Language of document : ECLI:EU:C:2022:736

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PRIIT PIKAMÄE

apresentadas em 29 de setembro de 2022 (1)

Processo C640/20 P

PV

contra

Comissão Europeia

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Função pública — Assédio moral — Pareceres médicos — Ausências injustificadas — Remuneração — Estatuto dos Funcionários da União Europeia — Artigo 11.o‑A — Conflito de interesses — Artigos 21.o‑A e 23.o — Direito penal nacional — Processo disciplinar — Demissão — Revogação — Interesse em agir — Novo processo disciplinar — Nova demissão»






I.      Introdução

1.        Através do presente recurso, PV pede a anulação do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 30 de janeiro de 2020, PV/Comissão (T‑786/16 e T‑224/18, a seguir «acórdão recorrido», não publicado, EU:T:2020:17), que julgou improcedentes os seus pedidos de declaração de que foi vítima de assédio moral, a anulação de vários atos e a condenação da Comissão Europeia na reparação dos danos materiais e morais que afirma ter sofrido quando era funcionário da Comissão.

2.        Este recurso, ao abrigo do direito da função pública europeia, contém dez fundamentos que contestam, em substância, a maior parte das conclusões essenciais do Tribunal Geral no acórdão recorrido relativamente aos pedidos de anulação de PV. Em conformidade com o pedido do Tribunal de Justiça, as presentes conclusões incidirão sobre os dois primeiros fundamentos bem como sobre o oitavo fundamento de recurso. A análise destes fundamentos conduzir‑me‑á a uma análise de várias questões jurídicas novas, concretamente a vocação do direito penal dos Estados‑Membros para se aplicar aos funcionários da União, o dever de imparcialidade na função pública e a possibilidade de interpor no Tribunal Geral um recurso de anulação de uma decisão administrativa depois de revogada.

II.    Enquadramento jurídico

3.        O artigo 11.o‑A do Estatuto dos Funcionários da União Europeia, na versão aplicável ao litígio (a seguir «Estatuto»), dispõe:

«1.      No exercício das suas funções, e salvo disposições em contrário, o funcionário não tratará quaisquer questões em que tenha, direta ou indiretamente, um interesse pessoal, nomeadamente familiar ou financeiro, suscetível de comprometer a sua independência.

2.      O funcionário a quem, no exercício das suas funções, seja atribuído o tratamento de uma questão referida no n.o 1 informará imediatamente do facto a entidade competente para proceder a nomeações. Esta tomará todas as medidas adequadas, podendo, nomeadamente, libertar o funcionário de responsabilidades nesse assunto.

3.      O funcionário não pode conservar nem adquirir, direta ou indiretamente, nas empresas sujeitas ao controlo da instituição a que pertence, ou que com esta estejam relacionadas, qualquer interesse de natureza e importância tais que seriam suscetíveis de comprometer a sua independência no exercício das suas funções.»

4.        O artigo 12.o‑A do Estatuto prevê:

«1.      Os funcionários abster‑se‑ão de qualquer forma de assédio moral ou sexual.

2.      Um funcionário vítima de assédio moral ou sexual não sofrerá qualquer prejuízo por parte da instituição. Um funcionário que tenha apresentado provas de assédio moral ou sexual não sofrerá qualquer prejuízo por parte da instituição, desde que tenha agido de boa‑fé.

3.      Por “assédio moral”, entende‑se qualquer conduta abusiva que ocorra durante um período de tempo, de modo repetitivo ou sistemático e envolva comportamentos físicos, linguagem, verbal ou escrita, gestos ou outros atos intencionais suscetíveis de lesar a personalidade, a dignidade ou a integridade física ou psíquica de uma pessoa.

[…]»

5.        O primeiro parágrafo do Artigo 19.o do Estatuto estabelece:

«O funcionário não pode depor nem prestar declarações em juízo, seja a que título for, sobre factos de que teve conhecimento por causa das suas funções, sem autorização da entidade competente para proceder a nomeações. Esta autorização só pode ser recusada se os interesses da União o exigirem ou se a recusa não for suscetível de implicar consequências penais para o funcionário em causa. O funcionário continua sujeito a esta obrigação mesmo depois de as suas funções terem cessado.»

6.        O artigo 21.o‑A do Estatuto tem a seguinte redação:

«O funcionário que receba uma ordem que considere irregular, ou suscetível de dar origem a sérias dificuldades, informará imediatamente do facto o seu superior hierárquico direto, o qual, se a informação tiver sido transmitida por escrito, responderá igualmente por escrito. Sem prejuízo do n.o 2, se o superior hierárquico direto confirmar a ordem, mas o funcionário considerar que essa confirmação não constitui uma resposta razoável em função da sua preocupação, transmitirá a questão por escrito à autoridade hierárquica imediatamente superior. Se esta última confirmar a ordem por escrito, o funcionário deve executá‑la, a não ser que seja manifestamente ilegal ou contrária às normas de segurança aplicáveis.

2.      Se o superior hierárquico direto considerar que a ordem deve ser cumprida prontamente, o funcionário deve executá‑la, a não ser que seja manifestamente ilegal ou contrária às normas de segurança aplicáveis. A pedido do funcionário, o superior hierárquico direto será obrigado a transmitir qualquer ordem desse tipo por escrito.

3.      O funcionário que informe os seus superiores hierárquicos de ordens que considere irregulares ou suscetíveis de dar origem a sérias dificuldades não deve sofrer qualquer prejuízo por este motivo.»

7.        O primeiro parágrafo do artigo 23.o do Estatuto dispõe:

«Os privilégios e imunidades de que beneficiam os funcionários são conferidos unicamente no interesse da União. Sem prejuízo das disposições do Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades, os interessados não estão isentos do cumprimento das suas obrigações privadas, nem da observância das leis e regulamentos de polícia em vigor.»

8.        O artigo 24.o do Estatuto tem a seguinte redação:

«A União presta assistência ao funcionário, nomeadamente em procedimentos contra autores de ameaças, ultrajes, injúrias, difamações ou atentados contra pessoas e bens de que sejam alvo o funcionário ou os membros da sua família, por causa da sua qualidade e das suas funções.

A União repara solidariamente os prejuízos sofridos, em consequência de tais factos, pelo funcionário, na medida em que este não esteja, intencionalmente ou por negligência grave, na origem dos referidos prejuízos e não tenha podido obter reparação dos responsáveis.»

9.        Os n.os 1 e 3 do artigo 59.o do Estatuto preveem:

«1. O funcionário que prove estar impedido de exercer as suas funções em consequência de doença ou acidente tem o direito de faltar justificadamente por doença.

O funcionário deve informar, no mais curto prazo possível, a sua instituição da sua impossibilidade de comparência ao serviço, indicando o lugar em que se encontra. É obrigado a apresentar, a partir do quarto dia de ausência, um atestado médico. Esse atestado deve ser enviado, no máximo, até ao quinto dia de ausência, fazendo fé a data do carimbo do correio. Na ausência de atestado, e salvo se este não tiver sido enviado por razões independentes da vontade do funcionário, a ausência será considerada injustificada.

O funcionário pode, a qualquer momento, ser submetido a um exame médico organizado pela instituição. Se esse exame não se puder realizar por razões imputáveis ao interessado, a sua ausência será considerada injustificada a contar do dia em que o exame tiver sido efetuado.

Se o exame revelar que o funcionário se encontra em condições de exercer as suas funções, a sua ausência será, sem prejuízo do parágrafo seguinte, considerada injustificada a partir da data do exame.

Se o funcionário considerar que as conclusões do exame médico organizado pela entidade competente para proceder a nomeações são injustificadas do ponto de vista médico, ele próprio ou um médico em seu nome podem, no prazo de dois dias, apresentar à instituição que a questão seja submetida a um médico independente, para parecer.

A instituição transmitirá imediatamente esse pedido a outro médico designado de comum acordo entre o médico do funcionário e o médico assistente da instituição. Na ausência desse acordo no prazo de cinco dias a contar do pedido, a instituição escolherá uma pessoa entre as constantes da lista de médicos independentes a ser estabelecida anualmente para esse efeito de comum acordo entre a entidade competente para proceder a nomeações e o Comité do Pessoal. No prazo de dois dias úteis, o funcionário pode contestar a escolha feita pela instituição após o que esta escolherá outra pessoa da lista; esta escolha é definitiva.

O parecer do médico independente, emitido após consulta do médico do funcionário e do médico assistente da instituição é vinculativo. Se o parecer do médico independente confirmar a conclusão do exame organizado pela instituição, a ausência será considerada injustificada a partir da data desse exame. Se o parecer do médico independente não confirmar a conclusão do exame, a ausência será considerada justificada, para todos os efeitos.

[…]

3. Sem prejuízo da aplicação das regras relativas aos processos disciplinares, sempre que pertinente, qualquer ausência considerada injustificada na aceção dos n.os 1 e 2 será deduzida das férias anuais do funcionário em causa. No caso de já ter esgotado as suas férias anuais, o funcionário perderá o direito à remuneração pelo período correspondente.»

10.      O primeiro parágrafo do artigo 60.o do Estatuto tem a seguinte redação:

«Salvo em caso de doença ou acidente, o funcionário não pode ausentar‑se sem para tal estar previamente autorizado pelo respetivo superior hierárquico. Sem prejuízo da aplicação eventual do preceituado em matéria disciplinar, qualquer ausência irregular devidamente verificada é descontada nas férias anuais do interessado. Em caso de esgotamento das férias, o funcionário perde o direito à remuneração pelo período excedente.»

11.      O n.o 5 do artigo 6.o do Anexo IX do Estatuto prevê:

«Nos cinco dias seguintes à constituição do Conselho de Disciplina, o funcionário em causa pode recusar um dos membros do Conselho de Disciplina. A instituição pode igualmente recusar um dos membros do Conselho de Disciplina.

Dentro do mesmo prazo, os membros do Conselho de Disciplina podem pedir escusa por motivos legítimos e devem retirar‑se se existir um conflito de interesses.

[…]»

III. Antecedentes do litígio, a tramitação do processo no Tribunal Geral e o acórdão recorrido

A.      Antecedentes do litígio

12.      Os antecedentes do litígio estão expostos nos n.os 1 a 33 do acórdão recorrido. Para efeitos do presente processo, podem ser resumidos da seguinte forma.

13.      PV, que era funcionário da Comissão desde 16 de julho de 2007, esteve colocado na Direção Geral (DG) do Emprego, Assuntos Sociais e Inclusão da Comissão até 30 de setembro de 2009.

14.      Considerando‑se vítima de assédio, PV apresentou, em 5 de agosto de 2009, um pedido de assistência com base no artigo 24.o e no artigo 90.o, n.o 1, do Estatuto. Este processo ficou concluído em 9 de junho de 2010, na sequência de um inquérito conduzido pelo Serviço de Averiguação e Disciplina da Comissão — que concluiu que não estavam preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 12.o‑A, n.o 3, do Estatuto para qualificar um determinado comportamento de assédio moral — e após a transferência de PV para a DG do Orçamento da Comissão em 1 de outubro de 2009.

