Language of document : ECLI:EU:T:2011:289

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção)

16 de Junho de 2011 (*)

«Concorrência – Acordos, decisões e práticas concertadas – Mercado dos serviços de mudanças internacionais na Bélgica – Decisão que declara uma infracção ao artigo 81.° CE – Fixação dos preços – Repartição do mercado – Manipulação dos concursos – Infracção única e continuada – Coimas – Orientações para o cálculo das coimas de 2006 – Gravidade – Duração»

No processo T‑211/08,

Putters International NV, com sede em Cargovil (Bélgica), representada por K. Platteau, advogado,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por A. Bouquet e F. Ronkes Agerbeek, na qualidade de agentes,

recorrida,

que tem por objecto um pedido de anulação parcial da Decisão C(2008) 926 final da Comissão, de 11 de Março de 2008, relativa a um processo de aplicação do artigo 81.° [CE] e do artigo 53.° do Acordo EEE (Processo COMP/38.543 – Serviços de mudanças internacionais), bem como, a título subsidiário, um pedido de anulação ou de redução da coima aplicada à recorrente,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção),

composto por: S. Papasavvas, exercendo funções de presidente, N. Wahl e A. Dittrich (relator), juízes,

secretário: J. Plingers, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 6 de Maio de 2010,

profere o presente

Acórdão

 Factos

1.     Objecto do litígio

1        Nos termos da Decisão C(2008) 926 final da Comissão, de 11 de Março de 2008, relativa a um processo de aplicação do artigo 81.° [CE] e do artigo 53.° do Acordo EEE (Processo COMP/38.543 – Serviços de mudanças internacionais) (a seguir «Decisão»), cujo resumo se encontra publicado no Jornal Oficial da União Europeia de 11 de Agosto de 2009 (JO C 188, p. 16), a recorrente, Putters International NV, participou num cartel no mercado dos serviços de mudanças internacionais na Bélgica, fixando de forma directa e indirecta os preços, repartindo uma parte desse mercado e manipulando o processo de apresentação de propostas. A Comissão das Comunidades Europeias explica que o cartel vigorou durante quase 19 anos (de Outubro de 1984 a Setembro de 2003). Os seus membros fixaram preços, apresentaram propostas fictícias (denominadas «orçamentos de conveniência», a seguir «OC») aos seus clientes e ressarciram‑se reciprocamente das propostas recusadas, através de um sistema de compensações financeiras (a seguir «comissões»).

2.     Recorrente

2        A Putters International (a seguir «Putters» ou «recorrente») existe sob a forma de sociedade por acções desde 9 de Janeiro de 1997. No decurso do exercício encerrado em 31 de Dezembro de 2006, a Putters realizou um volume de negócios mundial consolidado de 3 950 907 euros.

3.     Procedimento administrativo

3        Nos termos da decisão, a Comissão instaurou o processo por iniciativa própria, porquanto dispunha de informação que indicava que determinadas empresas belgas, que actuavam no sector dos serviços de mudanças internacionais, participaram em acordos susceptíveis de serem abrangidos pela proibição prevista no artigo 81.° CE.

4        Assim, nos termos do artigo 14.°, n.° 3, do Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, Primeiro regulamento de execução dos artigos [81.°] e [82.°] do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22), foram realizadas, em Setembro de 2003, investigações nas instalações da Allied Arthur Pierre NV, da Interdean NV, da Transworld International NV e da Ziegler SA. Na sequência dessas investigações, a Allied Arthur Pierre apresentou um pedido de imunidade ou de redução da coima, nos termos da Comunicação da Comissão relativa à imunidade em matéria de coimas e à redução do seu montante nos processos relativos a cartéis (JO 2002, C 45, p.3), a seguir «comunicação sobre a cooperação de 2002»). A Allied Arthur Pierre admitiu a sua participação nos acordos sobre as comissões e sobre os OC, enumerou os concorrentes implicados, nomeadamente um concorrente anteriormente desconhecido dos serviços da Comissão, e entregou documentos que corroboravam as suas declarações orais.

5        Por força do disposto no artigo 18.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE] (JO 2003, L 1, p. 1), foram dirigidos, por escrito, diversos pedidos de informação às empresas implicadas nos acordos anticoncorrenciais, a concorrentes e a uma organização profissional. No dia 18 de Outubro de 2006, a comunicação de acusações foi adoptada e enviada a várias empresas. Todos os seus destinatários responderam às acusações. Os respectivos representantes, com excepção dos da Amertranseuro International Holdings Ltd, da Stichting Administratiekantoor Portelje, da Team Relocations Ltd e da Trans Euro Ltd, alegaram o seu direito de acesso aos documentos constantes do processo da Comissão, que apenas se encontravam acessíveis nas instalações desta. Foi‑lhes dado o acesso entre os dias 6 e 29 de Novembro de 2006. A audição ocorreu em 22 de Março de 2007.

6        Em 11 de Março de 2008, a Comissão adoptou a decisão.

4.     Decisão impugnada

7        A Comissão afirma que os destinatários da decisão, entre os quais a recorrente, participaram num cartel no mercado dos serviços de mudanças internacionais na Bélgica, ou imputa‑lhes a responsabilidade por esse cartel. Os participantes no cartel fixaram os preços, repartiram entre si clientes e manipularam a apresentação de propostas em concursos, pelo menos entre 1984 e 2003. Cometeram, por isso, uma infracção única e continuada ao artigo 81.° CE.

