ser necessária,

–        adoptar qualquer medida necessária, a fim de assegurar a tutela jurisdicional provisória dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União, e

–        não aplicar, concluído esse procedimento incidental, a disposição legislativa nacional em causa, se a considerarem contrária ao direito da União.

Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a legislação nacional em causa no processo principal pode ser interpretada em conformidade com estas exigências do direito da União.

 Quanto à segunda questão

58      Com a segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se o artigo 67.° TFUE se opõe a uma legislação nacional que permite às autoridades policiais controlarem, numa zona de 20 quilómetros a partir da fronteira terrestre de um Estado‑Membro com os Estados partes na CAAS, a identidade de qualquer pessoa, a fim de verificarem que esta respeita as obrigações de posse, porte e apresentação dos títulos e dos documentos previstos na lei.

 Observações submetidas ao Tribunal de Justiça

59      A. Melki e S. Abdeli entendem que os artigos 67.° TFUE e 77.° TFUE prevêem a ausência pura e simples de controlos nas fronteiras internas e que, deste modo, o Tratado de Lisboa conferiu carácter absoluto à livre circulação de pessoas, seja qual for a nacionalidade das pessoas em questão. Consequentemente, consideram que essa liberdade de circulação se opõe a uma restrição como a prevista no artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal, que autoriza as autoridades nacionais a proceder a controlos de identidade sistemáticos nas zonas fronteiriças. Além disso, pedem que seja declarada a invalidade do artigo 21.° do Regulamento n.° 562/2006, com o fundamento de que viola, em si mesmo, o carácter absoluto da liberdade de ir e de vir consagrada nos artigos 67.° TFUE e 77.° TFUE.

60      O Governo francês sustenta que as disposições nacionais em causa no processo principal se justificam pela necessidade de lutar contra um tipo de delinquência específica nas zonas de passagem das fronteiras e nas imediações das fronteiras que apresentem riscos específicos. Os controlos de identidade efectuados com base no artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal respeitam plenamente o artigo 21.°, alínea a), do Regulamento n.° 562/2006. Têm por objectivo verificar a identidade de uma pessoa, quer a fim de evitar que sejam cometidas infracções ou causadas perturbações da ordem pública quer de procurar os autores de uma infracção. Esses controlos baseiam‑se igualmente em informações gerais e na experiência dos serviços da polícia, que demonstraram a especial utilidade dos controlos nestas zonas. São feitos com base em informações provenientes dos inquéritos anteriores da polícia judiciária ou em informações obtidas no âmbito da cooperação entre as polícias dos diferentes Estados‑Membros, que dão indicações quanto aos locais e momentos dos controlos. Os referidos controlos não são nem fixos, nem permanentes, nem sistemáticos. Pelo contrário, realizam‑se por amostragem.

61      Os Governos alemão, grego, neerlandês e eslovaco propõem igualmente que seja dada resposta negativa à segunda questão prejudicial, sublinhando que, mesmo depois da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, continuam a ser possíveis controlos de polícia não sistemáticos nas zonas fronteiriças, nas condições previstas no artigo 21.° do Regulamento n.° 562/2006. Estes governos sustentam, designadamente, que os controlos de identidade nessas zonas, previstos na legislação nacional em causa no processo principal, se distinguem pela sua finalidade, o seu conteúdo, a forma como são feitos, bem como pelas suas consequências, do controlo nas fronteiras na acepção do artigo 20.° do Regulamento n.° 562/2006. Os referidos controlos podem ser autorizados ao abrigo das disposições do artigo 21.°, alíneas a) ou c), deste regulamento.

62      Em contrapartida, o Governo checo e a Comissão consideram que os artigos 20.° e 21.° do Regulamento n.° 562/2006 se opõem a uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal. Os controlos nela previstos constituem controlos dissimulados nas fronteiras, que não podem, por força do artigo 21.° do Regulamento n.° 562/2006, ser autorizados, dado que apenas são permitidos nas zonas fronteiriças e não estão sujeitos a nenhuma outra condição, a não ser a presença da pessoa controlada numa dessas zonas.

 Resposta do Tribunal de Justiça

63      A título preliminar, saliente‑se que o órgão jurisdicional de reenvio não submeteu uma questão prejudicial relativa à validade de uma disposição do Regulamento n.° 562/2006. Uma vez que o artigo 267.° TFUE não constitui uma via de recurso para as partes num litígio pendente no tribunal nacional, o Tribunal de Justiça não pode ser obrigado a apreciar a validade do direito da União apenas porque esta questão foi invocada perante o mesmo por uma destas partes (acórdão de 30 de Novembro de 2006, Brünsteiner e Autohaus Hilgert, C‑376/05 e C‑377/05, Colect., p. I‑11383, n.° 28).

64      No que diz respeito à interpretação, solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio, do artigo 67.° TFUE, que prevê, no seu n.° 2, que a União assegura a ausência de controlos de pessoas nas fronteiras internas, importa sublinhar que este artigo figura no capítulo 1, intitulado «Disposições gerais», do título V do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e que resulta dos próprios termos do referido artigo que a União é a destinatária da obrigação nele prevista. No referido capítulo 1 figura igualmente o artigo 72.°, que retoma a reserva do artigo 64.°, n.° 1, CE relativa ao exercício das responsabilidades que incumbem aos Estados‑Membros em matéria de manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna.

