Language of document : ECLI:EU:F:2015:19

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA FUNÇÃO PÚBLICA

DA UNIÃO EUROPEIA (Segunda Secção)

23 de março de 2015 (*)

«Função pública – Remuneração – Pensão de sobrevivência – Artigo 27.°, primeiro parágrafo, do anexo VIII do Estatuto – Cônjuge divorciado de um funcionário falecido – Existência de uma pensão de alimentos à data do falecimento do funcionário – Artigo 42.° do anexo VIII do Estatuto – Prazo para apresentação de um pedido de liquidação dos direitos à pensão»

No processo F‑6/14,

que tem por objeto um recurso interposto nos termos do artigo 270.° TFUE, aplicável ao Tratado CEEA por força do seu artigo 106.°‑A,

Julia Borghans, cônjuge divorciado de R. van Raan, funcionário falecido da Comissão Europeia, residente em Auderghem (Bélgica), representada por F. Van der Schueren e C. Lefèvre, advogados,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por J. Currall e A.‑C. Simon, na qualidade de agentes,

recorrida,

O TRIBUNAL DA FUNÇÃO PÚBLICA (Segunda Secção),

composto por: K. Bradley, presidente, H. Kreppel (relator) e I. Rofes i Pujol, juízes,

secretário: P. Cullen, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 6 de novembro de 2014,

profere o presente

Acórdão

1        Por petição entrada na Secretaria do Tribunal da Função Pública em 28 de janeiro de 2014, J. Borghans pede a anulação da decisão da Comissão Europeia que recusou conceder‑lhe uma pensão de sobrevivência.

 Quadro jurídico

2        O quadro jurídico compreende os artigos 27.° e 42.° do Anexo VIII do Estatuto dos Funcionários da União Europeia na versão anterior à entrada em vigor do Regulamento (UE, Euratom) n.° 1023/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, que altera o Estatuto dos Funcionários da União Europeia e o Regime aplicável aos outros agentes da União Europeia (a seguir «Estatuto») e as seguintes disposições do Estatuto e do referido anexo.

3        O artigo 79.° do Estatuto dispõe:

«Em conformidade com o preceituado no Capítulo IV do Anexo VIII [do Estatuto], o cônjuge sobrevivo de um funcionário ou de um antigo funcionário tem direito a uma pensão de sobrevivência igual a 60% da pensão de aposentação ou do subsídio de invalidez de que o seu cônjuge beneficiava ou de que teria beneficiado se a tivesse podido reclamar, independentemente do tempo de serviço e da idade, à data da sua morte.

O montante da pensão de sobrevivência de que beneficia o cônjuge sobrevivo de um funcionário falecido em qualquer das situações previstas no artigo 35.° [do Estatuto] não pode ser inferior ao mínimo vital nem inferior a 35% do último vencimento‑base do funcionário.

[...]»

4        Nos termos do artigo 80.° do Estatuto:

«Quando o funcionário ou o titular de uma pensão de aposentação ou um subsídio de invalidez tiver morrido sem deixar cônjuge com direito a pensão de sobrevivência, os filhos [que sejam] considerados como estando a seu cargo, na aceção do artigo 2.° do anexo VII, na data da morte, têm direito a uma pensão de órfão, de acordo com o artigo 21.° do anexo VIII [do Estatuto].

Idêntico direito é reconhecido aos filhos que preencham as mesmas condições, no caso de falecimento ou de novo casamento do cônjuge titular de uma pensão de sobrevivência.

Quando o funcionário ou o titular de uma pensão de aposentação ou de um subsídio de invalidez tiver falecido, sem que estejam reunidas as condições previstas no primeiro parágrafo, os filhos reconhecidos a seu cargo, na aceção do artigo 2.° do Anexo VII [do Estatuto], têm direito a uma pensão de órfão, nos termos do disposto no artigo 21.° do Anexo VIII [do Estatuto]: a pensão de órfão é, todavia, fixada em metade do montante que resulte do disposto no artigo 21.° do Anexo VIII [do Estatuto].

[...]»

5        O artigo 21.°, n.° 1, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto dispõe:

«A pensão de sobrevivência prevista nos primeiro, segundo e terceiro parágrafos no artigo 80.° do Estatuto é fixada, quanto ao primeiro órfão, em oito décimos da pensão de sobrevivência a que teria tido direito o cônjuge sobrevivo do funcionário ou antigo funcionário titular de uma pensão de aposentação ou de um subsídio de invalidez, abstraindo das reduções previstas no artigo 25.° [do presente Anexo].»