15.      Em 1 de abril de 2013, PV foi colocado na Unidade «Gestão Orçamental e Financeira» da DG da Interpretação da Comissão.

16.      Em 12 de novembro de 2013, o chefe dessa unidade apresentou uma queixa disciplinar contra PV por problemas comportamentais, não aplicação dos procedimentos em vigor e desempenho inadequado.

17.      A partir de 8 de maio de 2014, PV deixou de ser apresentar ao serviço, considerando‑se vítima de assédio moral, e enviou atestados médicos emitidos pelo seu médico assistente.

18.      Em 27 de junho e 10 de outubro de 2014, os médicos assessores da Comissão emitiram pareceres médicos indicando que PV estava apto a retomar o trabalho. Posteriormente, PV foi convocado para exames médicos e não respondeu a estas convocatórias.

19.      Em 23 de dezembro de 2014, PV apresentou um segundo pedido de assistência ao abrigo do artigo 24.o do Estatuto. Por decisão de 12 de março de 2015, a Autoridade Investida do Poder de Nomeação (AIPN) decidiu que não existiam indícios de qualquer assédio moral em relação a PV e concluiu que, por conseguinte, não era justificada a aplicação de medidas urgentes de afastamento.

20.      Considerando que as ausências de VP eram injustificadas, a Comissão adotou várias decisões de dedução no vencimento de PV.

21.      A 10 de julho de 2015, a Comissão abriu o processo disciplinar CMS 13/087 contra PV por incumprimento reiterado do dever de obediência no exercício das suas funções, comportamento inadequado e ausências injustificadas.

22.      Por Decisões de 31 de maio e 5 de julho de 2016, a AIPN considerou que as ausências de PV entre 5 de fevereiro e 31 de março de 2016 e entre 4 de abril e 31 de maio de 2016 eram irregulares.

23.      Por Decisão de 11 de julho de 2016, o Serviço «Gestão e Liquidação dos Direitos Individuais» (PMO) decidiu suspender o pagamento do vencimento de PV a partir de 1 de julho de 2016.

24.      Por Decisão da AIPN de 26 de julho de 2016, adotada na sequência das conclusões do processo disciplinar CMS 13/087, PV foi demitido com efeitos a partir de 1 de agosto de 2016 (a seguir «decisão de demissão de 26 de julho de 2016»). PV apresentou uma reclamação contra essa decisão, que foi indeferida por decisão da AIPN de 2 de fevereiro de 2017.

25.      Por nota de 31 de julho de 2016, o Diretor‑Geral da DG da Interpretação comunicou a PV a sua intenção de considerar injustificadas as suas ausências de 2 de junho a 31 de julho de 2016 e de proceder às correspondentes deduções no vencimento. A reclamação apresentada por PV contra essa nota foi indeferida por decisão da AIPN de 17 de janeiro de 2017.

26.      Por ofício prévio de informação de 21 de setembro de 2016, o PMO informou PV de que este devia à Comissão 42 704,74 euros, correspondente às suas ausências injustificadas. A reclamação apresentada por PV contra esta decisão foi indeferida por decisão da AIPN de 17 de janeiro de 2017.

27.      Em 24 de julho de 2017, a AIPN revogou a sua decisão de demissão de 26 de julho de 2016 e PV foi informado, por nota do Diretor‑Geral da DG dos Recursos Humanos e Segurança, de que seria reintegrado em 16 de setembro de 2017 na Unidade «Sistemas Informáticos e de Conferências» da DG da Interpretação. A reclamação apresentada por PV contra a decisão de revogação da sua demissão foi indeferida por decisão da AIPN de 15 de janeiro de 2018.

28.      Por nota de 12 de setembro de 2017, o Diretor do PMO compensou os montantes devidos a PV relativamente ao período durante o qual tinha sido demitido das suas funções e as dívidas deste para com a Comissão com o pagamento de 9 550 euros a favor de PV. A sua reclamação contra esta nota de compensação foi indeferida por decisão da AIPN de 9 de março de 2018.

29.      Em 20 de setembro de 2017, PV foi informado de que as suas ausências a partir de 16 de setembro de 2017 eram consideradas injustificadas.

30.      Em 6 de outubro de 2017, a Comissão deu início ao procedimento disciplinar CMS 17/025, pelas mesmas acusações que as que foram objeto do processo disciplinar CMS 13/087. A reclamação apresentada por PV contra a instauração do novo processo disciplinar foi indeferida por decisão da AIPN de 2 de maio de 2018.

31.      Em 13 de outubro de 2017, a Comissão adotou uma decisão de fixar a zero o vencimento de PV a partir de 1 de outubro de 2017.

32.      Por correio eletrónico de 15 de novembro de 2017, PV foi convidado a participar no exercício de avaliação do FP2016. A reclamação apresentada por PV contra este convite foi indeferida por decisão da AIPN de 16 de março de 2018.

33.      Por correio eletrónico de 22 de fevereiro de 2018, PV foi convidado a participar no exercício de avaliação FP 2017. A reclamação apresentada pela PV contra este convite foi indeferida por decisão da AIPN de 1 de junho de 2018.

34.      Por Decisão de 21 de outubro de 2019, a Comissão demitiu PV das suas funções, na sequência das conclusões do processo disciplinar CMS 17/025. Esta demissão entrou em vigor em 1 de novembro de 2019.

B.      A tramitação do processo no Tribunal Geral e o acórdão recorrido

35.      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 17 de dezembro de 2017, depois de lhe ter sido concedido apoio judiciário pelo presidente do Tribunal Geral, PV interpôs um recurso visando a anulação de vários atos e a condenação da Comissão a pagar‑lhe, respetivamente, 889 000 euros e 132 828,67 euros a título de reparação pelos alegados danos morais e materiais.

36.      Em apoio desse recurso, PV invocou cinco fundamentos relativos, em primeiro lugar, à violação do artigo 12.o‑A do Estatuto, em segundo lugar, à violação dos artigos 11.o‑A, 21.o‑A e 23.o do Estatuto, bem como dos princípios da legalidade e da regularidade dos atos administrativos, em terceiro lugar, à violação do princípio da solicitude e do dever de assistência previsto no artigo 24.o do Estatuto e, em quarto lugar, à violação dos artigos 59.o e 60.o do Estatuto.

37.      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 11 de abril de 2018, PV interpôs no Tribunal Geral uma ação, pedindo a declaração de que tinha sido vítima de assédio moral, a anulação de outros atos e a condenação da Comissão a pagar‑lhe 98 000 euros e 23 190,44 euros, respetivamente, a título de indemnização pelos alegados danos morais e materiais.

38.      Em apoio a esse recurso, PV invocou sete fundamentos, relativos, em primeiro lugar, à violação do artigo 12.o‑A do Estatuto, em segundo lugar, à violação dos artigos 21.o‑A e 23.o do Estatuto, bem como dos princípios da legalidade e da regularidade dos atos administrativos, em terceiro lugar, à violação do artigo 11.o‑A do Estatuto e do artigo 41.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), em quarto lugar, à violação do princípio da solicitude e, em quinto lugar, à violação do princípio da exceção de incumprimento e do princípio da legalidade.

39.      Pelo acórdão recorrido, o Tribunal Geral julgou improcedentes, no seu conjunto, os recursos interpostos por PV.

40.      O Tribunal Geral considerou, em primeiro lugar, inadmissíveis os pedidos que visavam a declaração pelo Tribunal Geral de que PV tinha sido vítima de assédio moral, bem como os pedidos de anulação, nomeadamente, da decisão de demissão de 26 de julho de 2016 e das decisões impugnadas a título subsidiário no processo T‑786/16, que incluíam as decisões de dedução do vencimento, as decisões de indeferimento de pedidos de assistência e os pareceres médicos de ausências injustificadas.

41.      Em segundo lugar, o Tribunal Geral julgou improcedentes os pedidos de anulação nos dois recursos.

42.      Considerou, antes de mais, que os factos constitutivos de assédio moral alegados por PV não tinham sido suficientemente provados.

43.      Em terceiro lugar, o Tribunal Geral rejeitou os argumentos de PV relativos à violação dos artigos 11.o‑A, 21.o‑A e 23.o do Estatuto e dos princípios da legalidade e da regularidade dos atos administrativos, do princípio da solicitude, bem como do dever de assistência estabelecido no artigo 24.o do Estatuto, dos artigos 59.o e 60.o do Estatuto e dos princípios da exceção de incumprimento e da legalidade.

44.      Em quarto lugar, o Tribunal Geral negou provimento aos pedidos de indemnização de PV, considerando que se baseavam, em substância, na alegada ilegalidade das decisões objeto dos recursos de anulação e cuja ilegalidade não ficou provada.

IV.    Tramitação processual no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

A.      Tramitação processual no Tribunal de Justiça

45.      Em conformidade com o artigo 76.o, n.o 2, do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça decidiu não realizar audiência.

B.      Os pedidos das partes

46.      O recurso foi interposto por PV em 23 de novembro de 2020 e deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 30 de novembro de 2020. PV conclui pedindo que o Tribunal se digne:

–        anular o acórdão recorrido;

–        decidir do litígio; e

–        condenar a Comissão nas despesas em ambas as instâncias.

47.      A Comissão apresentou a sua contestação em 22 de abril de 2021, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 23 de abril de 2021, na qual conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        negar provimento ao recurso, e

–        condenar PV nas despesas.

V.      Análise jurídica

A.      Observações preliminares

48.      Como indiquei na introdução, as presentes conclusões incidem sobre os dois primeiros fundamentos bem como sobre o oitavo fundamento do recurso. As questões jurídicas a examinar referem‑se, em substância, à vocação do direito penal dos Estados‑Membros para se aplicar aos funcionários da União, ao dever de imparcialidade na função pública e à possibilidade de interpor no Tribunal Geral um recurso de anulação de uma decisão administrativa revogada. A análise destas questões jurídicas à luz do contexto específico do processo no caso em apreço afigura‑se indispensável para a solução do litígio.

49.      Tendo em conta a complexidade dos factos do presente processo, parece conveniente recordar, a título preliminar, as regras que regem o processo de recurso. Em conformidade com o artigo 256.o, n.o 1, segundo parágrafo, TFUE e com o artigo 58.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, o recurso é limitado às questões de direito. Com efeito, como confirmado por jurisprudência constante, o Tribunal Geral tem competência exclusiva, por um lado, para apurar a matéria de facto e, por outro, para apreciar esses factos. Em contrapartida, o Tribunal de Justiça não é competente para proceder ao apuramento dos factos nem, em princípio, para analisar os elementos de prova que o Tribunal Geral considerou sustentarem esses factos. Por conseguinte, a apreciação dos elementos de prova pelo Tribunal Geral não constitui uma questão de direito sujeita, enquanto tal, à fiscalização do Tribunal de Justiça (2).