8        Segundo a Comissão, os serviços em causa incluem tanto a mudança de bens de pessoas singulares, que são particulares ou trabalhadores de uma empresa ou de uma instituição pública, como a mudança de bens de empresas ou de instituições públicas. Estas mudanças caracterizam‑se pelo facto de a Bélgica constituir o seu ponto de origem ou de destino. Atendendo, igualmente, a que todas as empresas de mudanças internacionais em questão se situam na Bélgica e a que os acordos, decisões e práticas concertadas tiveram lugar na Bélgica, a Comissão considerou que o centro geográfico dos acordos, decisões e práticas concertadas era a Bélgica.

9        O volume de negócios acumulado dos participantes no cartel dos serviços de mudanças internacionais na Bélgica foi avaliado pela Comissão em 41 milhões de euros no ano de 2002. Uma vez que esta avaliou a dimensão do sector em cerca de 83 milhões de euros, a quota acumulada das empresas em causa foi fixada em aproximadamente 50%.

10      A Comissão explica que os acordos, decisões e práticas concertadas visavam, nomeadamente, fixar e manter preços elevados e repartir, concomitante ou sucessivamente, o mercado, de diversas formas: acordos sobre preços, acordos sobre a repartição do mercado através de um sistema de orçamentos fictícios (os OC) e acordos sobre um sistema de compensações financeiras para as propostas recusadas ou em caso de não apresentação de propostas (as comissões).

11      A Comissão entende que, entre 1984 e o início dos anos 90, o cartel funcionou com base em acordos escritos de fixação de preços. Paralelamente, foram introduzidas as comissões e os OC. Uma comissão era um elemento oculto do preço final que o consumidor devia pagar, sem receber uma prestação equivalente. De facto, aquela representava uma quantia que a empresa de mudanças que obtinha o contrato para a mudança internacional devia aos concorrentes que não tinham obtido o contrato, quer aqueles tivessem também apresentado uma proposta quer se tivessem abstido de o fazer. Tratava‑se, assim, de uma espécie de compensação financeira para as empresas de mudanças que não tinham obtido o contrato. Os participantes no cartel facturavam‑se reciprocamente comissões sobre as propostas recusadas ou que se tinham abstido de apresentar, invocando serviços fictícios, e o montante dessas comissões era facturado aos clientes. A Comissão afirma que essa prática deve ser considerada uma fixação indirecta de preços para os serviços de mudanças internacionais na Bélgica.

12      Os participantes neste cartel cooperavam, igualmente, para apresentar os OC, que levavam os clientes, isto é, os empregadores que pagavam a mudança, a crer, erradamente, que podiam escolher segundo critérios baseados na concorrência. Um OC consistia num orçamento fictício entregue ao cliente ou à pessoa que se mudava por uma empresa de mudanças que não tinha a intenção de realizar a mudança. Com a entrega do OC, a empresa de mudanças que pretendia ganhar o contrato (a seguir «empresa solicitante») fazia com que a instituição ou a empresa em causa recebesse vários orçamentos, quer directa quer indirectamente, por intermédio da pessoa que pretendia mudar‑se. Para este efeito, a empresa solicitante indicava aos seus concorrentes o preço, a taxa de seguro e as despesas de armazenagem a que estes deviam facturar o serviço. Esse preço, mais elevado do que o preço pedido pela empresa solicitante, era seguidamente indicado no OC. De acordo com a Comissão, como o empregador normalmente escolhia a empresa de mudanças que oferecia o preço mais baixo, as empresas implicadas na mesma mudança internacional sabiam, em princípio, antecipadamente qual delas poderia ganhar o contrato para essa mudança.

13      Além disso, a Comissão realça que o preço pedido pela empresa solicitante podia ser mais elevado do que aquele que, de outro modo, seria pedido, porque as outras empresas implicadas na mesma mudança apresentavam OC nos quais figurava um preço indicado pela empresa solicitante. A título de exemplo, no considerando 233 da decisão, a Comissão cita uma mensagem de correio electrónico interna da Allied Arthur Pierre, de 11 de Julho de 1997, que refere: «[O] cliente pediu dois (OC), por isso podemos pedir um preço elevado.» Portanto, a Comissão refere que a apresentação de OC aos clientes constituía uma manipulação do processo de apresentação de propostas, de modo a que os preços indicados em todas as propostas fossem deliberadamente mais elevados do que o preço da empresa solicitante, e, em todo o caso, mais elevados do que seriam num ambiente concorrencial.

14      A Comissão sustenta que estes procedimentos perduraram até 2003. Em seu entender, estas actividades complexas tinham um mesmo objectivo de fixação dos preços e de repartição do mercado e, de, deste modo, falsear a concorrência.

15      Em conclusão, a Comissão adoptou o dispositivo da decisão, cujo artigo 1.° dispõe o seguinte:

«As seguintes empresas infringiram o artigo 81.°, n.° 1, [CE], fixando de forma directa e indirecta os preços dos serviços de mudanças internacionais na Bélgica, repartindo uma parte desse mercado e manipulando o processo de apresentação de propostas durante os períodos indicados:

[…]

f)       [Putters], de 14 de Fevereiro de 1997 a 4 de Agosto de 2003;

[…]»

16      Consequentemente, no artigo 2.°, alínea h), da decisão, a Comissão aplicou à recorrente uma coima de 395 000 euros.

17      Para calcular o montante das coimas, a Comissão aplicou, na decisão, a metodologia exposta nas suas orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.° 2, alínea a), do artigo 23.°, do Regulamento (CE) n.° 1/2003 (JO 2006, C 210, p. 2, a seguir «orientações de 2006»).

 Tramitação processual e pedidos das partes

18      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral, em 4 de Junho de 2008, a recorrente interpôs o presente recurso.

19      Com base no relatório do juiz‑relator, o Tribunal Geral (Oitava Secção) decidiu dar início à fase oral do processo. Na audiência, realizada em 6 de Maio de 2010, foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às questões colocadas pelo Tribunal.

