Language of document : ECLI:EU:T:2002:20

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

(Segunda Secção Alargada)

30 de Janeiro de 2002 (1)

«Artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE (actual artigo 86.°, n.° 3, CE) - Montante das licenças impostas pela República da Áustria aos operadores GSM - Denúncia - Não acolhimento parcial da denúncia - Admissibilidade - Violação do artigo 86.° do Tratado CE (actual artigo 82.° CE) e do artigo 90.° do Tratado CE - Fundamentação»

No processo T-54/99,

max.mobil Telekommunikation Service GmbH, com sede em Viena (Áustria), representada por S. Köck, M. Pflügl, M. Esser-Wellié e M. Oder, advogados, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por W. Mölls e K. Wiedner, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrida,

apoiada por

Reino dos Países Baixos, representado por M. A. Fierstra, J. van Bakel e H. G. Sevenster, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

interveniente,

que tem por objecto um pedido de anulação parcial da Decisão n.° IV-C1/ROK D(98) da Comissão, de 11 de Dezembro de 1998, na parte em que não acolhe a denúncia da recorrente segundo a qual a República da Áustria violou os artigos 86.° e 90.°, n.° 1, do Tratado CE (actuais artigos 82.° CE e 86.°, n.° 1, CE) ao fixar o montante da licença a pagar pela recorrente pela obtenção de uma concessão GSM,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Segunda Secção Alargada),

composto por: A. W. H. Meij, presidente, K. Lenaerts, M. Jaeger, J. Pirrung, N. J. Forwood, juízes,

secretário: H. Jung,

vistos os autos e após a audiência de 2 de Maio de 2001,

profere o presente

Acórdão

Factos na origem do litígio

1.
    O primeiro operador de uma rede GSM que apareceu no mercado austríaco foi a Mobilkom Austria AG (a seguir «Mobilkom»), na qual o Estado austríaco detém ainda uma parte das acções por intermédio da sociedade Post und Telekom Austria AG (a seguir «PTA»). A recorrente, a sociedade de direito austríaco max.mobil Telekommunikation Service GmbH, entrou neste mercado em Outubro de 1996, enquanto segundo operador GSM. Um terceiro operador, a Connect AustriaGmbH, que obteve uma concessão no início de Agosto de 1997, fez a seguir igualmente a sua entrada neste mercado. A Connect Austria operava, quando foi interposto o presente recurso, exclusivamente segundo as normas técnicas de comunicação DCS 1800. Antes da entrada da recorrente no mercado, a Österreichische Post- und Telegraphenverwaltung (administração austríaca dos correios e telégrafos) detinha o mononopólio legal em todo o sector dos telefones móveis e explorava, nomeadamente, as redes de telefones móveis analógicas «C-Netz» e «D-Netz», bem como a rede GSM designada «A1». Em 1 de Junho de 1996, este monopólio foi confiado à Mobilkom, nova filial criada pela PTA.

2.
    Em 14 de Outubro de 1997, a recorrente apresentou uma denúncia à Comissão (a seguir «denúncia») que tinha por objecto obter a declaração, nomeadamente, de que a República da Áustria tinha violado o disposto no artigo 86.° em conjugação com o disposto no artigo 90.°, n.° 1, do Tratado CE (que passaram, respectivamente, a artigos 82.° CE e 86.°, n.° 1, CE). No essencial, esta denúncia tinha por finalidade contestar o facto de não ter sido feita diferenciação entre os montantes das licenças exigidas, respectivamente, à recorrente e à Mobilkom.

3.
    Além disso, a recorrente alegava nesta denúncia que o direito comunitário tinha sido violado, por um lado, porque as autoridades austríacas tinham consagrado em lei os benefícios concedidos à Mobilkom na concessão das frequências e, por outro, porque a PTA tinha concedido apoios à sua filial Mobilkom para a instalação e exploração da rede GSM desta última.

4.
    Em 22 de Abril de 1998, a recorrente apresentou um articulado complementar à Comissão, no qual esclarecia determinados elementos de facto e de direito relativos à situação que denunciava. Na sequência de uma reunião com a Comissão, que teve lugar em 14 de Julho de 1998, a recorrente apresentou, em 27 de Julho de 1998, um segundo articulado complementar.

5.
    Em 11 de Dezembro de 1998, a Comissão enviou à recorrente a carta que é objecto do presente litígio (a seguir «acto impugnado»). Esta carta indica nomeadamente:

«Em 14 de Outubro de 1997, a vossa empresa apresentou uma denúncia contra a República da Áustria. Esta denúncia visava:

a)    as licenças de concessão pagas pelo primeiro operador de radiotelefonia móvel, [Mobilkom], e pela vossa empresa e, mais especialmente, o facto de não ter sido imposta à Mobilkom uma licença superior à licença paga pela vossa empresa,

b)    as condições previstas na Telekommunikationsgesetz (lei relativa às telecomunicações) austríaca no que respeita à repartição das frequências DCS 1800, e

c)    as condições de utilização da infra-estrutura colocada à disposição pela [PTA], supostamente mais favoráveis à Mobilkom do que à vossa empresa.

    [...]

Com esta carta desejamos informá-los de que a Comissão tem intenção de dar seguimento à vossa denúncia quanto aos pontos b) e c).

Quanto ao ponto a), relativo ao montante da licença de concessão, a Comissão considera, pelo contrário, que a vossa empresa não apresentou provas suficientes da existência de uma medida estatal que tenha levado a Mobilkom a abusar da sua posição dominante. Segundo a prática habitual em casos semelhantes, a Comissão só intentou acções por incumprimento quando um Estado-Membro impôs a uma empresa recém-entrada no mercado uma licença superior à aplicável a uma empresa que aí já exercia a sua actividade (v. a decisão da Comissão, de 4 de Outubro de 1995, relativa às condições impostas ao segundo operador de radiotelefonia GSM em Itália JO L 280, de 23 de Novembro de 1995).

A Comissão dará, no entanto, seguimento às outras duas acusações e informar-vos-á atempadamente do andamento do processo.»

Tramitação processual e pedidos das partes

6.
    Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 22 de Fevereiro de 1999, a recorrente interpôs o presente recurso. Este recurso tem por objecto a anulação parcial do acto impugnado, na parte em que não acolhe a denúncia.

7.
    Por requerimento separado apresentado em 31 de Março de 1999 na Secretaria do Tribunal, a Comissão suscitou uma questão prévia de inadmissibilidade com fundamento no artigo 114.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância. Por despacho de 17 de Setembro de 1999, o Tribunal de Primeira Instância (Segunda Secção) decidiu reservar a decisão desta questão para final.

8.
    Em 15 de Julho de 1999, o Reino dos Países Baixos pediu para intervir em apoio dos pedidos da Comissão. Por despacho de 17 de Setembro de 1999, o presidente da Segunda Secção admitiu esta intervenção.