65      O capítulo 2 do referido título V contém disposições específicas sobre a política relativa aos controlos nas fronteiras, designadamente o artigo 77.° TFUE, que sucede ao artigo 62.° CE. Segundo o n.° 2, alínea e), do artigo 77.°, o Parlamento Europeu e o Conselho adoptam as medidas relativas à ausência de quaisquer controlos de pessoas na passagem das fronteiras internas. Daqui resulta que devem ser tomadas em consideração as disposições adoptadas com este fundamento, designadamente os artigos 20.° e 21.° do Regulamento n.° 562/2006, a fim de apreciar se o direito da União se opõe a uma legislação nacional como a do artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal.

66      O legislador comunitário pôs em prática o princípio da ausência de controlos nas fronteiras internas, ao adoptar, ao abrigo do artigo 62.° CE, o Regulamento n.° 562/2006, que, nos termos do seu considerando 22, se destina a desenvolver o acervo de Schengen. Este regulamento estabelece, no título III, um regime comunitário relativo à passagem das fronteiras internas, que substituiu, a partir de 13 de Outubro de 2006, o artigo 2.° da CAAS. A aplicabilidade deste regulamento não foi afectada pela entrada em vigor do Tratado de Lisboa. Com efeito, o Protocolo n.° 19, a ela anexado, prevê expressamente que o acervo de Schengen continua a ser aplicável.

67      O artigo 20.° do Regulamento n.° 562/2006 dispõe que as fronteiras internas podem ser transpostas em qualquer local, sem que se proceda ao controlo das pessoas nas fronteiras, independentemente da sua nacionalidade. Nos termos do artigo 2.°, ponto 10, do referido regulamento, «controlos de fronteira» são os controlos efectuados nos pontos de passagem de fronteira, a fim de assegurar que as pessoas podem ser autorizadas a entrar no território dos Estados‑Membros ou a abandoná‑lo.

68      Quanto aos controlos previstos no artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal, observe‑se que os mesmos são feitos, não «nas fronteiras» mas no interior do território nacional e são independentes da passagem da fronteira pela pessoa controlada. Sobretudo, não são feitos no momento da passagem da fronteira. Assim, tais controlos constituem, não verificações nas fronteiras, proibidas pelo artigo 20.° do Regulamento n.° 562/2006, mas verificações no interior do território de um Estado‑Membro, abrangidas pelo artigo 21.° do referido regulamento.

69      O artigo 21.°, alínea a), do Regulamento n.° 562/2006 dispõe que a supressão do controlo nas fronteiras internas não prejudica o exercício das competências de polícia pelas autoridades competentes do Estado‑Membro, ao abrigo do direito nacional, na medida em que o exercício dessas competências não tenha um efeito equivalente ao dos controlos de fronteira, o mesmo se aplicando nas zonas fronteiriças. Daqui resulta que, por força deste artigo 21.°, alínea a), os controlos no interior do território de um Estado‑Membro só são proibidos quando tiverem um efeito equivalente ao dos controlos nas fronteiras.

70      O exercício das competências de polícia não pode, de acordo com o segundo período desta disposição, considerar‑se equivalente ao exercício de controlos de fronteira, nomeadamente nos casos em que essas medidas policiais não tiverem como objectivo o controlo fronteiriço, se basearem em informações policiais de carácter geral e na experiência em matéria de possíveis ameaças à ordem pública e se destinarem particularmente a combater o crime transfronteiras, forem concebidas e executadas de uma forma claramente distinta dos controlos sistemáticos de pessoas nas fronteiras externas e, finalmente, forem aplicadas com base em controlos por amostragem.

71      No que respeita à questão de saber se o exercício das competências de controlo conferidas pelo artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal tem um efeito equivalente ao dos controlos de fronteira, observe‑se, em primeiro lugar, que o objectivo dos controlos previstos nesta disposição não é o mesmo que o do controlo nas fronteiras na acepção do Regulamento n.° 562/2006. Este controlo tem como objectivo, de acordo com o artigo 2.°, pontos 9 a 11, do referido regulamento, por um lado, assegurar que as pessoas podem ser autorizadas a entrar no território do Estado‑Membro ou a abandoná‑lo e, por outro, impedir as pessoas de iludirem os controlos de fronteira. Em contrapartida, a referida disposição nacional visa a verificação do respeito das obrigações de posse, porte e apresentação dos títulos e documentos previstos na lei. A possibilidade de um Estado‑Membro prever essas obrigações no seu direito nacional não é, por força do artigo 21.°, alínea c), do Regulamento n.° 562/2006, afectada pela supressão do controlo nas fronteiras internas.

