Language of document : ECLI:EU:C:2008:726

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

16 de Dezembro de 2008 (*)

«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Artigo 288.°, segundo parágrafo, CE – Acção baseada no enriquecimento sem causa da Comunidade – Programas de assistência comunitária – Irregularidades cometidas pelo co‑contratante da Comissão – Serviços fornecidos por um subcontratante – Não pagamento – Riscos inerentes às actividades económicas – Princípio da protecção da confiança legítima – Dever de diligência da administração comunitária»

No processo C‑47/07 P,

que tem por objecto um recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância, interposto ao abrigo do artigo 56.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, entrado em 31 de Janeiro de 2007,

Masdar (UK) Ltd, com sede em Eversley (Reino Unido), representada por A. P. Bentley, QC, e P. Green, barrister,

recorrente,

sendo a outra parte no processo:

Comissão das Comunidades Europeias, representada por J. Enegren e M. Wilderspin, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, A. Rosas, K. Lenaerts, M. Ilešič (relator) e T. von Danwitz, presidentes de secção, A. Tizzano, J. N. Cunha Rodrigues, R. Silva de Lapuerta, J. Malenovský, A. Arabadjiev e C. Toader, juízes,

advogado-geral: J. Mazák,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 20 de Fevereiro de 2008,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 12 de Junho de 2008,

profere o presente

Acórdão

1        No seu recurso, a Masdar (UK) Ltd (a seguir «Masdar») pede a anulação do acórdão do Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias de 16 de Novembro de 2006, Masdar (UK)/Comissão (T-333/03, Colect., p. II‑4377, a seguir «acórdão recorrido»), que julgou improcedente a acção que intentara para obter a reparação dos prejuízos que alega ter sofrido pelo não pagamento dos serviços por si fornecidos no âmbito de projectos de assistência comunitária.

 Antecedentes do litígio

2        No início de 1994, no quadro do programa comunitário de assistência técnica à Comunidade de Estados Independentes (TACIS), foi celebrado um contrato entre a Comissão das Comunidades Europeias e a sociedade Hellenic Management Investment Consultants SA (a seguir «Helmico») para a execução de um projecto na Moldova. Este contrato (a seguir «contrato moldavo») fazia parte de um projecto intitulado «Assistência à organização de uma associação de empresários agrícolas privados» (a seguir «projecto moldavo»).

3        Em Abril de 1996, a Helmico e a Masdar celebraram um contrato mediante o qual a primeira subcontratava na segunda o fornecimento de determinados serviços previstos no contrato moldavo.

4        Em 27 de Setembro de 1996, foi celebrado outro contrato entre a Comissão e a Helmico. Nos termos deste contrato (a seguir «contrato russo»), a Helmico comprometeu‑se a fornecer serviços na Rússia no quadro de um projecto intitulado «Sistema federal de certificação e ensaio de sementes» (a seguir «projecto russo»).

5        Em Dezembro de 1996, a Helmico subcontratou na Masdar o projecto russo, mediante um contrato sensivelmente idêntico ao celebrado em Abril de 1996 para o projecto moldavo.

6        No final de 1997, a Masdar manifestou a sua preocupação com os atrasos nos pagamentos da Helmico, que invocou que os atrasos eram imputáveis à Comissão. A Masdar contactou os serviços da Comissão, tendo sido informada de que esta tinha pago todas as facturas da Helmico até essa data. Investigações mais aprofundadas permitiram à Masdar descobrir que a Helmico a tinha informado tardiamente e de forma incorrecta sobre os pagamentos que tinha recebido da Comissão.

7         Em 2 de Outubro de 1998, realizou‑se uma reunião entre um administrador da Masdar e representantes da Comissão (a seguir «reunião de 2 de Outubro de 1998») para analisar os problemas verificados na cooperação com a Helmico.

8         Em 5 de Outubro de 1998, a Comissão enviou um ofício à Helmico em que declarava estar preocupada com o facto de as divergências entre as posições desta última e da Masdar poderem comprometer a conclusão do projecto russo e sublinhava que atribuía grande importância ao êxito desse projecto. Pedia à Helmico garantias, sob a forma de uma declaração assinada pela Helmico e pela Masdar. O ofício precisava que se não recebesse essa garantia antes de segunda‑feira, 12 de Outubro de 1998, a Comissão ponderaria recorrer a outros meios para garantir a conclusão do referido projecto.

9        Em 6 de Outubro de 1998, a Helmico respondeu aos serviços da Comissão que as divergências entre as posições tinham sido sanadas. Essa resposta esclarecia que tinha acordado com a Masdar que todos os pagamentos a efectuar, incluindo os relativos às facturas ainda em fase de tratamento respeitantes ao projecto russo, sê‑lo‑iam por via de transferência para uma conta bancária da Masdar aí designada e não para a conta bancária da Helmico. Dessa carta constava a menção manuscrita: «Aprovada, S, Masdar, 6 de Outubro de 1998». Foi enviada à Comissão uma carta redigida nos mesmos termos, com data do mesmo dia e rubricada pelo presidente da Masdar, a propósito das somas a pagar no quadro do contrato moldavo.

10      Em 7 de Outubro de 1998, a Helmico enviou à Comissão mais duas cartas, também rubricadas por S em nome da Masdar. O conteúdo destas cartas era idêntico ao das cartas de 6 de Outubro, só que a carta relativa ao contrato russo não mencionava qualquer conta bancária, ao passo que a carta relativa ao contrato moldavo indicava um número de conta bancária em nome da Helmico em Atenas para os pagamentos futuros.

11      Em 8 Outubro de 1998, a Helmico escreveu duas cartas aos gestores dos projectos em causa do serviço «contratos» da Comissão, solicitando‑lhes que efectuassem todos os pagamentos posteriores, no quadro dos contratos russo e moldavo, numa conta diferente em nome da Helmico em Atenas.

12      Nessa mesma data, a Helmico e a Masdar assinaram uma convenção mediante a qual outorgaram ao presidente da Masdar uma procuração para transferir fundos das duas contas mencionadas nas cartas de 7 e 8 de Outubro de 1998 endereçadas à Comissão.