9.
    Com base no relatório do juiz-relator, o Tribunal de Primeira Instância (Segunda Secção Alargada) decidiu iniciar a fase oral. No quadro das medidas de organização do processo, o Tribunal convidou as partes a responder por escrito a algumas questões.

10.
    Foram ouvidas as alegações das partes e as respostas às questões colocadas pelo Tribunal na audiência de 2 de Maio de 2001.

11.
    A recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    anular o acto impugnado, na parte em que este não deu acolhimento à sua denúncia;

-    condenar a recorrida nas despesas.

12.
    A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    julgar o recurso inadmissível e, a título subsidiário, improcedente;

-    condenar a recorrente nas despesas.

13.
    O Reino dos Países Baixos apoia os pedidos da Comissão.

Questão de direito

14.
    O Tribunal considera oportuno expor, em primeiro lugar, a argumentação das partes relativa à admissibilidade e ao mérito, antes de se pronunciar sobre o presente litígio.

Argumentação das partes

Quanto à admissibilidade

15.
    A Comissão alega, em primeiro lugar, que o recurso carece de objecto, na medida em que se refere à sua alegada recusa de declarar que a República da Áustria violou os artigos 86.° e 90.° do Tratado CE ao conceder um tratamento privilegiado à Connect Austria. Com efeito, a recorrente não se referiu ao tratamento reservado a este operador como uma infracção em si, mas como uma prova de que foi vítima de um tratamento discriminatório em relação à Mobilkom. De resto, nem sequer alegou que a Connect Austria era uma empresa na acepção do artigo 90.° do Tratado CE.

16.
    Seguidamente, a Comissão alega que o recurso é inadmissível. Considera, em primeiro lugar, que um particular não tem, em princípio, legitimidade para impugnar a decisão da Comissão de não exercer o poder que lhe concede o artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE (acórdão do Tribunal de Justiça de 20 de Fevereiro de 1997, Bundesverband der Bilanzbuchhalter/Comissão, C-107/95 P, Colect., p. I-947, n.os 25 a 27, a seguir «acórdão Bilanzbuchhalter»). Salienta que, embora este acórdão determine que não se pode excluir a priori a possibilidade de existir excepções a esta regra em circunstâncias excepcionais, o Tribunal de Justiça declarou, porém, que não era esse o caso do processo que culminou neste acórdão. De resto, confrontado com esta mesma problemática depois da prolação do acórdão Bilanzbuchhalter, o Tribunal de Justiça não voltou a debruçar-se sobre aexistência, ainda que meramente teórica, de tais «circunstâncias excepcionais» (despacho do Tribunal de Justiça de 16 de Setembro de 1997, Koelman/Comissão, C-59/96 P, Colect., p. I-4809, n.os 57 a 59). Também o Tribunal de Primeira Instância optou por uma posição semelhante à do Tribunal de Justiça no seu acórdão de 17 de Julho de 1998, ITT Promedia/Comissão (T-111/96, Colect., p. II-2937, n.° 97).

17.
    A Comissão recorda seguidamente que o artigo 90.°, n.° 1, do Tratado CE tem efeito directo em conjugação com o artigo 86.° do Tratado CE. Assim, a protecção dos particulares é garantida pelas obrigações que incumbem aos Estados-Membros por força do Tratado.

18.
    A afirmação da recorrente de que não podia, no caso presente, impugnar, ao abrigo do direito austríaco, as medidas tomadas a favor da Mobilkom, não pode, segundo jurisprudência assente, influenciar os requisitos de admissibilidade de um recurso no tribunal comunitário (despacho do Tribunal de Justiça de 23 de Novembro de 1995, Asocarne/Conselho, C-10/95 P, p. 4149, n.° 26, e acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 5 de Junho de 1996, Kahn Scheepvaar/Comissão, T-398/94, Colect., p. II-477, n.° 50). De resto, por força do direito austríaco, a recorrente podia ter pedido que lhe fosse notificada a decisão de atribuição da concessão à Mobilkom a fim de impugnar esta última por via judicial. Ora, no caso vertente, a recorrente não parece ter tentado defender os seus direitos por esta via. Aliás, na audiência, a Comissão assinalou a existência de uma decisão judicial nacional que concedeu um locus standi a uma empresa de telecomunicações, numa situação semelhante à que é objecto da denúncia da recorrente.

19.
    Por outro lado, contrariamente às disposições processuais relativas às infracções às regras da concorrência, conforme previstas no artigo 6.° do Regulamento (CE) n.° 2842/98 da Comissão, de 22 de Dezembro de 1998, relativo às audições dos interessados directos em certos processos baseados nos artigos 85.° e 86.° do Tratado CE (JO L 354, p. 18), e no artigo 93.°, n.° 2, do Tratado CE (actual artigo 88.°, n.° 2, CE), o artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE não reconhece aos particulares qualquer acção no quadro do procedimento administrativo a que se refere.

20.
    Além disso, tendo em conta a complexidade da sua missão de vigilância, a Comissão dispõe de um amplo poder de apreciação, que é tanto mais amplo quanto, no domínio em causa, os Estados-Membros dispõem igualmente desse poder de apreciação (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 27 de Outubro de 1994, Ladbroke/Comissão, T-32/93, Colect., p. II-1015, n.os 35 e 38).

21.
    A tese da recorrente segundo a qual o artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE se destina a proteger os particulares é, portanto, errada. Com efeito, esta disposição visa, tal como o artigo 169.° do Tratado CE (actual artigo 226.° CE), servir o interesse público. O paralelismo entre os artigos 90.°, n.° 3, e 169.° do Tratado CE foi, aliás, sublinhado, nomeadamente no acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 8 de Julho de 1999, Vlaamse Televisie Maatschappij/Comissão (T-266/97,Colect., p. II-2329, n.° 75). A Comissão podia, portanto, por força do artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE, decidir livremente da sua acção, sem ter em conta as denúncias, nem mesmo os interesses dos particulares (acórdão Ladbroke/Comissão, já referido, n.os 37 e 38).

22.
    Finalmente no que respeita ao acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 3 de Junho de 1999, TF1/Comissão (T-17/96, Colect., p. II-1757, a seguir «acórdão TF1»), a Comissão assinala, em primeiro lugar, que interpôs, tal como a República Francesa, recurso desse acórdão, ainda pendente no dia da audiência no presente processo (C-302/99 P e C-308/99 P). Contesta, concretamente, os fundamentos deste acórdão segundo os quais o artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE visa proteger os interesses dos particulares, bem como os fundamentos segundo os quais o facto de a TF1, autora da denúncia, ser uma concorrente da empresa pública visada pela denúncia constitui uma «circunstância excepcional» na acepção do acórdão Bilanzbuchhalter. Assim, as circunstâncias invocadas no acórdão TF1 não permitem considerar que o presente recurso é admissível.

