Language of document : ECLI:EU:C:2017:442

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 8 de junho de 2017 (1)

Processo C‑322/16

Global Starnet Ltd

contra

Ministero dell’Economia e delle Finanze

Amministrazione Autonoma Monopoli di Stato

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália)]

«Pedido de decisão prejudicial — Dever de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça pelo órgão jurisdicional nacional de última instância — Acórdão do Tribunal Constitucional — Restrição à livre prestação de serviços — Restrição à liberdade de estabelecimento — Atribuição de novas concessões para jogos lícitos em linha — Novos requisitos para titulares de concessões — Justificação — Proporcionalidade»






1.        Com o presente pedido de decisão prejudicial, o Tribunal de Justiça é uma vez mais chamado a decidir se determinados aspetos da legislação italiana em matéria de jogos de fortuna e azar são compatíveis com as regras do Tratado relativas ao mercado interno e com alguns princípios gerais do direito da UE (2).

2.        O presente processo suscita, em particular, as questões de saber se as regras do Tratado relativas ao mercado interno, o artigo 16.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») ou o princípio geral da tutela da confiança legítima obstam a uma regulamentação nacional que estabelece novos requisitos financeiros, técnicos e profissionais aplicáveis tanto a concessionários já existentes como aos futuros concessionários de serviços de jogos de fortuna e azar\.

I.      Quadro jurídico

A.      Direito nacional

3.        O artigo 1.°, n.° 77, da Legge del 13 dicembre 2010 n. 220, Disposizioni per la formazione del bilancio annuale e pluriennale dello Stato (legge di stabilità) (Lei n.° 220/2010, de 13 de dezembro de 2010, relativa ao orçamento anual e plurianual do Estado) (3), prevê o seguinte:

«A fim de garantir o correto equilíbrio entre os interesses públicos e privados no âmbito da organização e da gestão das atividades dos jogos públicos, tendo em conta o monopólio do Estado nesta matéria, […] e os princípios — incluindo os da União Europeia — em matéria de seleção concorrencial aplicáveis neste domínio, a fim de consolidar o combate ao jogo irregular ou ilegal na Itália, bem como melhorar a proteção dos consumidores, em particular, a proteção dos menores, a manutenção da ordem pública, o combate ao jogo pelos menores de idade e à infiltração do crime organizado […] [a] Agenzia delle Dogane e dei Monopoli [Agência italiana das Alfândegas e dos Monopólios (a seguir «AAMS»)] atualizará imediatamente o modelo de contrato que autoriza a concessão dos jogos públicos e a recolha de apostas públicas em local físico.»

4.        O artigo 1.°, n.° 78, da Lei n.° 220/2010 introduziu novas obrigações para os concessionários dos jogos públicos e de recolha de apostas públicas em local físico, exigindo, em particular:

–        a manutenção do rácio de endividamento dentro de um determinado valor [artigo 1.°, n.° 78, alínea b), ponto 4];

–        a sujeição a autorização prévia: das operações que impliquem alterações subjetivas do concessionário; das operações de transferência das participações detidas pelo concessionário que possam implicar uma redução do rácio de adequação do capital; do destino dos lucros excedentes para fins diferentes de investimentos associados à atividade objeto da concessão [artigo 1.°, n.° 78, alínea b), pontos 8, 9 e 17];

–        a obrigação do concessionário de prosseguir a administração ordinária da atividade até à transferência desta atividade para o novo concessionário [artigo 1.°, n.° 78, alínea b), ponto 25].

5.        O artigo 1.°, n.° 78, alínea b), ponto 23, introduziu sanções em caso de incumprimento das obrigações estabelecidas no contrato de concessão.

6.        Os requisitos relativos aos concessionários, estabelecidos no artigo 1.°, n.° 78, da Lei n.° 220/2010, foram implementados pelo decreto interdirigenziale (Decreto Interdepartamental) emitido em 28 de junho de 2011 pelo diretor da AAMS (a seguir «Decreto AAMS») (4). Estes requisitos, cujo objetivo era reforçar a solidez económico‑financeira dos concessionários e os seus perfis de idoneidade e de fiabilidade, foram impostos não só aos concessionários já existentes, mas também aos futuros concessionários.

II.    Matéria de facto, tramitação do processo e questões prejudiciais

7.        A sociedade B Plus Giocolegale Ltd, atual Global Starnet Ltd (a seguir «Global Starnet»), é concessionária da AAMS para a implementação e a exploração da rede de jogos lícitos em linha. Participou no programa instituído pelo decreto‑legge n. 39/2009 (Decreto‑Lei n.° 39/2009) que permitia aos concessionários efetuar ensaios e, em seguida, pôr em funcionamento determinados sistemas de jogo. A participação neste programa de ensaios dava aos concessionários o direito à renovação das concessões.

