Language of document : ECLI:EU:C:2013:813

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

10 de dezembro de 2013 (*)

«Reenvio prejudicial — Sistema europeu comum de asilo — Regulamento (CE) n.° 343/2003 — Determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo — Fiscalização do respeito dos critérios de responsabilidade pela análise do pedido de asilo — Alcance da fiscalização jurisdicional»

No processo C‑394/12,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Asylgerichtshof (Áustria), por decisão de 21 de agosto de 2012, entrado no Tribunal de Justiça em 27 de agosto de 2012, no processo

Shamso Abdullahi

contra

Bundesasylamt,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, K. Lenaerts, vice‑presidente, A. Tizzano, R. Silva de Lapuerta, T. von Danwitz, E. Juhász, A. Borg Barthet, C. G. Fernlund e J. L. da Cruz Vilaça, presidentes de secção, A. Rosas (relator), G. Arestis, J. Malenovský, A. Prechal, E. Jarašiūnas e C. Vajda, juízes,

advogado‑geral: P. Cruz Villalón,

secretário: K. Malacek, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 7 de maio de 2013,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação de S. Abdullahi, por E. Daigneault e R. Seidler, Rechtsanwälte,

¾        em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo helénico, por G. Papagianni, L. Kotroni e M. Michelogiannaki, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo francês, por S. Menez, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por G. Palatiello, avvocato dello Stato,

¾        em representação do Governo húngaro, por M. Fehér, G. Koós e K. Szíjjártó, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo do Reino Unido, por J. Beeko, na qualidade de agente, assistida por S. Lee, barrister,

¾        em representação do Governo suíço, por D. Klingele, na qualidade de agente,

¾        em representação da Comissão Europeia, por W. Bogensberger e M. Condou‑Durande, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 11 de julho de 2013,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto os artigos 10.°, 16.°, 18.° e 19.° do Regulamento (CE) n.° 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO L 50, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe S. Abdullahi, cidadã somali, ao Bundesasylamt (autoridade federal austríaca competente em matéria de asilo), a respeito da determinação do Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de asilo que apresentou junto dessa autoridade.

 Quadro jurídico

 Convenção de Genebra

3        A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra, em 28 de julho de 1951 [Recueil des traités des Nations unies, vol. 189, p. 150, n.° 2545 (1954), a seguir «Convenção de Genebra»], entrou em vigor em 22 de abril de 1954. Foi completada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, de 31 de janeiro de 1967 (a seguir «Protocolo de 1967»), que entrou em vigor em 4 de outubro de 1967.

4        Todos os Estados‑Membros são partes contratantes na Convenção de Genebra e no Protocolo de 1967, e bem assim a República da Islândia, o Principado do Listenstaine, o Reino da Noruega e a Confederação Suíça. A União Europeia não é parte contratante na Convenção de Genebra nem no Protocolo de 1967, mas os artigos 78.° TFUE e 18.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») preveem que o direito de asilo é assegurado, nomeadamente, no respeito dessa Convenção e desse protocolo.

 Direito da União

5        Com vista a realizar o objetivo de harmonização das suas políticas de asilo, fixado pelo Conselho Europeu de Estrasburgo de 8 e 9 de dezembro de 1989, os Estados‑Membros assinaram em Dublim, em 15 de junho de 1990, a Convenção sobre a determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num Estado‑Membro das Comunidades Europeias (JO 1997, C 254, p. 1, a seguir «Convenção de Dublim»). Esta Convenção entrou em vigor em 1 de setembro de 1997, para os doze signatários iniciais, em 1 de outubro de 1997, para a República da Áustria e o Reino da Suécia, e em 1 de janeiro de 1998, para a República da Finlândia.

6        As conclusões do Conselho Europeu de Tampere de 15 e 16 de outubro de 1999 previam, nomeadamente, o estabelecimento de um sistema europeu comum de asilo.

7        O Tratado de Amesterdão, de 2 de outubro de 1997, introduziu o artigo 63.° no Tratado CE, que atribuía competência à Comunidade Europeia para adotar as medidas recomendadas pelo Conselho Europeu de Tampere. A adoção do artigo desta disposição permitiu, nomeadamente, substituir, entre os Estados‑Membros, com exceção do Reino da Dinamarca, a Convenção de Dublim pelo Regulamento n.° 343/2003, que entrou em vigor em 17 de março de 2003.

8        Foi também com base neste fundamento jurídico que foram adotadas diversas diretivas, entre as quais:

¾        a Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, e relativas ao conteúdo da proteção concedida (JO L 304, p. 12; retificação no JO 2005, L 204, p. 24); esta diretiva foi substituída pela Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (JO L 337, p. 9);

¾        a Diretiva 2005/85/CE do Conselho, de 1 de dezembro de 2005, relativa a normas mínimas aplicáveis ao procedimento de concessão e retirada do estatuto de refugiado nos Estados‑Membros (JO L 326, p. 13; retificação no JO 2006, L 236, p. 36); esta diretiva foi substituída pela Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional (JO L 180, p. 60).

 Regulamento n.° 343/2003

9        Os considerandos 3 e 4 do Regulamento n.° 343/2003 têm a seguinte redação:

«(3)      As conclusões do Conselho de Tampere precisaram igualmente que um sistema de asilo europeu comum deve incluir, a curto prazo, um método claro e operacional para determinar o Estado responsável pela análise de um pedido de asilo.

(4)      Este método deve basear‑se em critérios objetivos e equitativos, tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa. Deve, nomeadamente, permitir uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de asilo.»

