Language of document : ECLI:EU:C:2021:969

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

30 de novembro de 2021 (*)

«Reenvio prejudicial — Protocolo (n.o 7) Relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia — Membro de um órgão do Banco Central Europeu — Governador de um banco central nacional de um Estado‑Membro — Imunidade de jurisdição penal — Acusação relacionada com as atividades exercidas no âmbito da função no Estado‑Membro»

No processo C‑3/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga, Letónia), por Decisão de 20 de dezembro de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 7 de janeiro de 2020, no processo penal contra

AB,

CE,

«MM investīcijas» SIA,

sendo interveniente:

LR Ģenerālprokuratūras Krimināltiesiskā departamenta Sevišķi svarīgu lietu izmeklēšanas nodaļa,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, K. Jürimäe, C. Lycourgos, E. Regan, N. Jääskinen e I. Ziemele, presidentes de secção, M. Ilešič, J.‑C. Bonichot (relator), P. G. Xuereb e N. Wahl, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: M. Longar, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 26 de janeiro de 2021,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de AB, por M. Kvēps e A. Repšs, advokāti,

–        em representação de CE, por D. Vilemsons, advokāts,

–        em representação do LR Ģenerālprokuratūras Krimināltiesiskā departamenta Sevišķi svarīgu lietu izmeklēšanas nodaļa, por V. Jirgena,

–        em representação do Governo letão, por K. Pommere, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Gentili, avvocato dello Stato,

–        em representação da Comissão Europeia, inicialmente por L. Flynn, I. Naglis e S. Delaude e, em seguida, por L. Flynn e S. Delaude, na qualidade de agentes,

–        em representação do Banco Central Europeu, por C. Zilioli, K. Kaiser e F. Malfrère, na qualidade de agentes, assistidos por V. Čukste‑Jurjeva, advokāte,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 29 de abril de 2021,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 11.o, alínea a), do artigo 17.o e do artigo 22.o, primeiro parágrafo, do Protocolo (n.o 7) Relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia (JO 2016, C 202, p. 266; a seguir «Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de processos penais por corrupção e branqueamento de capitais instaurados contra AB, antigo governador do Banco Central da Letónia, CE e «MM investīcijas» SIA.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Protocolo (n.o 4) Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE

3        O Protocolo (n.o 4) Relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu (JO 2016, C 202, p. 230; a seguir «Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE») dispõe, no seu artigo 2.o, sob a epígrafe «Objetivos»:

«De acordo com o disposto no n.o 1 do artigo 127.o e no n.o 2 do artigo 282.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o objetivo primordial do [Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC)] é a manutenção da estabilidade dos preços. Sem prejuízo do objetivo da estabilidade dos preços, o SEBC apoiará as políticas económicas gerais na União, tendo em vista contribuir para a realização dos objetivos da União, tal como se encontram fixados no artigo 3.o do Tratado da União Europeia. O SEBC atuará de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberto e de livre concorrência, incentivando uma repartição eficaz dos recursos e observando os princípios definidos no artigo 119.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.»

4        O artigo 3.o desse protocolo, sob a epígrafe «Atribuições», prevê:

«3.o‑1. De acordo com o disposto no n.o 2 do artigo 127.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, as atribuições básicas fundamentais cometidas ao SEBC são:

–        a definição e execução da política monetária da União;

–        a realização de operações cambiais compatíveis com o disposto no artigo 219.o do referido Tratado;

–        a detenção e gestão das reservas cambiais oficiais dos Estados‑Membros;

–        a promoção do bom funcionamento dos sistemas de pagamentos.

3.o‑2.      De acordo com o disposto no n.o 3 do artigo 127.o do referido Tratado, o terceiro travessão do artigo 3.o‑1 não obsta à detenção e gestão, pelos Governos dos Estados‑Membros, de saldos de tesouraria em divisas.

3.o‑3.       De acordo com o disposto no n.o 5 do artigo 127.o do referido Tratado, o SEBC contribuirá para a boa condução das políticas desenvolvidas pelas autoridades competentes no que se refere à supervisão prudencial das instituições de crédito e à estabilidade do sistema financeiro.»

5        Nos termos do artigo 7.o do referido protocolo, sob a epígrafe «Independência»:

«De acordo com o disposto no artigo 130.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, no exercício dos poderes e no cumprimento das atribuições e deveres que lhes são cometidos pelos Tratados e pelos presentes Estatutos, o [Banco Central Europeu (BCE)], os bancos centrais nacionais ou qualquer membro dos respetivos órgãos de decisão não podem solicitar ou receber instruções das instituições, órgãos ou organismos da União, dos Governos dos Estados‑Membros ou de qualquer outra entidade. As instituições, órgãos ou organismos da União, bem como os Governos dos Estados‑Membros, comprometem‑se a respeitar este princípio e a não procurar influenciar os membros dos órgãos de decisão do BCE ou dos bancos centrais nacionais no exercício das suas funções.»

6        O artigo 9.o do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE dispõe, no seu n.o 9.3:

«De acordo com o disposto no n.o 1 do artigo 129.o do referido Tratado, os órgãos de decisão do BCE são o Conselho do BCE e a Comissão Executiva.»

7        O artigo 10.o deste protocolo, sob a epígrafe «O Conselho do Banco Central Europeu», prevê, no seu n.o 10.1:

«De acordo com o disposto no n.o 1 do artigo 283.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o Conselho do BCE é composto pelos membros da Comissão Executiva e pelos governadores dos bancos centrais nacionais dos Estados‑Membros cuja moeda seja o euro.»

8        O artigo 39.o do referido protocolo, sob a epígrafe «Privilégios e imunidades», prevê:

«O BCE goza, no território dos Estados‑Membros, dos privilégios e imunidades necessários ao cumprimento da sua missão, nas condições definidas no Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia.»

9        Nos termos do artigo 44.o do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE, sob a epígrafe «Conselho Geral do BCE»:

«44.o1.      Sem prejuízo do disposto no n.o 1 do artigo 129.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, é constituído um Conselho Geral como terceiro órgão de decisão do BCE.

44.o2.      O Conselho Geral é composto pelo Presidente e pelo Vice‑Presidente do BCE e pelos governadores dos bancos centrais nacionais. Os vogais da Comissão Executiva podem participar, sem direito de voto, nas reuniões do Conselho Geral.

[…]»

 Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades

10      Nos termos do artigo 8.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades:

«Os membros do Parlamento Europeu não podem ser procurados, detidos ou perseguidos pelas opiniões ou votos emitidos no exercício das suas funções.»

11      O artigo 9.o do mesmo protocolo estabelece:

«Enquanto durarem as sessões do Parlamento Europeu, os seus membros beneficiam:

a)      No seu território nacional, das imunidades reconhecidas aos membros do Parlamento do seu país,

b)      No território de qualquer outro Estado‑Membro, da não sujeição a qualquer medida de detenção e a qualquer procedimento judicial.

Beneficiam igualmente de imunidade, quando se dirigem para ou regressam do local de reunião do Parlamento Europeu.