50.      No entanto, quando o Tribunal Geral apurou ou apreciou os factos, o Tribunal de Justiça é competente, por força do artigo 256.o TFUE, para fiscalizar a qualificação jurídica desses factos e as consequências jurídicas daí extraídas pelo Tribunal Geral. Excecionalmente, o Tribunal de Justiça pode fiscalizar a apreciação dos factos pelo Tribunal Geral quando um recorrente alega que esse tribunal desvirtuou elementos de prova (3). Nesse caso, o recorrente deve indicar com precisão os elementos de prova que foram desvirtuados e apontar os erros de apreciação que, na sua opinião, conduziram a essa desvirtuação. Como resulta da jurisprudência, existe desvirtuação quando, sem ter recorrido a novos elementos de prova, a apreciação dos elementos de prova existentes se revela manifestamente errada (4).

51.      Estas observações preliminares assumem um significado especial no presente contexto, uma vez que PV põe em causa a apreciação de vários elementos factuais, bem como certas conclusões do Tribunal Geral. Pensa‑se, em especial, no alegado assédio moral que PV terá sofrido, no âmbito das suas funções, por parte de outros funcionários, sem, no entanto, o ter conseguido provar em primeira instância. A este respeito, há que salientar que o Tribunal Geral declarou no seu acórdão, sem cometer um erro de direito, que as informações fornecidas por PV não permitiam concluir pela existência de tal assédio moral (5). Além disso, convém observar que o Tribunal Geral indicou, acertadamente, que muitas das medidas apontadas à Comissão e consideradas por PV como constitutivas de assédio, como a suspensão de vencimento por ausência injustificada e a avaliação da competência, rendimento e comportamento no serviço de cada funcionário, estão expressamente previstas no Estatuto (6). É evidente que, na falta de provas em sentido contrário, a legalidade destas medidas não pode seriamente ser posta em causa.

52.      Por conseguinte, embora PV conteste os fundamentos do acórdão recorrido, o presente recurso não pode, todavia, ser utilizado para obrigar o Tribunal de Justiça a reavaliar os factos. Pelo contrário, tendo em conta a clara divisão de competências entre os órgãos jurisdicionais da União, descrita nos números anteriores, é imperativo limitar a apreciação do recurso a uma análise estrita das questões jurídicas submetidas ao Tribunal de Justiça.

B.      Quanto ao primeiro fundamento de recurso

1.      Argumentos das partes

53.      Com o seu primeiro fundamento, PV contesta a apreciação do Tribunal Geral, nos n.os 184 e 185 do acórdão recorrido, relativamente aos argumentos apresentados em primeira instância, referentes à violação dos artigos 21.o‑A e 23.o do Estatuto.

54.      Em primeiro lugar, segundo o recorrente, o Tribunal Geral violou o artigo 2.o TUE, bem como o artigo 67.o, n.o 3, e o artigo 270.o TFUE, ao considerar, no n.o 185 do acórdão recorrido, que a relação de trabalho entre um funcionário e a sua instituição é regulada exclusivamente pelo Estatuto, ao passo que outras fontes de direito são relevantes, nomeadamente o direito penal do Estado‑Membro no território do qual trabalha o agente em causa. Assim, qualquer infração penal cometida por um agente constitui uma violação do artigo 23.o do Estatuto. Ora, o assédio moral, a falsificação de documentos públicos, os pareceres médicos falsos e a corrupção constituem infrações ao abrigo do Código Penal belga.

55.      Em segundo lugar, o Tribunal Geral desvirtuou os factos por omissão ao não tomar em consideração vários elementos determinantes. PV cita, antes de mais, os despachos do juiz de instrução belga que ordenaram a audição, ao abrigo do regime «Salduz III», de determinados funcionários da Comissão envolvidos na adoção de vários atos impugnados, os quais demonstram que essas pessoas são consideradas suspeitas dos factos imputados. PV refere‑se, a seguir, à apreciação do processo disciplinar CMS 17/025 pelo juiz de instrução como prova do delito de «falsificação de documentos públicos», que alegadamente ocorreu em 19 de setembro de 2018.

56.      Em terceiro lugar, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar, no n.o 184 do acórdão recorrido, que apenas uma sentença condenatória pode provar os factos constitutivos de assédio moral ou de falsificação de documentos e ao recusar‑se a ter em conta os despachos proferidos no âmbito da investigação belga relativamente a esses factos.

57.      A Comissão sustenta, em primeiro lugar, que a imputação de PV relativa ao alegado erro de direito cometido pelo Tribunal Geral no n.o 185 do acórdão recorrido resulta de uma má leitura desse acórdão. Nesse número, o Tribunal Geral limitou‑se a recordar que a relação de trabalho entre um funcionário e a sua instituição é regulada pelo Estatuto e que o Tribunal Geral aplica unicamente o direito da função pública e não um qualquer direito nacional.

58.      Em segundo lugar, o Tribunal Geral realçou, sem desvirtuar os factos, que os tribunais belgas não se pronunciaram sobre os factos alegados por PV. A este respeito, a convocação de determinados funcionários da Comissão para uma audição ao abrigo do regime «Salduz III» não constitui, de modo algum, um reconhecimento da sua culpa. Além disso, o Tribunal Geral não desvirtuou os factos ao não retirar nenhuma consequência da alegada apreciação do processo disciplinar CMS 17/025 por um juiz de instrução belga, por iniciativa de PV, o que não permite de modo algum deduzir que estaria provada uma «falsificação de documentos públicos».

59.      Em terceiro lugar, o Tribunal Geral considerou acertadamente que as queixas criminais em fase de instrução não permitiam provar a existência de assédio moral ou a falsificação de documentos.

2.      Apreciação

60.      Com o seu primeiro fundamento, PV alega que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar, no n.o 185 do acórdão recorrido, que a relação de trabalho entre um funcionário e a sua instituição é regulada «exclusivamente» pelo Estatuto. O raciocínio desenvolvido pelo Tribunal Geral neste ponto consiste em excluir, com base no artigo 270.o TFUE, qualquer relevância do direito nacional e, em particular, do direito penal, na análise da questão de saber se a AIPN violou os artigos 21.o e 23.o do Estatuto ao adotar as decisões impugnadas em primeira instância. Ora, segundo PV, o Tribunal Geral ignorou «as outras fontes de direito» que regulam a relação laboral, nomeadamente a legislação penal do Estado‑Membro do local de afetação do funcionário.

61.      A este respeito, há que recordar que PV argumentou perante o Tribunal Geral que as decisões em causa estão feridas de ilegalidade por se basearem em atos que constituem infrações penais cometidas por funcionários e agentes da Comissão no território belga. PV alegou que, por força do artigo 21.o‑A, n.o 2, do Estatuto, um funcionário ou um agente da União deve recusar‑se a praticar atos ilegais e que, nos termos do artigo 23.o do Estatuto, é obrigado a respeitar as disposições imperativas do país no qual trabalha. É por esta razão que PV considera que a AIPN devia ter tido em conta as decisões tomadas pela autoridade judicial belga na sequência das queixas que apresentou contra várias pessoas e da sua constituição como assistente.

a)      As normas do direito da função pública na ordem jurídica da União

62.      Antes de mais, importa observar que, como indica PV nas suas observações, as regras de direito que regem a função pública figuram a todos os níveis da hierarquia das normas da ordem jurídica da União, a saber, no direito primário, nos princípios gerais e no direito derivado. Neste contexto, não se deve certamente esquecer a preciosa contribuição da jurisprudência do Tribunal de Justiça e do Tribunal Geral para as regras aplicáveis aos funcionários e aos outros agentes. Os seus acórdãos impõem‑se às instituições por força do artigo 266.o TFUE. Dito isto, é o direito codificado, bem como a sua interação com as ordens jurídicas nacionais, que reveste uma importância primordial para efeitos da análise do primeiro fundamento.

1)      Direito primário e princípios gerais do direito

63.      O direito primário é composto principalmente pelos Tratados constitutivos e pelos seus protocolos, bem como pela Carta. Numerosos princípios fundamentais consagrados nos Tratados são vinculativos para os funcionários no exercício das suas funções. Trata‑se, por exemplo, dos valores e objetivos da União, enunciados, respetivamente, nos artigos 2.o e 3.o TUE. Além disso, nos termos do artigo 298.o, n.o 1, TFUE, as instituições, órgãos e organismos da União apoiam‑se numa administração europeia aberta, eficaz e independente no desempenho das suas atribuições. Em contrapartida, outras disposições do direito primário exigem a adoção, pelas instituições, de atos de direito derivado para serem concretizadas. É o caso do artigo 336.o TFUE, que dispõe que o Parlamento e o Conselho, por meio de regulamentos adotados de acordo com o processo legislativo ordinário, estabelecem, após consulta às outras instituições interessadas, o Estatuto dos Funcionários da União Europeia e o Regime aplicável aos Outros Agentes da União.

64.      O artigo 270.o TFUE confere ao Tribunal de Justiça da União Europeia competência para decidir sobre todo e qualquer litígio entre a União e os seus agentes, dentro dos limites e condições estabelecidas pelo Estatuto dos Funcionários da União e no Regime aplicável aos Outros Agentes da União. O artigo 340.o TFUE prevê, por sua vez, que a União deve indemnizar, de acordo com os princípios gerais comuns aos direitos dos Estados‑Membros, os danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das suas funções e que a responsabilidade pessoal dos agentes perante a União é regulada pelas disposições do respetivo Estatuto ou do Regime que lhes é aplicável. Mais especificamente, o artigo 339.o TFUE impõe aos funcionários da União uma obrigação de não divulgar as informações que, por sua natureza, sejam abrangidas pelo segredo profissional, designadamente as respeitantes às empresas e respetivas relações comerciais ou elementos dos seus preços de custo.

65.      Em conformidade com o artigo 51.o TUE, os protocolos têm o mesmo valor jurídico que os Tratados e são, portanto, parte integrante do direito primário. Entre estes, o Protocolo n.o 7 relativo aos Privilégios e Imunidades da União (a seguir «Protocolo n.o 7») visa diretamente os funcionários e outros agentes em várias das suas disposições e consagra‑lhes o seu capítulo V. Este Protocolo contém disposições essenciais para a função pública, nomeadamente em matéria de imunidade fiscal e jurisdicional, às quais voltarei mais adiante na minha análise (7).

66.      A Carta, que, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, TUE, tem o mesmo valor jurídico que os Tratados, é aplicável a todos os atos de direito derivado da União, incluindo o Estatuto. Os funcionários gozam dos direitos protegidos pela Carta e devem, por sua vez, respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos no exercício das suas funções. A este respeito, o artigo 41.o da Carta, que consagra o direito a uma boa administração, reveste particular importância (8).