10      Em conformidade com o seu artigo 1.°, o Regulamento n.° 343/2003 estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro.

11      O artigo 3.°, n.° 1, deste regulamento prevê:

«Os Estados‑Membros analisarão todo o pedido de asilo apresentado por um nacional de um país terceiro a qualquer dos Estados‑Membros, quer na fronteira, quer no território do Estado‑Membro em causa. O pedido de asilo é analisado por um único Estado, que será aquele que os critérios enunciados no capítulo III designarem como responsável.»

12      Para permitir determinar o «Estado‑Membro responsável», na aceção do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 343/2003, os artigos 6.° a 14.° deste regulamento, que figuram no seu capítulo III, intitulado «Hierarquia dos critérios», enunciam um conjunto de critérios objetivos e hierarquizados em relação com os menores não acompanhados, a unidade das famílias, a emissão de uma autorização de residência ou de um visto, a entrada ou a residência ilícita num Estado‑Membro, a entrada regular num Estado‑Membro e os pedidos apresentados na zona de trânsito internacional de um aeroporto.

13      O artigo 10.° deste regulamento tem a seguinte redação:

«1.      Caso se comprove, com base nos elementos de prova ou nos indícios descritos nas duas listas referidas no n.° 3 do artigo 1[8].°, incluindo os dados referidos no capítulo III do Regulamento (CE) n.° 2725/2000 [do Conselho, de 11 de dezembro de 2000, relativo à criação do sistema ‘Eurodac’ de comparação de impressões digitais para efeitos da aplicação efetiva da Convenção de Dublim (JO L 316, p. 1)], que o requerente de asilo atravessou irregularmente a fronteira de um Estado‑Membro, por via terrestre, marítima ou aérea, e que entrou nesse Estado‑Membro a partir de um país terceiro, esse Estado‑Membro é responsável pela análise do pedido de asilo. Esta responsabilidade cessa 12 meses após a data em que teve lugar a passagem irregular da fronteira.

2.      Quando um Estado‑Membro não possa ser ou já não possa ser tido como responsável nos termos do n.° 1 do presente artigo, e caso se comprove, com base nos elementos de prova ou indícios descritos nas duas listas referidas no n.° 3 do artigo 18.°, que o requerente de asilo — que entrou nos territórios dos Estados‑Membros irregularmente, ou em circunstâncias que não é possível comprovar — permaneceu num Estado‑Membro durante um período ininterrupto de pelo menos cinco meses antes de apresentar o seu pedido, esse Estado‑Membro é responsável pela análise do pedido de asilo.

Se o requerente de asilo tiver permanecido durante períodos de pelo menos cinco meses em vários Estados‑Membros, o Estado‑Membro em que tal ocorreu mais recentemente é responsável pela análise do pedido de asilo.»

14      O artigo 13.° do referido regulamento prevê que, se não puder ser designado nenhum Estado‑Membro em conformidade com a hierarquia dos critérios enumerados nesse mesmo regulamento, o primeiro Estado‑Membro em que foi apresentado o pedido é, por defeito, responsável pela análise do pedido de asilo.

15      Nos termos do artigo 16.° do Regulamento n.° 343/2003:

«1.      O Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo por força do presente regulamento é obrigado a:

a)      Tomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 17.° a 19.°, o requerente de asilo que tenha apresentado um pedido noutro Estado‑Membro;

b)      Finalizar a análise do pedido de asilo;

[...]

2.      Se um Estado conceder um título de residência ao requerente de asilo, serão para ele transferidas as obrigações previstas no n.° 1.

3.      Cessam as obrigações previstas no n.° 1 se o nacional de um país terceiro tiver abandonado o território dos Estados‑Membros durante um período mínimo de três meses, a menos que seja titular de um título de residência válido emitido pelo Estado‑Membro responsável.

[...]»

16      Nos termos do artigo 17.° deste regulamento, o Estado‑Membro ao qual tenha sido apresentado um pedido de asilo e que considere que a responsabilidade pela análise desse pedido cabe a outro Estado‑Membro pode requerer a este último que proceda à tomada a cargo o mais rapidamente possível e, em qualquer caso, no prazo de três meses a contar da apresentação do pedido de asilo.

17      O artigo 18.° do referido regulamento tem a seguinte redação:

«1.      O Estado‑Membro requerido procederá às verificações necessárias e deliberará sobre o pedido, para efeitos de tomada a cargo dum requerente, no prazo de dois meses a contar da data de apresentação desse pedido.

2.      Na condução do processo de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de asilo estabelecido pelo presente regulamento, serão utilizados elementos de prova e indícios.

3.      Serão elaboradas, nos termos do n.° 2 do artigo 27.°, duas listas, a atualizar periodicamente com os elementos de prova e os indícios, de acordo com os seguintes critérios:

a)      Provas:

i)      Trata‑se das provas formais que estabelecem a responsabilidade de acordo com o presente regulamento, desde que não sejam refutadas por provas em contrário;

ii)       Os Estados‑Membros apresentarão ao Comité referido no artigo 27.° modelos dos diferentes tipos de documentos administrativos, de acordo com a tipologia estabelecida na lista de provas formais.

b)       Indícios:

i)       Trata‑se dos elementos indicativos que, embora refutáveis, poderão, consoante o valor probatório que lhes for atribuído, ser suficientes em certos casos;

ii)       Relativamente à responsabilidade pela análise do pedido de asilo, o seu valor probatório será apreciado caso a caso.