23.
    A Comissão sustenta, em segundo lugar, que o recurso é inadmissível porque a recorrente não é individualmente afectada. Com efeito, segundo a Comissão, os efeitos económicos do acto impugnado afectam a recorrente não de maneira análoga à que afectariam o destinatário, em conformidade com o acórdão do Tribunal de Justiça de 15 de Julho de 1963, Plaumann/Comissão (25/62, Colect. 1962-1964, p. 281), mas da maneira que afectam qualquer outro concorrente real ou potencial neste mercado (acórdão Ladbroke/Comissão, já referido, n.os 41 e 42). A Comissão esclarece, para todos os efeitos, que a qualidade de denunciante da recorrente não significa que a recusa da sua denúncia a afecta individualmente (acórdão Ladbroke/Comissão, já referido, n.° 43).

24.
    A Comissão considera que o facto de o mercado em causa poder ser considerado um oligopólio natural no qual apenas intervém um número limitado de operadores, e mesmo o facto de a recorrente ter sido temporariamente a única concorrente da Mobilkom, em nada altera a apreciação da admissibilidade do presente recurso, uma vez que o acto impugnado afecta indirectamente todo o mercado em questão (v., designadamente, o acórdão de 14 de Julho de 1983, Spijker/Comissão, 231/82, Colect., p. 2559, n.° 10).

25.
    O Reino dos Países Baixos alega que o recurso interposto por um particular de uma decisão adoptada por força do artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE só excepcionalmente deve ser admitido, mesmo na hipótese de a medida nacional em causa não ser uma medida de alcance geral. Sublinha, nesta perspectiva, a semelhança entre o processo relativo a esta disposição e o processo previsto no artigo 93.° do Tratado CE (acórdão do Tribunal de Justiça de 2 de Abril de 1998, Comissão/Sytraval e Brink's France, C-367/95 P, Colect., p. I-1719, e acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 16 de Setembro de 1998, Waterleiding Maatschappij/Comissão, T-188/95, Colect., p. II-3713, n.os 53 e 54).

26.
    A recorrente sustenta que o acto impugnado constitui um acto jurídico susceptível de recurso de anulação por força do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE.

27.
    Salienta, a este propósito, nomeadamente, que, no n.° 25 do acórdão Bilanzbuchhalter, o Tribunal de Justiça declarou que, em determinados casos, um particular tem legitimidade para impugnar judicialmente a recusa da Comissão de adoptar uma decisão no âmbito do artigo 90.°, n.os 1 e 3, do Tratado CE e que, nas suas conclusões apresentadas nesse mesmo acórdão (Colect., pp. I-947 e I-949), o advogado-geral A. La Pergola admitiu igualmente a possibilidade de submeter este tipo de decisões a um controlo jurisdicional. Nos termos dos n.os 20 e 21 destas mesmas conclusões do advogado-geral A. La Pergola, a falta de legitimidade activa não pode assentar num poder de apreciação ilimitado da Comissão, na medida em que este poder choca com os limites que resultam do reconhecimento ao particular de direitos subjectivos, cujo desrespeito deve poder ser invocado pelo interessado perante o tribunal comunitário.

28.
    Quanto ao facto de ser individualmente afectada, a recorrente alega, nomeadamente, que a argumentação da Comissão assenta na premissa errada de que o acto impugnado produz efeitos equivalentes em relação a todos os operadores GSM austríacos. Ora, devido às particularidades ligadas ao mercado regulamentado das telecomunicações, que constitui um exemplo clássico de oligopólio natural, os operadores em causa formam apenas um pequeno grupo. Além disso, a recorrente foi a única a ter que pagar uma licença de montante tão elevado quanto o da Mobilkom. Finalmente, durante um período bastante longo posterior à adjudicação das duas concessões em causa e depois de terem sido impostas as respectivas licenças, a recorrente era a única concorrente da Mobilkom. Todas estas considerações bastam para a individualizar relativamente a qualquer outra empresa na acepção do artigo 230.° CE.

Quanto ao mérito

29.
    A recorrente invoca, no essencial, dois fundamentos. O primeiro é baseado na violação dos artigos 86.° e 90.° do Tratado CE e em erros manifestos de apreciação dos factos do caso vertente. O segundo é baseado na violação da obrigação de fundamentação.

- Quanto ao primeiro fundamento, baseado na violação dos artigos 86.° e 90.° do Tratado CE e em erros manifestos de apreciação dos factos do caso vertente

30.
    A recorrente recorda, em primeiro lugar, um certo número de circunstâncias factuais e económicas.

31.
    Alega, assim, que, quando apresentou sua denúncia, a sua concorrente, a Mobilkom, dispunha, só no sector GSM, de cerca de 500 000 assinantes. Além disso, a Mobilkom já dispunha, nesta mesma época, de cerca de 280 000 assinantes para as redes «D-netz» e «C-netz». Posteriormente, a posição concorrencial darecorrente deteriorou-se profundamente quando foi imposta à Mobilkom, em 1996, uma licença de 4 mil milhões de xelins austríacos (ATS), formalmente equivalente à exigida à recorrente. Acresce que a Mobilkom obteve posteriormente um desconto sobre o montante da sua licença, alegadamente a título de indemnização por ter liberado frequências na banda dos 900 MHz em proveito da recorrente. Além disso, a Mobilkom beneficiou de uma prorrogação do prazo de pagamento da sua licença a uma taxa vantajosa até 20 de Março de 1997.

32.
    A recorrente sublinha ainda que a terceira concessão GSM foi concedida em Agosto de 1997 à Connect Austria mediante o pagamento de uma licença de 2,3 mil milhões de ATS. A autoridade austríaca responsável pelas telecomunicações justificou esta diferença entre os montantes das licenças pelo facto de esta terceira concessão ser de valor inferior às concedidas aos dois outros operadores, alegando que o novo concorrente teve acesso ao mercado mais tarde.

33.
    À luz destas circunstâncias de facto, a recorrente considera, em primeiro lugar, que, no acto impugnado, a Comissão parece não só defender que a Mobilkom goza de uma posição dominante no mercado austríaco, mas igualmente que o comportamento abusivo controvertido é susceptível de afectar as trocas comerciais entre os Estados-Membros.