8.        Na sequência da entrada em vigor da Lei n.° 220/2010 e do Decreto AAMS, a Global Starnet intentou um recurso perante o Tribunale Amministrativo Regionale del Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio, Itália, a seguir «TAR do Lácio») de anulação do referido decreto, alegando que os seus direitos enquanto concessionária foram ilegalmente afetados. Pediu, além disso, uma indemnização e a anulação do concurso lançado pela AAMS para a adjudicação da concessão dos serviços relativos à criação e operação das redes de jogos lícitos em linha. A Global Starnet fundamentou os seus pedidos no direito nacional e no direito da UE.

9.        O TAR do Lácio deu provimento parcial ao recurso na parte relativa ao direito nacional, mas concluiu que não houve violação da Constituição italiana nem do direito da União. A Global Starnet interpôs recurso desta sentença para o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália).

10.      No seu acórdão n.° 4371, de 2 de setembro de 2013, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) deu provimento parcial ao recurso interposto pela Global Starnet. Além disso, entendendo que havia dúvidas quanto à constitucionalidade do artigo 1.°, n.° 79, da Lei n.° 220/2010, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) remeteu o processo para a Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional, Itália).

11.      Por acórdão de 31 de março de 2015, n.° 56, a Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional) concluiu que a disposição nacional em causa não violava a Constituição italiana e devolveu o processo ao Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional).

12.      Tendo dúvidas quanto à compatibilidade da legislação nacional controvertida com o direito da União, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

«1.      A título principal: pode o artigo 267.°, terceiro parágrafo, TFUE ser interpretado no sentido de que não existe uma obrigação incondicional do órgão jurisdicional de última instância de reenviar a título prejudicial uma questão de interpretação do direito da União quando, no decurso do mesmo processo, a Corte Costituzionale [Tribunal Constitucional] tenha apreciado a constitucionalidade da legislação nacional, utilizando, em substância, os mesmos parâmetros normativos cuja interpretação é pedida ao Tribunal de Justiça, ainda que formalmente diferentes porque contidos em normas da Constituição e não dos Tratados europeus?

2)      A título subsidiário relativamente à primeira questão, para o caso de o Tribunal de Justiça resolver a questão de interpretação do artigo 267.°, [terceiro parágrafo], no sentido de que o reenvio prejudicial é obrigatório: obstam ao reenvio as disposições e princípios previstos nos artigos 26.° — Mercado interno — 49.° — Direito de estabelecimento — 56.° — Livre prestação de serviços — 63.° — Livre circulação de capitais — [TFUE] e 16.° — Liberdade de empresa […], bem como o princípio geral da confiança legítima (que “faz parte dos princípios fundamentais da União”, como o Tribunal de Justiça afirmou no seu acórdão de 14 de março de 2013, [Agrargenossenschaft Neuzelle, C‑545/11, EU:C:2013:169]), à adoção e aplicação de uma legislação nacional (artigo 1.°, [n.° 78], alínea b), n.os 4, 8, 9, 17, 23, 25, da Lei n.° 220/2010) que estabelece, também a cargo de entidades já concessionárias […], através de um aditamento ao contrato já existente (e sem nenhum prazo para a sua implementação gradual)»?

III. Análise

A.      Primeira questão

13.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o facto de o Tribunal Constitucional de um Estado‑Membro ter declarado a compatibilidade de uma medida nacional com a Constituição é relevante para a obrigação, imposta pelo artigo 267.° TFUE aos órgãos jurisdicionais nacionais de última instância, de submeter uma questão relativa à interpretação do direito da União ao Tribunal de Justiça, quando as normas nacionais que constituem a base da apreciação do Tribunal Constitucional são semelhantes às normas da União relevantes.

14.      Em meu entender, a resposta a esta questão é bastante simples.

15.      Seguindo as observações submetidas pelos Governos checo e italiano e pela Comissão, considero que o facto de o Tribunal Constitucional ter declarado uma medida nacional compatível com a Constituição não pode ter nenhum efeito sobre os direitos ou obrigações dos órgãos jurisdicionais nacionais consagrados no artigo 267.° TFUE. Isto é assim, independentemente de as disposições ou os princípios da Constituição nacional, tal como interpretados pelo Tribunal Constitucional, apresentarem semelhanças com algumas disposições ou princípios da União.