67.      No decurso do processo de integração europeia, o Tribunal de Justiça desenvolveu numerosos princípios gerais do direito da União. Em matéria de função pública, estes princípios são, no essencial, relativos aos direitos fundamentais protegidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma a 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»). Por força do artigo 6.o, n.o 3, TUE, fazem parte do direito da União, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais, tal como garantidos pela CEDH. Antes de a Carta adquirir força vinculativa, a CEDH constituía uma fonte fundamental em matéria de proteção dos cidadãos, incluindo os funcionários.

68.      Embora seja verdade que a Carta desempenha atualmente um papel mais preponderante, não deixa de ser verdade que o juiz da União continua, se necessário, a referir‑se à CEDH e à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para interpretar as disposições contidas na Carta ou mesmo completar a proteção por estas garantida. A CEDH não perdeu importância para o desenvolvimento do direito da União, uma vez que o artigo 52.o, n.o 3, da Carta dispõe que, na medida em que a Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela CEDH, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção, sem que isso obste a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.

2)      Direito derivado

69.      O Estatuto estabelece de forma detalhada o regime aplicável aos funcionários que trabalham nas instituições da União no que respeita, entre outros, ao recrutamento e à progressão na carreira, às condições de trabalho, aos direitos e deveres, ao regime pecuniário e ao regime disciplinar (9). O Estatuto tem a forma jurídica de um regulamento, o que significa que é obrigatório em todos os seus elementos para as instituições, para os organismos da União, bem como para os organismos dos Estados‑Membros. Como sublinhou o Tribunal de Justiça na sua jurisprudência «daqui decorre que além dos efeitos que produz na ordem interna da Administração da União, o Estatuto também vincula os Estados‑Membros sempre que a contribuição destes seja necessária para a sua implementação» (10), o que implica que, no caso de uma disposição do Estatuto necessitar de medidas de aplicação a nível nacional, «os Estados‑Membros são obrigados a adotar todas as medidas gerais ou específicas adequadas» (11).

70.      As normas jurídicas aplicáveis à relação entre o funcionário e a sua instituição são determinadas pelas disposições do estatuto adotadas por regulamento, o que implica que são suscetíveis de ser alteradas, se necessário, pelo Parlamento e pelo Conselho. Trata‑se, portanto, de uma relação laboral regulada pelo direito público, cuja gestão pela instituição pertinente constitui um caso de administração direta, o que significa que todas as decisões suscetíveis de afetar o funcionário são por ela adotadas de forma unilateral, segundo as regras e os procedimentos estabelecidos pelo Estatuto ou pelas disposições gerais de execução, e constituem medidas administrativas. O regime estatutário aplica‑se na íntegra ao funcionário da União, ou seja, a qualquer pessoa que tenha sido nomeada nas condições previstas nesse Estatuto para um lugar permanente de uma das instituições da União por ato escrito da AIPN.

71.      Embora o Estatuto seja o texto central do direito derivado da função pública da União (12), existem igualmente outros atos que implementam as diferentes disposições estatutárias e regulam, entre outras, o regime fiscal, o regime linguístico, a proteção dos dados pessoais, as modalidades de atribuição de livre‑trânsitos e os recrutamentos aquando dos alargamentos. Esta área caracteriza‑se por uma heterogeneidade de normas que implementam ou interpretam as disposições do Estatuto. Em geral distinguem‑se os atos expressamente previstos pelo Estatuto dos atos sui generis. Dito isto, uma enumeração exaustiva desses atos ultrapassa o âmbito dessas conclusões e excede o meu objetivo. Contudo, importa considerar, nesta fase da análise, que, não obstante a heterogeneidade dos atos normativos, o princípio da unicidade do regime estatuário exige que os textos de implementação sejam os mesmos em todas as instituições e que se evitem interpretações excessivamente divergentes. Esta exigência corresponde ao interesse de garantir a unicidade da função pública europeia, erigida como princípio pelo artigo 9.o, n.o 3, do Tratado de Amesterdão (13), de que os artigos 1.o e 1.o‑A do Estatuto são expressão.

b)      Incidência do direito nacional sobre a função pública europeia

1)      Independência da União em matéria de gestão da função pública

72.      Resulta dos pontos que acabo de expor que a ordem jurídica da União tem as suas próprias regras que regulam a relação entre o funcionário e a sua instituição, a maioria das quais foram codificadas no Estatuto. É por esta razão que várias disposições, inclusive do direito primário (14), lhe fazem referência, como precisamente o artigo 270.o TFUE, citado pelo Tribunal Geral no acórdão recorrido, de modo a recordar a competência exclusiva do juiz da União para resolver litígios em matéria de função pública (15).

73.      Em virtude da sua autonomia organizacional, a administração da União é amplamente independente das ordens jurídicas nacionais, o que não exclui que certas normas exijam eventualmente uma implementação pelas próprias instituições da União ou pelos Estados‑Membros a fim de assegurar o bom funcionamento da União enquanto organização supranacional. No entanto, este aspeto não basta, por si só, para se poder afirmar que o direito nacional determina de algum modo o funcionamento da administração da União. Tal afirmação é errada, tendo em conta a intenção manifesta dos fundadores da União de criarem uma função pública europeia «independente» na aceção do artigo 298.o, n.o 1, TFUE, o que se reflete, aliás, na natureza jurídica das suas regras e na estrutura institucional dessa organização supranacional (16).

74.      Nesta perspetiva, a declaração do Tribunal Geral, no n.o 185 do acórdão recorrido, segundo a qual «a relação de trabalho entre um funcionário e a sua instituição é regulada exclusivamente pelo Estatuto» não é juridicamente incorreta. Por um lado, podemos perguntar se, tendo em conta a multiplicidade das fontes do direito da função pública, é suficientemente preciso do ponto de vista jurídico utilizar o advérbio «exclusivamente» neste contexto. Por outro lado, tal afirmação parece perfeitamente justificada à luz do princípio da unicidade do Estatuto já referido, por força do qual todos os funcionários de todas as instituições da União estão sujeitos a um estatuto único e, assim, às mesmas disposições. Em primeiro lugar, é incontestável que o Estatuto constitui o elemento central de um corpus jurídico composto por diversas normas jurídicas. Em segundo lugar, é evidente que todos os funcionários da Comissão, de que PV fazia parte, estão sujeitos às regras do Estatuto. Por conseguinte, considero que o n.o 185 do acórdão recorrido deve ser entendido no sentido de que o Tribunal Geral teve por objetivo reiterar a vocação das regras do Estatuto para se aplicar aos funcionários da Comissão, o que é incontestável do ponto de vista jurídico.

75.      PV afirma que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao não reconhecer a relevância do direito penal nacional. Segundo PV, as decisões impugnadas em primeira instância não podiam ter sido adotadas na medida em que não são conformes com o direito penal belga. Contudo, há que observar que o Tribunal Geral se referia unicamente à «relação de trabalho entre o funcionário e a sua instituição» que, efetivamente, é regulada pelo Estatuto. Com efeito, o presente processo refere‑se a um litígio que diz exclusivamente respeito à função pública da União e que tem por objeto a atividade profissional de PV na Comissão.

76.      Por conseguinte, a questão a examinar não é a de saber se o direito penal belga pode ser aplicado no caso em apreço. Os órgãos jurisdicionais da União não têm competência para interpretar o direito penal belga. Um recurso visando a interpretação do direito nacional seria manifestamente inadmissível. Parece‑me que foi precisamente o que o Tribunal Geral quis exprimir com a referência ao artigo 270.o TFUE. Importa, aliás, recordar que os órgãos jurisdicionais nacionais também não são competentes para se pronunciarem sobre a interpretação das regras do Estatuto, o que sublinha a independência da União na gestão da função pública.

2)      Relação entre o processo penal e o processo disciplinar

77.      Não obstante estas considerações, é verdade que, nos termos do artigo 23.o, primeiro parágrafo, do Estatuto, os funcionários da União têm a obrigação de «observância das leis e regulamentos de polícia em vigor», o que obviamente inclui o direito penal. Uma infração às referidas leis e regulamentos do Estado em que a instituição tem a sua sede pode exigir o levantamento da imunidade de um funcionário, nos termos do artigo 17.o do Protocolo n.o 7, a fim de permitir, se for caso disso, que este seja objeto de investigações criminais. Como o Tribunal de Justiça observou no Acórdão Comissão/RQ (17), «uma decisão que levanta a imunidade de um funcionário ([…]) modifica a situação jurídica [deste] pelo mero efeito da supressão da proteção que lhe é conferida pela imunidade de jurisdição prevista no artigo 11.o, alínea a), do Protocolo n.o 7, restabelecendo o seu estatuto de pessoa sujeita ao direito comum dos EstadosMembros e expondo‑o, sem que nenhuma regra intermédia seja necessária, a medidas, designadamente, de detenção e de procedimento judicial, instituídas por esse direito comum» (18).

78.      Dito isto, importa, todavia, salientar que o comportamento de PV enquanto funcionário, em causa no presente processo, não foi objeto de uma investigação penal por parte das autoridades judiciárias belgas. Na verdade é PV quem acusa os seus colegas de terem infringido o direito penal belga. Alias, o Tribunal Geral chama a atenção para esta circunstância no n.o 187 do acórdão recorrido. Por conseguinte, não é clara a relevância que poderia ter sobre a sua própria condição de funcionário o facto de que alegadamente o direto penal belga deva aplicar‑se a terceiros.

79.      Para além destas dúvidas quanto à pertinência do direito penal nacional no presente litígio, importa salientar que este, em geral, tem apenas uma incidência indireta na relação de trabalho entre o funcionário e a sua instituição em razão da sua finalidade específica. Com efeito, o processo penal diz respeito ao cumprimento das regras de manutenção da ordem decretadas para garantir o bom funcionamento de uma sociedade no seu todo (19). No entanto, não visa regular a relação de trabalho de um funcionário numa instituição da União.

80.      Sem embargo, há que reconhecer que uma violação do direito penal pode, em determinadas circunstâncias, afetar a relação de trabalho e dar lugar a uma sanção disciplinar, nomeadamente quando a infração é cometida pelo funcionário no exercício das suas funções e prejudica os interesses da União. Com efeito, na medida em que o objetivo do processo disciplinar consiste em assegurar o respeito das regras que garantem o bom funcionamento da instituição (20), a abertura desse processo pode revelar‑se justificada pelas circunstâncias do caso concreto.