4.      A exigência de prova não deverá exceder o necessário à correta aplicação do presente regulamento.

5.      Na falta de uma prova formal, o Estado‑Membro requerido admitirá a sua responsabilidade se existirem indícios coerentes, verificáveis e suficientemente pormenorizados para estabelecer a responsabilidade.

[...]

7.       A ausência de resposta no termo do prazo de dois meses mencionado no n.° 1 e de um mês, previsto no n.° 6, equivale à aceitação do pedido e tem como consequência a obrigação de tomada a cargo da pessoa, incluindo as providências adequadas para a sua chegada.»

18      O artigo 19.°, n.os 1 a 4, do Regulamento n.° 343/2003 tem a seguinte redação:

«1.      Caso o Estado requerido aceite a tomada a cargo dum requerente, o Estado‑Membro em que o pedido de asilo foi apresentado notificará o requerente da sua decisão de não analisar o pedido e da obrigação de transferência do requerente para o Estado‑Membro responsável.

2.      A decisão a que se refere o n.° 1 deverá ser fundamentada e acompanhada das indicações de prazo relativas à execução da transferência, incluindo se necessário informações relativas ao local e à data em que o requerente deve apresentar‑se no caso de se dirigir para o Estado‑Membro responsável pelos seus próprios meios. A decisão é suscetível de recurso ou revisão. O recurso ou a revisão da decisão não têm efeito suspensivo sobre a execução da transferência, a não ser que os tribunais ou as autoridades competentes assim o decidam, especificamente, e a legislação nacional o permita.

3.      A transferência do requerente do Estado‑Membro em que o pedido de asilo foi apresentado para o Estado‑Membro responsável efetuar‑se‑á em conformidade com o direito nacional do [primeiro] Estado‑Membro, após concertação entre os Estados‑Membros envolvidos, logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada a cargo ou da decisão sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo.

[...]

4.      Se a transferência não for efetuada no prazo de seis meses, a responsabilidade incumbirá ao Estado‑Membro em que o pedido de asilo tiver sido apresentado. Este prazo poderá ser alargado até, no máximo, um ano se a transferência não tiver sido efetuada devido a detenção do candidato a asilo, ou 18 meses, em caso de ausência deste.»

19      O Regulamento n.° 343/2003 foi revogado e substituído pelo Regulamento (UE) n.° 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou um apátrida (reformulação) (JO L 180, p. 31).

 Regulamento (CE) n.° 1560/2003

20      O artigo 3.° do Regulamento (CE) n.° 1560/2003 da Comissão, de 2 de setembro de 2003, relativo às modalidades de aplicação do Regulamento n.° 343/2003 (JO L 222, p. 3), intitulado «Tratamento de um pedido para efeitos de tomada a cargo», tem a seguinte redação:

«1.       Os argumentos de direito e de facto expostos no pedido devem ser examinados à luz das disposições do Regulamento (CE) n.° 343/2003 e das listas dos elementos de prova e dos indícios constantes do Anexo II do presente regulamento.

2.       Independentemente dos critérios e das disposições do Regulamento (CE) n.° 343/2003 invocados no pedido, o Estado‑Membro requerido verifica, nos prazos fixados nos n.os 1 e 6 do artigo 18.° do referido regulamento, de maneira exaustiva e objetiva, e tendo em conta todas as informações de que disponha direta ou indiretamente, se a sua responsabilidade pelo exame do pedido de asilo está comprovada. Se as verificações do Estado‑Membro requerido demonstrarem a sua responsabilidade com base em pelo menos um dos critérios do Regulamento (CE) n.° 343/2003, o Estado‑Membro em causa deve reconhecer a sua responsabilidade na matéria.»

21      O artigo 4.° do Regulamento n.° 1560/2003, intitulado «Tratamento de um pedido para efeitos de retomada a cargo», dispõe:

«Quando um pedido para efeitos de retomada a cargo se baseia em dados fornecidos pela Unidade Central da Eurodac e verificados pelo Estado‑Membro requerente em conformidade com o n.° 6 do artigo 4.° do Regulamento (CE) n.° 2725/2000, o Estado‑Membro requerido reconhece a sua responsabilidade, exceto se as verificações a que tenha procedido demonstrarem que a sua responsabilidade cessou por força do n.° 5, segundo parágrafo, do artigo 4.° ou dos n.os 2, 3 ou 4 do artigo 16.° do Regulamento (CE) n.° 343/2003. A cessação da responsabilidade por força destas disposições apenas pode ser invocada com base em elementos de prova materiais ou declarações circunstanciadas e verificáveis do requerente de asilo.»

22      O artigo 5.° do referido regulamento, intitulado «Resposta negativa», prevê:

«1.       Quando o Estado‑Membro requerido considerar, após verificação, que os elementos apresentados não permitem concluir pela sua responsabilidade, a resposta negativa que transmite ao Estado‑Membro requerente deve ser devidamente fundamentada e explicar em pormenor as razões da recusa.

2.       Quando o Estado‑Membro requerente entender que a recusa que lhe foi comunicada se deve a um erro de apreciação ou quando puder invocar elementos complementares, pode solicitar um reexame do seu pedido. Esta faculdade deve ser exercida no prazo de três semanas subsequentes à receção da resposta negativa. O Estado‑Membro requerido deve esforçar‑se por responder no prazo de duas semanas. Em todo caso, este procedimento adicional não conduz à reabertura dos prazos previstos nos n.os 1 e 6 do artigo 18.° e no n.° 1, alínea b), do artigo 20.° do Regulamento (CE) n.° 343/2003.»