A imunidade não pode ser invocada em caso de flagrante delito e não pode também constituir obstáculo ao direito de o Parlamento Europeu levantar a imunidade de um dos seus membros.»

12      O artigo 10.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades dispõe:

«Os representantes dos Estados‑Membros que participam nos trabalhos das instituições da União, bem como os seus conselheiros e peritos, gozam, durante o exercício das suas funções e durante as viagens com destino ou em proveniência de local de reunião, dos privilégios, imunidades e facilidades usuais.

O presente artigo é igualmente aplicável aos membros dos órgãos consultivos da União.»

13      O artigo 11.o deste protocolo prevê:

«No território de cada Estado‑Membro e independentemente da sua nacionalidade, os funcionários e outros agentes da União:

a)      Gozam de imunidade de jurisdição no que diz respeito aos atos por eles praticados na sua qualidade oficial, incluindo as suas palavras e escritos, sem prejuízo da aplicação das disposições dos Tratados relativas, por um lado, às normas sobre a responsabilidade dos funcionários e agentes perante a União e, por outro, à competência do Tribunal de Justiça da União Europeia para decidir sobre os litígios entre a União e os seus funcionários e outros agentes. Continuarão a beneficiar desta imunidade após a cessação das suas funções.

[…]»

14      Nos termos do artigo 17.o do referido protocolo:

«Os privilégios, imunidades e facilidades são concedidos aos funcionários e outros agentes da União exclusivamente no interesse desta.

Cada instituição da União deve levantar a imunidade concedida a um funcionário ou outro agente, sempre que considere que tal levantamento não é contrário aos interesses da União.»

15      O artigo 18.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades dispõe:

«Para efeitos da aplicação do presente Protocolo, as instituições da União cooperarão com as autoridades responsáveis dos Estados‑Membros interessados.»

16      O artigo 22.o deste protocolo prevê:

«O presente Protocolo é igualmente aplicável ao Banco Central Europeu, aos membros dos seus órgãos e ao seu pessoal, sem prejuízo do disposto no Protocolo Relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu.

[…]»

 Direito letão

 Lei Relativa ao Banco Central da Letónia

17      O artigo 2.o da likums «Par Latvijas Banku» (Lei Relativa ao Banco Central da Letónia) dispõe que o Banco Central da Letónia é membro do SEBC.

18      Por força do artigo 7.o desta lei, o Banco Central da Letónia coopera com o BCE, com os bancos centrais dos Estados‑Membros da União Europeia e com os bancos centrais de países terceiros, bem como com outras entidades financeiras. O Banco da Letónia, sob reserva do acordo do BCE, está habilitado a participar nas instituições monetárias internacionais nos termos do artigo 6.o‑2. do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE. O Banco Central da Letónia pode participar nas instituições monetárias internacionais que correspondam às suas finalidades e às suas funções, no respeito das disposições do Tratado e deste protocolo.

19      Resulta do artigo 13.o da referida lei que o governador, o vice‑governador e os membros do Conselho do Banco Central da Letónia não solicitam nem aceitam nenhumas instruções do Governo da República da Letónia e dos outros Estados‑Membros da União, das instituições da União e das outras instituições nacionais, estrangeiras ou internacionais e dos respetivos organismos. Este artigo prevê igualmente, em conformidade com o artigo 130.o TFUE, que estes governos, instituições e respetivos organismos não podem dar instruções ao governador, ao vice‑governador e aos membros do Conselho do Banco Central da Letónia, nem procurar influenciar de outra forma no exercício das suas funções. O Banco Central da Letónia adota as suas decisões e executa‑as com total independência.

 Código de Processo Penal

20      O artigo 10.o do Kriminālprocesa likums (Código de Processo Penal, Letónia) prevê que a imunidade processual penal dispensa, total ou parcialmente, a pessoa que dela beneficia de participar num processo penal, bem como de testemunhar e de apresentar documentos e elementos, e proíbe ou restringe o direito de desencadear um procedimento criminal e de aplicar medidas de coação a essa pessoa, bem como o direito de aceder às instalações que esta possui e de aí praticar atos de investigação.

21      Nos termos do artigo 116.o, n.os 1 a 3, deste código:

«1.      A imunidade processual penal é baseada no estatuto jurídico especial de uma pessoa, de uma informação ou de um local, especificado na Constituição, neste código ou noutras leis ou tratados internacionais, que garante o direito de uma pessoa não cumprir, total ou parcialmente, uma obrigação decorrente do processo penal ou que restringe o direito de praticar atos de investigação específicos.

2.      A imunidade processual penal de uma pessoa resulta:

1)      da sua imunidade penal, conforme especificada na Constituição ou nos tratados internacionais;

2)      da sua função ou da sua profissão;

3)      do seu estatuto no processo penal em causa;

4)      dos seus laços de parentesco.

3.      Uma pessoa tem direito à imunidade processual penal quando a informação que lhe é reclamada disser respeito:

1)      a segredos de Estado protegidos por lei;

2)      a segredo profissional protegido por lei;

3)      a segredo de negócios protegido por lei;

4)      à confidencialidade da vida privada protegida por lei.»

22      O artigo 404.o do Código de Processo Penal prevê que, salvo disposição em contrário do referido código, o Ministério Público transmite à autoridade competente uma proposta de autorização para instaurar um procedimento penal contra uma pessoa que, ao abrigo da lei, beneficia de imunidade processual penal, quando considerar que existem motivos que permitem demonstrar a responsabilidade penal desta última. São juntas à proposta informações sobre os elementos de prova que justificam a culpabilidade da pessoa cujo levantamento da imunidade é pedido.

 Processo principal e questões prejudiciais

23      O recorrente no processo principal, AB, ocupou o cargo de governador do Banco Central da Letónia de 21 de dezembro de 2001 a 21 de dezembro de 2019.

24      Tornou‑se membro do Conselho Geral do BCE na sequência da adesão da República da Letónia à União em 1 de maio de 2004, e posteriormente membro do Conselho do BCE na sequência da adesão deste Estado‑Membro à zona euro em 1 de janeiro de 2014.

25      Em 17 de fevereiro de 2018, AB foi detido na sequência da abertura de um inquérito penal preliminar conduzido pelo Korupcijas novēršanas un apkarošanas birojs (Serviço de Prevenção e Luta Contra a Corrupção, Letónia) (a seguir «KNAB») e foi posto em liberdade em 19 de fevereiro de 2018. Por decisão adotada na mesma data, o KNAB impôs‑lhe um certo número de medidas de segurança, entre as quais a proibição de exercer as suas funções de governador do Banco Central da Letónia. Em 28 de junho de 2018, foi acusado de crimes de corrupção pela procuradora responsável pelo processo.

26      Por Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, Rimšēvičs e BCE/Letónia (C‑202/18 e C‑238/18 EU:C:2019:139), o Tribunal de Justiça, pronunciando‑se sobre os recursos interpostos por AB e pelo BCE, anulou a decisão de 19 de fevereiro de 2018 do KNAB, na parte em que proibia AB de exercer as suas funções de governador do Banco Central da Letónia. O Tribunal de Justiça declarou que a República da Letónia não tinha demonstrado que a demissão das funções de AB assentava em indícios suficientes que demonstrassem que este tinha cometido uma falta grave, na aceção do artigo 14.o‑2, segundo parágrafo, do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE.

