Language of document : ECLI:EU:T:2007:100

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Primeira Secção)

29 de Março de 2007 (*)

«Auxílios de Estado – Preço de venda de um terreno – Decisão que ordena a recuperação de um auxílio incompatível com o mercado comum – Valor actualizado do auxílio – Taxa de juro composta – Fundamentação»

No processo T‑369/00,

Département du Loiret (França), representado por A. Carnelutti, advogado,

recorrente,

apoiado por

Scott SA, com sede em Saint‑Cloud (França), representada por Sir Jeremy Lever, QC, J. Gardner, G. Peretz, barristers, R. Griffith e M. Papadakis, solicitors,

interveniente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por G. Rozet e J. Flett, na qualidade de agentes,

recorrida,

que tem por objecto um pedido de anulação parcial da Decisão 2002/14/CE da Comissão, de 12 de Julho de 2000, relativa ao auxílio estatal concedido pela França à Scott Paper SA/Kimberly‑Clark (JO 2002, L 12, p. 1),

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Primeira Secção),

composto por: J. D. Cooke, presidente, R. García‑Valdecasas e I. Labucka, juízes,

secretário: C. Kristensen, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 25 de Outubro de 2006,

profere o presente

Acórdão

 Factos na origem do litígio

1        Em 1969, a sociedade de direito americano Scott Paper Co. adquiriu a sociedade de direito francês Bouton Brochard e criou uma nova sociedade, a Bouton Brochard Scott SA, que retomou as actividades da Bouton Brochard. Em Novembro de 1987 foi dada à Bouton Brochard Scott a nova denominação Scott SA. Esta tinha como actividade, durante o período pertinente para o presente processo, a produção de papel higiénico e para uso doméstico.

2        Em 31 de Agosto de 1987, a cidade de Orleães (França), o département du Loiret (França) e a Scott celebraram um acordo no que respeita à venda a esta última de um terreno de 48 hectares na zona industrial da La Saussaye e à taxa de saneamento que devia ser calculada segundo uma taxa preferencial (a seguir «acordo Scott»). Esse acordo previa que o recorrente e a cidade de Orleães contribuiriam com um montante máximo de 80 milhões de francos franceses (FRF) (12,2 milhões de euros) a favor da Scott para os trabalhos de arranjo do local.

3        A realização dos estudos e dos trabalhos necessários à urbanização do terreno em causa foi confiada à société d’économie mixte pour l’équipement du Loiret (a seguir «Sempel»). Resulta de uma convenção de 12 de Setembro de 1987, celebrada entre o recorrente, a cidade de Orleães e a Sempel (a seguir «convenção Sempel»), que essa cidade cedeu à Sempel 68 ha pelo preço simbólico de 1 franco. Além disso, do artigo 4.° do acordo Scott, bem como do artigo 12.° da convenção Sempel, resulta que a Sempel venderia à Scott os 48 ha e uma fábrica‑entreposto por 31 milhões de FRF (4,7 milhões de euros), ou seja, a um preço de 65 FRF/m².

4        Em Novembro de 1996, o Tribunal de Contas francês publicou um relatório público intitulado «Les interventions des collectivités territoriales en faveur des entreprises». Com esse relatório, pretendia chamar a atenção para um determinado número de eventuais auxílios concedidos pelas colectividades territoriais francesas a determinadas empresas, em especial sobre a transferência do terreno de 48 hectares da zona industrial de La Saussaye para a Scott.

5        Na sequência da publicação desse relatório, a Comissão recebeu uma queixa, por carta datada de 23 de Dezembro de 1996, sobre as condições preferenciais em que a cidade de Orleães e o département du Loiret venderam esse terreno de 48 hectares à Scott e a taxa de saneamento de que esta última beneficiou.

6        Por ofício de 17 de Janeiro de 1997, a Comissão solicitou informações complementares às autoridades francesas. Seguiu‑se uma troca de correspondência entre as autoridades francesas e a Comissão, entre Janeiro de 1997 e Abril de 1998, sobre as informações e esclarecimentos solicitados.