23      O artigo 14.° do referido regulamento, intitulado «Conciliação», está redigido nos seguintes termos:

«1.       Quando persiste um desacordo entre Estados‑Membros, quer quanto à necessidade de proceder a uma transferência ou a uma aproximação nos termos do artigo 15.° do Regulamento (CE) n.° 343/2003, quer sobre o Estado‑Membro em que convém reunir as pessoas em causa, os Estados‑Membros podem recorrer ao procedimento de conciliação previsto no n.° 2 do presente artigo.

2.      O procedimento de conciliação é desencadeado a pedido de um dos Estados‑Membros em desacordo e dirigido ao presidente do comité instituído pelo artigo 27.° do Regulamento (CE) n.° 343/2003. Ao aceitar recorrer ao procedimento de conciliação, os Estados‑Membros em causa comprometem‑se a respeitar a solução que for proposta.

O presidente do comité designa três membros do comité que representam três Estados‑Membros não implicados no caso. Estes recebem, por escrito ou oralmente, os argumentos das partes e, após deliberação, propõem uma solução no prazo de um mês, eventualmente na sequência de uma votação.

O presidente do comité, ou o seu suplente, preside às deliberações. Pode manifestar a sua opinião mas não participa na votação.

Independentemente de ser adotada ou rejeitada pelas partes, a solução proposta é definitiva, não podendo ser objeto de qualquer revisão.»

24      Este artigo 14.° foi revogado pelo Regulamento n.° 604/2013, mas o seu conteúdo é retomado no artigo 37.° do mesmo regulamento.

 Diretiva 2005/85

25      O considerando 29 da Diretiva 2005/85 prevê:

«A presente diretiva não abrange os procedimentos regidos pelo [Regulamento n.° 343/2003].»

 Direito austríaco

26      A Lei federal relativa ao asilo (Lei de 2005 relativa ao asilo) [Bundesgesetz über die Gewährung von Asyl (Asylgesetz 2005), BGB1. I, 100/2005] prevê, no seu § 18(1):

«O Bundesasylamt e o Asylgerichtshof [(tribunal em matéria de asilo)] devem assegurar oficiosamente, em todas as fases do processo, que sejam fornecidas as indicações úteis para efeitos da decisão ou que sejam completadas as informações em falta sobre as circunstâncias invocadas em apoio do pedido, que sejam identificados os documentos de prova dessas informações ou completadas as provas apresentadas e, de uma maneira geral, que sejam fornecidas todas as informações que se afigurem necessárias à fundamentação do pedido. Se necessário, os meios de prova são pedidos oficiosamente.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

27      S. Abdullahi é uma cidadã somali de 22 anos. Entrou na Síria, de avião, em abril de 2011 e, em seguida, transitou para a Turquia, no mês de julho do mesmo ano, antes de entrar ilegalmente na Grécia, de barco. S. Abdullahi não apresentou nenhum pedido de asilo ao Governo grego. Com a ajuda de passadores, chegou à Áustria, na companhia de outras pessoas, passando pela antiga República jugoslava da Macedónia, pela Sérvia e pela Hungria. As fronteiras de todos estes países foram transpostas ilegalmente. S. Abdullahi foi intercetada na Áustria, perto da fronteira húngara, por funcionários da polícia austríaca, que estabeleceram o itinerário realizado por S. Abdullahi, interrogando também outros participantes neste périplo.

28      Na Áustria, S. Abdullahi apresentou, em 29 de agosto de 2011, junto da entidade administrativa competente, o Bundesasylamt, um pedido de proteção internacional. Em 7 de setembro de 2011, o Bundesasylamt dirigiu à Hungria, nos termos do artigo 10.°, n.° 1, do Regulamento n.° 343/2003, um pedido de tomada a cargo, que esta aceitou por carta de 29 de setembro de 2011. A Hungria fundamentou essa decisão referindo que, de acordo com as informações prestadas por S. Abdullahi, conforme lhe tinham sido transmitidas pela República da Áustria, e com as informações gerais disponíveis sobre os itinerários seguidos pelos migrantes ilegais, havia elementos de prova suficientes de que a interessada tinha entrado ilegalmente na Hungria, proveniente da Sérvia, e que tinha seguido depois diretamente para a Áustria.

29      Por decisão de 30 de setembro de 2011, o Bundesasylamt indeferiu o pedido de asilo de S. Abdullahi, com base em inadmissibilidade, e decidiu a sua transferência para a Hungria.

30      S. Abdullahi interpôs recurso dessa decisão, ao qual o Asylgerichtshof deu provimento, por acórdão de 5 de dezembro de 2011, com base em vícios de processo. Com efeito, o recurso comportava críticas sobre a situação em matéria de asilo na Hungria à luz do artigo 3.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), que proíbe a tortura bem como os tratos desumanos ou degradantes, e o Bundesasylamt tinha apreciado o contexto vigente na Hungria com base em fontes desatualizadas.

31      Na sequência desta decisão do Asylgerichtshof, o Bundesasylamt deu seguimento ao procedimento administrativo e, por decisão de 26 de janeiro de 2012, voltou a indeferir o pedido de asilo, com base em inadmissibilidade, e, em simultâneo, decidiu transferir S. Abdullahi para a Hungria. Em apoio da sua decisão, o Bundesasylamt, tendo procedido a uma atualização dos dados de que dispunha em relação à Hungria, considerou, nomeadamente, que a transferência de S. Abdullahi para a Hungria não afetava os seus direitos decorrentes do artigo 3.° da CEDH.