13      Em 10 de Novembro de 1998, a Comissão emitiu o seu relatório de fim de projecto respeitante ao projecto russo. Entre as seis rubricas sujeitas a avaliação, quatro tiveram a apreciação de «excelente», uma de «bom» e outra de «satisfatório». Concluiu-se, nesse relatório, que «o projecto foi conduzido e executado de modo exemplar». Em 26 de Fevereiro de 1999, a Comissão emitiu o seu relatório de fim de projecto respeitante ao projecto moldavo, do qual duas rubricas sujeitas a avaliação tiveram a apreciação de «bom» e quatro tiveram a apreciação de «satisfatório».

14      Em 29 de Julho de 1999, os serviços da Comissão enviaram à Masdar um ofício no qual indicavam que a Comissão, tendo sido informada da existência de irregularidades financeiras entre a Helmico e a Masdar na execução dos contratos russo e moldavo, tinha suspendido todos os pagamentos ainda não efectuados. Consciente das dificuldades financeiras da Masdar, a Comissão comunicou‑lhe que, no quadro do projecto russo, depositaria um adiantamento de 200 000 EUR na conta da Helmico mencionada nas instruções comunicadas por essa sociedade em 8 de Outubro de 1998. O montante de 200 000 EUR foi depositado nessa conta em Agosto de 1999, tendo em seguida sido transferido para a conta da Masdar.

15       Entre Dezembro de 1999 e Março de 2000, o presidente da Masdar escreveu a vários funcionários da Comissão, bem como ao Comissário responsável pelas relações externas, C. Patten. Entre as diversas questões abordadas, figurava a questão do pagamento dos serviços fornecidos pela Masdar.

16      Em 22 de Março de 2000, o director‑geral do serviço comum de relações externas da Comissão escreveu ao presidente da Masdar para o informar do seguinte:

«Após intensas consultas (em que foram ponderadas várias possibilidades, incluindo a possibilidade de liquidação final dos dois contratos mediante pagamentos adicionais a favor da Masdar, calculados em função dos trabalhos e das despesas efectuados), os serviços da Comissão decidiram proceder à recuperação dos fundos anteriormente pagos à contratante, Helmico. No plano jurídico, qualquer pagamento efectuado directamente à Masdar (mesmo por intermédio da conta bancária da Helmico para a qual dispõe de uma procuração) poderia ser considerado, em caso de insolvência da Helmico, como um acto colusório dos administradores ou dos credores da Helmico; além disso, não é certo que em caso de litígio entre a Helmico e a Masdar os fundos pagos pela Comissão Europeia sejam definitivamente adquiridos pela Masdar, como a Comissão desejaria.»

17      Em 23 de Março de 2000, a Comissão escreveu à Helmico para lhe comunicar a sua recusa de pagar as facturas em suspenso e para lhe pedir o reembolso de um montante total de 2 091 168,07 EUR. A Comissão tomou esta iniciativa após ter descoberto que a Helmico tinha agido de forma fraudulenta na execução dos contratos moldavo e russo.

18      Em 31 de Março de 2000, a Masdar propôs uma acção contra a Helmico na High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division, mediante a qual reclamava o pagamento dos serviços efectuados em subcontratação no quadro da execução dos contratos moldavo e russo, num montante total de 453 000 EUR. A instância foi suspensa por um período indeterminado.

19      Em 4 de Abril de 2000, a Comissão, ao abrigo do artigo 28.°, n.° 2, do Regulamento Financeiro, de 21 de Dezembro de 1977, aplicável ao orçamento geral das Comunidades Europeias (JO L 356, p.1; EE 01 F2 p. 90), na redacção em vigor à data dos factos, emitiu duas ordens de cobrança oficiais endereçadas à Helmico.

20      No decurso de 2000 e 2001, a Masdar contactou a Comissão para examinar a possibilidade de esta lhe pagar os trabalhos efectuados e facturados à Helmico. Foram realizadas várias reuniões sobre o assunto entre os advogados da Masdar e os serviços da Comissão.

21      Em 16 de Outubro de 2001, os serviços da Comissão responderam que as informações tinham sido transmitidas aos serviços competentes da DG «Orçamento», ao Organismo Europeu de Luta Antifraude e à unidade de finanças e contratos responsável pelos programas TACIS e que os serviços da Comissão tomariam todas as medidas necessárias para procurar os administradores da Helmico.

22      Em 1 de Fevereiro de 2002, numa resposta escrita a um pedido formulado pelos advogados da Masdar, os serviços da Comissão explicaram que, em 4 de Abril de 2000, tinham sido emitidas duas ordens de cobrança oficiais dirigidas à Helmico, uma respeitante ao contrato moldavo no montante de 1 236 200,91 EUR e outra respeitante ao contrato russo no montante de 854 967,16 EUR, ou seja, num total de 2 091 168,07 EUR.

23      Em 18 de Fevereiro de 2003, realizou‑se outra reunião entre os advogados da Masdar e os serviços da Comissão.

24      Em 23 de Abril de 2003, os advogados da Masdar enviaram aos serviços da Comissão uma carta registada que terminava com a seguinte declaração:

«[A] menos que os serviços da Comissão estejam em condições de avançar, o mais tardar até 15 de Maio de 2003, com uma proposta concreta de pagamento dos serviços fornecidos pela minha cliente, será proposta uma acção de indemnização contra a Comissão no Tribunal de Primeira Instância ao abrigo dos artigos 235.° CE e 288.° CE […].»

25      Por fax de 15 de Maio de 2003, a Comissão propôs aos advogados da Masdar uma reunião para discutir uma eventual solução amigável, mediante a qual a Comissão lhe pagaria o montante de 249 314,35 EUR pelos trabalhos efectuados depois da descoberta das irregularidades cometidas pela Helmico, se a Masdar provasse a existência de um acordo que previsse que ela seria paga directamente pela Comissão se concluísse os projectos russo e moldavo.