7        As acções da Scott foram adquiridas pela Kimberly‑Clark Corp. em Janeiro de 1996. Esta anunciou o encerramento da fábrica em Janeiro de 1998. Os activos da fábrica, a saber, o terreno e a fábrica de papel, foram adquiridos pela Procter & Gamble (a seguir «P& G») em Junho de 1998.

8        Por ofício de 10 de Julho de 1998, a Comissão informou as autoridades francesas da sua decisão de 20 de Maio de 1998 de dar início ao procedimento previsto no artigo 88.°, n.° 2, CE e convidou‑as a apresentar as suas observações bem como a responder a determinadas questões. As partes interessadas foram informadas do início do procedimento e foram convidadas a apresentar as suas eventuais observações sobre as medidas em causa, através da publicação do referido ofício no Jornal Oficial das Comunidades Europeias de 30 de Setembro de 1998 (JO C 301, p. 4).

 Decisão controvertida

9        No termo do processo formal de exame, a Comissão adoptou, em 12 de Julho de 2000, a Decisão 2002/14/CE, relativa ao auxílio estatal concedido pela França à Scott Paper SA/Kimberly‑Clark (JO 2002, L 12, p. 1, a seguir «decisão controvertida»). Na sequência da interposição do presente recurso (v. n.° 13, infra), a Comissão, em 2 de Março de 2001, notificou um corrigendum da decisão controvertida à República Francesa. Assim, foram alterados o artigo 1.° e os considerandos 172, 217 e 239, alínea b), a) da referida decisão.

10      A decisão controvertida, na versão modificada, prevê:

«Artigo 1.°

O auxílio estatal sob a forma de preço preferencial de um terreno e de uma tarifa preferencial da taxa de saneamento que a França executou a favor da Scott, num montante de 39,58 milhões de francos franceses (6,03 milhões de euros) ou, em valor actualizado, de 80,77 milhões de francos franceses (12,3 milhões de euros), no que diz respeito ao preço preferencial do terreno […], é incompatível com o mercado comum.

Artigo 2.°

1.      A França adoptará todas as medidas necessárias para recuperar junto do beneficiário o auxílio referido no artigo 1.° e já ilegalmente colocado à sua disposição.

2.      A recuperação deve ter lugar de imediato e em conformidade com os procedimentos de direito nacional, desde que estes permitam uma execução imediata e efectiva da presente decisão. O auxílio a recuperar inclui juros a partir da data em que foi colocado à disposição do beneficiário até à data da sua recuperação. Os juros são calculados com base na taxa de referência utilizada para o cálculo do equivalente subvenção líquido no âmbito dos auxílios com finalidade regional.»

11      No que respeita aos juros, a Comissão entendeu (considerando 239 da decisão controvertida):

«[A] fim de restabelecer as condições económicas que a empresa deveria ter enfrentado se o auxílio incompatível não lhe tivesse sido concedido, as autoridades francesas devem tomar todas as medidas necessárias para suprimir as vantagens decorrentes do auxílio e para o recuperar junto do beneficiário.

O auxílio deve ser recuperado em conformidade com o direito processual francês. O auxílio a recuperar inclui os juros vencidos desde a data em que o auxílio foi concedido até à data do seu reembolso efectivo, calculados com base na taxa de referência utilizada para o cálculo do equivalente subvenção líquido no âmbito do auxílio com finalidade regional em França.»

12      Assim, o valor actualizado do auxílio a recuperar calculado pela Comissão, ou seja, 80,77 milhões de FRF (v. n.° 10, supra), está afectado pela aplicação de uma taxa de juro desde a data da concessão do auxílio ilegal até à data da decisão controvertida. Essa taxa de juro corresponde à taxa de referência que a Comissão utiliza para medir o elemento de auxílio das subvenções públicas em França, ou seja, «5,7% desde 1 de Janeiro de 2000» (considerandos 172 e 239 da decisão controvertida).

 Tramitação processual e pedidos das partes

13      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 4 de Dezembro de 2000, o recorrente interpôs o presente recurso.

14       Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 30 de Novembro de 2000, registada sob a referência T‑366/00, a Scott interpôs um recurso que tem igualmente por objecto um pedido de anulação parcial da decisão controvertida.