81.      A este respeito, importa todavia notar que, embora um comportamento possa infringir tanto a regra penal como a regra disciplinar, é o Estatuto que determina as consequências desse comportamento. De facto, a sanção disciplinar é avaliada em relação ao regime disciplinar e não em relação à sanção penal. Por conseguinte, a autoridade disciplinar não pode ser obrigada, na sua escolha da sanção disciplinar adequada, a ter em conta sem reservas as sanções penais adotadas no contexto de processos penais que envolvam a mesma pessoa (21). Isto resulta das diferentes finalidades dos processos penais e disciplinares, mas também da independência da União na gestão da função pública.

82.      Pelas razões acima expostas, há que considerar nesta fase da análise que o direito penal nacional não determina o funcionamento da função pública europeia, contrariamente ao que parece sugerir PV nas suas observações escritas.

3)      Presunção de inocência no âmbito do processo penal

83.      Além disso, devo salientar que a questão da vocação do direito penal belga para se aplicar a outros funcionários, que segundo PV terão cometido delitos, parece desprovida de pertinência para efeitos da resolução do presente litígio, como explicarei a seguir. Em primeiro lugar, é pacífico que o Tribunal Geral não reconheceu casos que pudessem ser considerados assédio moral e nada permite concluir que o Tribunal Geral tenha desvirtuado os factos na sua apreciação dos elementos de prova (22). Em segundo lugar, também nada indica que as alegadas infrações penais tenham sido efetivamente cometidas, uma vez que os órgãos jurisdicionais belgas não tomaram uma decisão final sobre estas acusações.

84.      Tudo o que PV pode apresentar a título de prova, são os despachos de audição que os órgãos jurisdicionais belgas adotaram relativamente a alguns funcionários. Todavia, há que observar que tal medida judicial não constitui um «elemento de prova» na aceção jurídica, uma vez que a presunção de inocência se mantém na ausência de condenação. A presunção de inocência está consagrada no artigo 48.o da Carta, que corresponde ao artigo 6.o, n.os 2 e 3, da CEDH (23). Ao nível do direito derivado da União, a presunção de inocência está consagrada na Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (24) que os Estados‑Membros, incluindo o Reino da Bélgica, são obrigados a transpor para as suas ordens jurídicas nacionais.

85.      O estatuto de «suspeito» concedidos aos colegas de PV ao abrigo do direito processual penal belga tem em conta esta presunção de inocência. Este estatuto evolui de acordo com o nível concreto de suspeita de que a pessoa suspeita tenha cometido uma infração. Mais precisamente, o estatuto de «suspeito» confere, em geral, à pessoa que é alvo de uma investigação direitos na sua defesa perante as autoridades judiciais, como o direito à assistência de um advogado e o direito de informação sobre a acusação, como estabelece a Diretiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, relativa ao direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de execução de mandados de detenção europeus, e ao direito de informar um terceiro aquando da privação de liberdade e de comunicar, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares (25). Por esta razão, as ordens jurídicas dos Estados‑Membros têm em comum o facto de fazer uma distinção clara quanto ao estatuto da pessoa em causa no âmbito de um processo penal. Este estatuto evolui em função do grau de suspeita efetivo que pesa sobre a pessoa que se presume ter cometido uma infração (26).

86.      Por uma questão de exaustividade, saliente‑se neste contexto que o direito da função pública tem em conta a presunção de inocência na medida em que o artigo 25.o do anexo IX do Estatuto prevê expressamente que quando o funcionário é perseguido judicialmente pelos factos que justificaram a instauração de um processo disciplinar, só será tomada uma decisão final depois de o tribunal competente ter proferido uma sentença final. Esta regra explica‑se também pelo facto de as jurisdições penais disporem de poderes de investigação mais importantes do que a AIPN dentro da administração. Resulta do exposto que a presunção de inocência enquanto garantia de um processo equitativo deve ser tida em conta no domínio penal como disciplinar.

87.      Quanto às circunstâncias do caso em apreço, tudo parece indicar que a investigação penal ainda se encontra numa fase preliminar do processo, de modo que não se sabe se as suspeitas serão confirmadas. As medidas tomadas pelos órgãos jurisdicionais belgas nesta fase, às quais se refere PV, servem apenas para recolher os elementos de prova necessários. Além disso, saliente‑se que a «lei Salduz», que PV refere nas suas observações, oferece direitos e garantias a qualquer pessoa ouvida pelas autoridades judiciais, seja a que título for, de acordo com os princípios de equidade processual (27). Daqui decorre que, até a conclusão do processo penal, não se pode retirar da aplicação das disposições desta lei nenhuma conclusão sobre a alegada culpabilidade dos funcionários ouvidos pelas autoridades judiciais belgas. Além disso, é de salientar que, contrariamente ao que PV parece sugerir nas suas observações, não se pode «constituir» esses elementos de prova através da simples apresentação de queixas contra os funcionários em causa, sendo que são as autoridades judiciais que devem apreciar os factos e determinar se os elementos recolhidos constituem provas válidas.

88.      A este respeito, saliente‑se que as autoridades judiciais têm, em geral, a obrigação de velar para que as investigações tendam à descoberta da verdade e sejam realizadas tanto no sentido incriminatório como ilibatório, ou seja, que deverão procurar, simultaneamente, elementos de prova da inocência e da culpa da pessoa posta em causa (28). Por conseguinte, as autoridades judiciais só instaurarão processos penais se existirem provas suficientes no final do inquérito (29). A argumentação de PV, insinuando a culpa dos funcionários em causa apenas por estes serem objeto de investigações, parece‑me, portanto, basear‑se num desconhecimento dos princípios do processo penal.

c)      Observações finais

89.      Pelas razões acima expostas, relativas nomeadamente à independência da União na gestão da função pública e à falta de pertinência do direito penal nacional nas circunstâncias do caso em apreço, considero que há que rejeitar a argumentação da PV que sustenta que as decisões impugnadas em primeira instância estão feridas de ilegalidade por se basearem em atos constitutivos de infrações penais cometidas por funcionários da Comissão no território belga e que a AIPN estava obrigada, por força do direito penal belga, a não as adotar.

90.      A afirmação do Tribunal Geral no n.o 185 do acórdão recorrido, segundo a qual «a relação de trabalho entre um funcionário e a sua instituição regula‑se exclusivamente pelo Estatuto», não revela nenhum erro de direito na medida em que deve ser entendida no sentido de que rejeita a argumentação de PV que sustenta, em substância, que o direito penal nacional prevalece sobre o direito da função pública da União ou que o direito penal nacional constitui, pelo menos, uma «fonte» do direito da função pública da União. Uma vez que esta argumentação se baseia numa violação do direito da União, deve ser rejeitada.

3.      Conclusão intercalar

91.      À luz das considerações precedentes, proponho que o primeiro fundamento do recurso seja julgado improcedente.

C.      Quanto ao segundo fundamento do recurso

1.      Argumentos das partes

92.      Com o seu segundo fundamento, PV critica a apreciação feita pelo Tribunal Geral nos n.os 184 e 192 do acórdão recorrido.

93.      Em primeiro lugar, PV sustenta que a conclusão do Tribunal Geral, no n.o 184 do acórdão recorrido, segundo a qual nenhum dos factos que PV qualificou de assédio moral ou de falsas declarações tinha sido caracterizado como tal ou tinha sido objeto de uma condenação penal por um órgão jurisdicional nacional belga, pode ser explicada pela «sabotagem» das diligências de instruções penais por parte da Comissão. A Comissão abusou da imunidade funcional recusando sistematicamente autorizar a audição dos suspeitos, em violação do princípio da cooperação leal enunciado no artigo 4.o TUE, apesar de não estar em causa nenhum ato de poder público.

94.      Em segundo lugar, o Tribunal Geral desvirtuou os autos no n.o 192 do acórdão recorrido, ao basear a rejeição da acusação relativa à violação do artigo 11.o‑A do Estatuto na declaração de que uma simples queixa apresentada pelo funcionário contra pessoas responsáveis por tomar decisões a seu respeito não pode criar, por si só, um conflito de interesses na esfera jurídica destas últimas, quando as queixas apresentadas por PV contra dois dos três membros da AIPN deram lugar a diligências de instrução penal. No entender de PV, esta circunstância deveria ter levado o Tribunal Geral a declarar a existência de um conflito de interesses relativamente a esses membros da AIPN no contexto dos processos disciplinares CMS 13/087 e CMS 17/025, bem como da decisão de demissão de 21 de outubro de 2019 no termo deste último processo disciplinar. Por conseguinte, o Tribunal Geral devia ter declarado uma violação do artigo 41.o da Carta, do artigo 11.o‑A do Estatuto e do artigo 6.o, n.o 5, do anexo IX do Estatuto.

95.      Segundo a Comissão, a acusação relativa à falta de cooperação leal com as autoridades judiciárias belgas devido à sua recusa sistemática de autorizar a audição de suspeitos por um juiz de instrução é nova e, portanto, o Tribunal Geral não pode ser acusado de não se ter pronunciado a este respeito. A título subsidiário, a Comissão considera que tinha fundamento para indeferir os pedidos das autoridades judiciárias belgas com base no artigo 19.o do Estatuto.

96.      Quanto à acusação relativa à violação do artigo 11.o‑A do Estatuto, a Comissão sustenta que PV não criticaria a jurisprudência em que se baseou o Tribunal Geral, mas apoia‑se em considerações factuais que tornam esta acusação inadmissível e que, de qualquer modo, não permitem pôr em causa a conclusão a que o Tribunal Geral chegou no n.o 192 do acórdão recorrido. Além disso, esta acusação é dirigida contra dois processos que o Tribunal Geral excluiu expressamente da sua fiscalização, tendo o primeiro conduzido a uma decisão de demissão posteriormente revogada e sendo o segundo objeto de um contencioso distinto.

2.      Apreciação

97.      A análise do segundo fundamento do recurso centrar‑se‑á no raciocínio do Tribunal Geral, no n.o 192 do acórdão recorrido, que rejeitou o argumento de PV segundo o qual dois dos três membros da AIPN que adotaram as decisões impugnadas em primeira instância tinham um conflito de interesses, na medida em que estavam os dois implicados nos processos penais instaurados na Bélgica por assédio ou falsificação de documentos públicos. PV invoca uma violação do princípio da imparcialidade garantido pelo artigo 41.o, n.o 1, da Carta, bem como do artigo 11.o‑A do Estatuto. Além disso, considera, que a afirmação do Tribunal Geral, segundo a qual a circunstância de as pessoas em questão estarem envolvidas nos processos mencionados não basta para pôr em causa a sua imparcialidade, deve ser considerada uma desvirtuação por deturpação dos factos, na medida em que o Tribunal Geral considerou que os processos em causa decorriam de queixas apresentadas pelo recorrente para se subtrair ao processo disciplinar.

a)      Conceito de «imparcialidade» no direito da função pública

98.      Antes de mais, importa salientar que o artigo 41.o, n.o 1, da Carta enuncia que todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial. A exigência de imparcialidade visa garantir a igualdade de tratamento que constitui a base da União. Do mesmo modo, devo recordar que o Tribunal de Justiça confirmou recentemente, no Acórdão Parlamento/UZ, a aplicação da exigência de imparcialidade no domínio da função pública (30). Neste contexto, permito‑me remeter para as conclusões que apresentei nesse mesmo processo, nas quais referi que «na medida em que tanto o funcionamento interno como a imagem externa das instituições, órgãos e organismos dependem do respeito desta exigência, esta deve necessariamente estender‑se a todos os domínios de atividade da administração da União, incluindo aos aspetos ligados à gestão da função pública, como a nomeação, a promoção e a sanção do pessoal» (31). Por conseguinte, na minha opinião, não há qualquer dúvida de que a exigência de imparcialidade é aplicável a um processo disciplinar, como o que está em causa no presente processo.