32      Esta decisão foi objeto de novo recurso no Asylgerichtshof, interposto em 13 de fevereiro de 2012, nos termos do qual S. Abdullahi alegou, pela primeira vez, que o Estado‑Membro responsável pelo seu pedido de asilo não era a Hungria, mas a República Helénica. Todavia, sustentou que este último Estado‑Membro não respeitava os direitos humanos, em determinados aspetos, pelo que incumbia às autoridades austríacas conduzir a análise do seu pedido de asilo.

33      Estas autoridades não deram início a nenhum processo de consulta com a República Helénica nem apresentaram um pedido de tomada a cargo neste mesmo Estado‑Membro.

34      Por acórdão de 14 de fevereiro de 2012, o Asylgerichtshof negou provimento ao recurso de S. Abdullahi, tendo declarado que, nos termos do artigo 10.°, n.° 1, do Regulamento n.° 343/2003, a Hungria era o Estado‑Membro responsável pelo tratamento do pedido de asilo.

35      S. Abdullahi recorreu para o Verfassungsgerichtshof (Tribunal Constitucional), reiterando, no essencial, o argumento de que o Estado‑Membro responsável pelo seu pedido de asilo não era a Hungria, mas sim a República Helénica. Por acórdão de 27 de junho de 2012 (U 350/12‑12), o Verfassungsgerichtshof anulou o referido acórdão do Asylgerichtshof de 14 de fevereiro de 2012. Essa decisão foi fundamentada por referência a um outro acórdão, proferido no mesmo dia no âmbito de um processo semelhante (acórdão U 330/12‑12). Neste último acórdão, o Verfassungsgerichtshof considerou «duvidosa» a tese em que o Asylgerichtshof tinha baseado a sua decisão de confirmar a transferência de S. Abdullahi para a Hungria, a saber, que a responsabilidade estabelecida com base no artigo 10.°, n.° 1, do Regulamento n.° 343/2003 (a da República Helénica) se extingue pela permanência de uma pessoa num país terceiro, mesmo por um período curto (neste caso, a antiga República jugoslava da Macedónia e a Sérvia). Segundo o Verfassungsgerichtshof, embora o Asylgerichtshof, para declarar que a Hungria era o Estado‑Membro responsável, tenha justificado a sua decisão à luz das doutrinas alemã e austríaca a respeito do Regulamento n.° 343/2003, alguns autores austríacos também defendem a tese contrária. O facto de S. Abdullahi ter prosseguido o seu itinerário em direção a um país terceiro só extinguia a obrigação de tomada a cargo da República Helénica, prevista no artigo 16.°, n.° 3, do Regulamento n.° 343/2003, se a pessoa em causa tivesse abandonado o território dos Estados‑Membros por um período mínimo de três meses. Por outro lado, a referência ao acórdão do Tribunal de Justiça de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, Colet., p. I‑13905), não é pertinente, na medida em que a situação de facto subjacente a esse acórdão não é comparável com a situação de facto em causa no processo principal.

36      Considerando que a questão devia ser objeto de um reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça, o Verfassungsgerichtshof anulou o acórdão do Asylgerichtshof com o fundamento de que esse órgão jurisdicional violou o direito de S. Abdullahi a um processo perante o juiz designado por lei (princípio dito «do juiz legal»).

37      Esse acórdão do Verfassungsgerichtshof de 27 de junho de 2012 foi notificado ao Asylgerichtshof em 10 de julho de 2012. O processo está, desde então, pendente no Asylgerichtshof.

38      Atendendo a que o Verfassungsgerichtshof pôs em dúvida a importância conferida à aceitação por um Estado‑Membro da sua responsabilidade, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em primeiro lugar, a esse respeito. Observa que uma fiscalização da responsabilidade do Estado‑Membro imporia uma obrigação de análise muito ampla, incompatível com a rapidez exigida para determinar o Estado‑Membro competente. Por outro lado, embora o Regulamento n.° 343/2003 preveja o direito de o requerente de asilo contestar a sua transferência, este regulamento não fundamenta o direito a um processo de asilo num determinado Estado‑Membro, à escolha do requerente. Segundo o regime instituído pelo referido regulamento, só os Estados‑Membros dispõem, entre eles, de direitos subjetivos — suscetíveis de recurso — no que concerne ao respeito dos critérios de responsabilidade. O Asylgerichtshof sublinha também o facto de que pode acontecer, na prática, que uma decisão de um órgão jurisdicional nacional que reconheça outro Estado‑Membro competente já não seja exequível em relação a esse Estado‑Membro, em razão dos prazos fixados pelo mesmo regulamento.