26      Por carta registada de 23 de Junho de 2003, os advogados da Masdar responderam aos serviços da Comissão que recusavam prosseguir as negociações com base na sua proposta, expondo os detalhes do pedido da Masdar, bem como os termos e condições em que esta admitia participar numa reunião.

27      Essa carta registada foi seguida de um fax de 3 de Julho de 2003, no qual os advogados da Masdar solicitaram a resposta da Comissão quanto à possibilidade de organizar, antes de 15 de Julho de 2003, uma reunião com base nas condições propostas. Neste fax, era acrescentado que, se essa reunião não fosse possível, seria proposta uma acção no Tribunal de Primeira Instância.

28      Por ofício de 22 de Julho de 2003, os serviços da Comissão responderam que não podiam dar seguimento ao pedido de pagamento da Masdar.

 Tramitação do processo no Tribunal de Primeira Instância e acórdão recorrido

29      Por petição apresentada em 30 de Setembro de 2003, a Masdar propôs, nos termos dos artigos 235.° e 288.°, segundo parágrafo, CE, uma acção de indemnização no Tribunal de Primeira Instância. Fundamentou o seu pedido de indemnização no princípio da proibição do enriquecimento sem causa (de in rem verso), no princípio da gestão de negócios (negotiorum gestio), na violação do princípio da protecção da confiança legítima e, por último, no facto de os actos dos serviços da Comissão serem culposos ou negligentes e lhe terem causado prejuízo.

30      No âmbito das medidas de organização do processo, realizou-se, em 6 de Outubro de 2005, uma reunião informal perante o Tribunal de Primeira Instância para explorar as possibilidades de uma resolução amigável do litígio.

31      No fim da audiência, que se realizou no mesmo dia, o Tribunal de Primeira Instância concedeu às partes um prazo até 30 de Novembro de 2005 para explorarem as possibilidades dessa resolução do litígio.

32      Por ofício apresentado na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 29 de Novembro de 2005, a Comissão informou o Tribunal de que não fora possível chegar a uma resolução amigável do litígio.

33      Após ter observado, no n.° 69 do acórdão recorrido, que «o pedido de indemnização da demandante assenta, por um lado, em regimes de responsabilidade extracontratual que não implicam um comportamento ilícito por parte das instituições da Comunidade ou dos seus agentes no exercício das respectivas funções (o enriquecimento sem causa e a gestão de negócios) e, por outro, no regime da responsabilidade extracontratual da Comunidade em virtude do comportamento ilícito das suas instituições e dos seus agentes no exercício das respectivas funções (a violação do princípio da protecção da confiança legítima e a culpa ou a negligência da Comissão)», o Tribunal rejeitou, em primeiro lugar, os argumentos baseados no enriquecimento sem causa e na gestão de negócios, pelas seguintes razões:

«91      […] o regime da responsabilidade extracontratual, tal como previsto na maioria dos sistemas jurídicos nacionais, não prevê necessariamente o pressuposto relativo à ilegalidade ou à culpa no comportamento da parte demandada. As acções baseadas no enriquecimento sem causa ou na gestão de negócios são concebidas para constituir, em circunstâncias particulares de direito civil, uma fonte de obrigação extracontratual para aquele que se encontra na posição de enriquecido ou de gestido, que, regra geral, consiste, respectivamente, ou em restituir o que recebeu indevidamente, ou em indemnizar o gestor.

92      Todavia, daí não resulta que os fundamentos relativos ao enriquecimento sem causa e à gestão de negócios, alegados pela demandante, devam ser rejeitados unicamente com base no facto de o pressuposto relativo à ilegalidade do comportamento da instituição não estar preenchido, como sustenta, a título principal, a Comissão.

93      […] o artigo 288.°, segundo parágrafo, CE estabelece a obrigação de a Comunidade indemnizar os danos causados pelas suas instituições sem limitar o regime da responsabilidade extracontratual da Comunidade à responsabilidade por culpa. […]

[…]

95      Por conseguinte, importa examinar se os pressupostos da acção de in rem verso ou os pressupostos da acção baseada na negotiorum gestio estão reunidos no caso vertente, para determinar se esses princípios devem ser aplicados.

96      A este respeito, há que observar […] que, no contexto factual e jurídico do presente litígio, as acções baseadas no enriquecimento sem causa ou na gestão de negócios não podem proceder.

97      Com efeito, segundo os princípios gerais comuns aos direitos dos Estados‑Membros, essas acções não podem ser exercidas quando o benefício do enriquecido ou do gestido assenta num contrato ou numa obrigação legal. Além disso, segundo esses mesmos princípios, geralmente essas acções só podem ser utilizadas a título subsidiário, isto é, no caso em que a pessoa lesada não dispõe, para obter o que lhe é devido, de nenhuma outra acção.

98      Ora, no presente caso é pacífico que existem relações contratuais entre a Comissão e a Helmico, por um lado, e entre esta última e a demandante, por outro. O alegado prejuízo directo corresponde à remuneração que a Helmico deve à demandante em virtude dos contratos de subcontratação celebrados entre estas duas partes, que incluem a esse respeito uma cláusula compromissória que designa os tribunais ingleses e galeses competentes para a resolução de eventuais litígios contratuais. Deste modo, é incontestavelmente à Helmico que cabe remunerar os trabalhos efectuados pela demandante e assumir a eventual responsabilidade resultante da falta de pagamento, como aliás o demonstra o processo judicial que, para o efeito, a demandante accionou contra a Helmico e que se encontra actualmente pendente, ainda que suspenso, na High Court of Justice. Uma eventual insolvência da Helmico não pode justificar a assumpção dessa responsabilidade pela Comissão, uma vez que a demandante não pode ter duas fontes para o mesmo direito à remuneração. Com efeito, resulta dos autos, sem impugnação das partes, que esse processo judicial na High Court of Justice diz respeito ao pagamento dos serviços em questão na presente acção.

99      Daqui resulta que não se pode qualificar de enriquecimento sem causa um eventual enriquecimento da Comissão ou empobrecimento da demandante, pois tem origem no quadro contratual existente.