 Factos na origem do litígio

6        Em 20 de abril de 1991, a recorrente casou‑se com R. van Raan, então funcionário da Comissão.

7        Desta união nasceu uma criança, em 10 de setembro de 1993.

8        Por sentença de 15 de junho de 2004, o tribunal de première instance de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas, Bélgica) decretou o divórcio por mútuo consentimento de R. van Raan e da recorrente. A convenção de divórcio celebrada em 24 de dezembro de 2004 (a seguir «convenção de divórcio») anexada à referida sentença previa que, a partir dessa data e até à sua morte, R. van Raan pagaria à recorrente uma pensão de alimentos, de montante fixado à época em 3 000 euros mensais.

9        Por sentença de 18 de dezembro de 2007, o juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem (Bélgica), a pedido de R. van Raan, suprimiu a pensão de alimentos devida por este à recorrente, a partir de 1 de setembro de 2006.

10      Em 12 de fevereiro de 2008, a recorrente interpôs recurso da sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007.

11      Em 2 de março de 2008, R. van Raan faleceu.

12      Na sequência da morte de R. van Raan, é facto assente que a Comissão não pagou pensão de sobrevivência à recorrente.

13      Em contrapartida, a partir de julho de 2008, a Comissão concedeu ao filho do falecido R. van Raan e da recorrente, uma pensão de órfão a título do artigo 80.° do Estatuto, cujo montante, em conformidade com o artigo 21.°, n.° 1, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto, foi fixado em oito décimos da pensão de sobrevivência que a recorrente teria recebido se tivesse direito a tal pensão (a seguir «pensão de órfão à taxa majorada»).

14      Em outubro de 2011, já maior de idade, o filho do falecido R. van Raan e da recorrente retomou, na qualidade de herdeiro daquele, o recurso interposto nas jurisdições belgas para a supressão da pensão de alimentos devida à recorrente, então pendente no Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas.

15      Por sentença de 25 de março de 2013, o Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas anulou a sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007 e julgou improcedente o pedido inicial do falecido R. van Raan de supressão da pensão de alimentos prevista pela convenção de divórcio em benefício da recorrente, com fundamento no facto de as condições às quais a convenção de divórcio subordinava a supressão da pensão de alimentos não estarem preenchidas.

16      O filho do falecido R. van Raan e da recorrente, na sua qualidade de herdeiro, concordou com a sentença do Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas de 25 de março de 2013.

17      Por carta de 29 de abril de 2013, a recorrente pediu à Comissão que lhe pagasse, a partir de abril de 2008, uma pensão de sobrevivência, explicando que, devido à anulação da sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007, pela sentença do Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas de 25 de março de 2013, satisfazia os critérios exigidos pelo artigo 27.° do Anexo VIII do Estatuto para beneficiar dessa pensão.

18      Por decisão de 3 de junho de 2013 (a seguir «decisão controvertida»), a Comissão indeferiu o pedido da recorrente, baseando‑se na circunstância de esta ter perdido os seus direitos em aplicação do artigo 42.° do Anexo VIII do Estatuto, ao não ter pedido a liquidação dos seus direitos à pensão no ano seguinte ao falecimento de R. van Raan.

19      Por carta de 9 de julho de 2013, a recorrente apresentou uma reclamação ao abrigo do artigo 90.°, n.° 2, do Estatuto contra a decisão controvertida.

20      Por decisão de 29 de outubro de 2013, a Autoridade Investida do Poder de Nomeação indeferiu a reclamação com o mesmo fundamento da decisão controvertida (a seguir «decisão de indeferimento da reclamação»).

 Pedidos das partes

21      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal da Função Pública se digne:

–        anular a decisão de indeferimento da reclamação;

–        condenar a Comissão nas despesas;

22      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal da Função Pública se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a recorrente nas despesas.

 Questão de direito

 Quanto ao objeto do recurso

23      Segundo jurisprudência constante, os pedidos de anulação formalmente dirigidos contra a decisão de indeferimento de uma reclamação têm por efeito, sempre que aquela decisão seja desprovida de conteúdo autónomo, submeter à apreciação do Tribunal da Função Pública o ato contra o qual foi apresentada a reclamação (v., neste sentido, acórdão Vainker/Parlamento, 1989/8, 293/87, EU:C:1989:8, n.° 8).