16.      Em primeiro lugar, importa recordar que, de acordo com jurisprudência assente, a possibilidade de um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro submeter uma questão sobre a constitucionalidade de uma medida nacional ao Tribunal Constitucional, ou o facto de tal questão ter sido colocada, não afeta de modo algum o direito desse órgão jurisdicional ou, consoante o caso, a sua obrigação, de apresentar um pedido de decisão prejudicial ao abrigo do artigo 267.° TFUE. Com efeito, os órgãos jurisdicionais nacionais dispõem da mais ampla faculdade de recorrer ao Tribunal de Justiça, se considerarem que um processo neles pendente suscita questões relativas à interpretação ou à apreciação da validade de disposições do direito da União com base nas quais têm de decidir (5).

17.      O Tribunal de Justiça também declarou que um órgão jurisdicional nacional ao qual tenha sido submetido um litígio relativo ao direito da União, que considere que uma disposição nacional é não só contrária ao direito da União mas padece igualmente de vícios de inconstitucionalidade, não fica privado da faculdade ou dispensado da obrigação, previstas no artigo 267.° TFUE, de submeter ao Tribunal de Justiça questões pelo facto de a declaração da inconstitucionalidade de uma regra de direito interno estar sujeita a recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (6). Por conseguinte, uma regulamentação nacional que impeça, quer antes da transmissão de uma questão de constitucionalidade quer posteriormente, os órgãos jurisdicionais nacionais de exercerem a sua faculdade ou de cumprirem a sua obrigação de submeter uma questão prejudicial ao abrigo do artigo 267.° TFUE, é incompatível com o direito da União (7). Os órgãos jurisdicionais, se considerarem que a apreciação de direito feita pelo tribunal de grau superior os pode levar a proferir uma sentença contrária ao direito da União, devem ter a faculdade de colocar ao Tribunal de Justiça as questões relevantes em matéria de interpretação do direito da União (8).

18.      Estes princípios aplicam‑se, a fortiori, sempre que o Tribunal Constitucional não interpretou o direito da União, mas apenas se pronunciou sobre questões de interpretação do direito nacional. Em conformidade com o acórdão Cilfit (9), um órgão jurisdicional nacional de última instância só pode abster‑se de apresentar um pedido de decisão prejudicial se as condições de acte clair ou de acte éclairé estiverem preenchidas, porque, nessas circunstâncias, o órgão jurisdicional nacional pode legitimamente entender que a aplicação correta do direito da União é de tal modo óbvia que não deixa lugar para qualquer dúvida razoável quanto à solução para a questão suscitada (10).

19.      No entanto, só muito dificilmente se entende como a interpretação de uma lei interna de um Estado‑Membro pelo Tribunal Constitucional nacional pode contribuir para afastar quaisquer dúvidas sobre a correta interpretação do direito da União. Apesar de intimamente interligados em diversos níveis, os regimes jurídicos dos Estados‑Membros e o da União mantêm‑se fundamentalmente distintos. Em particular, tal como o Tribunal de Justiça salientou no acórdão Cilfit (11), mesmo quando utilizam os mesmos conceitos (ou conceitos semelhantes), estes conceitos podem não ter o mesmo significado.

20.      A interpretação do artigo 267.° TFUE proposta nestas conclusões não é posta em causa pelo facto — referido no pedido de decisão prejudicial — de os particulares poderem, segundo os acórdãos Francovich (12) e Köbler (13), obter junto dos órgãos jurisdicionais nacionais indemnizações por violações do direito da União. Tal como a Comissão referiu, com razão, a possibilidade de invocar com sucesso, em determinadas circunstâncias, a responsabilidade dos Estados‑Membros em caso de erros judiciais é apenas uma solução de último recurso. Uma ação de responsabilidade de um Estado‑Membro visa apenas o ressarcimento dos danos causados por uma violação do direito da União, mas não cumpre o objetivo de garantir a aplicação uniforme do direito da União visada pelo artigo 267.° TFUE.

21.      Tal como o Tribunal de Justiça salientou no Parecer 2/13, a pedra angular do sistema jurisdicional concebido pelos Tratados da União Europeia é constituída pelo processo de reenvio prejudicial, previsto no artigo 267.° TFUE, que, ao instituir um diálogo de juiz para juiz — precisamente, entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros — tem por objetivo assegurar a unidade de interpretação do direito da União (14). Por conseguinte, uma interpretação diferente da que se propõe mitigaria o efeito útil do artigo 267.° TFUE.