100      […] Pelas razões que se seguem é manifesto que os pressupostos do exercício da acção cível baseada na gestão de negócios não estão preenchidos.

101      Importa assinalar que a execução, pela demandante, das suas obrigações contratuais para com a Helmico não pode ser validamente qualificada de intervenção desinteressada nos negócios de outrem que devam imperativamente ser geridos, como o exige a acção em questão. […] Por fim, a argumentação da demandante é igualmente contraditória com os princípios da gestão de negócios no que respeita à consciência do gestido da acção do gestor. Com efeito, a acção do gestor é geralmente realizada sem conhecimento do gestido, ou pelo menos, sem que este último tenha consciência da necessidade de agir imediatamente. Ora, é a própria demandante quem sustenta que a sua escolha de prosseguir os trabalhos em Outubro de 1998 resultou da incitação da Comissão.

102      Importa ainda observar que, segundo a jurisprudência, são os próprios operadores económicos quem deve suportar os riscos económicos inerentes às suas actividades, tendo em conta as circunstâncias de cada caso concreto […].

103      Ora, não se demonstrou que a demandante tivesse sofrido um prejuízo anormal ou especial que ultrapassasse os limites dos riscos económicos e comerciais inerentes à sua actividade. Em qualquer relação contratual existe algum risco de que uma parte não execute o contrato de forma satisfatória ou mesmo que se torne insolvente. Cabe aos contratantes minimizar esse risco de forma apropriada no próprio contrato. A demandante não ignorava que a Helmico não cumpria as suas obrigações contratuais, não obstante, optou conscientemente por continuar a cumprir as suas, em vez de demandar a Helmico judicialmente. Ao actuar desse modo, assumiu um risco comercial que se pode qualificar de normal. […]»

34      Em seguida, o Tribunal de Primeira Instância considerou improcedentes os outros fundamentos da Masdar. No que respeita aos argumentos relativos à violação do princípio da protecção da confiança legítima, o Tribunal rejeitou-os pelas razões seguintes:

«119      […] o direito de exigir a protecção da confiança legítima […] estende‑se a qualquer particular que se encontre numa situação da qual resulte que a administração comunitária, ao fornecer‑lhe garantias precisas, lhe tenha criado expectativas fundadas. Constituem tal tipo de garantias, independentemente da forma pela qual sejam comunicadas, informações precisas, incondicionais e concordantes, que emanem de fontes autorizadas e fiáveis […]. Está igualmente assente na jurisprudência que o princípio da confiança legítima constitui uma regra de direito que confere direitos aos particulares […]. A violação deste princípio pode, pois, gerar responsabilidade da Comunidade. Não é menos exacto que os operadores económicos devem suportar os riscos económicos inerentes às suas actividades, tendo em conta as circunstâncias de cada caso concreto […].

120      Resulta dos autos que as alegadas esperanças da demandante diziam respeito ao pagamento, pela Comissão, dos serviços prestados contratualmente à Helmico. Há que observar que, no caso vertente, os documentos escritos, emanados da Comissão e de que o Tribunal dispõe, não podem de modo nenhum ser interpretados como garantias precisas de que a Comissão se comprometia a remunerar os serviços da demandante e susceptíveis de lhe criar esperanças fundadas.»

35      Nos n.os 121 a 129 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância fundamentou a afirmação feita no n.° 120 do referido acórdão através de uma análise pormenorizada dos elementos do processo.

36      No que respeita ao fundamento relativo à falta de diligência da Comissão, o Tribunal observou o seguinte:

«140      Resulta dos articulados da demandante que o comportamento que se critica à Comissão é o da suspensão dos pagamentos à Helmico. A ilegalidade desse comportamento da Comissão consiste numa falta de diligência razoável para assegurar que, ao proceder a essa suspensão, não prejudicava terceiros e, se fosse esse o caso, para indemnizar esses terceiros do dano assim sofrido.

141      […] Em primeiro lugar, […] a demandante limita[-se] a afirmar que esse dever de diligência existe, sem apresentar qualquer prova ou desenvolver uma argumentação jurídica em apoio da sua tese nem precisar a fonte ou o alcance desse dever. O Tribunal considera que uma referência em termos muito vagos aos princípios gerais da responsabilidade extracontratual por culpa em vigor nos sistemas de direito civil e da responsabilidade delitual por negligência em vigor nos sistemas anglo‑saxónicos não permite demonstrar que a Comissão seja obrigada a ter em conta os interesses de terceiros quando toma uma decisão de suspensão de pagamentos no âmbito das suas relações contratuais. […] O Tribunal verifica igualmente […] que a demandante não demonstrou a existência de um nexo de causalidade entre a violação da obrigação alegada e o prejuízo invocado.[…]»

 Pedidos das partes

37      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–      anular o acórdão recorrido;

–        condenar a Comissão a pagar à recorrente o montante de 448 947,78 EUR pedido pela Masdar em primeira instância ou, a título subsidiário, o montante de 249 314,35 EUR ou qualquer outro montante que o Tribunal de Justiça considere adequado, e juros sobre o montante atribuído;

–        condenar a Comissão nas despesas do presente processo e do processo no Tribunal de Primeira Instância.

38      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–      negar provimento ao recurso;

–      a título subsidiário, no caso de o Tribunal de Justiça anular no todo ou em parte o acórdão recorrido, negar provimento ao pedido de indemnização da recorrente no seu recurso;

–      condenar a recorrente nas despesas do presente processo e do processo no Tribunal de Primeira Instância;

–      a título subsidiário, no caso de o Tribunal de Justiça se pronunciar a favor da recorrente no recurso, condenar esta última a suportar um terço das suas próprias despesas no processo no Tribunal de Primeira Instância.

 Quanto ao recurso

39      A recorrente invoca, no essencial, cinco fundamentos em apoio do seu recurso, relativos, em primeiro lugar, a erros de direito e à falta de fundamentação no tratamento da questão do enriquecimento sem causa, em segundo lugar, ao desvirtuamento dos factos e a um erro de direito no tratamento da questão da gestão de negócios, em terceiro lugar, à violação do princípio da protecção da confiança legítima e à incoerência da fundamentação, em quarto lugar, ao tratamento errado do fundamento relativo à culpa ou negligência e, em quinto lugar, ao exame incompleto dos factos.