34.
    A recorrente salienta seguidamente que, no acto impugnado, a Comissão alega que a recorrente não forneceu «provas suficientes da existência de uma medida estatal que levou a Mobilkom a abusar da sua posição dominante». Defende que esta tese da Comissão é errada. Com efeito, a recorrente foi lesada por ter de pagar uma licença de montante idêntico à devida pela Mobilkom, não obstante o valor da concessão que obteve ser significativamente inferior. Ora, resulta de duas decisões da Comissão, 95/489/CE, de 4 de Outubro de 1995, relativa às condições impostas ao segundo operador de radiotelefonia GSM em Itália (JO L 280, p. 49, a seguir «decisão GSM Itália», considerando n.° 16), e 97/181/CE, de 18 de Dezembro de 1996, relativa às condições impostas ao segundo operador de serviços de radiotelefonia GSM em Espanha (JO 1997, L 76, p. 19, a seguir «decisão GSM Espanha», considerando n.° 20), que as licenças no domínio em questão deveriam, na sequência de uma análise económica, ser fixadas em função do valor da concessão considerada. Mais especialmente, as perspectivas de lucro dos operadores GSM variam em função da data da sua entrada no mercado. A igualdade de tratamento formal quanto aos montantes das duas concessões constitui, portanto, uma desigualdade grave de tratamento e, portanto, uma discriminação da recorrente.

35.
    Estas práticas configuram uma violação do disposto no artigo 86.° em conjugação com o disposto no artigo 90.° do Tratado CE. Com efeito, uma medida estatal relativa a uma empresa pública como a Mobilkom viola o artigo 90.°, n.° 1, do Tratado CE quando esta medida obriga, incita ou leva esta empresa a cometer uma violação, nomeadamente, do artigo 6.° do Tratado CE (que passou, apósalteração, a artigo 12.° CE) ou das regras da concorrência. À luz das decisões GSM Itália (n.° 17) e GSM Espanha (n.° 21), este princípio deve ser entendido no sentido de que as medidas que favorecem a posição concorrencial da empresa pública e falseiam a concorrência são abrangidas pela proibição prevista no artigo 90.° do Tratado CE, sem que estas medidas tenham que apresentar uma relação directa com um comportamento abusivo que a empresa pública assumiu por si (acórdão do Tribunal de Justiça de 13 de Dezembro de 1991, GB-Inno-BM, C-18/88, Colect., p. I-5941, n.° 24).

36.
    Consequentemente, a Comissão, ao afirmar, no acto impugnado, que a recorrente não provou suficientemente a existência de uma medida estatal que levou a Mobilkom a abusar da sua posição dominante, por um lado, fez uma apreciação manifestamente errada da importância da discriminação sofrida pela recorrente e, por outro, violou o artigo 90.° do Tratado CE.

37.
    A recorrente alega, em segundo lugar, que, no acto impugnado, a Comissão esclareceu, no essencial, que, segundo a sua prática administrativa, apenas intentou processos em casos semelhantes quando um Estado-Membro impôs a uma empresa recém-entrada no mercado uma licença superior à aplicável a outra empresa que aí já exercia a actividade. A recorrente salienta, no entanto, que, nas decisões GSM Itália e GSM Espanha, a Comissão apenas se debruçou sobre um aspecto da igualdade de tratamento dos operadores GSM. Em seu entender, exigir que seja reclamado à empresa pública o pagamento de um montante idêntico ao imposto ao segundo operador sem ter minimamente em conta o valor económico das concessões respectivas, deve considerar-se um critério insuficiente. Por outras palavras, no acto impugnado, a Comissão não teve em conta as diferenças que o caso vertente apresenta relativamente às situações que culminaram nas decisões GSM Itália e GSM Espanha, especialmente atendendo ao factor tempo. Afirma que, em todo o caso, a Comissão não efectuou o exame necessário a fim de determinar se o montante da licença imposta à Mobilkom era justificado, mesmo que a Comissão já tivesse enumerado os critérios aplicáveis, nomeadamente na sua decisão GSM Itália.

38.
    No que respeita à argumentação da Comissão no sentido de lhe ser, de qualquer forma, reconhecido o direito de estabelecer prioridades para a execução dos seus recursos limitados ao examinar os casos que lhe são submetidos, a recorrente alega que esta instituição não se baseou, no acto impugnado, neste motivo para justificar a recusa de intentar um processo.

39.
    Mesmo na hipótese de dever considerar-se que o acto impugnado aplica esta possibilidade de estabelecer prioridades no tratamento das denúncias, a Comissão exerceu o seu poder de apreciação de maneira ilegal, pelo facto de não ter tido em conta a inexistência de vias de recurso adequadas em direito nacional. Aliás, nem sequer examinou esta falta de vias de recurso, apesar de a tal ser obrigada por força da sua comunicação sobre a cooperação entre a Comissão e as autoridades da concorrência dos Estados-Membros no que diz respeito ao tratamento dosprocessos no âmbito dos artigos 85.° e 86.° do Tratado CE (JO C 1997, C 313, p. 3, n.os 36 e 45).

40.
    A Comissão conclui que a sua decisão de não intervir no caso vertente não está ferida de nenhum erro.

41.
    O Reino dos Países Baixos alega que a Comissão não pode ser obrigada a pronunciar-se sobre as denúncias relativas a alegadas violações cometidas por Estados-Membros quando o objecto destas denúncias não for da sua competência exclusiva. Na falta dessa competência exclusiva, esta instituição pode agir em função das prioridades que ela mesma se impõe. Finalmente, é duvidoso que um eventual aumento a posteriori de uma licença GSM, como a preconizada pela recorrente para a Mobilkom, seja compatível com os princípios da confiança legítima, da transparência e da objectividade.

- Quanto ao segundo fundamento, baseado na violação da obrigação de fundamentação

42.
    Em primeiro lugar, a recorrente alega que, embora por força do artigo 190.° do Tratado CE (actual artigo 253.° CE), a Comissão não seja obrigada a pronunciar-se sobre todos os argumentos invocados pelos denunciantes, é, no entanto, obrigada a fazê-lo sobre aqueles que parecem revestir importância especial para os interessados.

43.
    No acto impugnado, a Comissão limitou-se, apenas com duas frases, a qualificar de insuficientes as alegações da recorrente e a remeter para a sua prática administrativa. Ora, segundo a jurisprudência, não basta que a pessoa afectada por uma decisão possa deduzir as razões desta última comparando-a com decisões anteriores análogas (acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de Março de 1983, Control Data/Comissão, 294/81, Recueil, p. 911, n.° 15). Finalmente, a recorrente sublinha que, no acto impugnado, a Comissão também não a convida a prestar informações complementares. Deste ponto de vista, o acto impugnado deveria, portanto, ser considerado uma apreciação definitiva da sua denúncia.

44.
    A recorrente alega ainda que não teve possibilidade de conhecer a justificação das medidas tomadas pela Comissão no caso vertente, assim como o Tribunal não pôde exercer o seu controlo jurisdicional. Propõe, consequentemente, que sejam ouvidos sobre este assunto vários responsáveis da sociedade, bem como peritos em matéria de telecomunicações.