27      A acusação de AB foi concluída em 24 de maio de 2019 e contém três elementos de acusação.

28      O primeiro elemento de acusação que lhe foi imputado diz respeito à aceitação, antes de 30 de junho de 2010, de uma proposta de suborno apresentada por KM, presidente do conselho de administração de um banco letão, e do próprio suborno, que consistiu numa viagem de lazer coletiva com destino a Kamtchaka (Rússia), no montante de 7 490 euros, que teve lugar entre 20 e 30 de agosto de 2010. Em contrapartida, AB prestou aconselhamento a KM para permitir a este banco subtrair‑se à supervisão da Finanšu un kapitāla tirgus komisija (Comissão dos Mercados Financeiros e de Capitais, Letónia) (a seguir «FKTK») e absteve‑se de participar nas reuniões da FKTK durante as quais foram abordadas as questões relativas à supervisão do referido banco.

29      O segundo elemento de acusação que lhe foi imputado diz respeito, por um lado, à aceitação, após 23 de agosto de 2012, de uma oferta de suborno que consistiu no pagamento de um montante de 500 000 euros por OP, vice‑presidente do conselho de administração do mesmo banco letão, em troca de aconselhamento de AB a fim de obter o levantamento das restrições às atividades desse banco ordenadas pela FKTK e de evitar outras restrições e, por outro, à aceitação por AB do pagamento de metade desse suborno, ou seja, 250 000 euros. A outra metade do suborno, que devia ser paga após a adoção pela FKTK de uma decisão favorável ao referido banco, não foi paga a AB.

30      O terceiro elemento de acusação que lhe foi imputado diz respeito ao branqueamento de capitais destinado a dissimular a origem, as transferências e a propriedade dos fundos pagos a AB e correspondentes ao suborno objeto do segundo elemento de acusação. Este suborno foi investido na aquisição de um imóvel por uma sociedade fictícia utilizando fundos fornecidos por um intermediário.

31      Na pendência do processo penal, os advogados de AB pediram ao órgão jurisdicional de reenvio que submetesse ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial sobre a interpretação do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades. Invocando os artigos 11.o e 22.o deste protocolo, consideram que a imunidade de jurisdição prevista no referido protocolo é aplicável a AB pelos atos que praticou na sua qualidade de membro do Conselho do BCE.

32      O Ministério Público não contesta que AB possa beneficiar dessa imunidade quando age na qualidade de membro do Conselho do BCE, mas considera que, no âmbito do processo penal principal, os atos que lhe são imputados não estão relacionados com o exercício das suas funções enquanto membro desse Conselho, pelo que o Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades não é aplicável a AB.

33      O órgão jurisdicional de reenvio considera que, antes de iniciar a fase oral do processo penal, se deve pronunciar sobre a existência e o alcance de uma eventual imunidade de AB. Interroga‑se sobre se a qualidade de governador do Banco Central da Letónia, da qual decorre igualmente a de membro do Conselho do BCE, confere automaticamente imunidade em matéria de processos penais e de processos judiciais a AB. Em caso de resposta afirmativa, considera que há que determinar se o levantamento dessa imunidade deve ser pedido em todos os casos, ou se a autoridade responsável pelo processo, a saber, o Ministério Público, na fase preliminar, e o juiz que conhece do mérito, no processo judicial, são competentes para apreciar se, no contexto específico do processo em causa, existe um interesse da União em que o interessado beneficie dessa imunidade e, na hipótese de esse interesse existir, para pedir o levantamento da referida imunidade unicamente quando os atos estão relacionados com o exercício de uma função numa instituição da União, no caso em apreço o BCE. Se for concedida imunidade de processo penal a um membro do Conselho do BCE, o órgão jurisdicional de reenvio coloca igualmente a questão de saber em que fase do procedimento deve ser requerido o levantamento dessa imunidade. Por último, observa que, na medida em que o comportamento e os atos de uma pessoa são determinados pelo conjunto das informações de que essa pessoa dispõe, nem sempre é fácil, na prática, dissociar a imunidade concedida no interesse da União e os atos praticados fora do âmbito de aplicação dessa imunidade.

34      Nestas condições, o Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga, Letónia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 11.o, alínea a), e o artigo 22.o, primeiro parágrafo, do [Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades] aplicam‑se à função de membro do Conselho do [BCE], exercida pelo governador de um banco central de um Estado‑Membro, concretamente o presidente do Banco da Letónia, AB?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, essas disposições continuam a assegurar a essa pessoa imunidade contra um processo penal mesmo depois de ter deixado o lugar de governador do banco central de um Estado‑Membro e, portanto, o lugar de membro do Conselho do [BCE]?

3)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, essa imunidade apenas se refere à imunidade “de jurisdição”, conforme indicado no artigo 11.o, alínea a), do [Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades], ou também se refere às ações penais, incluindo à notificação do despacho de acusação e à obtenção de provas? Caso a imunidade se aplique à ação penal, essa circunstância afeta a possibilidade de utilizar as provas?

4)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, o artigo 11.o, alínea a), do [Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades], conjugado com o artigo 17.o do mesmo protocolo, permite ao titular do processo ou, na fase correspondente do processo, ao tribunal apreciar a existência de um interesse da [União] no contexto do referido processo e, apenas caso essa existência seja apurada — ou seja, se as atuações em causa de AB estiverem relacionados com o exercício das suas funções numa instituição da [União] —, pedir à instituição em causa, concretamente o [BCE], o levantamento da imunidade da referida pessoa?

5)       A existência de um interesse da [União], quando da aplicação das disposições do [Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades], deve estar sempre diretamente relacionado com as decisões tomadas ou com os atos praticados no exercício das funções numa instituição da [União]? Com efeito, pode esse funcionário ser objeto de um ato processual penal se a acusação de que foi objeto não estiver relacionada com as suas funções numa instituição da [União], mas com as atividades desenvolvidas no contexto das suas funções num Estado‑Membro?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão prejudicial

35      Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 22.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades deve ser interpretado no sentido de que o governador de um banco central de um Estado‑Membro pode beneficiar da imunidade de jurisdição prevista no artigo 11.o, alínea a), deste protocolo.

36      Em primeiro lugar, há que observar que o governador de um banco central de um Estado‑Membro faz parte das pessoas referidas no artigo 22.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades.

37      Com efeito, o artigo 22.o, n.o 1, do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades prevê que este é aplicável ao BCE, aos membros dos seus órgãos e ao seu pessoal, sem prejuízo do disposto no Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE.

38      Ora, por um lado, os governadores dos bancos centrais dos Estados‑Membros cuja moeda seja o euro são, em aplicação do artigo 283.o, n.o 1, TFUE e do artigo 10.o‑1 do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE, membros de direito do Conselho do BCE, que constitui um órgão de decisão do BCE, por força do artigo 129.o, n.o 1, TFUE e do artigo 9.o‑3 do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE. Por outro lado, o artigo 44.o‑2 deste protocolo dispõe que os governadores dos bancos centrais nacionais dos Estados‑Membros são membros do Conselho Geral, terceiro órgão de decisão do BCE nos termos do artigo 44.o‑1 do referido protocolo.