24      No caso em apreço, sendo a decisão de indeferimento da reclamação desprovida de conteúdo autónomo, há que considerar que o recurso apenas foi interposto contra a decisão controvertida.

 Quanto à admissibilidade

 Argumentos das partes

25      A Comissão conclui pela inadmissibilidade do pedido de anulação da decisão controvertida. Com efeito, segundo a Comissão, esta decisão é meramente confirmativa de uma decisão tácita anterior adotada depois do falecimento de R. van Raan em 2008, pela qual a administração recusou conceder à recorrente o benefício de uma pensão de sobrevivência, e que não foi por esta impugnada nos prazos previstos no artigo 90.°, n.° 2, do Estatuto. A Comissão acrescenta que, segundo jurisprudência assente, a faculdade de apresentar um pedido na aceção do artigo 90.°, n.° 1, do Estatuto ‑ faculdade que a recorrente usou ao solicitar, pela carta de 29 de abril de 2013, o benefício de uma pensão de sobrevivência ‑ não permite que um funcionário ou beneficiário ignore os prazos previstos nos artigos 90.° e 91.° do Estatuto através da apresentação de uma reclamação e de um recurso, pondo indiretamente em causa, através desse pedido, uma decisão anterior que não foi impugnada tempestivamente, como no presente caso.

26      A recorrente conclui pela improcedência da exceção de inadmissibilidade suscitada pela Comissão.

 Apreciação do Tribunal da Função Pública

27      Conforme resulta de jurisprudência constante, é inadmissível o recurso de anulação interposto de uma decisão que é meramente confirmativa de uma decisão anterior, não impugnada tempestivamente. Uma decisão é meramente confirmativa de uma decisão anterior quando não contém nenhum elemento novo relativamente a esse ato anterior e não é precedida de uma reapreciação real e aprofundada da situação do destinatário desse ato anterior (acórdão A/Comissão, F‑12/09, EU:F:2011:136, n.° 119).

28      No caso concreto, há que verificar a título preliminar se, como alega a Comissão, existiu uma decisão tácita em 2008 que tenha recusado à recorrente o benefício de uma pensão de sobrevivência com fundamento no facto de esta não preencher as condições previstas no artigo 27.°, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto.

29      A este respeito, o artigo 90.°, n.° 1, do Estatuto prevê que qualquer pessoa mencionada no referido Estatuto pode apresentar à Autoridade Investida do Poder de Nomeação um pedido através do qual convida esta última a tomar uma decisão a seu respeito e que, no termo do prazo de quatro meses, contado a partir do dia de apresentação do pedido, a inexistência de resposta a esse pedido é considerada uma decisão tácita de indeferimento. Resulta dessa disposição que, em princípio, uma decisão que indefira tacitamente um direito a um funcionário só pode operar se esse funcionário tiver previamente submetido à administração um pedido no sentido de que esse direito lhe seja reconhecido.

30      Ora, nos seus articulados, a Comissão referiu que não lhe foi apresentado nenhum pedido de pagamento de pensão de sobrevivência pela recorrente. Quanto a esta última, embora tenha, na sua reclamação da decisão controvertida, referido a existência de tal pedido e até de uma decisão que lhe havia recusado em 2008 o benefício de uma pensão de sobrevivência, depois, nos seus articulados e na audiência, confirmou a inexistência de qualquer pedido e de decisão nesse sentido.

31      Assim, não se verifica que a Comissão tenha, por decisão tácita, com origem no silêncio relativamente a um pedido da recorrente, recusado a esta o benefício de uma pensão de sobrevivência.

32      Para além disso, admitindo que a Comissão, ao mesmo tempo que concedeu uma pensão de órfão à taxa majorada ao filho do falecido R. van Raan e da recorrente, recusou em 2008, por decisão tácita, conceder a esta última o benefício de uma pensão de sobrevivência, a decisão controvertida não pode ser entendida como meramente confirmativa dessa decisão tácita.

33      Com efeito, essa decisão tácita não pode basear‑se na circunstância de a recorrente não satisfazer as condições exigidas pelo artigo 27.°, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto para beneficiar dessa pensão de sobrevivência. Ora, a decisão controvertida foi fundamentada com o facto de a recorrente não ter respeitado os prazos previstos no artigo 42.° deste mesmo anexo. Assim, a Comissão, na decisão controvertida, efetuou uma reapreciação da situação da recorrente com base em elementos novos suscetíveis de ter impacto nessa situação.