45.
    Em resposta às alegações de intervenção do Reino dos Países Baixos, a recorrente salienta ainda que, mesmo admitindo que deve reconhecer-se à Comissão um certo poder de apreciação no tratamento das denúncias que lhe são apresentadas, esse poder não é ilimitado. Além disso, o exercício desse poder deve ser fundamentado de forma adequada (acórdão do Tribunal de 18 de Maio de 1994, BEUC eNCC/Comissão, T-37/92, Colect., p. II-285, n.° 47). Neste contexto, a Comissão não se pode referir de maneira abstracta à falta de interesse comunitário na instrução de uma denúncia.

46.
    Por seu lado, a Comissão alega, nomeadamente, que, segundo jurisprudência assente, a fundamentação exigida pelo artigo 190.° do Tratado CE deve adaptar-se, por um lado, à natureza do acto em causa e, por outro, às circunstâncias do caso em questão, isto é, designadamente ao conteúdo do acto, à natureza dos fundamentos invocados e ao interesse que os destinatários ou outras pessoas directa e individualmente afectadas pelo acto podem ter em obter explicações (v., designadamente, o acórdão Comissão/Sytraval e Brink's France, já referido, n.° 63).

Apreciação do Tribunal

Observações prévias

47.
    Antes de examinar os fundamentos invocados por cada uma das partes, há que precisar o quadro em que devem ser apreciadas as questões relativas à admissibilidade e ao mérito do presente recurso relativo à aplicação do artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE.

48.
    Atendendo a que, no caso dos autos, se trata de um recurso de um acto que recusa uma denúncia, deve sublinhar-se, a título prévio, que o tratamento diligente e imparcial de uma denúncia encontra-se reflectido no direito à boa administração, que faz parte dos princípios gerais do Estado de direito comuns às tradições constitucionais dos Estados-Membros. Com efeito, o artigo 41.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia proclamada em 7 de Dezembro de 2000 em Nice (JO 2000, C 364, p. 1, a seguir «Carta dos Direitos Fundamentais») confirma que «[t]odas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável». Há que examinar imediatamente a natureza e o alcance deste direito e da obrigação concomitante da administração, no contexto especial da aplicação do direito comunitário da concorrência a um caso individualizado, como pretende a recorrente no caso presente.

49.
    A este propósito, há que salientar, em primeiro lugar, que a obrigação de um exame diligente e imparcial foi já explicitamente imposta à Comissão pela jurisprudência do Tribunal no quadro dos artigos 85.° e 86.° do Tratado CE (actuais artigos 81.° e 82.° CE), por um lado, e no quadro do artigo 92.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 87.° CE) e do artigo 93.° do Tratado CE (actual artigo 88.° CE), por outro (v., nomeadamente, os acórdãos do Tribunal de 18 de Setembro de 1992, Automec/Comissão, T-24/90, Colect., p. II-2223, n.° 79, e de 15 de Setembro de 1998, Gestevisión Telecinco/Comissão, T-95/96, p. II-3407, n.° 53). Aliás, nos seus acórdãos de 17 de Novembro de 1987, BAT e Reynolds/Comissão (142/84 e 156/84, Colect., p. 4487, n.° 20), e de 17 de Maio de 2001 (IECC/Comissão, C-449/98 P, Colect., p. I-3875, n.° 45), o Tribunal de Justiçatambém considerou que a Comissão é obrigada a examinar o conjunto dos elementos de facto e de direito levados ao seu conhecimento pelos denunciantes. Nem um texto explícito nem outro elemento permite considerar que seja de outro modo no quadro do poder de apreciação de que dispõe a Comissão ao conhecer de uma denúncia destinada a obter a acção desta por força do artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE.

50.
    É certo que os referidos acórdãos se baseiam, nomeadamente, na existência de direitos processuais explicitamente reconhecidos no Tratado ou nas disposições de direito derivado, a fim de justificar essa obrigação de exame da Comissão, quando esta última alega que tais direitos não foram formalmente concedidos aos queixosos por força do artigo 90.° do Tratado CE.

51.
    Todavia, há que salientar, a este propósito, que esta disposição do Tratado continua a aplicar-se, como resulta, nomeadamente, do seu n.° 1, em conjugação com outras disposições do Tratado, entre as quais figuram as relativas à concorrência que, por sua vez, reconhecem explicitamente direitos processuais aos denunciantes. No caso presente, a recorrente afirma, no essencial, na sua denúncia, ter sido afectada negativamente por uma medida estatal austríaca, que permite à Mobilkom abusar da sua posição dominante no mercado dos telefones móveis em causa, em violação do artigo 86.° do Tratado. A recorrente encontra-se, portanto, colocada numa situação comparável à visada no artigo 3.° do Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, primeiro regulamento de execução dos artigos 85.° e 86.° do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22), que a autoriza a apresentar denúncia à Comissão.

52.
    Em segundo lugar, a existência de tal obrigação de exame diligente e imparcial é igualmente justificada pela obrigação geral de vigilância que incumbe à Comissão, mesmo se esta obrigação se exerce, por força do artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE, contra os Estados-Membros. Com efeito, o Tribunal considerou que a extensão das obrigações da Comissão no domínio do direito da concorrência deve ser examinada à luz do artigo 89.°, n.° 1, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 85.°, n.° 1, CE), que, neste domínio, constitui a manifestação específica da missão geral de vigilância que o artigo 115.° do Tratado CE (actual artigo 211.° CE) atribui à Comissão (v., nomeadamente, o acórdão do Tribunal de 14 de Julho de 1994, Parker Pen/Comissão, T-77/92, Colect., p. II-549, n.° 63). Ora, o artigo 90.° do Tratado CE é, tal como o artigo 89.° do mesmo Tratado, a expressão do objectivo geral confiado pelo artigo 3.°, alínea g), do Tratado CE [que passou, após alteração, a artigo 3.°, alínea g), CE] à acção da Comunidade, isto é, a instituição de um regime que garanta que a concorrência não seja falseada no mercado comum (v., neste sentido, o acórdão do Tribunal de Justiça de 13 de Fevereiro de 1979, Hoffmann-La Roche/Comissão, 85/76, Colect., p. 217, n.° 38).

53.
    Nesta perspectiva, deve considerar-se que a obrigação geral de fiscalização da Comissão e o seu corolário, a obrigação de exame diligente e imparcial dasdenúncias que lhe são submetidas, devem aplicar-se, quanto ao seu princípio, indistintamente no âmbito dos artigos 85.°, 86.°, 90.°, 92.° e 93.° do Tratado CE, mesmo quando as modalidades de exercício destas obrigações variam em função dos seus domínios de aplicação específicos e, nomeadamente, dos direitos processuais atribuídos explicitamente pelo Tratado ou pelo direito comunitário derivado aos interessados nestes domínios. Consequentemente, são irrelevantes os argumentos da Comissão segundo os quais, por um lado, o artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE não reserva nenhuma acção aos particulares e, por outro, a protecção dos particulares é garantida pelas obrigações que incumbem directamente aos Estados-Membros.