72      Em segundo lugar, o facto de o campo de aplicação territorial da competência concedida pela disposição nacional em causa no processo principal ser limitado a uma zona fronteiriça não basta, por si só, para declarar o efeito equivalente do exercício dessa competência na acepção do artigo 21.°, alínea a), do Regulamento n.° 562/2006, tendo em conta os termos e o objectivo deste artigo 21.° No entanto, no que diz respeito aos controlos a bordo de um comboio que efectue uma ligação internacional e numa auto‑estrada com portagens, a disposição nacional em causa no processo principal prevê regras especiais relativas ao seu campo de aplicação territorial, aspecto que poderia constituir, por seu lado, um indício da existência desse efeito equivalente.

73      Além disso, o artigo 78‑2, quarto parágrafo, do Código de Processo Penal, que autoriza controlos independentemente do comportamento da pessoa em causa e de circunstâncias especiais que demonstrem a existência de um risco de violação da ordem pública, não contém precisões nem limitações da competência concedida, relativas, designadamente, à intensidade e à frequência dos controlos que podem ser feitos com este fundamento jurídico, tendo por finalidade evitar que a aplicação prática desta competência pelas autoridades competentes conduza a controlos que tenham um efeito equivalente ao dos controlos de fronteira na acepção do artigo 21.°, alínea a), do Regulamento n.° 562/2006.

74      Para dar cumprimento aos artigos 20.° e 21.°, alínea a), do Regulamento n.° 562/2006, interpretados à luz da exigência de segurança jurídica, uma legislação nacional que confere às autoridades policiais competência para efectuar controlos de identidade, competência que, por um lado, está limitada à zona fronteiriça do Estado‑Membro com outros Estados‑Membros e, por outro, é independente do comportamento da pessoa controlada e de circunstâncias particulares que demonstrem a existência de um risco de violação de ordem pública, deve prever o necessário enquadramento da competência conferida a estas autoridades, a fim, designadamente, de guiar o poder de apreciação de que estas dispõem na aplicação prática da referida competência. Este enquadramento deve garantir que o exercício prático da competência que consiste em efectuar controlos de identidade não possa ter um efeito equivalente ao dos controlos de fronteira, conforme resulta, em especial, das circunstâncias que figuram no segundo período do artigo 21.°, alínea a), do Regulamento n.° 562/2006.

75      Nestas condições, deve responder‑se à segunda questão prejudicial que o artigo 67.°, n.° 2, TFUE assim como os artigos 20.° e 21.° do Regulamento n.° 562/2006 se opõem a uma legislação nacional que confere às autoridades policiais do Estado‑Membro em questão a competência para controlar, unicamente numa zona de 20 quilómetros a partir da fronteira terrestre desse Estado com os Estados partes na CAAS, a identidade de qualquer pessoa, independentemente do comportamento desta e de circunstâncias particulares que demonstrem a existência de um risco de violação da ordem pública, a fim de verificar o respeito das obrigações de posse, porte e apresentação dos títulos e documentos previstos na lei, sem prever o necessário enquadramento dessa competência que garanta que o seu exercício prático não possa ter um efeito equivalente ao dos controlos de fronteira.

 Quanto às despesas

76      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1)      O artigo 267.° TFUE opõe‑se à legislação de um Estado‑Membro que institui um procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade das leis nacionais, na medida em que o carácter prioritário desse procedimento tenha como consequência impedir, quer antes da transmissão de uma questão de constitucionalidade ao tribunal nacional encarregado de exercer a fiscalização da constitucionalidade das leis quer, sendo caso disso, posteriormente à decisão desse tribunal sobre a referida questão, todos os outros órgãos jurisdicionais nacionais de exercerem a sua faculdade ou de cumprirem a sua obrigação de submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça. Em contrapartida, o artigo 267.° TFUE não se opõe a essa legislação nacional, desde que os outros órgãos jurisdicionais nacionais continuem a poder:

–        em qualquer momento do processo que considerem adequado, mesmo depois de concluído o procedimento incidental de fiscalização da constitucionalidade, submeter ao Tribunal de Justiça qualquer questão prejudicial que entendam ser necessária,

–        adoptar qualquer medida necessária, a fim de assegurar a tutela jurisdicional provisória dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União, e

–        não aplicar, concluído esse procedimento incidental, a disposição legislativa nacional em causa, se a considerarem contrária ao direito da União.

Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a legislação nacional em causa no processo principal pode ser interpretada em conformidade com estas exigências do direito da União.

2)      O artigo 67.°, n.° 2, TFUE assim como os artigos 20.° e 21.° do Regulamento (CE) n.° 562/2006 Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen), opõem‑se a uma legislação nacional que confere às autoridades policiais do Estado‑Membro em questão a competência para controlar, unicamente numa zona de 20 quilómetros a partir da fronteira terrestre desse Estado com os Estados partes na Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinada em Schengen (Luxemburgo), em 19 de Junho de 1990, a identidade de qualquer pessoa, independentemente do comportamento desta e de circunstâncias particulares que demonstrem a existência de um risco de violação da ordem pública, a fim de verificar o respeito das obrigações de posse, porte e apresentação dos títulos e documentos previstos na lei, sem prever o necessário enquadramento dessa competência que garanta que o seu exercício prático não possa ter um efeito equivalente ao dos controlos de fronteira.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.