22.      Tão‑pouco vislumbro qualquer risco acrescido de abusos pelas partes, como receia o órgão jurisdicional de reenvio. O processo de decisão prejudicial é um processo alheio a qualquer iniciativa das partes (15). Embora as partes possam sugerir ao órgão jurisdicional nacional que reenvie a título prejudicial uma ou mais questões ao Tribunal de Justiça, assim como o teor dessas questões, compete exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional decidir se e, nesse caso, que questões deverão ser submetidas ao Tribunal de Justiça. Ao abrigo do regime consagrado pelo artigo 267.° TFUE, o órgão jurisdicional nacional deve representar um papel‑chave na filtragem das propostas de pedido de decisão prejudicial apresentadas pelas partes e, consoante o caso, das questões de interpretação ou validade do direito da União que importa colocar ao Tribunal de Justiça.

23.      Por conseguinte, deve responder‑se à primeira questão que o facto de o Tribunal Constitucional de um Estado‑Membro ter declarado a compatibilidade de uma medida nacional com a constituição não afeta a obrigação, imposta aos órgãos jurisdicionais nacionais de última instância nos termos do artigo 267.° TFUE, de reenviar a título prejudicial ao Tribunal de Justiça uma questão relativa à interpretação do direito da União, mesmo quando as regras de direito nacional que constituem a base da apreciação do Tribunal Constitucional são semelhantes às regras da União pertinentes.

B.      Segunda questão

24.      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, em substância, saber se as regras do Tratado sobre o mercado interno, o artigo 16.° da Carta ou o princípio geral da tutela da confiança legítima obstam a uma regulamentação nacional como a que está aqui em causa, que estabelece novos requisitos financeiros, técnicos e profissionais aplicáveis tanto a concessionários já existentes como a futuros concessionários dos serviços de jogos de fortuna e azar.

25.      Esta questão deve obter resposta negativa.

1.      Artigos 26.°, 49.°, 56.° e 63.° TFUE

a)      Existência de uma situação puramente interna

26.      A essência da crítica da Global Starnet diz respeito ao facto de a Lei n.° 220/2010 ter introduzido novos requisitos para os concessionários, que também se aplicam às concessões já existentes. A Global Starnet não contesta a possibilidade de as autoridades italianas introduzirem estes requisitos para os concessionários em geral, mas apenas o facto de os mesmos também se aplicarem aos concessionários que já atuavam no mercado.

27.      Neste caso, a Global Starnet critica essencialmente a criação de um possível obstáculo — especialmente sob a forma de custos mais elevados — ao exercício das atividades dos prestadores de serviços que já estão estabelecidos em Itália e fornecem serviços a clientes italianos. Não alega que estes requisitos podem dissuadir as empresas estabelecidas no estrangeiro de se estabelecerem na Itália ou de prestarem serviços de jogo transfronteiriços.

28.      Neste contexto, surgem dúvidas legítimas sobre se a situação em causa não será puramente interna de Itália e, por conseguinte, não se inscreve no âmbito de aplicação das regras do mercado interno. Com efeito, de acordo com a jurisprudência assente, as disposições do Tratado FUE em matéria de liberdade de estabelecimento, de livre prestação de serviços e de livre circulação de capitais não são aplicáveis a uma situação em que todos os elementos estejam confinados a um único Estado‑Membro(16). Mais especificamente, o Tribunal de Justiça declarou que as medidas nacionais cujo único efeito é o de gerar custos suplementares para a prestação em causa e que afetam da mesma maneira a prestação de serviços entre Estados‑Membros e a prestação de serviços interna de um Estado‑Membro não costumam ser abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 56.° TFUE (17). Em meu entender, o mesmo princípio deverá aplicar‑se, mutatis mutandis, no que diz respeito aos artigos 49.° e 63.° TFUE.

29.      Por conseguinte, os eventuais efeitos das medidas em questão sobre o comércio de serviços no seio da União pareceriam demasiado aleatórios e demasiado indiretos para que estas medidas possam ser consideradas suscetíveis de restringir qualquer liberdade fundamental (18). Tendo isto em mente, os artigos 26.°, 49.°, 56.° e 63.° TFUE não parecem aplicar‑se ao processo principal.

30.      Contudo, na audiência, a Comissão defendeu uma interpretação muito ampla do artigo 49.° TFUE, alegando que o simples facto de o recorrente no processo principal não ser uma empresa italiana é suficiente para despoletar a aplicação desta disposição. No essencial, a Comissão considera que, uma vez que a regulamentação nacional em questão pode ter efeitos restritivos sobre a prossecução da atividade económica em causa na Itália, estas medidas constituem entraves à liberdade de estabelecimento. A Comissão cita o acórdão CaixaBank France (19) em apoio da sua argumentação.