34      Daqui resulta que o fundamento de inadmissibilidade suscitado pela Comissão deve ser julgado improcedente.

 Quanto ao mérito

 Argumentos das partes

35      A recorrente suscita, em substância, um único fundamento contra a decisão controvertida, relativo à violação do artigo 42.° do Anexo VIII do Estatuto.

36      Entre as várias alegações em apoio do seu fundamento, a recorrente explica que não pode ser acusada de não ter, no ano seguinte à data do falecimento de R. van Raan, pedido a liquidação dos seus direitos à pensão de sobrevivência. Com efeito, nessa data, devido à sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007, a recorrente já não beneficiava de pensão de alimentos e, por isso, não satisfazia as condições previstas no artigo 27.° do Anexo VIII do Estatuto. A recorrente acrescenta que, depois, respeitou as disposições do artigo 42.° do Anexo VIII do Estatuto ao apresentar, no ano que se seguiu à sentença do Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas, de 25 de março de 2013, que restabeleceu a pensão de alimentos, um pedido de pagamento de uma pensão de sobrevivência.

37      A Comissão conclui pela improcedência deste fundamento.

38      Alega que cabia à recorrente respeitar o prazo previsto no artigo 42.° do Anexo VIII do Estatuto para pedir a liquidação dos seus direitos à pensão de sobrevivência. Segundo a Comissão, a recorrente deveria, no prazo de um ano a seguir ao falecimento de R. van Raan, informar a administração de que a convenção de divórcio lhe tinha atribuído uma pensão de alimentos e que tinha interposto recurso da sentença de 18 de dezembro de 2007, pela qual o juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem suprimiu essa pensão.

39      Na audiência, a Comissão precisou que, se a recorrente lhe tivesse comunicado essa informação, teria podido sujeitar o pagamento definitivo da pensão de órfão à taxa majorada ao filho do falecido R. van Raan e da recorrente à condição de a sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007 não ser anulada pelo Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas e de a pensão de alimentos ser restabelecida retroativamente.

40      Ainda na audiência, em resposta às questões do Tribunal, a Comissão alegou que, em todo o caso, a recorrente nunca poderia ter direito a uma pensão de sobrevivência, uma vez que, à data do falecimento de R. van Raan, não satisfazia as condições exigidas pelo artigo 27.° do Anexo VIII do Estatuto para ter direito a tal pensão, a saber, beneficiar, por direito próprio, à data do falecimento do seu ex‑cônjuge funcionário ou antigo funcionário, de uma pensão de alimentos a cargo deste. A Comissão acrescenta que não é relevante o facto de, posteriormente ao falecimento de R. van Raan, o Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas ter anulado a sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007 e, consequentemente, ter restabelecido a pensão de alimentos que tinha sido fixada na convenção de divórcio. Segundo a Comissão, decidir de outro modo seria admitir que, num determinado período, pudessem existir legalmente pagamentos simultâneos de uma pensão de sobrevivência e de uma pensão de órfão à taxa majorada, em violação das disposições do artigo 80.° do Estatuto.

 Apreciação do Tribunal da Função Pública

–       Observações preliminares

41      Enquanto, na decisão controvertida e na decisão de indeferimento da reclamação, para indeferir o pedido de liquidação dos direitos à pensão de sobrevivência apresentado pela recorrente, a Comissão se baseou no facto de esta ter perdido os seus direitos por não ter apresentado esse pedido no prazo de um ano previsto no artigo 42.° do Anexo VIII do Estatuto, na sua contestação e na audiência, a Comissão alegou que a recorrente nunca tinha sido titular de um direito à pensão de sobrevivência, uma vez que, na medida em que não recebia pensão de alimentos à data do falecimento do seu ex‑cônjuge, não satisfazia as condições impostas pelo artigo 27.°, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto para ter direito a essa pensão.

42      A este respeito, segundo jurisprudência constante, uma instituição, salvo em caso de competência vinculada, não está autorizada a desenvolver no decurso do procedimento uma fundamentação substitutiva (acórdão CP/Parlamento, F‑8/13, EU:F:2014:44, n.° 67 e jurisprudência referida).

43      Há, assim, que analisar se a Comissão, que decidiu, a título principal, substituir a fundamentação inicial da decisão controvertida relativa à violação pela recorrente do artigo 42.° do Anexo VIII do Estatuto, por uma nova fundamentação relativa ao facto de a recorrente não estar abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 27.°, primeiro parágrafo, do referido anexo, estava em situação de competência vinculada.