 Quanto ao primeiro fundamento, relativo a erros de direito e à falta de fundamentação no tratamento da questão do enriquecimento sem causa

 Argumentos das partes

40      A recorrente critica o Tribunal de Primeira Instância por ter considerado erradamente que ela apenas tinha actuado nos termos das suas obrigações contratuais para com a Helmico.

41      Além disso, o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao não tomar em consideração o facto de a Comissão não estar na posição de um co‑contratante normal da Helmico, uma vez que dispunha de poderes para exigir a repetição do indevido. Ao deixar, primeiro, que a recorrente completasse o seu trabalho e ao exercer, depois, os seus poderes de repetição do indevido, a Comissão, privando do seu efeito prático as relações contratuais preexistentes, enriqueceu indevidamente.

42      A Comissão observa que a recorrente não resolveu os seus contratos com a Helmico.

43      De qualquer modo, o Tribunal de Primeira Instância declarou correctamente, nos n.os 97 a 99 do acórdão recorrido, que a Comissão não enriqueceu sem causa, uma vez que o seu benefício tinha origem no contrato que a ligava à Helmico e que a recorrente estava obrigada a actuar de acordo com o subcontrato que celebrara com essa mesma sociedade.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

44      Segundo os princípios comuns aos direitos dos Estados-Membros, a pessoa que tenha sofrido uma perda que beneficie o património de outrem sem que exista qualquer fundamento jurídico para esse enriquecimento tem, regra geral, direito à restituição, até ao montante da perda, por parte da pessoa enriquecida.

45      A este propósito, como o Tribunal de Primeira Instância indicou, a acção baseada no enriquecimento sem causa, tal como prevista na maior parte dos sistemas jurídicos nacionais, não contém qualquer condição relativa à ilegalidade ou culpa no comportamento do demandado.

46      Em contrapartida, para que esta acção seja considerada procedente, é essencial que o enriquecimento esteja desprovido de toda e qualquer base legal válida. Esta condição não está preenchida, nomeadamente, quando o enriquecimento é justificado por obrigações contratuais.

47      Uma vez que o enriquecimento sem causa, tal como definido atrás, constitui uma fonte de obrigações extracontratuais comum às ordens jurídicas dos Estados‑Membros, a Comunidade não pode escapar à aplicação dos mesmos princípios quando uma pessoa singular ou colectiva a acusa de ter enriquecido, injustamente, em seu detrimento.

48      De resto, uma vez que qualquer obrigação resultante de um enriquecimento sem causa é necessariamente de natureza extracontratual, há que permitir, como o Tribunal de Primeira Instância fez no presente processo, que seja invocada ao abrigo dos artigos 235.° e 288.°, segundo parágrafo, CE.

49      Na verdade, a acção baseada no enriquecimento sem causa não faz parte do regime da responsabilidade extracontratual em sentido estrito, que está subordinado à verificação de um conjunto de condições relativas à ilegalidade do comportamento censurado à Comunidade, à efectividade do dano e à existência de nexo de causalidade entre este comportamento e o prejuízo invocado (v., nomeadamente, acórdão de 9 de Setembro de 2008, FIAMM e o./Conselho e Comissão, C-120/06 P e C-121/06 P, ainda não publicado na Colectânea, n.° 106 e jurisprudência aí referida). Distingue-se das acções intentadas nos termos do referido regime, na medida em que não exige a prova de um comportamento ilegal do demandado, nem sequer a existência de um comportamento tout court, mas apenas a prova de um enriquecimento do demandado sem base legal válida e de um empobrecimento do demandante ligado ao referido enriquecimento.

50      No entanto, apesar destas características, a possibilidade de intentar uma acção baseada no enriquecimento sem causa contra a Comunidade não pode ser recusada ao particular pela simples razão de o Tratado CE não prever expressamente uma via de recurso destinada a este tipo de acção. Uma interpretação dos artigos 235.° e 288.°, segundo parágrafo, CE, que excluísse essa possibilidade conduziria a um resultado contrário ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça e reafirmado no artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em 7 de Dezembro de 2000, em Nice (JO C 364, p. 1) (v. acórdãos de 13 de Março de 2007, Unibet, C 432/05, Colect., p. I-2271, n.° 37, e de 3 de Setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão, C-402/05 P e C-415/05 P, ainda não publicado na Colectânea, n.° 335).

51      É à luz destas observações que há que examinar se o Tribunal de Primeira Instância cometeu erros ao analisar a questão do enriquecimento sem causa.

52      Resulta do acórdão recorrido que o Tribunal rejeitou os argumentos da recorrente porque existiam relações contratuais entre a Comissão e a Helmico, por um lado, e entre esta última e a recorrente, por outro. O Tribunal deduziu desta circunstância que qualquer enriquecimento da Comissão ou empobrecimento da recorrente tinha a sua origem no quadro contratual existente, não podendo, portanto, ser qualificado de «sem causa».

53      Além disso, segundo o Tribunal de Primeira Instância, a recorrente dispunha de uma via alternativa para obter o que lhe era devido, já que podia, dados os seus contratos de subcontratação celebrados com a Helmico, intentar contra esta última uma acção de responsabilidade contratual nos tribunais ingleses e galeses designados nos referidos contratos.

54      Como foi indicado no n.° 46 do presente acórdão, é verdade que não se pode qualificar de «sem causa» um enriquecimento justificado por obrigações contratuais.

55      Quando, em contrapartida, contratos com base nos quais são fornecidas prestações se revelam inválidos e deixam de existir, o enriquecimento do beneficiário dessas prestações deve, segundo os princípios desenvolvidos nas ordens jurídicas dos Estados-Membros, dar lugar, sob certas condições, a uma restituição.

56      Sem que seja necessário analisar sob que condições, nesta última hipótese, é devida essa restituição, importa observar que o Tribunal de Primeira Instância aplicou correctamente a distinção, esboçada supra, entre enriquecimentos que resultam de relações contratuais e enriquecimentos «sem causa».