99.      O artigo 11.o‑A do Estatuto, que PV invoca nas suas observações, contém regras específicas destinadas a garantir que o funcionário exerce as suas funções sem conflitos de interesses que prejudiquem o cumprimento da sua missão (32). Nos termos do n.o 1 desse artigo, no exercício das suas funções, e salvo disposições em contrário, o funcionário não tratará quaisquer questões em que tenha, direta ou indiretamente, um interesse pessoal, nomeadamente familiar ou financeiro, suscetível de comprometer a sua independência. Tendo em conta que estas regras são uma expressão da exigência de imparcialidade no sentido lato, considero necessário interpretá‑las à luz do conceito de «imparcialidade», tal como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça. Parece‑me que foi precisamente a abordagem que o Tribunal Geral seguiu quando declarou, no n.o 190 do acórdão recorrido, que se devia reconhecer ao artigo 11.o‑A do Estatuto «um amplo âmbito de aplicação, tendo em conta a natureza fundamental dos objetivos de independência e de integridade prosseguidos por essa disposição e o caráter geral da obrigação imposta aos funcionários e agentes». (O sublinhado é meu).

100. O Tribunal de Justiça baseia‑se na sua jurisprudência relativa a um conceito de « imparcialidade» que comporta duas componentes. Por um lado, a imparcialidade subjetiva, por força da qual nenhum membro da instituição em causa deve manifestar ideias preconcebidas ou juízos prévios pessoais e, por outro, a imparcialidade objetiva, em conformidade com a qual esta instituição deve oferecer garantias suficientes para excluir todas as dúvidas legítimas quanto a um eventual juízo prévio. A este respeito o Tribunal Geral especificou que, para demonstrar que a organização do procedimento administrativo não oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima quanto a um possível juízo prévio, não se requer provar a existência da falta de imparcialidade. Basta que exista uma dúvida legítima a este respeito que não possa ser dissipada (33). O raciocínio do Tribunal Geral deve ser apreciado à luz das considerações anteriores.

101. Quanto à imparcialidade objetiva, há que observar que o Tribunal Geral, após ter enunciado nos n.os 180 e 191 do acórdão recorrido as alegações formuladas pelo recorrente quanto à existência de um conflito de interesses em consequência do envolvimento nos processos penais instaurados por assédio ou falsificação de documentos públicos das pessoas que tomaram decisões nos processos disciplinares instaurados contra si, considerou, nos n.os 193 e 194 do mesmo acórdão, que tais alegações não estavam fundadas em nenhuma prova. Além disso, há que observar que, no âmbito do presente recurso, PV não apresenta nenhum elemento que permita sustentar melhor este aspeto.

102. Por conseguinte, como já referi (34), considero que é necessário partir da premissa de que não houve assédio moral no caso em apreço. O mesmo se aplica à alegação feita contra os membros da AIPN tripartida de terem cometido atos criminosos, uma vez que os processos penais instaurados na Bélgica não conduziram a uma condenação penal, aspeto que foi corretamente sublinhado pelo Tribunal Geral no n.o 184 do acórdão recorrido. Uma vez que as pessoas em causa podem legitimamente invocar a presunção de inocência, parece‑me evidente que a mera apresentação de uma queixa não é por si só suficiente para suscitar dúvidas quanto à imparcialidade dos membros, na falta de outros elementos que permitam concluir que existe um conflito de interesses. Concluir o contrário seria pôr em causa o direito à presunção de inocência, enquanto garantia de um julgamento justo e inverter o ónus da prova em processos penais, o que me parece inconciliável com o Estado de direito.

b)      Quanto ao exercício abusivo de um direito e aos riscos para o bom funcionamento da administração

103. Estas considerações já permitem rejeitar uma grande parte das alegações formuladas por PV relativamente à alegada desvirtuação que resultaria do raciocínio do Tribunal Geral no n.o 192 do acórdão recorrido. No entanto, considero necessário examinar esta alegação de forma aprofundada a fim de eliminar qualquer dúvida que possa persistir quanto à legalidade dos fundamentos expostos no referido acórdão.

104. O Tribunal Geral declarou no número acima referido que «a tese do recorrente segundo a qual a apresentação de uma queixa, se aceite, bastaria para criar um conflito de interesses, teria por efeito permitir a qualquer funcionário frustrar a adoção de medidas disciplinares a seu respeito», acrescentando que «um funcionário sujeito a processo disciplinar poderia, simplesmente, apresentar uma queixa contra as pessoas responsáveis pela tomada de decisões a seu respeito e pedir, em seguida o seu afastamento nos termos do artigo 11.o‑A do Estatuto». A este respeito, PV sustenta que os processos pendentes nos tribunais belgas não podem ser interpretados como uma «simples queixa» que apresentou para se subtrair ao processo disciplinar. Segundo PV, é o curso que segue a investigação penal que determina a existência de um conflito de interesses.

105. O raciocínio do Tribunal Geral, reproduzido no número anterior, permite‑nos vislumbrar uma preocupação de garantir a imparcialidade do processo disciplinar, assegurando simultaneamente o bom funcionamento da administração. Por um lado, resulta dos n.os 189 e 190 do acórdão recorrido que o Tribunal Geral estava plenamente consciente da importância que reveste o artigo 11.o‑A do Estatuto, recordando que esta disposição «tem por objetivo garantir a independência, integralidade e imparcialidade dos funcionários e dos agentes». Por outro lado, salienta‑se que o Tribunal Geral reconheceu, acertadamente, que uma interpretação do conceito de «imparcialidade» no sentido de que os membros da AIPN envolvidos nas investigações penais deveriam ter‑se abstido de intervir no processo disciplinar, como defendido por PV, era juridicamente insustentável, uma vez que não só não havia nenhuma razão objetiva para questionar a imparcialidade das pessoas em causa, mas também porque existia um risco não negligenciável de entravar o trabalho da administração, se tal interpretação fosse adotada.

106. Mais concretamente, o Tribunal Geral aludiu ao risco de que a apresentação de uma queixa pudesse ser utilizada por um funcionário — de uma forma que se pode qualificar de «abusiva» — para criar um conflito de interesses e pedir o afastamento dos responsáveis pela tomada de decisões a seu respeito, frustrando assim o objeto do processo disciplinar. A este respeito, há que chamar a atenção para o facto de PV ter apresentado numerosas queixas que levaram a pôr em causa cerca de quarenta funcionários e agentes da Comissão. Por conseguinte, um número considerável de pessoas nesta instituição foram objeto de acusações de assédio e de comportamento criminoso por iniciativa de PV. Esta circunstância é notável e exige alguns comentários de ordem jurídica.

107. Considero que não se pode excluir que existem circunstâncias em que o exercício de um direito, como o de pedir o afastamento de um funcionário das suas responsabilidades com base num alegado conflito de interesses, possa ser qualificado de abusivo. O Tribunal de Justiça declarou em várias ocasiões que, por força de um princípio geral do direito da União, os particulares não podem invocar de forma fraudulenta ou abusiva as normas deste direito (35). Como resulta da jurisprudência, a prova de uma prática abusiva requer, por um lado, um conjunto de circunstâncias objetivas das quais resulte que, apesar do preenchimento formal dos requisitos previstos na regulamentação da União, o objetivo prosseguido por essa regulamentação não foi alcançado e, por outro, um elemento subjetivo que consiste na vontade de obter uma vantagem resultante da regulamentação da União, através da criação artificial dos requisitos exigidos para a sua obtenção (36).

108. É certo que, embora o Tribunal Geral não tenha qualificado expressamente o comportamento da PV de «abusivo» segundo os critérios desenvolvidos na jurisprudência, resulta, no entanto, do n.o 192 do acórdão recorrido que tinha sérias dúvidas de que as queixas apresentadas pela PV contra os funcionários em causa tinham fundamento. Neste contexto, parece‑me que o Tribunal Geral podia legitimamente expressar alguma preocupação quanto ao risco que a interpretação defendida por PV implicava para a boa condução do processo disciplinar, nomeadamente tendo em conta o número particularmente elevado de queixas apresentadas contra vários funcionários na Comissão, por um lado, e a falta de provas de assédio moral, bem como de infrações penais nas circunstâncias em questão, por outro.

109. De facto, a menos que essas queixas fossem apresentadas com o único objetivo de dificultar o trabalho da AIPN, poder‑se‑ia razoavelmente esperar que PV pudesse provar algumas situações de assédio, o que manifestamente não é o caso. Na falta de indícios contrários, é questionável se PV agiu realmente de boa‑fé, como exige o direito da União, ou se teve antes por objetivo servir‑se da proteção conferida pelo artigo 11.o‑A do Estatuto, tal como interpretado à luz da exigência de imparcialidade, a fim de alcançar objetivos que, obviamente, não são visados pelo legislador da União, a saber, permitir a um funcionário sabotar o trabalho da administração e prejudicar os seus colegas.

110. Se assim fosse, esse comportamento preencheria, sem dúvida, os critérios exigidos para ser qualificado como abuso de direito, o que teria por consequência que o exercício do direito conferido pela disposição já referida lhe deveria ser recusado (37). Por outras palavras, PV não podia validamente invocar o artigo 11.o‑A do Estatuto. Dito isto, saliente‑se que se trata, afinal, de uma questão de facto à qual o Tribunal Geral parece ter dado uma resposta suficientemente clara com base numa apreciação das circunstâncias. A abordagem cautelosa que o Tribunal Geral adotou relativamente à atitude de PV para com a administração e, em especial, no âmbito do processo disciplinar em causa, parece‑me justificada nas circunstâncias particulares do presente processo. Por estes motivos, concluo que o raciocínio do Tribunal Geral não contém nenhum erro de direito.

111. Não obstante as considerações precedentes, não considero necessário que o Tribunal de Justiça se pronuncie exaustivamente sobre a questão de saber se o Tribunal Geral podia ter rejeitado a argumentação de PV denunciando um comportamento abusivo da sua parte, uma vez que, em todo o caso, o respeito da presunção de inocência e a falta de provas em sentido contrário representam, por si só, argumentos sólidos que permitem concluir que não houve violação do requisito de imparcialidade na sequência da participação na tomada de decisões dos membros da AIPN que foram objeto de queixas apresentadas por PV. Na minha opinião, a necessidade de prevenir comportamentos abusivos em geral, a que o Tribunal Geral faz alusão, constitui apenas um argumento complementar para sustentar um raciocínio já suficientemente convincente.