44      Conforme dispõe o artigo 27.°, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto, «[o] cônjuge divorciado de um funcionário ou antigo funcionário tem direito à pensão de sobrevivência definida no presente capítulo, sob condição de justificar ter direito, a título pessoal, por morte do seu ex‑cônjuge, a uma pensão de alimentos a cargo do referido ex‑cônjuge e fixada, quer por decisão judicial, quer por acordo oficialmente registado que esteja em vigor entre ambos.»

45      Ao verificar se o cônjuge divorciado de um funcionário ou de um antigo funcionário falecido justifica ter direito, por morte do seu do seu ex‑cônjuge, a uma pensão de alimentos na aceção do artigo 27.°, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto, a administração não dispõe de nenhuma margem de apreciação e está obrigada a conceder ou recusar o benefício consoante esta circunstância de facto se demonstrar ou não preenchida.

46      Por conseguinte, estando a administração em situação de competência vinculada para conceder ou recusar o benefício da pensão de sobrevivência prevista no artigo 27.°, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto, a Comissão podia desenvolver, na sua contestação e na audiência, uma fundamentação substitutiva relativa ao facto de a recorrente não estar abrangida pelo âmbito de aplicação desta disposição.

47      Cabe, por isso, ao Tribunal da Função Pública, num primeiro momento, verificar se a recorrente, na sequência da sentença do Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas de 25 de março de 2013, tem direito a uma pensão de sobrevivência.

48      Em caso de resposta afirmativa, caberá ao Tribunal da Função Pública, num segundo momento, determinar se o prazo de caducidade previsto no artigo 42.° do Anexo VIII do Estatuto se aplica à recorrente.

–       Quanto à questão de saber se a recorrente, na sequência da sentença do Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas de 25 de março de 2013, tem direito a uma pensão de sobrevivência

49      Como foi referido, resulta do artigo 27.°, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto que a concessão de uma pensão de sobrevivência ao cônjuge divorciado de um funcionário ou antigo funcionário falecido está sujeita à condição de que aquele justifique «ter direito, a título pessoal, por morte do seu ex‑cônjuge, a uma pensão de alimentos a cargo do referido ex‑cônjuge e fixada, quer por decisão judicial, quer por acordo oficialmente registado que esteja em vigor entre ambos».

50      No caso em apreço, resulta dos autos que, embora a convenção de divórcio previsse que R. van Raan pagaria à recorrente uma pensão de alimentos de um montante mensal de 3 000 euros, esta pensão de alimentos foi suprimida, a partir de 1 de dezembro de 2006, pela sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem, sentença com efeito executório provisório de pleno direito, nos termos do direito belga.

51      Assim, em 2 de março de 2008, data do falecimento de R. van Raan, e não obstante a circunstância de a recorrente ter interposto recurso da sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007, não se podia considerar que a recorrente tinha direito, a título pessoal, ao abrigo do direito belga, a uma pensão de alimentos a cargo do seu ex‑cônjuge.

52      É certo que, quando R. van Raan faleceu, a sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007 não gozava da força de caso julgado, uma vez que a recorrente tinha, conforme foi referido, interposto recurso dessa sentença. Todavia, devido ao efeito executório provisório de que gozava a sentença, a recorrente já não dispunha de nenhum título que lhe permitisse continuar a cobrança da pensão de alimentos.

53      Consequentemente, à data do falecimento de R. van Raan, a recorrente não preenchia as condições previstas no artigo 27.°, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto para ter direito a uma pensão de sobrevivência.

54      De resto, a Comissão admitiu ela própria nos seus articulados que «[o] artigo 27.° do Anexo VIII do Estatuto não [...] se aplica» à situação da recorrente à data do falecimento de R. van Raan.

55      Todavia, é facto assente que, por sentença de 25 de março de 2013, o Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas anulou a sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007 e declarou improcedente o pedido original do falecido R. van Raan de suprimir a pensão de alimentos prevista na convenção de divórcio.

56      Há que determinar se, como alega a recorrente, a anulação pelo juiz de recurso da sentença proferida em primeira instância teve por efeito conferir‑lhe o direito a uma pensão de sobrevivência na aceção do artigo 27.°, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto.