39      Por conseguinte, enquanto membro de pelo menos um órgão do BCE, o governador de um banco central de um Estado‑Membro figura entre as pessoas referidas no artigo 22.o, n.o 1, do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades. Consequentemente, este protocolo é‑lhe aplicável.

40      Em segundo lugar, coloca‑se a questão de saber se o governador de um banco central nacional pode beneficiar da imunidade de jurisdição prevista no artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades.

41      Com efeito, por um lado, o artigo 22.o, n.o 1, do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades não especifica quais as disposições do mesmo protocolo que são aplicáveis às pessoas a que se refere. Por outro lado, o referido protocolo atribui imunidades, variáveis pela sua natureza e extensão, a três categorias de pessoas, às quais a ligação do governador de um banco central nacional não é evidente.

42      Em primeiro lugar, as imunidades dos membros do Parlamento Europeu, previstas nos artigos 8.o e 9.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, são definidas em termos que visam especificamente as funções destes últimos e não são, portanto, aplicáveis a um governador de um banco central nacional.

43      Em segundo lugar, as imunidades dos representantes dos Estados‑Membros que participam nos trabalhos das instituições da União, que são objeto do artigo 10.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, também não podem beneficiar um governador de um banco central nacional. Por um lado, este último não pode ser considerado o representante de um Estado‑Membro quando exerce as suas funções de membro do Conselho ou do Conselho Geral do BCE. Com efeito, o artigo 130.o TFUE e o artigo 7.o do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE preveem que, no cumprimento das atribuições que lhes são conferidos pelos Tratados, os governadores dos bancos centrais nacionais não podem solicitar nem receber instruções, nomeadamente por parte das autoridades nacionais (v., neste sentido, Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, Rimšēvičs e BCE/Letónia, C‑202/18 e C‑238/18, EU:C:2019:139, n.o 72). Por outro lado, e em qualquer caso, as imunidades dos representantes dos Estados‑Membros que participam nos trabalhos das instituições da União são as «imunidades […] usuais», o que, como indicou a advogada‑geral no n.o 56 das suas conclusões, deve ser entendido como uma remissão para as imunidades previstas pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de abril de 1961. Ora, essas imunidades, que são concedidas aos diplomatas com vista a assegurar o cumprimento eficaz das funções das missões diplomáticas e consulares no Estado de residência, são, por natureza, inoponíveis pelos seus beneficiários aos Estados de que são representantes. Por conseguinte, o governador de um banco central de um Estado‑Membro não pode, em caso algum, invocar o benefício das referidas imunidades em relação às autoridades desse Estado‑Membro.

44      Em terceiro lugar, embora os funcionários e os outros agentes da União gozem, por força do artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, da imunidade de jurisdição no que diz respeito aos atos por eles praticados na sua qualidade oficial, incluindo as suas palavras e escritos, importa observar que os governadores dos bancos centrais nacionais se encontram numa posição diferente destes últimos. Por um lado, enquanto autoridades nacionais, são nomeados e, se for caso disso, demitidos pelos Estados‑Membros (Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, Rimšēvičs e BCE/Letónia, C‑202/18 e C‑238/18, EU:C:2019:139, n.o 72). Por outro lado, não estão subordinados a uma instituição da União, uma vez que, por força do artigo 130.o TFUE e do artigo 7.o do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE, não podem solicitar ou receber instruções das instituições, órgãos ou organismos da União, bem como dos Estados‑Membros ou de qualquer outro organismo.

45      Todavia, a posição de um governador de um banco central nacional, uma autoridade nacional, é certo, mas que atua no âmbito do SEBC e que, quando é governador de um banco central nacional de um Estado‑Membro cuja moeda seja o euro, integra o principal órgão de direção do BCE, é caracterizada por um desdobramento funcional que se traduz por um estatuto híbrido (Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, Ilmārs Rimšēvičs e BCE/Letónia, C‑202/18 e C‑238/18, EU:C:2019:139, n.o 70). Assim, esse governador atua por conta de uma instituição da União, no caso em apreço o BCE, no exercício das suas funções de membro do Conselho. O mesmo se aplica, como decorre do n.o 38 do presente acórdão, a um governador de um banco central nacional de um Estado‑Membro cuja moeda não é o euro no exercício das suas funções de membro do Conselho Geral do BCE.

46      A imunidade de que um governador de um banco central beneficia no exercício das suas funções de membro do Conselho do BCE ou de membro do Conselho Geral do BCE decorre, portanto, da exigência de assegurar as suas imunidades necessárias ao cumprimento da sua missão, conforme previstas no artigo 39.o do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE. Por conseguinte, um governador de um banco central deve beneficiar, no exercício dessas funções, dos privilégios e das imunidades necessários ao cumprimento da missão do BCE.

47      Além disso, a concessão aos governadores dos bancos centrais nacionais do benefício da imunidade de jurisdição prevista no artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, que visa garantir a independência dos seus beneficiários perante as autoridades nacionais no interesse da União, é suscetível de contribuir para a independência que o artigo 130.o TFUE e o artigo 7.o do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE exigem nomeadamente dos referidos governadores no exercício dos poderes e no cumprimento das atribuições que lhes foram conferidas pelos Tratados e pelo Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE.

48      Além disso, uma vez que os governadores dos bancos centrais nacionais não podem manifestamente beneficiar de nenhuma das duas outras imunidades previstas pelo Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, negar‑lhes igualmente o benefício da imunidade de jurisdição estabelecida no artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades tem por consequência paradoxal privar de qualquer imunidade as pessoas a quem os Tratados confiam a responsabilidade de conduzir a política monetária da União e que pretenderam expressamente subtrair de qualquer influência no exercício dessa atribuição.

49      Por último, o artigo 22.o, n.o 1, do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades deve ser interpretado no sentido de que concede ao pessoal do BCE, que refere expressamente, a mesma imunidade de jurisdição de que goza o pessoal das outras instituições da União. Ora, não resulta dos Tratados nem do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE que o legislador da União tenha pretendido conferir aos membros dos órgãos do BCE, e especialmente aos membros do Conselho do BCE, o seu principal órgão de decisão, uma proteção inferior à de todo o pessoal do BCE.

50      À luz das considerações precedentes, há que responder à primeira questão prejudicial que o artigo 22.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, lido à luz do artigo 130.o TFUE e do artigo 7.o do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE, deve ser interpretado no sentido de que o governador de um banco central de um Estado‑Membro pode beneficiar da imunidade de jurisdição prevista no artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades para os atos que tenha praticado na sua qualidade oficial de membro de um órgão do BCE.

 Quanto à segunda questão prejudicial

51      Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, lido em conjugação com o artigo 22.o deste protocolo, deve ser interpretado no sentido de que o governador de um banco central de um Estado‑Membro continua a beneficiar da imunidade de jurisdição prevista no artigo 11.o, alínea a), do referido protocolo após ter deixado de exercer as suas funções.