15      Por requerimento que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 19 de Março de 2000, a Scott pediu para intervir no presente processo em apoio do recorrente.

16      Por despacho do presidente da Quinta Secção Alargada, de 10 de Maio de 2001, a Scott foi autorizada a intervir no presente processo em apoio dos pedidos do recorrente.

17      A pedido da Scott, o Tribunal de Primeira Instância decidiu pronunciar‑se, num primeiro momento, sobre a questão da prescrição que aquela tinha suscitado no processo T‑366/00, ao abrigo do artigo 15.° do Regulamento (CE) n.° 659/1999 do Conselho, de 22 de Março de 1999, que estabelece as regras de execução do artigo [88.°] do Tratado CE (JO L 83, p.1), antes de dar início à discussão sobre o mérito da causa.

18      Por acórdãos de 10 de Abril de 2003, o Tribunal de Primeira Instância negou provimento aos recursos interpostos pelo recorrente e pela Scott, na medida em que se baseavam na violação pela Comissão do artigo 15.° do Regulamento n.° 659/1999, tendo reservado para final a decisão quanto às despesas nesses processos (acórdãos de 10 de Abril de 2003, Scott/Comissão, T‑366/00, Colect., p. II‑1763, e Département du Loiret/Comissão, T‑369/00, Colect., p. II‑1789). Ficou decidido que os processos prosseguiriam quanto ao demais.

19      Enquanto esperava pelo acórdão que o Tribunal de Justiça deveria proferir no recurso que a Scott interpôs do acórdão Scott/Comissão, n.° 18 supra, o Tribunal de Primeira Instância decidiu proceder à suspensão da instância no presente processo e no processo T‑366/00.

20      Por acórdão de 6 de Outubro de 2005, Scott/Comissão (C‑276/03 P, Colect., p. I‑8437), o Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso que a Scott interpôs do acórdão de 10 de Abril de 2003, Scott/Comissão, n.° 18 supra.

21      Por ofício de 10 de Novembro de 2005, o Tribunal de Primeira Instância convidou as partes a apresentarem as suas observações sobre a continuação do processo, à luz do acórdão de 6 de Outubro de 2005, Scott/Comissão, n.° 20 supra. Na sua resposta de 24 de Novembro de 2005, o recorrente confirmou que mantinha os fundamentos que, em sede de mérito, apresentara em apoio do seu recurso.

22      Com base no relatório do juiz‑relator, o Tribunal de Primeira Instância decidiu iniciar a fase oral do processo e, no quadro das medidas de organização do processo, convidou as partes a responder por escrito a uma série de questões. Esse pedido foi satisfeito.

23      Foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às questões colocadas pelo Tribunal na audiência de 25 de Outubro de 2006.

24      O recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

–        anular a decisão controvertida, na parte em que declara ilegal o auxílio estatal concedido sob a forma de preço preferencial de um terreno e ordena o reembolso de um montante de 39,58 milhões de FRF (6,03 milhões de euros) ou, em valores actualizados, de 80,77 milhões de FRF (12,3 milhões de euros);

–        condenar a Comissão nas despesas.

25      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar o recorrente nas despesas.

26      A Scott, interveniente em apoio do recorrente, conclui pedindo que o Tribunal se digne:

–        julgar o recurso procedente

–        condenar a Comissão nas despesas.

 Questão de direito

27      Em apoio do seu recurso, o recorrente apresenta dois fundamentos. O primeiro é relativo à violação dos princípios da não‑retroactividade do direito comunitário e da segurança jurídica, bem como aos artigos 87.° CE e 253.° CE na medida em que a Comissão aplicou a sua Comunicação 97/C 209/03 no que respeita a auxílios estatais no âmbito da venda de terrenos e imóveis públicos (JO 1997, C 209, p. 3). O segundo é relativo à violação dos artigos 87.°, n.° 1, CE e 253.° CE. Este segundo fundamento subdivide‑se em cinco partes, que se reportam aos seguintes aspectos da decisão controvertida:

–        publicidade relativa à venda do terreno em causa;

–        receitas fiscais ocasionadas pela implantação da Scott;

–        despesas efectuadas no interesse geral;

–        erro no cálculo do auxílio;

–        capitalização dos juros.