57      A este respeito, o Tribunal recorda que os termos de uma disposição de direito da União que, como o artigo 27.°, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto, não inclui nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance deve normalmente ser objeto de uma interpretação autónoma e por referência ao contexto da disposição e ao objetivo prosseguido pela regulamentação em causa. Contudo, mesmo na falta dessa remissão expressa, a aplicação do direito da União pode implicar a referência ao direito dos Estados‑Membros quando o juiz da União não encontra no direito da União ou nos seus princípios gerais elementos que lhe permitam esclarecer o conteúdo e o alcance de uma disposição do direito da União através de uma interpretação autónoma (acórdão Díaz García/Parlamento, T‑43/90, EU:T:1992:120, n.° 36).

58      No caso em apreço, como declarou expressamente o Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias no acórdão M/Tribunal de Justiça (T‑172/01, EU:T:2004:108), o conceito de «pensão de alimentos […] fixada […] por acordo realizado entre os ex‑cônjuges», na aceção artigo 27.°, primeiro parágrafo, do anexo VIII do Estatuto, não pode ser objeto de interpretação autónoma. O conceito de obrigação de alimentos acordada entre antigos cônjuges em razão do seu divórcio insere‑se, pelo contrário, nas consequências patrimoniais decorrentes da sentença de divórcio proferida com base nas normas do direito civil aplicável (acórdão M/Tribunal de Justiça, EU:T:2004:108, n.° 72).

59      Por conseguinte, para determinar se o cônjuge divorciado de um funcionário ou de um antigo funcionário justifica «ter direito, a título pessoal, por morte do seu ex‑cônjuge, a uma pensão de alimentos a cargo do referido ex‑cônjuge e fixada [...] por acordo oficialmente registado que esteja em vigor entre ambos», há que atender à lei que regula os efeitos do divórcio, ou seja, no caso concreto, à lei belga ao abrigo da qual foi decretado o divórcio.

60      Ora, uma vez que, no direito belga, a anulação, pelo juiz de recurso, de uma decisão proferida em primeira instância tem por efeito fazê‑la desaparecer retroativamente, a sentença do Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas de 25 de março de 2013 ao anular a sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007, fez desaparecer retroativamente esta última sentença e renascer a pensão de alimentos prevista na convenção de divórcio, considerando‑se, assim, que esta pensão de alimentos nunca foi suprimida.

61      Assim, a partir de 25 de março de 2013, data de prolação da sentença do Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas, tendo em conta o restabelecimento na esfera jurídica da recorrente, desde 1 de setembro de 2006, do seu direito à pensão de alimentos prevista na convenção de divórcio, tem necessariamente de considerar‑se que esta justifica ter, no direito belga, direito, a título pessoal, por morte de R. van Raan, a uma pensão de alimentos a cargo deste.

62      Daqui decorre que a sentença do Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas de 25 de março de 2013 teve por efeito incluir a recorrente no conjunto de beneficiários de uma pensão de sobrevivência na aceção do artigo 27.°, primeiro parágrafo, do Anexo VIII do Estatuto.

63      Esta conclusão não é afetada pela objeção da Comissão segundo a qual, para determinar se o cônjuge divorciado de um funcionário ou antigo funcionário pode beneficiar de uma pensão de sobrevivência com base no artigo 27.° do Anexo VIII do Estatuto, há que tomar apenas em consideração a situação existente à data do falecimento do funcionário ou antigo funcionário, sem ter em conta a eventual alteração retroativa dessa situação. Com efeito, acolher tal objeção seria violar o direito belga, segundo o qual a anulação, pela jurisdição de recurso, de uma decisão que suprimiu uma pensão de alimentos proferida em primeira instância tem por efeito fazer renascer retroativamente a pensão de alimentos.

64      Também não procede o argumento da Comissão segundo o qual o reconhecimento, a partir da data do falecimento de R. van Raan, de um direito da recorrente a uma pensão de sobrevivência violaria as disposições do artigo 80.°, terceiro parágrafo, do Estatuto.

65      A este respeito, é verdade que as disposições do artigo 80.° terceiro parágrafo, do Estatuto impedem que sejam reconhecidos, a título de um mesmo período, simultaneamente o direito de o cônjuge divorciado de um funcionário ou antigo funcionário receber uma pensão de sobrevivência e o direito do filho reconhecido a cargo desse funcionário ou antigo funcionário no momento do falecimento deste de receber uma pensão de órfão à taxa majorada.