52      Em conformidade com esta disposição, os funcionários e os outros agentes da União continuam a gozar da imunidade de jurisdição após a cessação das suas funções. Ora, como se concluiu no n.o 50 do presente acórdão, o governador de um banco central nacional beneficia dessa imunidade de jurisdição enquanto membro de um órgão do BCE, nos termos do artigo 22.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades. Por conseguinte, mantém o benefício da mesma após ter deixado de exercer as funções de membro desse órgão.

53      Por conseguinte, a cessação das funções de governador de um banco central nacional, que põe termo, nos termos do artigo 10.o‑1 do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE, ao exercício de pleno direito das funções de membro de um órgão do BCE por parte deste governador, não retira a este último o benefício da imunidade de jurisdição prevista no artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades.

54      Consequentemente, há que responder à segunda questão prejudicial que o artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, lido em conjugação com o artigo 22.o do mesmo protocolo, deve ser interpretado no sentido de que o governador de um banco central de um Estado‑Membro continua a beneficiar, quanto aos atos praticados na sua qualidade oficial, da imunidade de jurisdição prevista no artigo 11.o, alínea a), do referido protocolo após ter deixado de exercer as suas funções.

 Quanto à quarta questão prejudicial

55      Com a sua quarta questão prejudicial, que há que examinar antes da terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, lido em conjugação com o artigo 17.o do mesmo protocolo, deve ser interpretado no sentido de que permite à autoridade nacional responsável pelo processo penal, a saber, segundo a fase do processo, a autoridade encarregada do exercício da ação penal ou o órgão jurisdicional penal competente, declarar, ela própria, que estão preenchidas as condições da imunidade de jurisdição antes de solicitar o levantamento dessa imunidade à instituição da União em causa.

56      Antes de mais, há que salientar que o artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades dispõe que os funcionários e os outros agentes da União só gozam de imunidade de jurisdição relativamente aos atos por eles praticados «na sua qualidade oficial», isto é, no âmbito da missão confiada à União (Acórdão de 11 de julho de 1968, Sayag e Leduc, 5/68, EU:C:1968:42, p. 585).

57      Além disso, os privilégios e imunidades reconhecidos à União por esse protocolo revestem natureza funcional, uma vez que visam evitar entraves ao funcionamento e à independência da União, o que implica, em particular, que os privilégios, imunidades e facilidades concedidos aos funcionários e outros agentes da União o são exclusivamente no interesse da União (Despacho de 13 de julho de 1990, Zwartveld e o., C‑2/88‑IMM, EU:C:1990:315, n.os 19 e 20, e Acórdão de 18 de junho de 2020, Comissão/RQ, C‑831/18 P, EU:C:2020:481, n.o 47).

58      A fim de garantir essa natureza funcional, o artigo 17.o, primeiro parágrafo, do referido protocolo estabelece que a imunidade é concedida aos funcionários e aos outros agentes da União exclusivamente no interesse da União. O artigo 17.o, segundo parágrafo, do mesmo protocolo aplica o mesmo princípio ao prever que cada instituição da União Europeia deve levantar a imunidade concedida a um funcionário ou a outro agente sempre que considere que o levantamento da imunidade não é contrário aos interesses da União.

59      Decorre do que precede que cabe à instituição da União em causa e não à autoridade nacional responsável pelo processo penal avaliar se o levantamento da imunidade é contrário aos interesses da União.

60      Em contrapartida, nem o artigo 11.o, alínea a), nem o artigo 17.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades indicam qual é a autoridade competente para apreciar o requisito de aplicação da imunidade de jurisdição recordada no n.o 56 do presente acórdão, a saber, que o ato imputado ao funcionário ou ao agente da União deve ter sido praticado por este último na sua qualidade oficial.

61      Por conseguinte, é à luz do contexto e da finalidade destas disposições do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades que deve ser determinada a autoridade competente para apreciar se esse requisito está preenchido.

62      Em primeiro lugar, é a instituição da União a que pertence o funcionário ou o agente implicado que está em melhor posição para determinar em que qualidade este agiu. É mesmo possível que tenha os documentos necessários à declaração da infração (Despacho de 13 de julho de 1990, Zwartveld e o., C‑2/88‑IMM, EU:C:1990:315). Além disso, a competência que o artigo 17.o, segundo parágrafo, do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades confere expressamente à instituição da União em causa de verificar que o pedido de levantamento da imunidade que lhe é dirigido não é contrário aos interesses da União atribui‑lhe desse modo competência para se certificar de que o ato imputado ao funcionário ou ao agente foi cumprido na sua qualidade oficial por conta da União. Com efeito, se os atos do funcionário ou do agente não foram cumpridos na sua qualidade oficial, os processos instaurados contra estes últimos são, a fortiori, insuscetíveis de lesar os interesses da União. Resulta do que precede que a instituição da União a que pertence o interessado é competente para apreciar a condição recordada no n.o 56 do presente acórdão.

63      Em segundo lugar, tal conclusão não implica, no entanto, que a instituição da União em causa seja, em todas as circunstâncias, competente para apreciar se o ato imputado ao funcionário ou ao agente da União foi por ele cumprido na sua qualidade oficial.

64      Com efeito, como expôs, em substância, a advogada‑geral no n.o 93 das suas conclusões, na prática, são as autoridades ou os tribunais competentes dos Estados‑Membros que, inicialmente, são confrontados com a questão de saber se existe um obstáculo ao exercício da ação penal contra um membro do pessoal da União devido à imunidade que este último pode invocar, uma vez que apenas eles possuem as informações que permitem determinar se o ato imputado apresenta as características de um ato praticado por esse membro do pessoal na sua qualidade oficial em nome da instituição da União a que pertence.

65      Se, nestas condições, não dispusessem de competência para apreciar se o ato foi praticado na qualidade oficial, seriam obrigadas a pedir à instituição da União em causa o levantamento da imunidade em todos os casos em que o ato impugnado tivesse sido cometido por um funcionário ou um agente da União.

66      No entanto, tal interpretação violaria os objetivos prosseguidos pelos autores dos Tratados ao conferir aos funcionários e outros agentes da União uma imunidade de jurisdição.

67      Com efeito, por um lado, a imunidade de jurisdição está, por força do artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, limitada aos atos praticados pelos funcionários e outros agentes da União, na sua qualidade oficial, e, por conseguinte, apenas cobre uma pequena parte dos atos penalmente repreensíveis que esses funcionários e agentes podem cometer. A este respeito, resulta da jurisprudência que só estão abrangidos por este conceito os atos que, pela sua própria natureza, devam ser considerados como participação daquele que invoca a imunidade na execução das atribuições da instituição à qual pertence (Acórdão de 11 de julho de 1968, Sayag e Leduc, 5/68, EU:C:1968:42, p. 585). À luz dessa mesma definição, os atos de fraude ou, como no âmbito do litígio no processo principal, de corrupção e branqueamento de capitais estão, por definição, fora do âmbito das funções de um funcionário ou outro agente da União, bem como das funções de um governador de um banco central de um Estado‑Membro que integre um órgão do BCE, não podendo, por conseguinte, ser abrangidos pelos atos praticados por essas pessoas na sua qualidade oficial.