20      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

–        anular o artigo 1.° da decisão, na medida em que esta disposição indica que a recorrente cometeu uma infracção ao artigo 81.°, n.° 1, CE;

–        anular o artigo 2.° da decisão, na medida em que lhe aplica uma coima;

–        se for caso disso, determinar a aplicação de uma coima claramente inferior ao montante fixado pela Comissão;

–        condenar a Comissão nas despesas.

21      A Comissão pede que o Tribunal se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a recorrente nas despesas.

 Questão de direito

22      A recorrente aduz cinco fundamentos com vista à anulação da decisão e à supressão ou redução da coima. O primeiro fundamento diz respeito à aplicação do artigo 81.° CE, sendo os restantes fundamentos relativos ao cálculo da coima.

1.     Quanto ao primeiro fundamento, relativo à participação da recorrente num cartel complexo e consolidado

 Argumentos das partes

23      A recorrente acusa a Comissão de ter cometido um erro manifesto de apreciação quando declarou que a recorrente participou num cartel complexo e consolidado, sendo que a recorrente apenas participou, de forma esporádica, em práticas relativas a comissões e OC.

24      Em primeiro lugar, a recorrente alega que os objectivos dos acordos sobre os preços, por um lado, e dos acordos sobre as comissões e os OC, por outro lado, eram totalmente diferentes. Os acordos sobre as comissões e os OC não visavam fixar os preços, nem mesmo de forma indirecta. Em segundo lugar, as partes no acordo sobre os preços, por um lado, e nos acordos sobre as comissões e os OC, por outro lado, não eram as mesmas. Em terceiro lugar, a recorrente sustenta que não participou num plano global. Embora, no que diz respeito a um pequeno grupo de empresas, tenha existido um cartel complexo, a recorrente não pertencia a esse núcleo duro e afirma desconhecer os acordos sobre os preços. Em quarto lugar, realça a importante diferença qualitativa entre a sua participação em determinadas práticas e a existência de um cartel complexo constituído por um número restrito de participantes.

25      Na réplica, a recorrente especifica que os dois objectivos distintos prosseguidos pelo cartel eram, por um lado, a manutenção de preços elevados para a prestação de serviços internacionais de mudanças na Bélgica e, por outro lado, a repartição do mercado desses serviços. Contudo, a participação esporádica da recorrente nas práticas relativas aos OC e às comissões não era susceptível de implicar um aumento do nível geral dos preços no mercado.

26      A Comissão contesta os argumentos da recorrente.

 Apreciação do Tribunal Geral

27      Através do presente fundamento, a recorrente contesta o carácter anticoncorrencial de determinadas práticas e alega que não participou na infracção única e continuada descrita na decisão. Por conseguinte, importa, antes de mais, analisar o carácter anticoncorrencial das comissões e dos OC, em seguida, recordar o conceito de infracção única e continuada e, por último, aplicar esses princípios à situação da recorrente.

 Quanto ao carácter anticoncorrencial das comissões e dos OC

28      A recorrente alega que os acordos sobre as comissões e os OC não visavam ‑ nem mesmo de forma indirecta ‑ fixar os preços. Esta alegação não pode ser acolhida. Quanto às comissões, o seu número e os seus níveis eram determinados previamente, antes de as empresas de mudanças apresentarem os seus orçamentos aos clientes. Por isso, as comissões provocaram, inevitavelmente, uma subida do nível dos preços, uma vez que as despesas por elas geradas recaíam sobre os clientes. No que diz respeito aos orçamentos, o preço indicado numa «falsa» proposta era determinado pela empresa que a tivesse solicitado e aceite pela empresa que apresentasse o OC, o que permitia à primeira fixar o seu preço a um nível mais elevado do que o que resultaria do livre jogo da concorrência, próximo do preço «falso» previsto num acordo comum. No considerando 233 da decisão, a Comissão demonstrou este efeito da prática dos OC nos preços (v. n.° 13 supra).

29      Quanto aos argumentos de que os OC eram apresentados apenas depois de o cliente ter feito a sua escolha, há que realçar que a pessoa que contacta o fornecedor, por exemplo, o agente da Comissão, não é o verdadeiro cliente das empresas de mudanças. Com efeito, compete à empresa ou instituição que paga a mudança escolher a empresa de mudanças. É precisamente com o objectivo de terem a possibilidade de fazer uma escolha que várias empresas e instituições públicas exigem a apresentação de várias propostas.

30      Por último, quanto ao argumento de que a participação da recorrente nas práticas relativas aos OC e às comissões não era susceptível de implicar um aumento do nível geral dos preços no mercado, há que recordar que, de acordo com jurisprudência constante, para aplicação do artigo 81.°, n.° 1, CE, a tomada em consideração dos efeitos concretos de um acordo é supérflua a partir do momento em que se verifique, como no caso em apreço, que este tem por objecto restringir, impedir ou falsear a concorrência (acórdão do Tribunal de Justiça de 13 de Julho de 1966, Consten e Grundig/Comissão, 56/64 e 58/64, Colect., p. 423, n.° 496, e acórdão do Tribunal Geral de 6 de Abril de 1995, Ferriere Nord/Comissão, T‑143/89, Colect., p. II‑917, n.° 30).

 Quanto ao conceito de infracção única e continuada

31      No seu acórdão de 8 de Julho de 1999, Comissão/Anic Partecipazioni (C‑49/92 P, Colect., p. I‑4125, n.° 82), o Tribunal de Justiça afirmou que era artificial subdividir um comportamento continuado, caracterizado por uma só finalidade, nele descortinando várias infracções distintas, quando se tratava, pelo contrário, de uma infracção única que se concretizou progressivamente tanto através de acordos como através de práticas concertadas.