3.      Observações finais

112. A análise do segundo fundamento do recurso, mais especificamente no que respeita aos fundamentos expostos nos n.os 189 a 194 do acórdão recorrido, não revela nenhum erro de direito. Pelo contrário, há que considerar que o Tribunal Geral estabeleceu corretamente o âmbito de aplicação do artigo 11.o‑A do Estatuto, conforme interpretado à luz do princípio da imparcialidade previsto no artigo 41.o, n.o 1, da Carta, e decidiu corretamente, que a participação de certos membros da AIPN que foram objeto de queixas apresentadas por PV não suscitava qualquer conflito de interesses suscetível de ferir de ilegalidade as decisões tomadas relativamente a PV no âmbito do processo disciplinar.

113. O risco referido pelo Tribunal Geral, no n.o 192 do acórdão recorrido, de que uma utilização abusiva do princípio da imparcialidade possa causar um disfuncionamento da administração, e em particular redunde em detrimento do bom andamento do processo disciplinar em causa, justifica‑se pelas circunstâncias específicas do processo, a saber, o facto de PV ter apresentado um número particularmente elevado de queixas contra vários funcionários da Comissão, apesar da falta de provas de que estes cometeram assédio moral, bem como infrações penais. Consequentemente, considero que há que rejeitar a argumentação de PV relativamente a uma alegada violação da exigência de imparcialidade.

4.      Conclusão intercalar

114. No termo desta análise, considero que o segundo fundamento do recurso não pode ser acolhido. Proponho que seja julgado improcedente.

D.      Quanto ao oitavo fundamento do presente recurso

1.      Argumentos das partes

115. Com o seu oitavo fundamento, PV alega que a apreciação, pelo Tribunal Geral, referente à admissibilidade do seu pedido de anulação da decisão de demissão de 26 de julho de 2016 enferma de dois erros de direito.

116. Em primeiro lugar, o Tribunal Geral não podia validamente concluir, no n.o 81 do acórdão recorrido, que a AIPN tinha efetuado uma compensação entre as dívidas de PV para com a Comissão e os montantes devidos pela Comissão ao recorrente. A revogação da decisão de demissão fez desaparecer retroativamente todas as consequências desta decisão, nomeadamente as constatações de ausências injustificadas. Daqui resulta que as dívidas deveriam ter sido anuladas e as deduções no vencimento reembolsadas na sequência dessa revogação, para que nenhuma compensação pudesse ser efetuada.

117. Em segundo lugar, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao concluir, no n.o 82 do acórdão recorrido, que os efeitos financeiros da decisão de demissão foram neutralizados antes da interposição do recurso no processo T‑786/16. A AIPN não compensou as consequências financeiras da sua decisão de demissão, uma vez que deveria, para esse efeito, ter pago uma indemnização pelos danos materiais e morais sofridos por PV.

118. Segundo a Comissão, em primeiro lugar, a anulação do processo disciplinar por falta de instrução não eliminou as decisões tomadas anteriormente que justificaram a instauração desse processo e que são inteiramente separáveis e independentes do referido processo. Em segundo lugar, os efeitos financeiros da revogação da decisão de demissão foram de facto neutralizados.

2.      Apreciação

119. A pedido do Tribunal de Justiça, a análise do oitavo fundamento centrar‑se‑á no raciocínio do Tribunal Geral nos n.os 81 e 82 do acórdão recorrido, concluindo pela inadmissibilidade do recurso de anulação da decisão de demissão de 26 de julho de 2016. Mais concretamente, PV contesta a conclusão do Tribunal Geral, no n.o 82 do acórdão recorrido, segundo a qual o pedido de anulação da decisão de demissão de 26 de julho de 2016 carece de objeto, uma vez que esta decisão foi revogada e os seus efeitos financeiros foram neutralizados antes da interposição do recurso no processo T‑786/16. Segundo PV, a AIPN não compensou as consequências financeiras da decisão de demissão, uma vez que PV devia, para esse efeito, ter recebido uma indemnização pelos danos materiais e morais resultantes dessa demissão.

a)      Quanto ao «interesse em agir» exigido pelo direito processual

120. Como explicou a advogada‑geral J. Kokott nas suas Conclusões apresentadas no processo Wunenburger/Comissão (38), a exigência do interesse em agir destina se a garantir que num processo os tribunais não sejam chamados a fornecer esclarecimentos periciais sobre questões jurídicas de caráter meramente hipotético. Portanto, o interesse em agir é uma condição indispensável de admissibilidade, que pode ser relevante em várias fases do processo. Assim, a sua existência deve ser incontestável logo no momento em que é interposto o recurso. Além disso, deve manter‑se também após esse momento e até o juiz proferir uma decisão de mérito (39).

121. Se o interesse em agir só se perder quando o processo judicial já está pendente, é certo que não se justifica que o Tribunal Geral venha a decidir do mérito. Mas também não é razoável rejeitar, sem mais, um recurso inicialmente admissível, condenando o demandante nas despesas. Neste caso, a única solução justa seria declarar a «inutilidade superveniente da lide», o que, por um lado, torna manifesto que o fundamento do recurso só deixou de existir após este ter sido interposto e, por outro lado, pode evitar uma decisão sobre as despesas desfavorável ao demandante.

122. Segundo a jurisprudência, a manutenção do interesse em agir do demandante pode resultar, em primeiro lugar, do risco de repetição da atuação (alegadamente) ilícita de uma instituição da União. Com efeito, o artigo 266.o, n.o 1, TFUE, obriga a instituição de que emane o ato anulado a «tomar as medidas necessárias à execução do acórdão do Tribunal de Justiça», o que significa, na prática, que essa instituição deve ter em conta os fundamentos de nulidade expostos no referido acórdão na eventualidade de decidir substituir posteriormente o ato anulado (40). Em segundo lugar, o interesse em agir pode subsistir quando uma decisão sobre um recurso de anulação é relevante para um eventual pedido de indemnização a apresentar pelo recorrente. Em terceiro lugar, em determinados casos, especialmente em litígios da função pública, o demandante pode ter interesse na eliminação de observações negativas sobre a sua pessoa, a fim de ser reabilitado no futuro.

b)      Apreciação do raciocínio do Tribunal Geral

123. O acórdão recorrido diz respeito à segunda das três hipóteses, ou seja, a um pedido de indemnização do recorrente. O Tribunal de Justiça decidiu que o interesse em agir de um recorrente deve ser apreciado in concreto, tendo em conta, nomeadamente, as consequências da ilegalidade alegada e a natureza do prejuízo pretensamente sofrido (41). É à luz destes princípios que há que examinar a situação de PV no presente processo. No âmbito da análise, será ainda necessário verificar se o raciocínio do Tribunal Geral tem em conta estes princípios.

124. A este respeito, importa desde já salientar que PV não se encontra na situação referida no n.o 121 das presentes conclusões. O recurso de anulação de PV não «carece de objeto» pelo facto de o interesse em agir ter desaparecido no decurso de um processo judicial em curso, mas sim porque a decisão impugnada deixou de existir antes mesmo da interposição do recurso. Com efeito, recorde‑se que a AIPN revogou a sua decisão de demissão em 24 de julho de 2017, ou seja, numa data anterior à da interposição do recurso perante o Tribunal Geral. É neste contexto que o Tribunal Geral recordou, desde logo no n.o 80 do acórdão recorrido, a diferença fundamental entre a «ab‑rogação», que só faz desaparecer uma decisão para o futuro(42), e a «revogação» de tal decisão, que tem efeitos retroativos. Em seguida, o Tribunal Geral declarou, no n.o 82 do acórdão recorrido, que a revogação da decisão de demissão em causa fez desaparecer esta com efeitos retroativos e, por conseguinte, na medida em que a decisão impugnada não existe, já não podia prejudicar PV. Esta conclusão parece‑me juridicamente inquestionável.

125. No que respeita à existência de interesse em agir para efeitos de indemnização, importa recordar que o Tribunal de Justiça declarou que a ação de indemnização constitui um meio processual «autónomo», com uma função particular no quadro do sistema processual e está subordinada a condições de exercício concebidas em atenção ao seu objetivo específico (43). Por conseguinte, a interposição de um recurso de anulação de um ato não constitui um pressuposto necessário à propositura de uma ação de indemnização com vista a obter a reparação do prejuízo daí decorrente (44). No contexto do presente processo, há que observar que PV juntou efetivamente um pedido de indemnização ao seu pedido de declaração de nulidade. Consequentemente, parece‑me que a falta de interesse em agir no recurso de declaração de nulidade não é decisiva para determinar a admissibilidade do seu pedido de indemnização. No entanto, considero que é imperativo determinar se os requisitos de admissibilidade da referida ação e os previstos no artigo 340.o, segundo parágrafo, TFUE estavam preenchidos no caso em apreço, precisamente tendo em conta o seu caráter «autónomo».

126. No que respeita aos requisitos do pedido de indemnização (45), tenho algumas dúvidas em considerar estarem preenchidos no caso em apreço. Em especial, parece‑me duvidoso que possa existir um nexo de causalidade entre a decisão de demissão, que foi revogada pela própria AIPN, e o dano material pretensamente sofrido por PV. Como indicou o Tribunal Geral no n.o 81 do acórdão recorrido, a revogação da decisão de demissão de 24 de julho de 2017 teve como consequência, por um lado, a reintegração de PV na Comissão a partir de 16 de setembro de 2017 e, por outro, a concessão retroativa das remunerações e dos dias de férias anuais correspondentes ao período compreendido entre 1 de agosto de 2016 e 15 de setembro de 2017.

127. Além disso, é de notar que a AIPN compensou as dívidas de PV para com a Comissão e os montantes devidos pela Comissão a PV relativamente ao período acima referido, ao pagar o saldo de 9 550 euros a favor de PV. Consequentemente, como o Tribunal Geral corretamente assinalou no n.o 82 do acórdão recorrido, a decisão de demissão de 26 de julho de 2016 foi revogada e os seus efeitos financeiros foram neutralizados. Se PV argumenta no seu recurso que essa compensação era injustificada, deve responder‑se que a revogação da decisão de demissão não eliminou as decisões anteriores sobre as ausências injustificadas que constituíram a base do processo disciplinar. Foi, portanto, acertadamente que o Tribunal Geral validou a compensação operada entre as dívidas do recorrente na sequência das suas ausências injustificadas e os montantes devidos pela Comissão ao recorrente relativamente ao período em questão. Nestas circunstâncias, é difícil compreender como é que PV pode ter sofrido danos materiais.

c)      Observações finais

128. A análise do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal Geral nos n.os 81 e 82 do acórdão recorrido não revela qualquer erro de direito. À luz das considerações precedentes, estou inclinado, à semelhança do Tribunal Geral, a excluir um interesse em agir, nomeadamente na falta de um ato lesivo dos interesses de PV. De facto, tudo parece indicar que a decisão de demissão impugnada por PV foi revogada com efeitos retroativos antes da interposição do recurso de anulação, pelo que esta já não produz efeitos suscetíveis de lhe causar prejuízo. Por conseguinte, foi acertadamente que o Tribunal Geral julgou inadmissível o pedido de anulação.