66      Todavia, no presente caso, ao mesmo tempo que teve por efeito restabelecer, a partir de 1 de setembro de 2006, a pensão de alimentos devida à recorrente por força da convenção de divórcio e, por conseguinte, de fazer nascer o direito de a recorrente receber uma pensão de sobrevivência a partir do falecimento de R. van Raan, a sentença do Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas de 25 de março de 2013 privou retroativamente de base legal a decisão da Comissão que concedeu, a partir de julho de 2008, uma pensão de órfão à taxa majorada ao filho do falecido R. van Raan e da recorrente.

67      Por último, importa recordar que o objetivo prosseguido pelo artigo 27.° do anexo VIII do Estatuto é o de permitir que o cônjuge divorciado de um funcionário ou de um antigo funcionário que beneficiava, à data do falecimento deste, de uma pensão de alimentos a cargo deste último continue a receber, após o referido falecimento, rendimentos que assegurem a sua subsistência. Ora, nada justifica que o cônjuge divorciado de um funcionário ou de um antigo funcionário seja privado do benefício de uma pensão de sobrevivência, e, assim, de rendimentos que asseguram a sua subsistência, pelo único motivo, independente da sua vontade, de que a pensão de alimentos que recebia nos termos do direito nacional foi suprimida antes do falecimento do funcionário ou do antigo funcionário, tendo sido restabelecida retroativamente após o referido falecimento.

–       Sobre a questão de saber se o prazo de caducidade previsto no artigo 42.° do Anexo VIII do Estatuto se aplica à recorrente

68      Nos termos do artigo 42.° do anexo VIII do Estatuto, «[o]s sucessores de um funcionário ou antigo funcionário titular de uma pensão de aposentação ou de um subsídio de invalidez falecido que não tiverem requerido a liquidação do seus direitos à pensão ou subsídio no ano posterior à data da morte do funcionário ou antigo funcionário titular de uma pensão ou de um subsídio de invalidez perdem os seus direitos, salvo no caso de força maior devidamente comprovada.»

69      Resulta da própria redação do artigo 42.° do anexo VIII do Estatuto que o prazo de caducidade neste previsto só se aplica ao caso dos sucessores de um funcionário ou de um antigo funcionário falecido que disponham, à data do falecimento, de direitos à pensão ou ao subsídio.

70      Consequentemente, não é abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 42.° do Anexo VIII do Estatuto o caso dos sucessores de um funcionário ou antigo funcionário falecido que, como no presente caso, não são titulares, à data do falecimento deste último, de direitos à pensão ou ao subsídio, mas a quem os direitos em causa acabam por ser retroativamente reconhecidos após o referido falecimento devido à adoção de uma decisão judicial nacional.

71      No presente caso, conforme foi referido, a recorrente não era titular, à data do falecimento de R. van Raan, de um direito à pensão de sobrevivência, uma vez que a pensão de alimentos prevista pela convenção de divórcio tinha sido anteriormente suprimida pela sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007 e não tinha sido ainda restabelecida com efeito retroativo pelo juiz de recurso.

72      Nestas circunstâncias, ao basear‑se, na decisão controvertida, no facto de a recorrente, ao não ter pedido a liquidação dos seus direitos à pensão no ano seguinte ao falecimento de R. van Raan, ter perdido os seus direitos por aplicação do artigo 42.° do Anexo VIII do Estatuto, a Comissão cometeu um erro de direito.

73      Mantém‑se a questão de saber se a recorre era, ainda assim, obrigada a apresentar o seu pedido de liquidação dos seus direitos à pensão de sobrevivência num determinado prazo.

74      A este respeito, devido à ausência no Estatuto de qualquer disposição que imponha aos sucessores de um funcionário ou antigo funcionário falecido, que se encontrem nos casos previstos no n.° 70 do presente acórdão, um prazo para pedir a liquidação dos seus direitos à pensão ou subsídio, cabe ao Tribunal da Função Pública colmatar esta lacuna (v., por analogia, no que respeita ao prazo de recurso nos litígios entre o Banco Europeu de Investimento e os seus agentes, acórdão Dunnet e o./BEI, T‑192/99, EU:T:2001:72, n.° 51).

75      Com efeito, os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima, que são princípios gerais do direito da União, impedem que as instituições e as pessoas singulares possam agir sem nenhum limite de tempo, arriscando assim, designadamente, pôr em perigo a estabilidade de situações jurídicas adquiridas, e exigem o respeito de um prazo razoável (v, por analogia, no que respeita ao prazo para apresentar um pedido de indemnização, despacho Marcuccio/Comissão, T‑157/09 P, EU:T:2010:403, n.° 42).