28      Importa começar pela quinta parte do segundo fundamento.

 Argumentos das partes

29      O recorrente alega que a Comissão violou os artigos 87.°, n.° 1, CE e 253.° CE ao proceder à capitalização dos juros na decisão controvertida. Sublinha, a este propósito, que o restabelecimento do status quo ante não implica a capitalização dos juros, mas sim a percepção do juro anual determinado. Com efeito, a capitalização dos juros não constitui uma prática constante da Comissão. Além disso, o recorrente sustenta que a Comissão não fundamentou o recurso à capitalização dos juros, violando assim o artigo 253.° CE.

30      A Scott aceita que possa ser apropriado, em determinadas circunstâncias, aplicar juros compostos a fim de se suprimir a vantagem de que o beneficiário auferiu, por exemplo quando proceda à aplicação do montante de um empréstimo sem juros que lhe foi concedido por um Estado‑Membro e obtenha um lucro líquido após dar cumprimento a uma injunção de restituição que não imponha o pagamento de juros compostos. Todavia, este caso concreto não corresponde ao em apreço e a decisão controvertida também não defende o inverso.

31      A Scott acrescenta que o artigo 2.° da decisão controvertida, ao prever que a recuperação deve ocorrer em conformidade com a legislação nacional, implica que os juros correspondentes ao período compreendido entra a data da decisão controvertida e a da recuperação do auxílio deverão ser calculados a uma taxa simples. Ora, se se justifica calcular deste modo os juros correspondentes a esse período, mais se justifica calculá‑los dessa forma para o período compreendido entre a data de concessão do auxílio e a da decisão controvertida.

32      A Comissão recorda que, segundo jurisprudência constante, quando um auxílio concedido ilegalmente seja declarado incompatível com o mercado comum, deve ser restabelecida uma concorrência efectiva (considerando 218 da decisão controvertida). Para esse efeito, a vantagem de que o beneficiário realmente auferiu deve ser integralmente suprimida. Segundo a Comissão, a decisão controvertida, ao actualizar o valor nominal do auxílio (v. considerando 172), teve em consideração a vantagem real, equiparável à concessão de um empréstimo sem juros, de que o beneficiário auferiu durante o período em causa. O valor actualizado representa o equivalente da vantagem financeira resultante da disponibilização gratuita do capital durante um certo período e reflecte o custo que a Scott teria suportado até à adopção da decisão controvertida se tivesse contraído um empréstimo desse valor junto de um banco em 1987. A Comissão sublinha que a perspectiva que adoptou na decisão controvertida está em conformidade com a que o Tribunal de Primeira Instância acolheu no seu acórdão de 8 de Junho de 1995, Siemens/Comissão (T‑459/93, Colect., p. II‑1675, n.° 97), e que, por conseguinte, a decisão encontra‑se suficientemente fundamentada.

33      A Comissão observa que o valor actualizado indicado na decisão controvertida já inclui a vantagem auferida pelo beneficiário durante o período compreendido entre a concessão do auxílio, em 1987, e a adopção da decisão, pelo que só há que contabilizar os juros correspondentes ao período compreendido entre a data da decisão e a da recuperação efectiva.

 Apreciação do Tribunal

34      Antes de mais, importa examinar o argumento do recorrente segundo o qual a Comissão não fundamentou suficientemente a sua decisão de actualizar o valor do auxílio através da imposição de juros compostos.