32      Nestas circunstâncias, uma empresa que participou numa infracção através de comportamentos que lhe eram próprios, que integravam os conceitos de acordo ou de prática concertada com um objectivo anticoncorrencial, na acepção do artigo 81.°, n.° 1, CE, e que visavam contribuir para a realização da infracção, no seu conjunto, é igualmente responsável, relativamente a todo o período em que participou na referida infracção, pelos comportamentos postos em prática por outras empresas no âmbito da mesma infracção (acórdão Comissão/Anic Partecipazioni, n.° 31 supra, n.° 83).

33      Resulta deste acórdão que, para demonstrar a existência de uma infracção única e continuada, a Comissão tem de provar que a empresa pretendeu contribuir, através do seu próprio comportamento, para os objectivos comuns prosseguidos pelo conjunto dos participantes e que tinha conhecimento dos comportamentos materiais perspectivados ou postos em prática por outras empresas na prossecução dos mesmos objectivos, ou que, razoavelmente, os podia prever e estava pronta a aceitar o risco (acórdão Comissão/Anic Partecipazioni, n.° 31 supra, n.° 87).

34      De facto, os acordos, decisões e práticas concertadas apenas podem ser considerados elementos constitutivos de um acordo único anticoncorrencial se ficar demonstrado que se inscrevem num plano global que prossegue um objectivo comum. Além disso, só se a empresa, ao participar naqueles acordos, decisões e práticas concertadas, soubesse ou devesse saber que, ao proceder desse modo, se integrava no acordo único, poderá a sua participação nos primeiros constituir a expressão da sua adesão a este acordo (acórdão do Tribunal Geral de 15 de Março de 2000, Cimenteries CBR e o./Comissão, T‑25/95, T‑26/95, T‑30/95 a T‑32/95, T‑34/95 a T‑39/95, T‑42/95 a T‑46/95, T‑48/95, T‑50/95 a T‑65/95, T‑68/95 a T‑71/95, T‑87/95, T‑88/95, T‑103/95 e T‑104/95, Colect., p. II‑491, n.os 4027 e 4112).

35      Assim, resulta desta jurisprudência que devem verificar‑se três condições para provar a participação numa infracção única e continuada, designadamente a existência de um plano global que prossegue um objectivo comum, o contributo intencional da empresa para esse plano e o facto de ter conhecimento (provado ou presumido) dos comportamentos infractores dos restantes participantes.

36      É, pois, à luz destas condições que a decisão deve ser analisada.

 Quanto à qualificação do comportamento infractor em causa

–       Quanto à existência de um plano global que prossegue um objectivo comum

37      Em primeiro lugar, relativamente à existência de um plano global que prossegue um objectivo comum, a Comissão refere que as empresas em causa prosseguiam o objectivo económico de falsear a evolução dos preços.

38      Contudo, o conceito de objectivo comum não pode ser determinado por uma referência geral à distorção da concorrência no mercado ao qual a infracção diz respeito, uma vez que o impacto sobre a concorrência constitui, enquanto objecto ou efeito, um elemento constitutivo de qualquer comportamento abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 81.°, n.° 1, CE. Tal definição do conceito de objectivo comum poderia retirar ao conceito de infracção única e continuada parte do seu sentido, na medida em que implicaria que diversos comportamentos que afectam um sector económico, proibidos pelo artigo 81.°, n.° 1, CE, devessem ser sistematicamente classificados de elementos constitutivos de uma infracção única.

39      No caso em apreço, decorre da decisão que o objectivo comum, prosseguido de diferentes formas que se inscreviam num plano global, era fixar e manter um nível de preços elevado para a prestação de serviços de mudanças internacionais na Bélgica e repartir esse mercado. Este objectivo comum é descrito em pormenor nos considerandos 314 e 322 a 344 da decisão.

40      Ambas as práticas nas quais a recorrente participou, à semelhança do acordo escrito sobre os preços, prosseguiam um objectivo comum, a saber, restringir o jogo da concorrência entre os participantes no cartel, fixando um nível de preços mais elevado do que seria possível se os acordos não existissem. As comissões pagas aos concorrentes que não obtinham o contrato dissuadiam‑nos fortemente de propor um preço competitivo e, ao trocarem informações sobre as respectivas propostas no âmbito dos OC, os participantes no cartel restringiram a concorrência em matéria de preços. Além disso, o acordo sobre os OC permitia aos participantes manter os preços num nível mais elevado do que aconteceria caso aquele não existisse.

41      Por último, uma infracção única e continuada pode muito bem prosseguir o duplo objectivo de influenciar os preços e de repartir o mercado. Este argumento não é, pois, susceptível de pôr em causa a existência de tal infracção, tal como o argumento de que as partes no acordo sobre os preços, por um lado, e nos acordos sobre as comissões e os OC, por outro lado, não são as mesmas. De facto, a simples circunstância de cada empresa participar na infracção sob formas que lhe são próprias não afecta a qualificação da infracção como infracção única e continuada (acórdão do Tribunal Geral de 8 de Julho de 2008, BPB/Comissão, T‑53/03, Colect., p. II‑1333, n.° 260).

–       Quanto ao contributo intencional da recorrente para o plano global

42      Em segundo lugar, no que diz respeito ao contributo da recorrente para a infracção, é ponto assente que participou em duas das três práticas descritas na decisão, designadamente no acordo sobre as comissões e no acordo sobre os OC.