39      Em segundo lugar, o Asylgerichtshof interroga‑se sobre a eventual responsabilidade da República Helénica, caso a aceitação da Hungria não deva ser tida em conta. Remetendo para os n.os 44 e 45 do acórdão de 3 de maio de 2012, Kastrati e o. (C‑620/10), o órgão jurisdicional de reenvio conclui que o artigo 16.°, n.° 3, do Regulamento n.° 343/2003, nos termos do qual as obrigações do Estado‑Membro responsável cessam se o requerente de asilo tiver abandonado o território dos Estados‑Membros durante um período mínimo de três meses, não é aplicável quando ainda não existe pedido de asilo. Além disso, salienta que esta disposição figura entre as disposições processuais do referido regulamento, e não no capítulo III do mesmo. O órgão jurisdicional de reenvio observa também que, do mesmo modo, o Regulamento n.° 1560/2003 só refere o artigo 16.°, n.° 3, do Regulamento n.° 343/2003 no seu artigo 4.°, relativo ao pedido para efeitos de retomada a cargo, e não no seu artigo 3.°, relativo ao pedido para efeitos de tomada a cargo. Por último, este órgão jurisdicional sublinha que o facto de dever verificar o itinerário seguido pelo requerente de asilo e as suas datas de entrada e saída do território da União pode levar tempo e colocar questões de prova delicadas, o que é suscetível de prolongar a duração do processo e a fase de incerteza para o requerente de asilo.

40      Em terceiro e último lugar, no caso de se vir a considerar que, no processo principal, a República Helénica era o Estado competente, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que se a transferência para a República Helénica não for possível em razão de deficiências estruturais do regime de asilo nesse Estado, isso confere aos requerentes de asilo a possibilidade de escolherem um Estado‑Membro de destino materialmente responsável pela tramitação do processo de asilo, o que seria contrário aos objetivos do Regulamento n.° 343/2003. O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se se, à luz destas considerações, a República Helénica pode ser afastada à partida, isto é, desde a fase de determinação do Estado‑Membro responsável. Outra possibilidade seria ter em consideração a Hungria aquando do exame dos «restantes critérios», expressão que figura no n.° 96 do acórdão N. S. e o., já referido, e que suscita questões.

41      À luz destes elementos, o Asylgerichtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 19.° do Regulamento n.° 343/2003, em conjugação com o artigo 18.° do mesmo regulamento, ser interpretado no sentido de que, através da aceitação, o Estado‑Membro se torna, nos termos do artigo 16.°, n.° 1, do Regulamento n.° 343/2003, responsável pela análise do pedido de asilo, ou deve a instância nacional de recurso fixar de forma vinculativa, nos termos do direito da União, a responsabilidade desse outro Estado‑Membro pelo processo objeto do recurso, quando no âmbito de um processo de recurso previsto no artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003 — não obstante a referida aceitação — chegar à conclusão de que é outro Estado o responsável ao abrigo das disposições do capítulo III do Regulamento n.° 343/2003 (mesmo quando nesse Estado‑Membro não tenha sido apresentado um pedido de tomada a cargo ou que o Estado‑Membro não tenha declarado a sua aceitação)? Neste caso, os requerentes de asilo têm direito a que o seu pedido de asilo seja analisado por um determinado Estado‑Membro cuja responsabilidade tenha sido determinada segundo estes critérios de competência?

2)      Numa situação em que um nacional de um país terceiro, proveniente de um país terceiro, entra ilegalmente no primeiro Estado‑Membro, nele não apresentando um pedido de asilo, saindo em seguida para outro país terceiro e, após um período inferior a três meses, entra ilegalmente noutro Estado‑Membro da UE (‘segundo Estado‑Membro’) proveniente de um país terceiro, dirigindo‑se deste segundo Estado‑Membro diretamente para um terceiro Estado‑Membro e aí apresentando o seu primeiro pedido de asilo, tendo decorrido desde a entrada ilegal no primeiro Estado‑Membro menos de 12 meses, deve o artigo 10.°, n.° 1, do Regulamento n.° 343/2003, ser interpretado no sentido de que o Estado‑Membro no qual ocorreu a primeira entrada ilegal (‘primeiro Estado‑Membro’) é obrigado a reconhecer a sua responsabilidade para analisar o pedido de asilo de um nacional de um país terceiro?

3)      Independentemente da resposta à segunda questão, no caso de o sistema de asilo do ‘primeiro Estado‑Membro’ ter comprovadas deficiências estruturais, semelhantes às descritas no acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH)[, M.S.S. c. Bélgica e Grécia] de 21.01.2011, 30.696/09, justifica‑se uma determinação diferente do Estado‑Membro responsável em primeiro lugar, na aceção do Regulamento n.° 343/2003, não obstante o acórdão do [Tribunal de Justiça, N. S. e o., já referido]? Pode, em particular, partir‑se do pressuposto de que a simples permanência num destes Estados‑Membros é inadequada para desencadear a responsabilidade prevista no artigo 10.° do Regulamento n.° 343/2003?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

42      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003 deve ser interpretado no sentido de que obriga os Estados‑Membros a preverem que o requerente de asilo tem o direito de pedir, no âmbito de um recurso de uma decisão de transferência ao abrigo do artigo 19.°, n.° 1, desse regulamento, a fiscalização da determinação do Estado‑Membro responsável, invocando uma aplicação errada dos critérios que figuram no capítulo III do referido regulamento.

 Observações submetidas ao Tribunal de Justiça

43      S. Abdullahi e a Comissão Europeia alegam que o órgão de recurso deve fiscalizar o respeito dos critérios de responsabilidade. Remetem para o considerando 4 do Regulamento n.° 343/2003, segundo o qual o método de determinação do Estado‑Membro responsável se deve basear «em critérios objetivos e equitativos, tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa».