76      Por conseguinte, o Tribunal da Função Pública considera que o princípio da segurança jurídica obriga os sucessores de um funcionário ou antigo funcionário falecido que se encontrem na situação referida no n.° 70 do presente acórdão a requerer a liquidação dos seus direitos à pensão ou subsídio num prazo razoável, começando este prazo a correr a partir da data de notificação da decisão jurisdicional nacional com base na qual os direitos à pensão ou subsídio lhes foram reconhecidos retroativamente.

77      No caso concreto, embora os autos não permitam determinar com precisão a data na qual a sentença do Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas de 25 de março de 2013 foi notificada à recorrente, esta notificação ocorreu necessariamente não antes de 25 de março de 2013.

78      Ora, a recorrente pediu a liquidação dos seus direitos à pensão de sobrevivência a partir de 29 de abril de 2014, ou seja, num prazo que há que considerar razoável à luz das circunstâncias do caso concreto.

79      Assim, há que considerar que a recorrente não perdeu os seus direitos à pensão de sobrevivência quando pediu a sua liquidação.

80      A Comissão alega, no entanto, que a recorrente deveria, no mínimo, no ano seguinte ao falecimento de R. van Raan, tê‑la informado da sua situação pessoal e, em particular, indicar‑lhe que por força da convenção de divórcio era credora de uma pensão de alimentos a cargo de R. van Raan, que esta pensão de alimentos tinha sido suprimida pela sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007 e que o recurso que tinha interposto desta sentença estava pendente no Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas.

81      Todavia, não se pode deduzir nem da redação nem da sistemática do artigo 42.° do Anexo VIII do Estatuto que a recorrente estava obrigada a prestar à Comissão informações dessa natureza, na medida em que esta disposição se limita a impor aos sucessores de um funcionário ou antigo funcionário falecido, que sejam efetivamente titulares de um direito a pensão ou subsídio, um prazo para pedir a liquidação dos seus direitos.

82      Por conseguinte, a abstenção da recorrente de prestar à Comissão informações sobre a sua situação pessoal, em particular sobre o recurso que tinha interposto da sentença do juiz de paz do cantão de Overijse‑Zaventem de 18 de dezembro de 2007, não tem qualquer pertinência para a questão de saber se pediu em tempo útil a liquidação dos seus direitos à pensão de sobrevivência.

83      Resulta de tudo quanto precede que a decisão controvertida deve ser anulada, sem que seja necessário analisar os outros argumentos aduzidos em apoio do único fundamento da petição.

 Quanto às despesas

84      Nos termos do artigo 101.° do Regulamento de Processo do Tribunal da Função Pública, sem prejuízo de outras disposições do Capítulo VIII do Título II do referido Regulamento, a parte vencida suporta as suas próprias despesas e é condenada nas despesas da outra parte se tal tiver sido requerido. Ao abrigo do artigo 102.°, n.° 1, do mesmo regulamento, o Tribunal pode decidir, quando razões de equidade o exijam, que uma parte vencida suporte as suas próprias despesas, mas que seja condenada apenas parcialmente nas despesas efetuadas pela outra parte, ou mesmo que não deve ser condenada a suportar tais despesas.

85      Resulta dos fundamentos do presente acórdão que a Comissão é a parte vencida. Além disso, nos seus pedidos, a recorrente requereu expressamente que a Comissão seja condenada nas despesas. Não justificando as circunstâncias do caso em apreço a aplicação das disposições do artigo 102.°, n.° 1, do Regulamento de Processo, a Comissão deve suportar as suas próprias despesas e é condenada a suportar as despesas efetuadas pelo recorrente.

Nestes termos,

O TRIBUNAL DA FUNÇÃO PÚBLICA (Segunda Secção),

decide:

1)      A decisão de 3 de junho de 2013 pela qual a Comissão Europeia recusou atribuir uma pensão de sobrevivência a J. Borghans é anulada.

2)      A Comissão Europeia suporta as suas próprias despesas e é condenada a suportar as despesas efetuadas por J. Borghans.

Bradley

Kreppel

Rofes i Pujol

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 23 de março de 2015.

O secretário

 

       O presidente

W. Hakenberg

 

       K. Bradley


* Língua do processo: francês.