43      Em contrapartida, a recorrente nunca participou no acordo escrito sobre preços. Ora, se uma empresa que participou numa infracção através de comportamentos que lhe eram próprios pode ser considerada igualmente responsável pelos comportamentos postos em prática por outras empresas no âmbito da mesma infracção, tal só é válido relativamente ao período em que participou na referida infracção (acórdão Comissão/Anic Partecipazioni, n.° 31 supra, n.° 83). Por conseguinte, a recorrente não deve ser considerada responsável por comportamentos que tenham cessado mais de cinco anos antes da sua adesão aos acordos, decisões e práticas concertadas.

44      Contudo, na decisão, a Comissão constatou uma infracção da recorrente ao artigo 81.°, n.° 1, CE apenas relativamente ao período de 14 de Fevereiro de 1997 a 4 de Agosto de 2003, durante o qual a recorrente participou em todas as manifestações do cartel. Por conseguinte, a Comissão teve devidamente em conta o facto de aquela empresa só ter participado nos acordos, decisões e práticas concertadas a partir de 1997.

45      Além disso, as alegações da recorrente de que os acordos sobre as comissões e os OC não eram aplicados simultaneamente e de que os dispositivos sobre as comissões eram pontuais são irrelevantes, na medida em que, ao contrário do que a recorrente alega, ambas as práticas têm o mesmo objectivo.

–       Quanto ao conhecimento, por parte da recorrente, dos comportamentos infractores

46      Em terceiro lugar, quanto à questão de saber se a recorrente tinha conhecimento dos comportamentos infractores dos outros participantes no cartel, há que realçar que, durante a sua participação, aquela empresa não esteve reuniões com carácter anticoncorrencial. Contudo, o facto de a recorrente nunca ter participado nessas reuniões não é determinante, uma vez que a forma como o cartel funcionava mostra que não era necessário que os seus membros participassem nas reuniões para que fossem informados dos acordos sobre as comissões ou os OC, ou para neles participarem. Os acordos eram, geralmente, realizados por telefone, por correio electrónico e/ou por fax.

47      Além disso, a recorrente devia, necessariamente, ter conhecimento dos comportamentos infractores dos outros participantes, tendo em conta que a prática das comissões e dos OC assentava numa cooperação recíproca com parceiros que se alternavam em cada ocasião. De facto, este sistema assentava no princípio «do ut des», na medida em que cada empresa que pagava uma comissão ou que apresentava um OC esperava vir a beneficiar, ela própria, desse sistema e a obter comissões ou OC. Por isso, contrariamente ao que a recorrente alega, esses dispositivos não eram pontuais, mas apresentavam um nexo de complementaridade.

48      A alegação da recorrente de que não tinha conhecimento dos acordos escritos e de que não teve conhecimento da prática das comissões antes de 1997 não é pertinente, na medida em que a decisão considera que a recorrente é responsável pela infracção apenas a partir dessa data. O mais tardar em 1997, quando aceitou a sua primeira comissão, a recorrente tomou consciência de que nem todas as empresas exerciam as suas actividades em condições normais de concorrência. Por conseguinte, tinha conhecimento de comportamentos infractores, bem como do objectivo anticoncorrencial prosseguido pelas outras empresas.

49      Por conseguinte, assiste razão à Comissão para concluir que a recorrente tinha conhecimento ou devia ter tido conhecimento dos comportamentos infractores dos outros participantes nos acordos, decisões e práticas concertadas.

50      Decorre das considerações precedentes que foi de modo juridicamente correcto que a Comissão teve motivos para concluir que a recorrente participou na infracção única e continuada descrita na decisão. Portanto, o primeiro fundamento deve ser julgado improcedente.

2.     Quanto ao segundo fundamento, relativo ao cálculo do montante de base

 Argumentos das partes

51      Com o seu segundo fundamento, a recorrente alega que, no cálculo do montante de base da coima, a Comissão violou os princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento.

52      De acordo com a recorrente, o montante de base foi calculado de forma demasiado lata, dado que o seu volume de negócios relacionado directa ou indirectamente com a infracção é claramente inferior ao montante de 1 441 149 euros considerado pela Comissão. De facto, apenas 1% dos processos de mudanças internacionais tratados pela recorrente em 2002 foram afectados pela infracção. De acordo com a recorrente, não é o volume de negócios total dos serviços de mudanças internacionais que deve ser tido em conta, mas o volume de negócios relativo aos serviços que podem, razoavelmente, estar relacionados directa ou indirectamente com as infracções que cometeu.

53      A recorrente observa que o carácter desproporcionado e desigual do método seguido pela Comissão decorre, igualmente, da proporção entre o volume de negócios tido em conta e o número de infracções constatadas (18 476 euros no que diz respeito à recorrente contra cerca de 7 000 euros no que diz respeito à Allied Arthur Pierre, à Interdean e à Ziegler). Além disso, esse montante de 18 476 euros não é proporcional ao valor médio de um serviço de mudanças internacional prestado pela recorrente (4 650 euros).

54      A Comissão considera que os argumentos da recorrente são infundados ou mesmo inoperantes. Uma vez apurados pela Comissão os bens ou serviços directa ou indirectamente relacionados com a infracção, o valor das vendas de todos estes bens ou serviços pode ser tomado em consideração na determinação do montante de base da coima.

 Apreciação do Tribunal Geral

55      A recorrente contesta o volume de negócios relacionado directa ou indirectamente com a infracção que foi considerado pela Comissão.

56      Ao contrário do que a Comissão afirma, o presente fundamento não é inoperante. De facto, se, em vez do montante de 1 441 149 euros, a Comissão, no cálculo do montante de base da coima, tivesse considerado apenas o valor das vendas pretensamente afectadas pela infracção, designadamente, de acordo com a recorrente, 1% desse montante, ou seja, 14 411,49 euros, o montante de base seria de 18 374,65 euros e ficaria, por isso, bem abaixo do limite de 10% aplicado à recorrente no caso em apreço.