68      Por outro lado, resulta do artigo 17.o, primeiro parágrafo, do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades que a imunidade de jurisdição visa exclusivamente, evitando que o funcionamento e a independência da União sejam entravados (Despacho de 13 de julho de 1990, Zwartveld e o., C‑2/88‑IMM, EU:C:1990:315, n.o 19), assegurar a proteção dos interesses da União e não pode, portanto, obstar ao exercício pelos Estados‑Membros da sua competência em matéria de repressão das infrações penais quando esses interesses não estão em jogo.

69      Ora, o exercício desta competência estaria comprometido ou, pelo menos, sistematicamente atrasado se a autoridade nacional responsável pelo processo penal estivesse, em todos os casos, obrigada a pedir à instituição da União em causa o levantamento da imunidade logo que seja instaurado um processo penal contra um dos funcionários ou agentes dessa instituição.

70      Por conseguinte, esta autoridade nacional deve poder declarar que a infração cometida por um funcionário ou outro agente da União não foi manifestamente cometida por este no exercício das suas funções.

71      A partilha de competência entre a autoridade nacional responsável pelo processo penal e a instituição da União em causa para apreciar se o ato suscetível de ser objeto de qualificação penal foi realizado por um funcionário ou outro agente da União no exercício das suas funções é, aliás, conforme com a intenção expressa pelos autores dos Tratados no artigo 18.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades. Com efeito, este artigo prevê que, para efeitos da aplicação do referido protocolo, as instituições da União cooperarão com as autoridades responsáveis dos Estados‑Membros interessados.

72      A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que o facto de participar ativamente nos processos judiciais, transmitindo ao juiz nacional documentos e autorizando os seus funcionários ou agentes a serem inquiridos na qualidade de testemunhas no processo nacional constitui uma obrigação para todas as instituições da União, continuando essas instituições, na aplicação do referido protocolo, sujeitas à obrigação de cooperação leal com as autoridades nacionais, nomeadamente judiciais, que lhes incumbe (v., neste sentido, Despacho de 13 de julho de 1990, Zwartveld e o., C‑2/88‑IMM, EU:C:1990:315, n.os 21 e 22)

73      No que respeita às modalidades dessa cooperação, há que salientar que, na prática, a questão de saber se o ato impugnado foi praticado pelo funcionário ou agente da União na sua qualidade oficial se coloca em primeiro lugar à autoridade nacional responsável pelo processo penal e que esta só está em condições de fazer uma apreciação sumária sobre a realidade desse critério. Assim, quando esta última constata que o ato que é objeto do processo penal não foi manifestamente praticado pelo funcionário ou agente da União implicado na sua qualidade oficial, o procedimento relativamente a este pode ser prosseguido dado que não se aplica a imunidade de jurisdição. Em contrapartida, quando, numa qualquer fase do processo penal, a referida autoridade nacional se interroga sobre este ponto, incumbe‑lhe, por força do princípio da cooperação leal previsto no artigo 4.o, n.o 3, TUE, e em conformidade com o artigo 18.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, consultar a instituição da União em causa e, no caso de esta considerar que o ato foi praticado na qualidade oficial, solicitar‑lhe o levantamento da imunidade do funcionário ou do agente em causa.

74      No caso de a autoridade nacional responsável pelo processo penal considerar desde logo que o ato foi praticado pelo funcionário ou agente em causa na sua qualidade oficial, deve dirigir diretamente à instituição da União em causa um pedido de levantamento da imunidade deste se pretender dar seguimento a esse processo. Em conformidade com a regra estabelecida no artigo 17.o, segundo parágrafo, do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, que constitui uma expressão específica da obrigação de cooperação leal que incumbe às instituições, aos órgãos e aos organismos da União para com os Estados‑Membros, este pedido de levantamento da imunidade deve ser deferido, salvo se se demonstrar que os interesses da União se opõem a tal. Esse caráter funcional e, deste modo, relativo dos privilégios e imunidades da União, que o Tribunal de Justiça já teve ocasião de sublinhar (Despacho de 13 de julho de 1990, Zwartveld e o., C‑2/88‑IMM, EU:C:1990:315, n.o 20), impõe‑se tanto mais que a eficácia dos processos, nomeadamente penais, nos Estados‑Membros é, ela própria, suscetível de ser diretamente abrangida pelos interesses da União, em especial no que respeita à proteção dos interesses financeiros desta (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de maio de 2018, Scialdone, C‑574/15, EU:C:2018:295, n.os 27 a 29; de 5 de junho de 2018, Kolev e o., C‑612/15, EU:C:2018:392, n.os 53 a 55, e de 18 de maio de 2021, Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» e o., C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.os 212 a 214).

75      O respeito pela repartição e pelo bom exercício das competências acima descritas é assegurado, se for caso disso, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, de acordo com as vias jurídicas previstas nos Tratados. Assim, o incumprimento por parte das autoridades nacionais, incluindo judiciais, responsáveis pelo processo penal, da sua obrigação, decorrente do princípio da cooperação leal, de consultar a instituição da União em causa quando não possam ser razoavelmente excluídas quaisquer dúvidas sobre o facto de o ato constitutivo da suposta infração ter sido praticado na qualidade oficial, pode ser submetido ao Tribunal de Justiça no âmbito do processo por incumprimento previsto no artigo 258.o TFUE. Inversamente, quando o levantamento da imunidade tenha sido pedido à instituição da União em causa e tenha sido recusado por esta, a validade dessa recusa pode ser objeto de uma questão prejudicial do órgão jurisdicional nacional competente ou mesmo de um recurso direto do Estado‑Membro em causa com fundamento no artigo 263.o TFUE. Por último, o funcionário ou agente da União em causa pode interpor recurso no Tribunal de Justiça da decisão da instituição da União a que pertence de levantar a sua imunidade de jurisdição nos termos do artigo 90.o, n.o 2, e do artigo 91.o do Estatuto dos Funcionários, por esta decisão constituir um ato lesivo dos seus interesses (Acórdão de 18 de junho de 2020, Comissão/RQ, C‑831/18 P, EU:C:2020:481, n.o 48).

76      Tendo em conta a conclusão a que se chegou no n.o 50 do presente acórdão, segundo a qual o governador de um banco central nacional beneficia da imunidade de jurisdição ao abrigo do artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, enquanto membro de um órgão do BCE nos termos do artigo 22.o deste protocolo, a interpretação que figura nos n.os 56 a 75 do presente acórdão aplica‑se igualmente ao caso desse governador.

77      À luz das considerações precedentes, há que responder à quarta questão prejudicial que o artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, lido em conjugação com os artigos 17.o e 22.o do mesmo protocolo, deve ser interpretado no sentido de que a autoridade nacional responsável pelo processo penal, a saber, segundo a fase do processo, a autoridade encarregada do exercício da ação penal ou o órgão jurisdicional penal competente, é competente para apreciar em primeiro lugar se a eventual infração cometida pelo governador de um banco central nacional, na qualidade de membro de um órgão do BCE, resulta de um ato praticado por esse governador no exercício das suas funções nesse órgão, mas é obrigada, em caso de dúvida, a solicitar o parecer do BCE, de acordo com o princípio da cooperação leal, e a respeitar esse parecer. Em contrapartida, cabe exclusivamente ao BCE apreciar, quando lhe é submetido um pedido de levantamento da imunidade desse governador, se esse levantamento de imunidade é contrário aos interesses da União, sob reserva da eventual fiscalização dessa apreciação pelo Tribunal de Justiça.