35      Segundo jurisprudência constante, a fundamentação exigida pelo artigo 253.° CE deve ser adaptada à natureza do acto em causa e revelar, de forma clara e inequívoca, a argumentação da instituição, autora do acto, por forma a permitir aos interessados conhecer as razões da medida adoptada e ao órgão jurisdicional competente exercer a sua fiscalização. A exigência de fundamentação deve ser apreciada em função das circunstâncias do caso em apreço, designadamente do conteúdo do acto, da natureza dos fundamentos invocados e do interesse que os destinatários ou outras pessoas directa e individualmente afectadas pelo acto podem ter em obter explicações. Não é exigido que a fundamentação especifique todos os elementos de facto e de direito pertinentes, na medida em que a questão de saber se a fundamentação de um acto satisfaz as exigências do artigo 253.° deve ser apreciada à luz não somente do seu teor mas também do seu contexto e do conjunto das normas jurídicas que regem a matéria em causa (acórdãos do Tribunal de Justiça de 2 de Abril de 1998, Comissão/Sytraval e Brink’s France, C‑367/95 P, Colect., p. I‑1719, n.° 63, e de 30 de Setembro de 2003, Alemanha/Comissão, C‑301/96, Colect., p. I‑9919, n.° 87).

36      No presente caso, a decisão controvertida utiliza uma taxa de juros de 5,7% sem especificar que se trata de uma taxa composta. Só procedendo ao cálculo e tomando como referência o montante de 80,77 milhões de FRF, indicado como «valor actualizado» do auxílio estimado em 39,58 milhões de FRF desde a sua concessão em 1987, é que o leitor pode concluir que foi utilizada uma taxa composta. A Comissão nunca explica as razões que a levaram a aplicar uma taxa composta em vez de uma taxa simples. Além disso, também não explica como é que a aplicação de uma taxa de juro permite actualizar em 2000 o valor de um auxílio concedido sob a forma de venda de um terreno a um preço preferencial em 1987.

37      O recorrente, apoiado pela Scott, alega que como a capitalização dos juros constituía, na prática, uma inovação da Comissão, esta era obrigada a, no que a esse aspecto se refere, fundamentar a sua decisão.

38      Importa observar que, à data da decisão controvertida, nenhuma norma especificava que a taxa de juro prevista nas injunções de recuperação devia ser composta e que a Comissão não tinha por prática aplicar juros compostos nas suas injunções de recuperação.

39      Em primeiro lugar, no que respeita ao facto de essas normas não existirem, importa recordar que o poder de tomar decisões que ordenam a recuperação de auxílios ilegais que é confiado à Comissão encontra‑se actualmente previsto no Regulamento n.° 659/1999 (v., a este respeito, acórdão Département du Loiret/Comissão n.° 18 supra, n.os 50 e 51). Do artigo 14.°, n.° 2, do Regulamento n.° 659/1999 resulta que «o auxílio a recuperar mediante uma decisão de recuperação incluirá juros a uma taxa adequada fixada pela Comissão». A Comissão confirmou, nas suas respostas escritas às questões do Tribunal de Primeira Instância, que esta última disposição nada esclarece a respeito da aplicação de taxas de juros simples ou compostas.

40      Com efeito, na sua Comunicação sobre as taxas de juro aplicáveis em caso de recuperação de auxílios ilegais publicada no Jornal Oficial da União Europeia de 8 de Maio de 2003 (JO C 110, p. 21), ou seja, três anos após a data de adopção da decisão controvertida, a Comissão concluiu que se colocava a questão de saber se os juros aplicáveis em caso de recuperação de auxílios ilegais deviam ser simples ou compostos e considerou ser «urgente clarificar a sua posição relativamente a este aspecto». Por conseguinte, informou os Estados‑Membros e as partes interessadas de que, em qualquer decisão que ordene a recuperação de um auxílio ilegal que venha futuramente a adoptar, passaria a aplicar a taxa de referência numa base composta. Conclui‑se, a contrario, que, antes da adopção dessa comunicação, a posição da Comissão acerca da utilização de uma taxa de juro composta nas injunções de recuperação não era evidente.

41      A utilização de uma taxa de juro composta só ficou consagrada na regulamentação pelo artigo 11.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 794/2004 da Comissão, de 21 de Abril 2004, relativo à aplicação do Regulamento (CE) n.° 659/1999 (JO L 140, p. 1), nos termos do qual «a taxa de juro será aplicada numa base composta até à data da recuperação do auxílio».