57      Porém, o argumento de que apenas deve ser tido em conta o valor das vendas efectivamente afectadas pela infracção assenta numa interpretação errada do n.° 13 das orientações de 2006. Este número prevê que:

«Para determinar o montante de base da coima a aplicar, a Comissão utilizará o valor das vendas de bens ou serviços, realizadas pela empresa, relacionadas directa ou indirectamente com a infracção […]».

58      Ao contrário do que a recorrente afirma, não decorre desta disposição que no cálculo do valor pertinente das vendas apenas possa ser levado em conta o valor das vendas resultante das mudanças realmente afectadas pelas práticas infractoras.

59      Assim, a redacção do n.° 13 das orientações de 2006 refere‑se às «vendas […] relacionadas directa ou indirectamente com a infracção» e não às «vendas afectadas pela infracção». A formulação do n.° 13 visa, por isso, as vendas realizadas no mercado pertinente. De resto, tal decorre muito claramente da versão alemã do n.° 6 das orientações de 2006, segundo a qual se trata de «Umsatz auf den vom Verstoß betroffenen Märkten» (vendas realizadas nos mercados aos quais respeita a infracção). A fortiori, o n.° 13 das orientações de 2006 não visa apenas os casos a respeito das quais a Comissão dispunha de provas documentais da infracção.

60      Esta interpretação é confortada pelo objectivo das normas comunitárias da concorrência. De facto, a interpretação proposta pela recorrente significa que, na determinação do montante de base das coimas a aplicar nos processos relativos a cartéis, a Comissão estava obrigada, em cada caso, a demonstrar quais as vendas individuais que foram afectadas pelo cartel. Tal obrigação nunca foi imposta pelos órgãos jurisdicionais da União e nada há que indique que a Comissão tivesse a intenção de impor a si própria tal obrigação nas orientações de 2006.

61      Por último, resulta de jurisprudência assente que a parte do volume de negócios obtida com as mercadorias objecto da infracção é de natureza a fornecer uma justa indicação da amplitude de uma infracção no mercado em causa (acórdão do Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 1983, Musique Diffusion française e o./Comissão, 100/80 a 103/80, Recueil p. 1825, n.° 121). Em particular, o volume de negócios realizado com os produtos que constituíram o objecto de uma prática restritiva constitui um critério objectivo, que dá uma justa medida do carácter nocivo desta prática para o funcionamento normal da concorrência (acórdãos do Tribunal Geral de 11 de Março de 1999, British Steel/Comissão, T‑151/94, Colect., p. II‑629, n.° 643, e de 8 de Julho de 2008, Saint‑Gobain Gyproc Belgium/Comissão, T‑50/03, não publicado na Colectânea, n.° 84). Este princípio foi retomado nas orientações de 2006.

62      Donde se conclui que os valores apresentados pela recorrente, a saber, a proporção entre o volume de negócios levado em conta e o número de infracções constatadas, são irrelevantes. Isto é assim tanto mais quanto, nos processos relativos a cartéis, que são secretos por natureza, é inevitável que não sejam descobertas determinadas peças que comprovem cada uma das manifestações das práticas anticoncorrenciais. No caso em apreço, é, efectivamente, impossível encontrar elementos relativos a cada uma das mudanças afectadas.

63       Por conseguinte, o segundo fundamento deve ser julgado improcedente.

3.     Quanto ao terceiro fundamento, relativo à falta de diferenciação

–       Argumentos das partes

64      No quadro do seu terceiro fundamento, a recorrente invoca uma violação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento no que diz respeito à aplicação uniforme da taxa de 17%, que reflecte a gravidade da infracção nos termos do n.° 19 das orientações de 2006.

65      A recorrente acusa a Comissão de ter calculado a coima aplicando a todas as empresas em causa a mesma taxa de 17% no que se refere à gravidade da infracção e ao montante suplementar a título de dissuasão, sem tomar em consideração o papel por elas desempenhado no cartel e a natureza das práticas nas quais participaram. O facto de todas as empresas serem, assim, tratadas de forma idêntica quando se encontravam em situações claramente distintas levou a que a recorrente fosse punida de forma proporcionalmente mais severa do que uma empresa relativamente à qual ficou provado que desempenhou um papel importante nos acordos, decisões e práticas concertadas. Assim, o rácio entre o montante de base da coima e o número de infracções constatadas é de 23 462 euros no que diz respeito à recorrente e de apenas 6 736 euros no que diz respeito à Allied Arthur Pierre. Quando uma infracção é cometida por várias entidades, a Comissão deve apreciar a gravidade relativa da participação de cada uma delas na infracção. De acordo com a recorrente, a diferença entre os papéis desempenhados pelas partes no cartel requer que a Comissão proceda a uma diferenciação.

66      A Comissão alega que a coima que acabou por ser aplicada à recorrente é já «extremamente reduzida» devido à aplicação do limite da coima. Assim, mesmo que o cálculo da coima tivesse sido ajustado pelas razões invocadas pela recorrente, tal não resultaria numa redução da coima. Quanto ao mais, a Comissão contesta as afirmações da recorrente.

 Apreciação do Tribunal Geral

67      Há que realçar, antes de mais, que a ideia de que deve existir uma relação linear entre o número de provas escritas da infracção cometida pela recorrente e a percentagem que reflecte a gravidade dessa infracção é errada. De facto, nos processos relativos a acordos, decisões e práticas concertadas, que são secretos por natureza, é inevitável que não sejam descobertas determinadas peças que comprovem determinadas manifestações das práticas anticoncorrenciais, nomeadamente quando a Comissão não tenha realizado inspecções nas instalações da recorrente.