 Quanto à terceira questão prejudicial

78      Com a sua terceira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades deve ser interpretado no sentido de que a imunidade de jurisdição nele prevista se opõe a todos os procedimentos criminais, nomeadamente às medidas de investigação, à obtenção de provas e à notificação do despacho de acusação, ou obsta apenas a que os seus beneficiários sejam julgados e condenados por um órgão jurisdicional, e se a referida imunidade de jurisdição obsta à utilização posterior dos elementos de prova recolhidos durante o inquérito.

79      Há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, decorre das exigências tanto da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União, que não comporte uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance, devem normalmente ser objeto, em toda a União, de uma interpretação autónoma e uniforme, independentemente das qualificações utilizadas nos Estados‑Membros, tendo em conta os termos da disposição em causa, bem como o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte [Acórdão de 9 de setembro de 2021, Bundesamt für Fremdenwesen und Asyl (Pedido subsequente de proteção internacional), C‑18/20, EU:C:2021:710, n.o 32].

80      Daqui resulta que, na falta de remissão, no artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, para o direito nacional, o conceito de «imunidade de jurisdição» que consta desta disposição deve ser considerado um conceito autónomo do direito da União cujo sentido e alcance devem ser idênticos em todos os Estados‑Membros. Por conseguinte, cabe ao Tribunal de Justiça dar a este conceito uma interpretação uniforme na ordem jurídica da União.

81      No que respeita à redação do artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, importa salientar que, em todas as versões linguísticas, a imunidade prevista nesta disposição se opõe pelo menos a que os seus beneficiários sejam julgados e condenados por um órgão jurisdicional. Em contrapartida, não se pode deduzir apenas da redação da referida disposição que esta imunidade não abrange igualmente alguns dos atos processuais penais referidos no n.o 78 do presente acórdão, como salienta, em substância, a advogada‑geral no n.o 71 das suas conclusões.

82      Por conseguinte, há que interpretar o conceito de «imunidade de jurisdição», na aceção desta disposição, à luz do contexto e dos objetivos prosseguidos por esta última.

83      No que respeita ao contexto do artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, importa salientar que os artigos 8.o e 9.o deste protocolo definem o alcance da imunidade dos membros do Parlamento Europeu de modo mais preciso do que o dos funcionários e dos outros agentes da União. Resulta destes artigos que a imunidade dos membros do Parlamento é definida como incluindo o procedimento penal e, por conseguinte, não está limitada apenas à fase do julgamento (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de outubro de 2008, Marra, C‑200/07 e C‑201/07, EU:C:2008:579, n.o 27, e de 17 de setembro de 2020, Troszczynski/Parlamento, C‑12/19 P, EU:C:2020:725, n.o 39). Em contrapartida, não existe tal precisão no artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades relativamente à imunidade de jurisdição.

84      No que respeita aos objetivos prosseguidos pelo artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, este último só visa impedir o exercício de ações contra um funcionário ou um agente da União pelas autoridades de um Estado‑Membro nos casos excecionais em que o ato que lhe é imputado é praticado pelo referido funcionário ou agente na sua qualidade oficial e na medida estritamente necessária à proteção dos interesses da União. Ora, a apreciação destes requisitos de aplicação da imunidade de jurisdição pressupõe, antes de mais, a demonstração da realidade e da imputabilidade dos factos, tornando assim a maior parte das vezes necessária a realização de uma investigação policial ou judiciária e a obtenção de elementos de prova. Seria, portanto, contrário ao alcance deliberadamente relativo que os autores do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades conferiram à imunidade de jurisdição que esta impedisse as investigações policiais ou judiciais.

85      Além disso, uma interpretação demasiado ampla da imunidade de jurisdição, incluindo a investigação policial e judicial e o processo penal preliminar, poderia conferir aos funcionários e aos agentes da União uma quase isenção de responsabilidade penal e entravar abusivamente o exercício da justiça penal no Estado‑Membro em questão quando um deles estivesse envolvido, o que seria contrário aos valores, estabelecidos no artigo 2.o do TUE, a que os autores dos Tratados aderiram, e em particular ao Estado de direito. A este respeito, não se justifica, nomeadamente, que a autoridade responsável pelo processo penal não o possa notificar de um despacho de acusação.

86      Resulta do exposto que a imunidade de jurisdição prevista no artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades não se opõe aos processos penais no seu conjunto, nomeadamente às medidas de investigação, à obtenção de provas e à notificação do despacho de acusação.

87      No entanto, se, logo na fase das investigações conduzidas pelas autoridades nacionais e antes de recorrer a um órgão jurisdicional, se constatar que o funcionário ou agente da União pode beneficiar da imunidade de jurisdição relativamente aos atos que são objeto de procedimento penal, cabe a essas autoridades, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 3, TUE e com o artigo 18.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades, pedir o levantamento da imunidade à instituição da União em causa, a qual está então obrigada a agir, em particular, em conformidade com o exposto nos n.os 58, 62 e 74 do presente acórdão.

88      No que respeita à questão de saber se a imunidade de jurisdição obsta à utilização posterior dos elementos de prova recolhidos durante o inquérito, resulta do exposto que esta imunidade não tem tal alcance. Esta opõe‑se apenas a qualquer utilização das provas recolhidas com o objetivo de julgar e condenar o funcionário ou o agente da União em causa pelo ato abrangido por essa imunidade. Em contrapartida, uma vez que a referida imunidade beneficia apenas o funcionário ou o agente da União em causa para um determinado ato, a mesma não se opõe a que essas provas possam ser utilizadas noutros processos relativos a outros atos não abrangidos pela imunidade ou dirigidos contra terceiros.

89      Pelos mesmos motivos que os referidos no n.o 76 do presente acórdão, a interpretação exposta nos n.os 81 a 88 deste último é igualmente pertinente para a apreciação da imunidade de jurisdição de um governador de um banco central de um Estado‑Membro, na sua qualidade de membro de um órgão do BCE.

90      À luz das considerações precedentes, há que responder à terceira questão prejudicial que o artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades deve ser interpretado no sentido de que a imunidade de jurisdição que prevê não se opõe aos procedimentos penais no seu conjunto, nomeadamente às medidas de investigação, à obtenção de provas e à notificação do despacho de acusação. No entanto, se, logo na fase das investigações conduzidas pelas autoridades nacionais e antes de recorrer a um órgão jurisdicional, se verificar que a pessoa objeto das investigações é suscetível de beneficiar da imunidade de jurisdição relativamente aos atos que são objeto de procedimento penal, cabe a essas autoridades pedir o levantamento da imunidade à instituição da União em causa. Esta imunidade não se opõe a que os elementos de prova recolhidos durante a investigação possam ser utilizados noutros processos judiciais.