42      Em segundo lugar, a Comissão não demonstrou que, à época da decisão controvertida, procedia à aplicação de juros compostos nas suas injunções de recuperação. Por um lado, na decisão controvertida não invoca qualquer decisão a este respeito. Por outro, em resposta a uma questão que o Tribunal de Primeira Instância lhe colocou por escrito com vista a determinar a sua prática de então, a Comissão foi incapaz de invocar uma única decisão anterior à decisão controvertida que aplicasse juros compostos.

43      Conclui‑se que a aplicação de juros compostos no caso em apreço era a primeira manifestação de uma nova e importante política da Comissão, que esta não explicou. A Comissão deveria, na decisão controvertida, por um lado, ter indicado que decidira capitalizar os juros e, por outro, justificar a sua perspectiva (v., neste sentido e por analogia, acórdão do Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 1975, Fabricants de papiers peints/Comissão, 73/74, Colect., p. 503, n.os 31 a 34). Contrariamente ao que a Comissão defende (v. n.° 32 supra), a referência ao acórdão Siemens, que, de um modo geral, diz respeito à importância da aplicação de juros, não fornece, no caso em apreço, as explicações necessárias.

44      Importa acrescentar que, dado o tempo decorrido entre a data da venda em causa e a decisão controvertida, ou seja, treze anos, a aplicação dos juros compostos teve consequências financeiras importantes relativamente ao montante do auxílio a recuperar (v. n.° 10 supra). Assim, o recorrente e a interveniente tinham especial interesse em conhecer o raciocínio que esteve na base da aplicação de juros compostos. Nestas circunstâncias, era ainda maior a obrigação da Comissão de fundamentar a decisão controvertida.

45      Por outro lado, a fundamentação da Comissão é insuficiente no que respeita à utilização da taxa de juro de 5,7%. A Comissão limita‑se, na decisão controvertida, a descrevê‑la como a taxa de referência utilizada em França, desde 1 de Janeiro de 2000, para medir o elemento de auxílio das subvenções públicas e invoca, em nota, um quadro por si elaborado, utilizado para medir o «equivalente‑subvenção» de um auxílio, que indica as taxas de referência e de actualização fixadas para os Estados‑Membros (considerandos 172 e 239).

46      Segundo a comunicação da Comissão de 1997 relativa ao método de fixação das taxas de referência e de actualização (JO C 273, p. 3), a «taxa indicativa é definida como a taxa swap interbancária a cinco anos, […] acrescida de um prémio». Parece que a taxa de 5,7% aplicável relativamente a 2000 reflectia uma taxa de referência para um período de 5 anos. Ora, a decisão controvertida de modo algum justifica a utilização dessa taxa para um período de treze anos, compreendido entre a data da venda em causa, em 1987, e a data da decisão controvertida, em 2000.

47      Além disso, a comunicação de 1997 não contém qualquer indicação quanto à questão de saber se as taxas deviam ser simples ou compostas. Até à data da decisão controvertida, o quadro em causa foi utilizado para a aplicação de taxas de juro simples. A decisão controvertida não contém qualquer fundamentação quanto à questão de saber se essas taxas foram adoptadas para o cálculo dos juros compostos.

48      A Comissão alega que a utilização de uma taxa composta, a fim de actualizar o valor inicial da subvenção, justifica‑se pela necessidade de restabelecer uma concorrência efectiva por meio da supressão da vantagem de que o beneficiário auferiu (v. n.° 32 supra).

49      Ora, essa justificação pressupõe, por um lado, que o beneficiário continua, nessa data, a auferir dessa vantagem e, por outro, que a forma do auxílio em causa é equiparável a um empréstimo sem juros de uma quantia correspondente ao valor da subvenção inicial. A decisão controvertida não contém qualquer explicação a este respeito.

50      A este propósito, importa recordar que, nos termos da decisão controvertida, o auxílio que foi concedido em 1987 à Scott assumiu a forma de transferência de um terreno urbanizado a um preço preferencial, ou seja, a um preço inferior ao do mercado de então. Não é de modo algum evidente que, nestas condições, a actualização do valor estimado da subvenção inicial por aplicação de uma taxa de juro composta de 5,7% durante o período em causa conduza a um montante correspondente ao valor da vantagem de que o beneficiário auferiu como proprietário do bem em 2000. Com efeito, a Comissão observou que a vantagem concedida em 1987 consistiu na transferência de propriedade do terreno urbanizado e subvencionado em 56% (39,58 milhões de FRF para um valor estimado de 70,588 milhões de FRF). A decisão controvertida não especifica como é que a Scott continuava auferir dessa vantagem no momento da sua adopção.