68      Quanto à falta de diferenciação, importa remeter para as observações do Tribunal Geral no quadro do terceiro fundamento aduzido no processo Team Relocations/Comissão (T‑204/08, n.os 80 e seguintes do acórdão) e do segundo fundamento da Gosselin no processo Gosselin/Comissão (T‑208/08, n.os 124 e seguintes do acórdão). Contudo, há que observar que, no caso em apreço, a aplicação do limite de 10% já implicou uma redução significativa da coima. De facto, apesar de o montante de base da coima ter sido fixado em 1,83 milhões de euros, a coima aplicada ascende a 395 000 euros. Nestas circunstâncias, não é concebível que uma apreciação diferente da gravidade, que deveria anteceder a aplicação do limite, pudesse implicar uma redução da coima final. De facto, tendo em conta a natureza da infracção cometida pela recorrente, a proporção do valor das vendas, determinada em função do grau de gravidade da infracção, deve, nos termos do n.° 23 das orientações de 2006, situar‑se num nível «superior da escala». Ora, mesmo admitindo que o Tribunal Geral, no exercício da sua competência de plena jurisdição, considerasse que há que aplicar uma taxa de 15,1% no quadro da determinação da gravidade e no que diz respeito ao montante adicional, o montante de base da coima seria de 1,63 milhões de euros e, portanto, situar‑se‑ia sempre amplamente acima deste limite.

69      Na medida em que a recorrente alega que a gravidade relativa da sua participação é menor do que a das outras empresas envolvidas, a argumentação desenvolvida em apoio desta alegação não pode, por conseguinte, no caso em apreço, influir no montante final da coima aplicada.

70      Consequentemente, o terceiro fundamento deve ser julgado improcedente.

4.     Quanto ao quarto fundamento, relativo à imposição do limite máximo da coima

 Argumentos das partes

71      Com este fundamento, a recorrente alega uma violação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento, na medida em que a Comissão lhe aplicou o limite máximo da coima previsto no Regulamento n.° 1/2003, a saber, 10% do volume de negócios do exercício anterior.

72      De acordo com a recorrente, o facto de a aplicação do limite ter conduzido a uma redução tão substancial, a saber, de 1 830 000 euros para 395 000 euros, já revela, por si só, o carácter excessivo e desproporcionado da coima e da forma de cálculo da Comissão. Além disso, a Comissão violou os princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento quando aplicou o limite máximo da coima a um participante que desempenhou um papel limitado no cartel e teve uma modesta influência no mercado.

73      A Comissão entende que este fundamento está desprovido de autonomia.

 Apreciação do Tribunal Geral

74      É imperativo constatar que o presente fundamento, relativo à imposição do limite máximo da coima, não tem alcance autónomo relativamente aos restantes fundamentos a respeito do montante da coima. O simples facto de a coima que acabou por ser aplicada corresponder a 10% do volume de negócios da recorrente quando, no que diz respeito aos restantes participantes no cartel, a percentagem é mais baixa, não pode constituir uma violação do princípio da igualdade de tratamento ou da proporcionalidade. De facto, tal consequência é inerente à interpretação do limite de 10% como um mero limiar de nivelamento que é aplicado após uma eventual redução da coima devido a circunstâncias atenuantes ou ao princípio da proporcionalidade.

75      Contudo, a multiplicação do montante determinado em função do valor das vendas pelo número de anos de participação na infracção pode implicar que, no quadro das orientações de 2006, a aplicação do limite de 10% previsto no artigo 23.°, n.° 3, do Regulamento n.° 1/2003 constitua, doravante, a regra e não a excepção, no que diz respeito a qualquer empresa que opere principalmente num único mercado e que tenha participado durante mais de um ano num cartel. Neste caso, qualquer diferenciação em função da gravidade ou de circunstâncias atenuantes, normalmente já não será susceptível de se repercutir numa coima que tenha sido nivelada para ser reduzida a 10%. A falta de diferenciação no que diz respeito à coima final daí resultante representa uma problemática, à luz do princípio da individualização das penas e das sanções, que é inerente à nova metodologia. Pode vir a exigir que o Tribunal Geral exerça plenamente a sua competência de plena jurisdição em casos concretos, nos quais a simples aplicação das orientações de 2006 não permita uma diferenciação adequada. No caso em apreço, o Tribunal Geral considera, porém, que tal não acontece (v., neste sentido, igualmente n.os 81 e seguintes infra).

76      Por conseguinte, o quarto fundamento deve ser julgado improcedente.

5.     Quanto ao quinto fundamento, relativo às circunstâncias atenuantes

 Argumentos das partes

77      Com o seu último fundamento, a recorrente alega uma violação dos princípios da protecção da confiança legítima e da igualdade de tratamento e um erro de apreciação da Comissão, na medida em que não considerou qualquer circunstância atenuante.

78      A recorrente entende que preenche as condições necessárias para poder beneficiar de um determinado número de circunstâncias atenuantes definidas no n.° 29 das orientações de 2006. Em especial, deixou de ter qualquer envolvimento na prática das infracções desde as primeiras intervenções da Comissão; a sua participação na infracção foi muito limitada; cooperou efectivamente e transmitiu sempre todas as informações necessárias e úteis à Comissão. Além disso, não contestou os factos e demonstrou uma grande discrição durante o processo, reagindo de forma comedida à comunicação de acusações e não tendo participado na audição. A sua atitude foi conforme com o que se espera de uma empresa que pretende beneficiar de uma transacção ao abrigo da Comunicação da Comissão relativa à condução de procedimentos de transacção para efeitos da adopção de decisões nos termos do artigo 7.° e do artigo 23.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho nos processos de cartéis (JO 2008, C 167, p. 1) e do Regulamento (CE) n.° 622/2008 da Comissão, de 30 de Junho de 2008, que altera o Regulamento (CE) n.° 773/2004, no que se refere à condução de procedimentos de transacção nos processos de cartéis (JO L 171 de 1.7.2008, p. 3).