 Quanto à quinta questão prejudicial

91      Com a sua quinta questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 11.o, alínea a), e o artigo 17.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades devem ser interpretados no sentido de que a imunidade de jurisdição pode ser oposta no interesse da União quando o beneficiário dessa imunidade é posto em causa no âmbito de um processo penal por atos não relacionados com as funções que exerce por conta de uma instituição da União.

92      Antes de mais, importa recordar que resulta, por um lado, do artigo 11.o, alínea a), do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades que os funcionários e os outros agentes da União só gozam de imunidade de jurisdição relativamente aos atos praticados na sua qualidade oficial e, por outro, do artigo 17.o, primeiro parágrafo, desse protocolo que esta imunidade só é concedida se for justificada por um interesse da União.

93      Como foi exposto no n.o 73 do presente acórdão, quando a autoridade responsável pelo processo penal declara que a infração cometida pelo funcionário ou agente da União não constitui manifestamente um ato praticado na sua qualidade oficial, pode excluir a imunidade de jurisdição sem que deva ser apreciada a existência de um interesse da União pela instituição da União em causa no âmbito de um pedido de levantamento da imunidade.

94      Por conseguinte, a imunidade de jurisdição não é aplicável no âmbito de um processo penal instaurado contra um funcionário ou um agente da União relativamente a atos desprovidos de uma ligação com o exercício das suas funções. Como foi recordado no n.o 76 do presente acórdão, esta conclusão é igualmente válida para o governador de um banco central de um Estado‑Membro na sua qualidade de membro de um órgão do BCE.

95      A proteção assim concedida pelo Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades aos beneficiários da imunidade de jurisdição tem, como foi recordado no n.o 74 do presente acórdão, caráter funcional e, portanto, relativo e não permite, nomeadamente, protegê‑los, se for caso disso, de eventuais pressões que possam ser intencionalmente exercidas sobre eles através de procedimentos abusivos por atos que não são praticados pelos funcionários ou outros agentes da União na sua qualidade oficial. Todavia, há que recordar que, por força do princípio da cooperação leal, os Estados‑Membros estão obrigados, nos termos do artigo 4.o, n.o 3, terceiro parágrafo, TUE, a ajudar a União no cumprimento da sua missão e a abster‑se de qualquer medida suscetível de pôr em perigo a realização dos objetivos da União. Ora, tais pressões seriam, como salientou a advogada‑geral, em substância, no n.o 138 das suas conclusões, suscetíveis de pôr em causa o funcionamento das instituições da União e, portanto, de pôr em perigo a realização dos objetivos desta.

96      Em qualquer caso, o cumprimento da obrigação de cooperação leal nos termos do artigo 18.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades e do artigo 4.o, n.o 3, TUE pode ser imposto através de um processo por incumprimento [v. Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Comissão/Eslovénia (Arquivos do BCE), C‑316/19, EU:C:2020:1030]. Além disso, tratando‑se de um governador de um banco central nacional que integra o Conselho do BCE, o artigo 130.o TFUE, reproduzido no artigo 7.o do Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE, que garante a independência dos membros dos órgãos de decisão do BCE ou dos bancos centrais nacionais no cumprimento das atribuições e deveres que lhes foram conferidos pelos Tratados e pelo Protocolo Relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE, proporcionaria igualmente uma base jurídica adequada à Comissão para que, se for caso disso, o Tribunal de Justiça concluísse que houve manobras destinadas a comprometer esta independência.

97      À luz das considerações precedentes, há que responder à quinta questão prejudicial que o artigo 11.o, alínea a), e o artigo 17.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades devem ser interpretados no sentido de que a imunidade de jurisdição não se aplica quando o beneficiário dessa imunidade é posto em causa num processo penal por atos que não foram praticados no âmbito das funções que exerce por conta de uma instituição da União.

 Quanto às despesas

98      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1)      O artigo 22.o do Protocolo (n.o 7) Relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia, lido à luz do artigo 130.o TFUE e do artigo 7.o do Protocolo (n.o 4) Relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu, deve ser interpretado no sentido de que o governador de um banco central de um EstadoMembro pode beneficiar da imunidade de jurisdição prevista no artigo 11.o, alínea a), do Protocolo (n.o 7) Relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia para os atos que tenha praticado na sua qualidade oficial de membro de um órgão do Banco Central Europeu.

2)      O artigo 11.o, alínea a), do Protocolo (n.o 7) Relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia, lido em conjugação com o artigo 22.o do mesmo protocolo, deve ser interpretado no sentido de que o governador de um banco central de um EstadoMembro continua a beneficiar, quanto aos atos praticados na sua qualidade oficial, da imunidade de jurisdição prevista no artigo 11.o, alínea a), do referido protocolo após ter deixado de exercer as suas funções.

3)      O artigo 11.o, alínea a), do Protocolo (n.o 7) Relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia, lido em conjugação com os artigos 17.o e 22.o do mesmo protocolo, deve ser interpretado no sentido de que a autoridade nacional responsável pelo processo penal, a saber, segundo a fase do processo, a autoridade encarregada do exercício da ação penal ou o órgão jurisdicional penal competente, é competente para apreciar em primeiro lugar se a eventual infração cometida pelo governador de um banco central nacional, na qualidade de membro de um órgão do Banco Central Europeu, resulta de um ato praticado por esse governador no exercício das suas funções nesse órgão, mas é obrigada, em caso de dúvida, a solicitar o parecer do Banco Central Europeu, de acordo com o princípio da cooperação leal, e a respeitar esse parecer. Em contrapartida, cabe exclusivamente ao Banco Central Europeu apreciar, quando lhe é submetido um pedido de levantamento da imunidade desse governador, se esse levantamento de imunidade é contrário aos interesses da União Europeia, sob reserva da eventual fiscalização dessa apreciação pelo Tribunal de Justiça.

4)      O artigo 11.o, alínea a), do Protocolo (n.o 7) Relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que a imunidade de jurisdição que prevê não se opõe aos procedimentos penais no seu conjunto, nomeadamente às medidas de investigação, à obtenção de provas e à notificação do despacho de acusação. No entanto, se, logo na fase das investigações conduzidas pelas autoridades nacionais e antes de recorrer a um órgão jurisdicional, se verificar que a pessoa objeto das investigações é suscetível de beneficiar da imunidade de jurisdição relativamente aos atos que são objeto de procedimento penal, cabe a essas autoridades pedir o levantamento da imunidade à instituição da União Europeia em causa. Esta imunidade não se opõe a que os elementos de prova recolhidos durante a investigação possam ser utilizados noutros processos judiciais.

5)      O artigo 11.o, alínea a), e o artigo 17.o do Protocolo (n.o 7) Relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia devem ser interpretados no sentido de que a imunidade de jurisdição não se aplica quando o beneficiário dessa imunidade é posto em causa num processo penal por atos que não foram praticados no âmbito das funções que exerce por conta de uma instituição da União Europeia.

Assinaturas


*      Língua do processo: letão.