51      Além disso, é certo que a Scott cessou as suas operações na zona industrial de La Saussaye e que o terreno e a fábrica foram vendidos à P & G em 1998 (v. n.° 7 supra), segundo as autoridades francesas, por um preço de 27,6 milhões de FRF (considerando 162 da decisão controvertida). Embora não tenha considerado necessário controlar este valor, a Comissão não contesta que essa venda teve lugar nas condições normais de mercado e analisa essa venda na decisão controvertida aceitando a possibilidade de o terreno ter sido vendido por 27,6 milhões de FRF (considerandos 163 a 166). Ora, este preço é inferior não só ao valor que a Comissão tinha determinado em 1987 (70,588 milhões de FRF), mas também ao preço de 31 milhões de FRF pagos pela Scott à Sempel.

52      Nestas circunstâncias, não contendo a decisão controvertida qualquer fundamentação a respeito do nexo entre a vantagem de que se presume que a Scott beneficiou em 2000 e a quantia de 80,77 milhões de FRF, o Tribunal encontra‑se na impossibilidade de exercer a sua fiscalização jurisdicional no que respeita à questão de saber se a utilização de uma taxa de juro composta conduz a um valor actualizado correspondente ao valor da vantagem a suprimir.

53      Por último, há na decisão controvertida uma incoerência óbvia que não foi explicada pela Comissão. Embora esta última tenha calculado o valor actualizado do auxílio, na decisão controvertida, utilizando uma taxa composta, o artigo 2.° da referida decisão, ao prever que a recuperação deve ter lugar em conformidade com a legislação nacional (v. n.° 10 supra), obriga a que os juros correspondentes ao período compreendido entre a data da decisão controvertida e a da recuperação do auxílio sejam calculados a uma taxa simples. A Comissão de modo algum justificou a aplicação dos juros numa base composta até à data da decisão controvertida e, em seguida, dos juros numa base simples até à recuperação do auxílio. Além disso, embora a Scott tenha apontado esta incoerência (v. n.° 31 supra), a Comissão nem sequer tentou justificar a perspectiva que adoptou a este respeito no quadro do presente processo.

54      Conclui‑se que a decisão controvertida não está suficientemente fundamentada. Assim, há que acolher a quinta parte do segundo fundamento e, por conseguinte, anular a decisão controvertida na parte em que diz respeito ao auxílio concedido sob a forma de preço preferencial do terreno em causa, sem que seja necessário examinar os outros fundamentos e argumentos invocados em apoio do recurso.

 Quanto às despesas

55      No seu acórdão Département du Loiret/Comissão, n.° 18 supra, o Tribunal reservou para final a decisão quanto às despesas.

56      Compete, assim, ao Tribunal decidir, no presente acórdão, sobre a totalidade das despesas relativas aos processos no Tribunal de Primeira Instância.

57      Por força do artigo 87.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se tal tiver sido requerido. Tendo a recorrida sido vencida no essencial do seu pedido, há que condená‑la a suportar, para além das suas próprias despesas, as despesas efectuadas pelo recorrente e pela Scott, em conformidade com os pedidos destes.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Primeira Secção)

decide:

1)      A Decisão 2002/14/CE da Comissão, de 12 de Julho de 2000, relativa ao auxílio estatal concedido pela França à Scott Paper SA/Kimberly‑Clark, é anulada na parte em que diz respeito ao auxílio concedido sob a forma de preço preferencial do terreno a que se refere o seu artigo 1.°

2)      A Comissão suportará as suas próprias despesas e as efectuadas pelo recorrente.

Cooke

García‑Valdecasas

Labucka

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 29 de Março de 2007.

O secretário

 

      O presidente

E. Coulon

 

      J. D. Cooke


* Língua do processo: francês.