79      A Comissão contesta os argumentos da recorrente. Considera, além disso, que, de qualquer forma, este fundamento não pode ter qualquer utilidade para a recorrente, dado que, em consequência da aplicação do limite máximo, a coima aplicada à Putters já é «extremamente reduzida».

 Apreciação do Tribunal Geral

80      Tal como acontece no quadro do terceiro fundamento, a Comissão coloca em causa a utilidade do fundamento aduzido pela recorrente. A este respeito, há que observar que, no caso em apreço, uma redução da coima decorrente da tomada em consideração de circunstâncias atenuantes não poderia, efectivamente, implicar uma redução da coima final. De facto, uma vez que a aplicação do limite máximo de 10% já implicou uma redução muito significativa da coima, e tendo em conta a natureza das circunstâncias atenuantes invocadas pela recorrente, o Tribunal Geral considera, no exercício da sua competência de plena jurisdição, que a tomada em consideração dessas circunstâncias, que deveria anteceder a aplicação do limite, não poderia conduzir a uma redução da coima final. Assim, tal como a Comissão realçou correctamente, mesmo que o cálculo da coima fosse ajustado pelas razões invocadas pela recorrente, tal não resultaria numa redução da coima. Uma vez mais, tal consequência é inerente à interpretação do limite de 10% como mero limiar de nivelamento, que é aplicado após uma eventual redução da coima em virtude de circunstâncias atenuantes.

81      Contudo e para ser exaustivo, o Tribunal Geral analisará os argumentos invocados pela recorrente.

82      Em primeiro lugar, a recorrente realça que deixou de ter qualquer envolvimento na prática das infracções desde as primeiras intervenções da Comissão. É verdade que o n.° 29, primeiro travessão, das orientações de 2006 prevê que o montante de base da coima possa ser reduzido quando a empresa em causa prove que pôs termo à infracção desde as primeiras intervenções da Comissão. No entanto, o período seguinte especifica que isso «não será aplicado aos acordos ou práticas de natureza secreta (em especial os cartéis)». Por conseguinte, a Comissão agiu correctamente ao concluir que não se tratava de uma razão susceptível de justificar a redução da coima.

83      Em segundo lugar, no que diz respeito à afirmação da recorrente de que a sua participação na infracção foi muito limitada, há que realçar que, no que diz respeito a esta empresa, a Comissão dispõe de provas escritas relativas a 78 casos concretos de comissões e de OC. É verdade que a infracção em causa evoluiu ao longo do tempo e que os acordos escritos que foram aplicados durante a primeira fase da infracção foram depois abandonados. Consequentemente, a proporção do valor das vendas a considerar por força do n.° 19 das orientações de 2006 pode, em princípio, ser modulada no tempo. Esta circunstância pode, igualmente, justificar uma redução da coima em função de circunstâncias atenuantes.

84      Ora, há que considerar que os comportamentos nos quais a recorrente participou não representam infracções menos graves do que os acordos escritos de fixação dos preços ou a fixação ad hoc de preços para determinadas mudanças. De facto, ao contrário do que a recorrente afirma, os OC e as comissões tiveram, igualmente, efeitos sobre os preços (v. n.° 28 supra). De igual modo, nas circunstâncias do caso em apreço, o facto de a recorrente não ter participado nas reuniões com objectivo anticoncorrencial não é relevante para a apreciação da gravidade da infracção, uma vez que o cartel funcionava por meio de mecanismos que tornavam desnecessárias tais reuniões.

85      Em terceiro lugar, quanto à pretensa colaboração da recorrente com a Comissão e à não contestação dos factos, importa realçar que, de acordo com as observações que constam dos considerandos 592 e 594 da decisão, a colaboração da recorrente consistiu apenas em responder aos pedidos de informações sobre a estrutura da empresa e os seus dados económicos. A recorrente não forneceu, voluntariamente, elementos de prova relativos à infracção. Além disso, contrariamente à comunicação da Comissão de 18 de Julho de 1996 sobre a não aplicação ou a redução de coimas nos processos relativos a acordos, decisões e práticas concertadas (JO C 207, p. 4), a comunicação de 2002 sobre a cooperação não prevê a redução apenas com base na não impugnação da materialidade dos factos. Consequentemente, a Comissão tinha fundamento para concluir que nenhuma das circunstâncias era susceptível de justificar a concessão de uma redução do montante da coima.

86      Finalmente, em quarto lugar, a recorrente alega que a sua atitude foi conforme com o que se espera das empresas que pretendem beneficiar de uma transacção. Ora, há que observar que o Regulamento (CE) n.° 622/2008, relativo aos procedimentos de transacção nos processos de cartéis, só entrou em vigor em Julho de 2008, ao passo que a decisão data de Março de 2008, e que foi dado conhecimento à recorrente da comunicação de acusações em Outubro de 2006. Por conseguinte, aquele regulamento não é aplicável ao caso em apreço. Em todo o caso, não foi observado o procedimento previsto no referido regulamento.

87      Donde resulta que o último fundamento da recorrente deve ser julgado improcedente.

88      Visto que todos os fundamentos da recorrente foram julgados improcedentes, há, pois, que negar provimento ao recurso na sua totalidade.

 Quanto às despesas

89      Por força do disposto no artigo 87.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrente sido vencida, há que condená‑la nas despesas, em conformidade com os pedidos da Comissão.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção)

decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      A Putters International NV é condenada nas despesas.

Papasavvas

Wahl

Dittrich

Assinaturas


* Língua do processo: neerlandês.