54.
    Recorde-se que é em vão que a Comissão invoca o paralelismo entre os artigos 90.°, n.° 3, e 169.° do Tratado CE para demonstrar que não é obrigada a examinar a denúncia por força da disposição referida em primeiro lugar. Deve sublinhar-se, a este propósito, que é verdade que ambas as disposições dão lugar a processos em que participam a Comissão e o Estado-Membro, no quadro dos quais a Comissão exerce a sua missão geral de vigilância por força do artigo 155.° do Tratado CE. Todavia, ao passo que, por força do artigo 169.° do Tratado CE, a Comissão «pode» intentar uma acção por incumprimento contra um Estado-Membro, o artigo 90.°, n.° 3, deste mesmo Tratado prevê, ao invés, que esta adopte as medidas adequadas «quando necessário». Esta expressão constitui uma precisão do poder reconhecido à Comissão pelo artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE, e indica, assim, que a Comissão deve poder pronunciar-se sobre o carácter «necessário» da sua intervenção, o qual implica, por sua vez, um dever de exame diligente e imparcial das denúncias, no termo do qual dispõe de um poder de apreciação quanto à questão de saber se há que levar a cabo ou não a instrução e, se for caso disso, tomar medidas relativamente ao ou aos Estados-Membros em questão, quando seja necessário. Contrariamente ao que acontece no que se refere às suas decisões de intentar uma acção por incumprimento com base no artigo 169.° do Tratado CE, o poder da Comissão em matéria de aplicação do artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE não é, portanto, inteiramente discricionário (v., neste sentido, as conclusões do advogado-geral J. Mischo apresentadas no processo que deu origem ao acórdão do Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 2001, Comissão e França/TF1, C-302/99 P e C-308/99 P, Colect., p. I-5603, n.° 96).

55.
    Esta obrigação de exame diligente e imparcial não implica, porém, que a Comissão prossiga esse exame até ser adoptada uma decisão final ou uma directiva dirigida a um ou vários Estados-Membros. Com efeito, por força de jurisprudência assente, o n.° 3 do artigo 90.° do Tratado CE e a sistemática do conjunto das disposições deste artigo implicam que o poder de vigilância atribuído à Comissão em relação aos Estados-Membros responsáveis por uma infracção às regras do Tratado, nomeadamente às relativas à concorrência, inclui o exercício de um amplo poder de apreciação tanto relativamente à acção que considere necessário desenvolver como aos meios apropriados para esse fim (v., nomeadamente, o acórdão Bilanzbuchhalter, n.° 27, e acórdão Vlaamse Televisie Maatschappij/Comissão, já referido, n.° 75). A jurisprudência esclarece ainda que «o exercício do poder deapreciação da compatibilidade das medidas estatais com as normas do Tratado, conferido pelo artigo 90.°, n.° 3, do Tratado, não é acompanhado de nenhuma obrigação da Comissão, susceptível de ser invocada para fazer declarar uma eventual omissão sua» (v., nomeadamente, o acórdão Ladbroke/Comissão, já referido, n.° 38). Ao sublinhar que não existe a obrigação da Comissão de intervir contra os Estados-Membros, esta jurisprudência não implica, porém, que esta instituição não esteja sujeita à obrigação de um exame diligente e imparcial das denúncias.

56.
    Deve seguidamente recordar-se que, na medida em que a Comissão está sujeita à obrigação desse exame, o respeito desta não pode subtrair-se ao controlo jurisdicional. Com efeito, é no interesse simultaneamente de uma boa administração da justiça e de uma exacta aplicação das regras da concorrência que as pessoas singulares ou colectivas que pedem à Comissão que declare uma infracção às referidas regras possam, se os seus pedidos não forem total ou parcialmente deferidos, dispor de uma via de recurso destinada a proteger os seus interesses legítimos. Aliás, o Tribunal de Justiça já fez aplicação deste princípio em várias ocasiões em matéria de infracções aos artigos 85.° e 86.° do Tratado CE (v., nomeadamente, o acórdão do Tribunal de Justiça de 25 de Outubro de 1977, Metro/Comissão, 26/76, Colect., p. 659, n.° 13). O mesmo é válido no caso de infracção ao artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE (v., neste sentido, as conclusões do advogado-geral J. Mischo apresentadas no processo que deu origem ao acórdão Comissão e França/TF1, já referidas, n.° 97).

57.
    Por outro lado, esse controlo jurisdicional faz igualmente parte dos princípios gerais do Estado de direito, comuns às tradições constitucionais dos Estados-Membros, como confirma o artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais, que determina que toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma acção perante um tribunal.

58.
    Uma vez que foi acima sublinhado que, por um lado, a Comissão dispõe, por força do artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE, de um amplo poder de apreciação quanto à ao carácter «necessário» de uma intervenção contra os Estados-Membros e que, por outro, esta instituição está sujeita a um dever de exame diligente e imparcial das denúncias que denunciam a violação do artigo 90.°, n.° 1, do Tratado CE, quando o acto impugnado consiste numa decisão da Comissão de não exercer o poder que lhe atribui o artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE, o papel do juiz comunitário limita-se a um controlo restrito confinado à prova, em primeiro lugar, da existência, no acto impugnado, de uma fundamentação prima facie que consiste e traduz a tomada em consideração dos elementos relevantes dos autos, em segundo lugar, da exactidão material dos factos apurados, e, em terceiro lugar, da ausência de erro manifesto no que respeita à apreciação prima facie destes factos.

59.
    Em tais circunstâncias, o controlo exercido pelo Tribunal é, portanto, limitado no seu campo de aplicação e diversificado na sua intensidade. Com efeito, a exactidãomaterial dos factos apurados está sujeita a um controlo jurisdicional exaustivo, ao passo que a apreciação prima facie destes factos e, mais ainda, a apreciação da necessidade de uma intervenção, estão sujeitos a um controlo restrito do Tribunal.

60.
    É à luz destas considerações que deve ser examinada a admissibilidade e o mérito do presente recurso.

Quanto ao argumento da Comissão segundo o qual o recurso carece parcialmente de objecto

61.
    A fim de se pronunciar sobre a argumentação da Comissão, enunciada no n.° 15, supra, segundo a qual o presente recurso carece parcialmente de objecto, há que examinar o conteúdo da denúncia e dos articulados complementares apresentados pela recorrente.