57      Pelas razões expostas pelo advogado-geral J. Mazák nos n.os 53 e 54 das suas conclusões, o Tribunal de Primeira Instância considerou que os contratos celebrados entre a Comissão e a Helmico, por um lado, e entre esta última e a recorrente, por outra, não tinham deixado de existir. O Tribunal deduziu, correctamente, desta circunstância que não havia uma obrigação extracontratual para a Comissão de assumir as despesas feitas pela recorrente para concluir os projectos russo e moldavo.

58      O Tribunal de Primeira Instância afirmou, nomeadamente, que a recorrente, embora sabendo que a Helmico não cumpria as suas obrigações contratuais, optou conscientemente por continuar a cumprir as suas. Também lembrou que a recorrente tinha, ao abrigo da cláusula compromissória que constava dos contratos celebrados com a Helmico, accionado um procedimento judicial contra ela.

59      Por outro lado, o Tribunal de Primeira Instância sublinhou, acertadamente, que cada relação contratual comporta um risco de que uma parte não execute o contrato de forma satisfatória ou que se torne insolvente. Trata-se de um risco comercial inerente às actividades dos operadores económicos.

60      Este último elemento reveste uma importância particular no âmbito dos programas de assistência comunitária. Não é raro, com efeito, que o co‑contratante a quem a Comunidade confiou um projecto se limite à sua gestão e delegue a execução do projecto a subcontratantes que também trabalham, eles próprios e sendo caso disso, com empresas em subcontratação. Num tal contexto, cada operador económico implicado no projecto deve aceitar o risco de o seu co-contratante se tornar insolvente ou cometer irregularidades que conduzam a uma suspensão dos pagamentos por parte da Comunidade, ou até mesmo a ordens de cobrança. Nestas condições, não se pode facilmente admitir que as perdas resultantes da realização desse risco devem dar lugar a pagamentos ad hoc por parte da Comunidade.

61      Resulta do exposto que o Tribunal de Primeira Instância não cometeu qualquer erro de direito ou falta de fundamentação no tratamento da questão relativa ao enriquecimento sem causa. O primeiro fundamento deve, portanto, ser julgado improcedente.

 Quanto ao segundo fundamento, relativo ao desvirtuamento dos factos e a um erro de direito no tratamento da questão da gestão de negócios

 Argumentos das partes

62      Segundo a recorrente, o raciocínio desenvolvido no acórdão recorrido sobre a questão da gestão de negócios está errado de facto e de direito.

63      As afirmações do Tribunal de Primeira Instância segundo as quais a intervenção da recorrente não era desinteressada e a Comissão era capaz de gerir os projectos estão manifestamente erradas.

64      O Tribunal de Primeira Instância cometeu, por outro lado, um erro de direito ao considerar, no n.° 101 do acórdão recorrido, que o princípio da gestão de negócios não pode ser aplicado quando o gestido tenha consciência da necessidade de agir.

65      A Comissão observa que a afirmação, nos n.os 97 e seguintes do acórdão recorrido, segundo a qual a recorrente tinha agido nos termos dos contratos que celebrara com a Helmico, basta para rejeitar os argumentos relativos à gestão de negócios.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

66      Sem que seja necessário analisar se o Tribunal de Primeira Instância operou uma qualificação jurídica correcta da acção baseada na gestão de negócios, há que observar que os argumentos apresentados pela recorrente no âmbito deste segundo fundamento não podem, de qualquer modo, ser acolhidos.

67      Antes de mais, a recorrente não pode afirmar validamente que as suas prestações foram desinteressadas. Com efeito, quer em primeira instância quer no âmbito do presente recurso, a recorrente salientou que continuou a fornecer as prestações após a descoberta das irregularidades cometidas pela Helmico porque supunha que a Comissão lhe tinha garantido a remuneração dessas prestações. Desde logo, por esta simples razão, não se pode afirmar que o Tribunal de Primeira Instância tenha cometido um desvirtuamento dos factos ao recusar reconhecer a existência de uma intervenção desinteressada.

68      Em seguida, quanto ao argumento segundo o qual o Tribunal de Primeira Instância desvirtuou os factos ao declarar que a Comissão era capaz de gerir os projectos, basta notar que a recorrente não apresentou elementos de onde resulte que a Comissão não estava já em condições de assegurar a gestão do programa ou dos projectos em causa.

69      No que respeita, por fim, ao argumento relativo a um erro de direito, importa referir que, no n.° 101 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância salientou que, «geralmente», a acção do gestor é realizada sem conhecimento do gestido, ou pelo menos, sem que este último tenha consciência da necessidade de agir imediatamente. Contrariamente ao que afirma a recorrente, o Tribunal não excluiu, portanto, que o princípio da gestão de negócios possa ser invocado em circunstâncias em que o gestido esteja consciente dessa necessidade.

70      O segundo fundamento do recurso também deve, pois, ser afastado.

 Quanto ao terceiro fundamento, relativo à violação do princípio da protecção da confiança legítima e à incoerência da fundamentação

 Argumentos das partes

71      A recorrente afirma que existe uma incoerência entre os fundamentos do Tribunal de Primeira Instância relativos ao enriquecimento sem causa e à gestão de negócios, por um lado, e os relativos ao princípio da protecção da confiança legítima, por outro.

72      Observa que o Tribunal de Primeira Instância admitiu, no n.° 101 do acórdão recorrido, que a Comissão incitou a recorrente a continuar o fornecimento dos serviços e, no n.° 148 do referido acórdão, que a Comissão e a recorrente demonstraram uma vontade comum de que esta última concluísse os projectos e fosse remunerada. Logo, a conclusão, no n.°  130 do acórdão recorrido, segundo a qual «há que concluir que os elementos disponíveis, examinados separadamente ou no seu conjunto, não denunciam a existência de garantias precisas dadas pela Comissão que pudessem ter criado na demandante esperanças fundadas que lhe permitissem valer‑se do princípio da protecção da confiança legítima» é manifestamente errada.