129. No que respeita ao pedido de indemnização de PV, parece‑me que os argumentos apresentados não permitem avaliar em que medida este pode ter sofrido um dano material, na medida em que a compensação efetuada pela Comissão era justificada, como o Tribunal Geral declarou no seu acórdão. Consequentemente, entendo que a argumentação de PV em apoio de um alegado direito a indemnização deve ser julgada improcedente.

3.      Conclusão intercalar

130. Pelas razões acima expostas, proponho que o oitavo fundamento do recurso seja julgado improcedente.

VI.    Conclusão

131. À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça julgue improcedentes o primeiro, segundo e oitavo fundamentos do recurso.


1      Língua original: francês.


2      V. Acórdãos de 16 de dezembro de 2020, Conselho e o./K. Chrysostomides & Co. e o. (C‑597/18 P, C‑598/18 P, C‑603/18 P e C‑604/18 P, EU:C:2020:1028, n.o 128), e de 17 de dezembro de 2020, BP/FRA (C‑601/19 P, não publicado, EU:C:2020:1048, n.o 71).


3      V. Acórdãos de 25 de janeiro de 2007, Sumitomo Metal Industries e Nippon Steel/Comissão (C‑403/04 P e C‑405/04 P, EU:C:2007:52, n.o 39), e de 17 de dezembro de 2020, Inpost Paczkomaty/Comissão (C‑431/19 P e C‑432/19 P, EU:C:2020:1051, n.o 51).


4      V. Acórdãos de 26 de janeiro de 2017, Duravit e o./Comissão (C‑609/13 P, EU:C:2017:46, n.o 86), e de 28 de novembro de 2019, Brugg Kabel e Kabelwerke Brugg/Comissão (C‑591/18 P, não publicado, EU:C:2019:1026, n.o 63).


5      V. n.o 175 do acórdão recorrido.


6      V. n.os 60, 171, 221, 222 e 231 do acórdão recorrido.


7      V. n.o 77 das presentes conclusões.


8      Para uma explicação mais detalhada do direito a uma boa administração, consagrado no artigo 41.o da Carta, remeto para as minhas Conclusões no processo Parlamento/UZ (C‑894/19 P, EU:C:2021:497, n.os 66 e segs.).


9      Pilorge‑Vrancken, J., Le droit de la fonction publique de l’Union européenne, Larcier, Bruxelas, 2017, p. 15.


10      Acórdão de 4 de fevereiro de 2021, Ministre de la Transition financière et solidaire et Ministre de l’Action et des Comptes publics (C‑903/19, EU:C:2021:95, n.o 37).


11      Acórdão de 20 de outubro de 1981, Comissão/Bélgica (137/80, EU:C:1981:237, n.o 9).


12      Andreone, F., «Hiérarchie des normes et sources du droit de la fonction publique de l’Union européenne», Groupe de Réflexion sur l’avenir du Service Public Européen, Cahier n.o 25, junho de 2015, p. 16.


13      Acórdão de 14 de dezembro de 2017, RL/Tribunal de Justiça da União Europeia (T‑21/17, EU:T:2017:907, n.o 51).


14      V. n.o 64 das presentes conclusões.


15      V. Acórdão de 15 de julho de 2021, OH (Imunidade de jurisdição) (C‑758/19, EU:C:2021:603, n.os 24 e 25), e Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no processo CSUE/KF (C‑14/19 P, EU:C:2020:220, n.o 91).


16      Giacobbo Peyronnel, V. e Perillo, E., recordam in Statut de la fonction publique de l’Union européenne, Larcier, Bruxelas 2017, p. 17, a intenção dos fundadores da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço de criar uma função pública independente, constituída por funcionários supranacionais.


17      Acórdão de 18 de junho de 2020, Comissão/RQ (C‑831/18 P, EU:C:2020:481).


18      Acórdão de 18 de junho de 2020, Comissão/RQ (C‑831/18 P, EU:C:2020:481, n.o 45).


19      Acórdão de 6 de outubro de 2021, AV e AW/Parlamento (T‑43/20, não publicado, EU:T:2021:666, n.o 106).


20      Acórdão de 6 de outubro de 2021, AV e AW/Parlamento (T‑43/20, não publicado, EU:T:2021:666, n.o 106).


21      Acórdão de 6 de outubro de 2021, AV e AW/Parlamento (T‑43/20, não publicado, EU:T:2021:666, n.o 106).


22      V. n.o 51 das presentes conclusões.


23      V. Acórdãos de 5 de setembro de 2019, AH e o. (Presunção de inocência) (C‑377/18, EU:C:2019:670, n.o 41), e de 25 de fevereiro de 2021, Dalli/Comissão (C‑615/19 P, EU:C:2021:133, n.o 223).


24      JO 2016, L 65, p. 1.


25      JO 2013, L 294, p. 1.


26      V., a este respeito, TEDH, 28 de outubro de 1994, Murray c. Reino Unido (CE:ECHR:1994:1028JUD001431088, § 55).


27      De Béco R., «L’audition par la police, le parquet ou le juge d’instruction», Justiceenligne (artigo de 25 de agosto de 2021), explica que o direito processual penal belga oferece direitos e garantias a qualquer pessoa ouvida a qualquer título (vítima, queixoso, denunciante, testemunha, suspeito, pessoa convocada pela polícia ou pessoa privada da sua liberdade).


28      O que é o caso do direito penal de vários Estados‑Membros, incluindo do Reino da Bélgica, como indica Du Jardin, J. in «Belgique, les principes de procédure pénale et leur application dans les procédures disciplinaires», Revue internationale de droit pénal, vol. 74, n.o 3‑4, 2003, pp. 801. Mais concretamente, o artigo 56.o, primeiro e segundo parágrafos, do Código de Processo Penal dispõe, no que respeita às missões do juiz de instrução, que este «assume a responsabilidade pela instrução que se leva a cabo no sentido incriminatório ou ilibatório» e que «zela pela legalidade dos meios de prova, bem como pela lealdade com que são recolhidos» (O sublinhado é nosso). Neste contexto, importa igualmente chamar a atenção para o artigo 5.o, n.o 4, do Regulamento (UE) 2017/1939 do Conselho, de 12 de outubro de 2017, que dá execução a uma cooperação reforçada para a instituição da Procuradoria Europeia (JO 2017, L 283, p. 1), do qual resulta que «A Procuradoria Europeia conduz as suas investigações de forma imparcial e procura todos os meios de prova pertinentes, tanto incriminatórios como ilibatórios», o que pode ser entendido como a expressão de um princípio fundamental do direito processual penal da União. (O sublinhado é nosso)


29      Ligeti, K., «The Place of the Prosecutor in Common Law and Civil Law Jurisdictions», The Oxford Handbook of Criminal Process, Oxford University Press, Oxford, 2019, explica que, por força do princípio da legalidade, se existirem provas suficientes no termo do inquérito, o procurador é, em princípio, obrigado a instaurar a ação penal e não pode arquivar um processo.


30      Acórdão de 21 de outubro de 2021, Parlamento/UZ (C‑894/19 P, EU:C:2021:863, n.os 51 e seguintes). (O sublinhado é meu).


31      V. n.o 104 das minhas Conclusões no processo Parlamento/UZ (C‑894/19 P, EU:C:2021:497).


32      Giacobbo Peyronnel, V. e Perillo, E., Statut de la fonction publique de l’Union européenne, Larcier, Bruxelas 2017, p. 170.


33      Acórdão de 21 de outubro de 2021, Parlamento/UZ (C‑894/19 P, EU:C:2021:863, n.o 54).


34      V. n.o 51 das presentes conclusões.


35      V. Acórdão de 9 de setembro de 2021, Volkswagen Bank e o. (C‑33/20, C‑155/20 e C‑187/20, EU:C:2021:736, n.o 121).


36      V. Acórdão de 9 de setembro de 2021, Volkswagen Bank e o. (C‑33/20, C‑155/20 e C‑187/20, EU:C:2021:736, n.o 122 e jurisprudência aí referida).


37      V., por analogia, Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, T Danmark e Y Denmark (C‑116/16 e C‑117/16, EU:C:2019:135, n.o 72), no qual o Tribunal de Justiça declarou que o benefício das disposições do direito da União deve ser recusado quando estas são invocadas não para realizar os objetivos dessas disposições, mas com o objetivo de beneficiar de uma vantagem do direito da União e as condições para beneficiar dessa vantagem apenas estão formalmente preenchidas.


38      C‑362/05 P, EU:C:2007:104, n.os 35 e 36).


39      V. Acórdãos de 28 de maio de 2013, Abdulrahim/Conselho e Comissão (C‑239/12 P, EU:C:2013:331, n.o 61), e de 27 de junho de 2013, Xeda International e Pace International/Comissão (C‑149/12 P, não publicado, EU:C:2013:433, n.o 31).


40      Lenaerts K., Maselis, I. e Gutman, K., EU Procedural Law, n.o 7.223, p. 416.


41      Acórdão de 28 de maio de 2013, Abdulrahim/Conselho e Comissão (C‑239/12 P, EU:C:2013:331, n.o 65).


42      Acórdão de 27 de junho de 2013, Xeda International e Pace International/Comissão (C‑149/12 P, não publicado, EU:C:2013:433, n.o 32).


43      Acórdãos de 23 de março de 2004, Provedor de Justiça/Lamberts (C‑234/02 P, EU:C:2004:174, n.o 59), e de 6 de outubro de 2020, Bank Refah Kargaran/Conselho (C‑134/19 P, EU:C:2020:793).


44      Acórdão de 12 de setembro de 2006, Reynolds Tobacco e o./Comissão (C‑131/03 P, EU:C:2006:541, n.os 82 e 83).


45      Em conformidade com jurisprudência constante, a existência de responsabilidade extracontratual da União e a execução do direito à reparação do prejuízo sofrido, nos termos do artigo 340.o TFUE, dependem da reunião de um conjunto de requisitos relativos à ilegalidade da atuação de que são acusadas as instituições, à realidade do dano e à existência de um nexo de causalidade entre esse comportamento e o prejuízo invocado (v. Acórdão de 19 de junho de 2014, Commune de Millau e SEMEA/Comissão, C‑531/12 P, EU:C:2014:2008, n.o 96).