44      Segundo S. Abdullahi, a fixação, no Regulamento n.° 343/2003, de critérios objetivos de determinação do Estado‑Membro responsável cria direitos subjetivos a favor dos requerentes de asilo, os quais podem pedir que se proceda à fiscalização da legalidade da aplicação desses critérios, incluindo das condições de facto que põem termo à responsabilidade. Considera que esta interpretação responde às exigências do artigo 47.° da Carta. Por outro lado, entende que o Regulamento n.° 343/2003 não prevê que essa fiscalização da legalidade deva ser restrita, por exemplo, limitando‑a a uma fiscalização da arbitrariedade.

45      Reportando‑se também ao artigo 47.° da Carta, a Comissão sustenta que o princípio da efetividade do recurso, previsto no artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003, implica que o requerente de asilo pode pedir a fiscalização da legalidade da sua transferência para o Estado‑Membro requerido, o que inclui a questão de saber se a hierarquia dos critérios ou os prazos previstos no Regulamento n.° 343/2003 foram respeitados. O requerente de asilo pode também expor os motivos que levam a crer que poderá sofrer um trato desumano ou degradante, na aceção do artigo 4.° da Carta, no Estado‑Membro para onde for transferido. Se o órgão de recurso chegar à conclusão de que a decisão recorrida não é legal, deverá alterá‑la ou anulá‑la e designar, ele próprio, o Estado‑Membro que considera responsável pela análise do pedido de asilo. O Estado‑Membro onde o pedido de asilo foi apresentado deverá, então, reiniciar o procedimento previsto nos artigos 17.° a 19.° do Regulamento n.° 343/2003.

46      Pelo contrário, os Governos helénico, húngaro, do Reino Unido e suíço consideram que, em conformidade com o artigo 19.°, n.° 1, do Regulamento n.° 343/2003, o recurso só pode ter por objeto a decisão de não analisar o pedido e a obrigação de transferência. Pode basear‑se unicamente na violação de direitos concretos, como a violação de direitos fundamentais no Estado‑Membro de transferência ou a proteção da unidade da família. Os Governos helénico, húngaro e do Reino Unido sublinham os atrasos que resultariam de investigações sobre o Estado‑Membro responsável ou de consultas a outro Estado‑Membro, quando o Regulamento n.° 343/2003 insiste na rapidez do tratamento dos pedidos de asilo. Tais investigações não se justificam, uma vez que o objetivo do Regulamento n.° 343/2003, isto é, a determinação de um Estado responsável pelo tratamento do pedido de asilo, é alcançado com a aceitação por um Estado‑Membro.

 Resposta do Tribunal de Justiça

47      A questão tem por objeto a interpretação do Regulamento n.° 343/2003 e os direitos dos requerentes de asilo decorrentes desse regulamento, que constitui um dos elementos do sistema europeu comum de asilo, adotado pela União Europeia.

48      A este propósito, importa recordar que, nos termos do artigo 288.°, segundo parágrafo, TFUE, o regulamento tem um alcance geral, é obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados‑Membros. Por conseguinte, devido à sua própria natureza e à sua função no sistema das fontes de direito da União, pode conferir aos particulares direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais têm a obrigação de proteger (acórdãos de 10 de outubro de 1973, Variola, 34/73, Recueil, p. 981, n.° 8, Colet., p. 365; de 17 de setembro de 2002, Muñoz e Superior Fruiticola, C‑253/00, Colet., p. I‑7289, n.° 27; e de 14 de julho de 2011, Bureau national interprofessionnel du Cognac, C‑4/10 e C‑27/10, Colet., p. I‑6131, n.° 40).

49      Importa verificar em que medida as disposições que figuram no capítulo III do Regulamento n.° 343/2003 conferem, efetivamente, aos requerentes de asilo direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais têm a obrigação de proteger.

50      Antes de mais, cumpre salientar que o Regulamento n.° 343/2003 prevê um único recurso, nos termos do seu artigo 19.°, n.° 2. Esta disposição estabelece a possibilidade de um requerente de asilo interpor recurso ou apresentar um pedido de revisão da decisão de não analisar um pedido e de transferir o requerente para o Estado‑Membro responsável. Por outro lado, a Diretiva 2005/85, que, no seu capítulo V, descreve designadamente os procedimentos de recurso no âmbito da análise dos pedidos de asilo, refere, no seu considerando 29, que não abrange os procedimentos regidos pelo Regulamento n.° 343/2003.

51      Quanto ao alcance do recurso previsto no artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003, há que interpretar este regulamento não só à luz da redação das disposições que o compõem mas também à luz da sua sistemática geral, dos seus objetivos e do seu contexto, designadamente da evolução que conheceu relacionada com o sistema em que se inscreve.

52      A este propósito, há que recordar que o sistema europeu comum de asilo foi concebido num contexto que permitia supor que o conjunto dos Estados que nele participam, quer sejam Estados‑Membros ou Estados terceiros, respeitam os direitos fundamentais, incluindo os direitos que têm o seu fundamento na Convenção de Genebra e no Protocolo de 1967, bem como na CEDH, e que existe entre os Estados‑Membros, a este respeito, confiança mútua (acórdão N. S. e o., já referido, n.° 78).

53      Foi precisamente devido a este princípio de confiança mútua que o legislador da União adotou o Regulamento n.° 343/2003, com vista a racionalizar o tratamento dos pedidos de asilo e a evitar o estrangulamento do sistema devido à obrigação de as autoridades dos Estados tratarem pedidos múltiplos apresentados pelo mesmo requerente, a aumentar a segurança jurídica no que diz respeito à determinação do Estado responsável pelo tratamento do pedido de asilo e, assim, a evitar o «forum shopping», sendo o objetivo principal geral acelerar o tratamento dos pedidos, no interesse dos requerentes de asilo e dos Estados participantes (acórdão N. S. e o., já referido, n.° 79).