73      A título subsidiário, a recorrente defende que o critério utilizado pelo Tribunal de Primeira Instância é demasiado restritivo em casos como o do presente processo. Em sua opinião, há que concluir pela existência de garantias precisas quando o comportamento da instituição comunitária é susceptível de incitar um subcontratante a fornecer serviços em benefício da instituição em circunstâncias em que se tornou claro que este subcontratante não será remunerado pelo co‑contratante principal.

74      A Comissão alega, antes de mais, que este fundamento respeita a questões de facto, sendo, pois, inadmissível.

75      Em seguida, quanto ao princípio da protecção da confiança legítima, a Comissão observa que o Tribunal de Primeira Instância analisou em pormenor, por um lado, se os documentos escritos provenientes da Comissão podiam ser interpretados como garantias precisas de que ela assumiria a responsabilidade dos pagamentos e, por outro, se as provas sugeriam que tais garantias precisas tinham sido fornecidas na reunião de 2 de Outubro de 1998.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

76      Há que recordar, antes de mais, que a questão de saber se a fundamentação de um acórdão do Tribunal de Primeira Instância é contraditória ou insuficiente constitui uma questão de direito que pode ser, enquanto tal, invocada no âmbito de um recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância (acórdãos de 25 de Janeiro de 2007, Sumitomo Metal Industries e Nippon Steel/Comissão, C‑403/04 P e C‑405/04 P, Colect., p. I‑729, n.° 77, e jurisprudência aí referida).

77      Este fundamento é também admissível na medida em que respeita à violação do princípio da protecção da confiança legítima. Com efeito, os argumentos da recorrente a este propósito não têm por objecto a constatação de certos factos, mas o critério utilizado pelo Tribunal de Primeira Instância para a aplicação do referido princípio. A questão de saber se o Tribunal de Primeira Instância aplicou a norma jurídica correcta, aquando da apreciação dos factos, constitui uma questão de direito (acórdão Sumitomo Metal Industries e Nippon Steel/Comissão, já referido, n.° 40).

78      Assim, contrariamente ao que afirma a Comissão, este fundamento deve ser examinado quanto ao mérito.

79      Antes de mais, quanto à alegada incoerência de fundamentação, a recorrente alega que a afirmação do Tribunal de Primeira Instância segundo a qual a Comissão tinha o mesmo objectivo que a Masdar, a saber, a plena realização dos projectos tal como inicialmente prevista, tendo-a incitado a continuar o fornecimento dos serviços, contradiz a sua conclusão segundo a qual a Comissão não tinha fornecido garantias precisas.

80      Este argumento não pode ser acolhido. Como o Tribunal de Primeira Instância observou no n.°  120 do acórdão recorrido, as garantias precisas alegadas pela recorrente diziam respeito ao pagamento, pela Comissão, dos serviços que a Masdar tinha prestado à Helmico. O facto, referido pelo Tribunal noutra parte do acórdão recorrido, de a Comissão, desejando que os projectos fossem realizados como previstos, ter incitado a recorrente a continuar o fornecimento de serviços não apresenta manifestamente qualquer ligação com a tese da recorrente segundo a qual a Comissão se tinha comprometido a remunerá-la directamente. Logo, não pode aí haver qualquer incoerência entre as afirmações do Tribunal sobre a vontade expressa pela Comissão a propósito da realização dos projectos, por um lado, e a sua recusa de remunerar directamente a recorrente, por outro.

81      Em seguida, quanto ao critério enunciado pelo Tribunal de Primeira Instância, no n.° 119 do acórdão recorrido, para a aplicação ao caso em apreço do princípio da protecção da confiança legítima, há que reconhecer que aquele corresponde a uma jurisprudência constante segundo a qual ninguém pode invocar uma violação do referido princípio na falta de garantias precisas fornecidas pela administração (v., neste sentido, acórdãos de 22 de Junho de 2006, Bélgica e Fórum 187/Comissão, C-182/03 e C-217/03, Colect., p. I‑5479, n.° 147, e de 18 de Julho de 2007, AER/Karatzoglou, C-213/06 P, Colect., p. I-6733, n.° 33 e jurisprudência aí referida).

82      A recorrente afirma que a condição relativa às garantias precisas deve ser aplicada com uma certa flexibilidade em casos como o do presente processo. Há confiança legítima quando o comportamento da instituição comunitária é susceptível de incitar um subcontratante a fornecer serviços em benefício da instituição em circunstâncias em que se tornou claro que esse subcontratante não será remunerado pelo co-contratante da Comunidade.

83      Esta argumentação não pode ser aceite.

84      A este respeito, deve recordar-se que o sistema de programas de assistência elaborado pela regulamentação comunitária assenta na execução pelo co‑contratante da Comissão de uma série de obrigações que lhe conferem direito ao recebimento da contribuição financeira prevista. No caso de o co-contratante não ter executado o projecto de acordo com as condições a que estava subordinada a concessão da contribuição financeira, não pode invocar os princípios da protecção da confiança legítima e dos direitos adquiridos para obter o pagamento da referida contribuição financeira (v., neste sentido, acórdão de 13 de Março de 2008, Vereniging Nationaal Overlegorgaan Sociale Werkvoorziening e o., C‑383/06 a C-385/06, ainda não publicado na Colectânea, n.° 56).

85      Isto permite à Comissão, em caso de irregularidades cometidas por um co‑contratante no âmbito de um projecto de assistência comunitária, cumprir o seu dever, que consiste em preservar os interesses financeiros e a disciplina orçamental da Comunidade.

86      Neste contexto, caracterizado por uma importância acrescida da fiscalização financeira do projecto, os subcontratantes não se podem basear em indícios vagos para alegar uma confiança legítima no facto de a Comissão ter um gesto financeiro a seu respeito, remunerando directamente os seus serviços. Tal confiança legítima só pode resultar de garantias precisas por parte dessa instituição que provem, sem ambiguidade, que aquela garante o pagamento dos serviços do subcontratante. Ora, como o Tribunal de Primeira Instância observou, a existência de tais garantias não foi demonstrada.