62.
    Ora, resulta da análise destes documentos que, embora efectivamente a parte da denúncia relativa à alegada discriminação de que a recorrente foi alegadamente vítima se referisse especialmente à Mobilkom, não deixa de ser verdade que esta parte da denúncia se referia também explicitamente à Connect Austria, e, de qualquer forma, a recorrente considera ter sido discriminada relativamente a uma destas duas empresas.

63.
    Deve, portanto, concluir-se que o pedido da Comissão de que o Tribunal declare que o recurso carece parcialmente de objecto deve ser julgado improcedente.

Quanto à admissibilidade

64.
    Recorde-se, em primeiro lugar, que, contrariamente ao que sustenta a Comissão, a existência de um amplo poder de apreciação da Comissão, no que respeita à aplicação do artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE, não se opõe, enquanto tal, à possibilidade de interpor um recurso de anulação de uma decisão de recusa de prosseguir o exame de uma denúncia destinada a obter a intervenção baseada neste artigo do Tratado (v., neste sentido, as conclusões do advogado-geral J. Mischo apresentadas no processo que deu origem ao acórdão Comissão e França/TF1, já referidas, n.° 98), nomeadamente quando tal decisão é dirigida ao autor da denúncia.

65.
    Seguidamente, há que salientar que, diversamente da solução acolhida no quadro do exame de denúncias por violação do artigo 92.° do Tratado CE em matéria de auxílios de Estado (v., nomeadamente, o acórdão Comissão/Sytraval e Brink's France, já referido, n.os 44 e 45), a que a parte interveniente faz referência (v. n.° 25 do presente acórdão), há que admitir a existência de decisões que recusam denúncias destinadas a obter a intervenção da Comissão com base no artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE.

66.
    Com efeito, em matéria de auxílios de Estado, o exame de uma denúncia dá, em geral, lugar a uma decisão dirigida ao Estado-Membro em causa. A resposta dada à denúncia é, portanto, inteiramente absorvida pela decisão dirigida a esse Estado-Membro. Nestas circunstâncias e segundo jurisprudência assente, é inútil admitir a existência de uma decisão de recusa de uma denúncia distinta da decisão dirigida ao Estado-Membro em causa (v., neste sentido, o acórdão do Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 1993, Cook/Comissão, C-198/91, Colect., p. I-2487, n.os 13 a 15, bem como as conclusões do advogado-geral G. Tesauro apresentadas no processo que deu origem a este mesmo acórdão, Colect., p. I-2502, n.° 32). No entanto, uma denúncia em que se convida a Comissão a agir com base no artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE nem sempre culmina numa decisão dirigida ao Estado-Membro em causa, uma vez que só se for «necessário» é que a Comissão lhe dirige essa decisão. Consequentemente, na perspectiva de uma boa administração da justiça, conforme referida no n.° 56 do presente acórdão, há que admitir, como no caso presente, a existência de decisões de recusa de denúncias que denunciam a violação do artigo 90.°, n.° 1, do Tratado CE.

67.
    Observe-se, além disso, que a circunstância de nem o Tratado nem o direito derivado preverem explicitamente a competência da Comissão para tomar uma decisão num caso, como o dos autos, não impede que se conclua pela existência dessa decisão de recusa de uma denúncia. A este propósito, há que recordar, a título de exemplo, que, em matéria de denúncias por violação dos artigos 58.° e 86.° do Tratado CE, a jurisprudência admitiu a existência de uma decisão de arquivamento de uma denúncia, apesar de tal decisão não estar prevista no Tratado nem no direito derivado (acórdãos do Tribunal de Justiça de 11 de Outubro de 1983, Demo-Studio Schmidt/Comissão, 210/81, Recueil, p. 3045, n.os 14 a 16; de 28 de Março de 1985, CICCE/Comissão, 298/83, Recueil, p. 1105, n.° 18, e acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 10 de Julho de 1990, Automec/Comissão, T-64/89, Colect., p. II-367, n.° 47).

68.
    Saliente-se, por outro lado, que o presente acórdão se distingue igualmente do processo que culminou no acórdão Ladbroke/Comissão, igualmente invocado pela Comissão, na medida em que este se referia a um recurso por omissão.

69.
    De qualquer forma, mesmo supondo - quod non - que o acto impugnado, contrariamente à sua forma, ao seu teor e à qualidade do seu destinatário (recorrente, pessoa singular ou colectiva na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE), deve ser qualificado não de decisão de recusa de uma denúncia de violação do artigo 90.°, n.° 1, do Tratado CE, mas de acto que declara que uma disposição nacional não é incompatível com o Tratado e cujo destinatário real é um Estado-Membro, não se pode deduzir necessariamente que a recorrente não tem legitimidade activa para pedir a anulação desse acto. Com efeito, não se pode excluir a priori que a recorrente seja afectada na sua situação jurídica. Convém, por isso, examinar se a recorrente é directa e individualmente afectada pelo acto impugnado.

70.
    No caso dos autos, a recorrente é directa e individualmente afectada pelo acto impugnado assim qualificado. Com efeito, em primeiro lugar, o acto impugnado constitui a reacção da Comissão a uma denúncia formal da recorrente. Em segundo lugar, resulta dos dois articulados complementares (referidos no n.° 4 do presente acórdão) que a Comissão se reuniu várias vezes com a recorrente a fim de examinar diferentes aspectos suscitados na denúncia. Em terceiro lugar, ao atribuir a licença GSM à recorrente, esta última tinha uma única concorrente, a Mobilkom, beneficiária das medidas estatais denunciadas na parte da denúncia cuja instrução a Comissão entendeu, no acto impugnado, não dever prosseguir. Em quarto lugar, a recorrente é a única das duas concorrentes da Mobilkom a quem foi imposta uma licença idêntica à da Mobilkom, ao passo que à outra concorrente, a Connect Austria, foi imposta uma licença de montante significativamente inferior ao imposto à Mobilkom ou à recorrente. Em quinto lugar, não se contesta que o montante da licença imposta à Mobilkom, que constitui a questão central da denúncia e do acto impugnado, foi decalcado mecanicamente sobre o montante da licença proposto pela recorrente no quadro do processo de atribuição da segunda licença GSM na Áustria. Finalmente, em sexto lugar, há que salientar que a medida que é objecto da denúncia e do acto impugnado tem alcance individual em relação à Mobilkom e não constitui uma medida de alcance geral como a que estava em causa no processo que deu lugar ao acórdão Bilanzbuchhalter.