54      Por outro lado, as regras aplicáveis aos pedidos de asilo foram, em larga medida, harmonizadas a nível a União, designadamente, em último lugar, pelas Diretivas 2011/95 e 2013/32.

55      Daqui se conclui que o pedido de um requerente de asilo será analisado, em larga medida, segundo as mesmas regras, qualquer que seja o Estado‑Membro responsável pela análise desse pedido nos termos do Regulamento n.° 343/2003.

56      Acresce que algumas disposições dos Regulamentos n.os 343/2003 e 1560/2003 atestam a intenção do legislador da União de estabelecer, no que respeita à determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo, regras organizacionais que regulem as relações entre os Estados‑Membros, à semelhança da Convenção de Dublim (v., por analogia, acórdãos de 13 de junho de 2013, Unanimes e o., C‑671/11 a C‑676/11, n.° 28, e Syndicat OP 84, C‑3/12, n.° 29).

57      Assim, o artigo 3.°, n.° 2 (cláusula dita «de soberania»), e o artigo 15.°, n.° 1 (cláusula humanitária), do Regulamento n.° 343/2003 visam preservar as prerrogativas dos Estados‑Membros no exercício do direito de conceder asilo, independentemente do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido, em aplicação dos critérios definidos nesse regulamento. Visto serem facultativas, essas disposições atribuem um poder de apreciação alargado aos Estados‑Membros (v., neste sentido, acórdãos N. S. e o., já referido, n.° 65, e de 6 de novembro de 2012, K, C‑245/11, n.° 27).

58      Do mesmo modo, o artigo 23.° do Regulamento n.° 343/2003 permite que os Estados‑Membros estabeleçam entre si, bilateralmente, acordos administrativos sobre as regras práticas de aplicação desse regulamento, que podem, designadamente, versar sobre a simplificação dos procedimentos e a redução dos prazos aplicáveis à transmissão e à análise dos pedidos de tomada a cargo ou de retomada a cargo de requerentes de asilo. Além disso, o artigo 14.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1560/2003 — atual artigo 37.° do Regulamento n.° 604/2013 — prevê que, em diversas situações de desacordo quanto à aplicação do Regulamento n.° 343/2003, os Estados‑Membros podem recorrer a um procedimento de conciliação em que participam membros de um comité que representem três Estados‑Membros não envolvidos no caso, mas no âmbito do qual não está previsto que o requerente de asilo seja sequer ouvido.

59      Por último, um dos principais objetivos do Regulamento n.° 343/2003 é, como resulta dos seus considerandos 3 e 4, o estabelecimento de um método claro e operacional que permita uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável pelo tratamento de um pedido de asilo, a fim de garantir um acesso efetivo aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado e não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos.

60      No caso em apreço, a decisão posta em causa é a do Estado‑Membro em que foi apresentado o pedido de asilo da recorrente no processo principal, de não analisar o referido pedido e de transferir essa pessoa para outro Estado‑Membro. Este segundo Estado‑Membro aceitou a tomada a cargo da recorrente no processo principal, em aplicação do critério constante do artigo 10.°, n.° 1, do Regulamento n.° 343/2003, a saber, na qualidade de Estado‑Membro da primeira entrada da recorrente no processo principal no território da União. Numa situação deste tipo, em que o Estado‑Membro aceita a tomada a cargo, e atendendo aos elementos referidos nos n.os 52 e 53 do presente acórdão, o requerente de asilo só pode pôr em causa a escolha desse critério se invocar a existência de deficiências sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo nesse Estado‑Membro que constituam razões sérias e verosímeis de que esse requerente corre um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.° da Carta (v., neste sentido, acórdãos N. S. e o., já referido, n.os 94 e 106, e de 14 de novembro de 2013, Puid, C‑4/11, n.° 30).

61      Ora, como resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça, nenhum indício permite considerar que é esse o caso no âmbito do litígio no processo principal.

62      Tendo em conta estas considerações, importa responder à primeira questão que o artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003 deve ser interpretado no sentido de que, no caso de um Estado‑Membro ter aceitado a tomada a cargo de um requerente de asilo, em aplicação do critério constante do artigo 10.°, n.° 1, do referido regulamento, a saber, na qualidade de Estado‑Membro da primeira entrada do requerente de asilo no território da União, este só pode pôr em causa a escolha desse critério se invocar a existência de deficiências sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo nesse Estado‑Membro que constituam razões sérias e verosímeis de que o referido requerente corre um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.° da Carta.

 Quanto à segunda e terceira questões

63      Tendo as duas outras questões prejudiciais sido colocadas na hipótese de se declarar que o requerente de asilo tinha direito a exigir a fiscalização da determinação do Estado‑Membro responsável pelo seu pedido de asilo, não há que lhes dar resposta.

 Quanto às despesas

64      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O artigo 19.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro, deve ser interpretado no sentido de que, no caso de um Estado‑Membro ter aceitado a tomada a cargo de um requerente de asilo, em aplicação do critério constante do artigo 10.°, n.° 1, do referido regulamento, a saber, na qualidade de Estado‑Membro da primeira entrada do requerente de asilo no território da União Europeia, este só pode pôr em causa a escolha desse critério se invocar a existência de deficiências sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo nesse Estado‑Membro que constituam razões sérias e verosímeis de que o referido requerente corre um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.