87      Resulta do exposto que o terceiro fundamento deve igualmente ser julgado improcedente.

 Quanto ao quarto fundamento, relativo ao tratamento errado do fundamento respeitante à culpa ou negligência

 Argumentos das partes

88      A recorrente censura o Tribunal de Primeira Instância por ter concluído, no n.° 141 do acórdão recorrido, «que a demandante se limita a afirmar que [o] dever de diligência [tal como descrito no n.° 140] existe, sem apresentar qualquer prova ou desenvolver uma argumentação jurídica em apoio da sua tese», tendo ela exposto, à luz de uma análise jurídica dos conceitos de culpa e de negligência que, quando a Comissão exerce o seu poder de suspensão do pagamento de um contrato em casos de irregularidades cometidas pelo co-contratante, sabendo que um subcontratante trabalhava para o co-contratante, deve fazer prova de diligência para se assegurar de que não causa prejuízo ao referido subcontratante. De resto, a recorrente defende que, manifestamente, a Comissão agiu de modo negligente, uma vez que a deixou concluir os trabalhos, primeiro, tendo exercido, depois, os seus poderes de repetição do indevido.

89      A Comissão defende que o Tribunal de Primeira Instância concluiu, correctamente, no n.° 141 do acórdão recorrido, que a recorrente não tinha fundamentado o seu argumento.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

90      Como o Tribunal de Justiça já afirmou, o conceito de negligência implica uma acção ou omissão através da qual a pessoa responsável viola o dever de diligência que deveria e teria podido respeitar tendo em conta as suas qualidades, os seus conhecimentos e as suas aptidões (v., neste sentido, acórdão de 3 de Junho de 2008, Intertanko e o., C-308/06, ainda não publicado na Colectânea, n.os 74 a 77).

91      Assim, pode acontecer que a administração comunitária assuma a sua responsabilidade extracontratual por comportamento ilícito quando não tiver agido com toda a diligência exigida, causando, por isso, prejuízo (v., neste sentido, acórdãos de 7 de Novembro de 1985, Adams/Comissão, 145/83, Colect., p. 3539, n.° 44, e de 28 de Junho de 2007, Internationaler Hilfsfonds/Comissão, C-331/05 P, Colect., p. I‑5475, n.° 24).

92      Este dever de diligência é inerente ao princípio da boa administração. Aplica-se, de modo geral, à acção da administração comunitária nas suas relações com o público. Devia, portanto, ser também observado pela Comissão nas suas relações com a Masdar e nas suas tomadas de posição relativamente a essa empresa.

93      No entanto, o dever de diligência não tem o alcance que a recorrente lhe atribui. O referido dever implica que a administração comunitária deve agir com cuidado e prudência. Em contrapartida, não incumbe à administração afastar todo e qualquer prejuízo que resulte, para os operadores económicos, da realização de riscos comerciais normais, como o descrito no n.° 59 do presente acórdão.

94      Além disso, como resulta dos factos descritos pelo Tribunal de Primeira Instância e resumidos no n.° 14 do presente acórdão, a Masdar recebeu, por intermédio de uma conta da Helmico, um montante considerável por forma a tomar em consideração a situação difícil em que se encontrava.

95      Tendo em conta as considerações expostas, o Tribunal de Primeira Instância concluiu correctamente, no n.° 141 do acórdão recorrido, que a Comissão não devia alinhar as suas tomadas de posição pelos interesses da recorrente nem criar um mecanismo ad hoc, como o pagamento dos saldos da participação financeira numa conta especial sobre a qual a recorrente tinha uma procuração.

96      De onde resulta que o quarto fundamento do recurso deve ser afastado.

 Quanto ao quinto fundamento, relativo ao exame incompleto dos factos

 Argumentos das partes

97      A recorrente considera que o Tribunal de Primeira Instância devia ter examinado com mais profundidade o contexto em que ocorreu a reunião de 2 de Outubro de 1998, aceitando, nomeadamente, ouvir o depoimento que propunha.

98      Segundo a Comissão, o Tribunal de Primeira Instância estudou em pormenor a questão da existência ou não de garantias precisas e o depoimento proposto pela recorrente não poderia pôr em causa as conclusões do Tribunal com base noutras provas apresentadas durante as fases escrita e oral.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

99      Relativamente à apreciação pelo juiz de primeira instância dos pedidos de medidas de organização do processo ou de instrução apresentados por uma parte num litígio, há que recordar que cabe exclusivamente ao Tribunal de Primeira Instância decidir da eventual necessidade de completar os elementos de informação de que dispõe sobre os processos que lhe são submetidos. O carácter probatório ou não probatório das peças processuais resulta da sua apreciação soberana dos factos, que escapa à fiscalização do Tribunal de Justiça no âmbito do recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância, salvo em caso de desvirtuamento dos elementos de prova apresentados ao Tribunal de Primeira Instância ou quando a inexactidão material das verificações por este efectuadas resulta dos documentos juntos aos autos (v., nomeadamente, acórdãos de 10 de Julho de 2001, Ismeri Europa/Tribunal de Contas, C-315/99 P, Colect., p. I‑5281, n.° 19 e de 11 de Setembro de 2008, Alemanha e o./Kronofrance, C-75/05 P e C‑80/05 P, ainda não publicado na Colectânea, n.° 78).

100    Por conseguinte, uma vez que não ficou demonstrado, no caso vertente, qualquer desvirtuamento ou inexactidão material, o Tribunal de Primeira Instância pôde considerar que os elementos contidos no processo eram suficientes para lhe permitir decidir o litígio.

101    O quinto fundamento deve, portanto, ser afastado.

102    Uma vez que nenhum dos fundamentos alegados pela recorrente pôde ser acolhido, há que negar provimento ao seu recurso.

 Quanto às despesas

103    Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, aplicável aos processos de recursos de decisões do Tribunal de Primeira Instância por força do disposto no artigo 118.° do mesmo regulamento, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da recorrente e tendo esta sido vencida, há que condená-la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      A Masdar (UK) Ltd é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: inglês.