71.
    No entanto, no caso dos autos, o Tribunal considera que a legitimidade activa da recorrente resulta da sua qualidade de destinatária do acto impugnado, através do qual a Comissão decidiu não tomar quaisquer medidas contra a República da Áustria com base no artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE, no que respeita ao montante das licenças das concessões em matéria de radiotelefonia móvel. Diversamente do argumento apresentado a título supletivo nos n.os 69 e 70, supra, não há que examinar, nestas condições, se a recorrente é directa e individualmente afectada pela decisão de que é destinatária, como a Comissão parece preconizar. Por outro lado, na medida em que a Comissão quis suscitar a questão de saber se a recorrente tem interesse legítimo em que seja tomada a medida que ela convida a Comissão a tomar ao abrigo do artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE, isto é, se, na falta dessa medida, a posição jurídica da recorrente é afectada, há que observar que esta questão se coloca, antes de mais, perante a instituição à qual a denúncia foi dirigida. O tribunal comunitário pode, se for caso disso, examinar posteriormente se a Comissão apreciou esta questão correctamente. Todavia, esta apreciação está excluída da apreciação da admissibilidade do recurso dirigido pelo queixoso contra a decisão de recusa da sua denúncia, conforme interposto no caso dos autos.

72.
    À luz destas considerações, há que concluir que o recurso é admissível.

Quanto ao mérito

73.
    Recorde-se que o controlo exercido pelo Tribunal se limita à verificação do respeito pela Comissão do seu dever de exame diligente e imparcial das denúncias,conforme indicado no n.° 58 do presente acórdão. Dada a natureza deste controlo, há que examinar conjuntamente o fundamento baseado na violação da obrigação de fundamentação e o baseado em erro manifesto de apreciação quanto à existência ou não de violação dos artigos 86.° e 90.° do Tratado CE.

74.
    Recorde-se, a este propósito, que, no acto impugnado, a Comissão baseia a sua recusa de prosseguir a instrução na dupla consideração de que a recorrente «não apresentou provas suficientes da existência de uma medida estatal que tenha levado a Mobilkom a abusar da sua posição dominante» e que «[s]egundo a prática habitual em casos semelhantes, a Comissão só intentou acções por incumprimento quando um Estado-Membro impôs a uma empresa recém-entrada no mercado uma licença superior à aplicável a uma empresa que aí já exerce a sua actividade».

75.
    Pode deduzir-se desta dupla consideração que a Comissão identificou a acusação central da denúncia, o que equivale a ter em conta os elementos relevantes dos autos. Por outro lado, há que observar que o acto impugnado assenta em factos cuja natureza material não é contestada, uma vez que as partes admitem que os montantes das licenças pagas pela recorrente e pela Mobilkom são idênticos. Finalmente, cabe assinalar que a Comissão pôde, sem incorrer em erro manifesto de apreciação, concluir, com base num exame prima facie dos elementos dos autos, que o facto de impor à Mobilkom o pagamento de uma licença de montante idêntico ao pago pela recorrente não basta, por si só, para demonstrar que a Mobilkom foi incitada a abusar da sua posição dominante. Esta conclusão é compatível com a prática anterior da Comissão e, mais especialmente, com as decisões GSM Itália e GSM Espanha, nas quais a Comissão concluiu que o operador histórico em causa tinha sido incitado a abusar da sua posição dominante devido ao facto de o operador recém-entrado no mercado pagar uma licença de montante superior ao pago por esse operador histórico.

76.
    Nestas condições, nenhum elemento dos autos permite provar que a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação ao concluir, terminado o seu exame da denúncia apresentada pela recorrente, que não havia que instaurar um processo contra a República da Áustria com base no artigo 90.°, n.° 3, do Tratado CE, por violação dos artigos 86.° e 90.°, n.° 1, deste mesmo Tratado.

77.
    Quanto à argumentação da recorrente baseada no facto de a Comissão não ter tido em conta a inexistência de vias de recurso adequadas a nível nacional, basta observar que a recorrente não insistiu, na sua denúncia nem nos seus articulados complementares, na inexistência de tais vias de recurso. Nestas circunstâncias, deve considerar-se que, no caso vertente, a Comissão não violou manifestamente a sua obrigação de exame, pelo facto de não se ter pronunciado explicitamente no acto impugnado sobre a existência de recursos judiciais ou administrativos adequados a nível nacional.

78.
    Quanto ao fundamento da recorrente relativo à falta de fundamentação, recorde-se que, nos termos de jurisprudência assente, a fundamentação exigida no artigo 190.° do Tratado CE deve deixar transparecer, de forma clara e inequívoca, o raciocínio seguido pela autoridade comunitária, autora do acto impugnado, por forma a permitir que os interessados conheçam as razões da medida adoptada, a fim de poderem defender os seus direitos, e que o Tribunal exerça o seu controlo (v., nomeadamente, o acórdão do Tribunal de Justiça de 14 de Fevereiro de 1990, Delacre e o./Comissão, C-350/88, Colect., p. I-395, n.° 15).

79.
    No caso dos autos, há que salientar que o acto impugnado foi adoptado na sequência de várias reuniões entre a recorrente e a Comissão e, portanto, num contexto conhecido da recorrente, como resulta dos articulados complementares apresentados por esta última à Comissão. Nesta medida, o presente processo distingue-se do processo que deu origem ao acórdão Control Data/Comissão, já referido (n.° 15). Por isso, foi dada à recorrente a possibilidade de entender as razões que figuram nos fundamentos do acto impugnado, pelas quais a Comissão considerou inoportuno prosseguir a instrução da sua denúncia. Por conseguinte, a recorrente pôde defender os seus direitos perante o Tribunal de Primeira Instância e este pôde exercer o seu controlo dentro dos limites definidos no n.° 58 do presente acórdão. Nestas circunstâncias, deve concluir-se que o acto impugnado está suficientemente fundamentado no que respeita ao artigo 190.° do Tratado CE.

80.
    Tendo em conta a natureza do controlo exercício pelo Tribunal de Primeira Instância, como definido no n.° 58 do presente acórdão, não há que proceder, como solicitou a recorrente, à audição dos responsáveis da recorrente ou de peritos em matéria de telecomunicações.

81.
    Pelas razões supramencionadas deve ser negado provimento ao recurso na sua totalidade.

Quanto às despesas

82.
    Nos termos do artigo 87.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal, a parte vencida deve ser condenada nas despesas, se tal tiver sido requerido. Tendo a recorrente sido vencida, deve ser condenada nas despesas, em conformidade com os pedidos da Comissão.

83.
    O Reino dos Países Baixos, interveniente, suportará as suas próprias despesas, nos termos do artigo 87.°, n.° 4, primeiro parágrafo, do Regulamento de Processo.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Segunda Secção Alargada)

decide:

1.
    É negado provimento ao recurso.

2.
    A recorrente é condenada a suportar as suas próprias despesas bem como as despesas da Comissão.

3.
    O Reino dos Países Baixos suportará as suas próprias despesas.

Meij
Lenaerts
Jaeger

Pirrung

Forwood

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 30 de Janeiro de 2002.

O secretário

O presidente

H. Jung

A. W. H. Meij


1: Língua do processo: alemão.