31.      Porém, longe de corroborar os argumentos da Comissão, aquele processo sustenta o entendimento contrário.

32.      Com efeito, no processo CaixaBank France, o advogado‑geral A. Tizzano explicou exaustivamente a razão pela qual a interpretação defendida pela Comissão não é correta. Em particular, na sequência de uma análise detalhada da jurisprudência, afirmou que era «difícil qualificar de restrições contrárias ao Tratado disposições nacionais que regulam o exercício de uma atividade económica sem condicionar diretamente o acesso à mesma e sem efetuar discriminações, de direito ou de facto, entre operadores nacionais e estrangeiros, pelo simples facto de reduzirem a margem de conveniência económica do exercício dessa atividade», entendendo que «quando seja respeitado o princípio da não discriminação, […] uma medida nacional não pode qualificar‑se de restrição à liberdade de circulação […] a menos que, tendo em conta o seu objeto ou os seus efeitos, condicione diretamente o acesso ao mercado» (20).

33.      Naquele contexto, depois de ter apurado os factos do processo, o advogado‑geral concluiu que as medidas em questão no referido processo eram suscetíveis de colocar os bancos estrangeiros em condições de facto desfavoráveis relativamente aos bancos franceses e implicavam, por isso, uma restrição à liberdade de estabelecimento proibida pelo Tratado (21). O acórdão do Tribunal de Justiça parece subscrever inteiramente esta análise. O Tribunal de Justiça salientou os aspetos discriminatórios de facto daquelas medidas, explicando como poderiam condicionar negativamente o acesso das subsidiárias de bancos estrangeiros ao mercado francês (22).

34.      Por outro lado, não há nada no processo que sugira que a regulamentação nacional em causa possa surtir algum efeito sobre o comércio no seio da União. Em todo o caso, mesmo que o Tribunal de Justiça considerasse que, embora os factos do processo pareçam circunscrever‑se a um Estado‑Membro, há determinados efeitos transfronteiriços das medidas em causa que não podem ser ignorados (23), estas medidas ainda seriam compatíveis com as normas da União relativas ao mercado interno, pelos motivos que explicarei em seguida.

b)      Existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento

35.      Em primeiro lugar, importa determinar qual das disposições do Tratado FUE relativas ao mercado interno referidas pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) se aplica no presente processo. Aquele órgão jurisdicional refere, indiscriminadamente, uma série delas: artigos 26.°, 49.°, 56.° e 63.° TFUE.

36.      Parece‑me que, se se considerar que o processo não se circunscreve ao território italiano, teria de ser analisado à luz do artigo 49.° TFUE. Com efeito, a regulamentação nacional em causa limita a possibilidade de as empresas prestarem serviços de jogos de fortuna e azar em Itália.

37.      Em contrapartida, os artigos 26.°, 56.° e 63.° TFUE parecem ser irrelevantes neste processo. Com efeito, o artigo 26.° TFUE não parece ter, pelo menos no que diz respeito à matéria de facto do presente caso, nenhum conteúdo prescritivo adicional em relação ao dos artigos 49.°, 56.° e 63.° TFUE. Por seu turno, o artigo 56.° TFUE não é aplicável na medida em que as atividades reguladas exigem um estabelecimento em Itália. Por último, não parece justificar‑se uma análise separada da regulamentação nacional em causa à luz do artigo 63.° TFUE: quando muito, os possíveis efeitos do movimento transfronteiriço de capitais são acessórios e indissociáveis dos efeitos restritivos que as medidas em questão poderão ter sobre a prestação de serviços a que se destinam esses capitais (24).

38.      Posto isto, no que diz respeito à existência de uma restrição ao abrigo do artigo 49.° TFUE, observo que devem ser consideradas restrições à liberdade de estabelecimento as medidas que proíbam, perturbem ou tornem menos atrativo o exercício das liberdades garantidas por aquela disposição (25).

39.      Por conseguinte, a menos que o Tribunal de Justiça considere que os seus efeitos se circunscrevem a Itália, terá de concluir que a regulamentação nacional em causa constitui uma restrição na aceção do artigo 49.° TFUE. Com efeito, a introdução de requisitos mais exigentes para obter concessões para serviços de jogos de fortuna e azar é suscetível de dissuadir as empresas estrangeiras de se estabelecerem em Itália a fim de prestar esses serviços.

c)      Existência de uma justificação adequada e proporcional

40.      Em seguida, importa examinar se a restrição à liberdade de estabelecimento pode ser justificada. Segundo jurisprudência assente, a regulamentação dos jogos de fortuna ou azar é um dos domínios em que há divergências consideráveis de ordem moral, religiosa e cultural entre os Estados‑Membros. Na falta de harmonização a nível da União Europeia na matéria, os Estados‑Membros beneficiam de um amplo poder de apreciação na escolha do nível de proteção do consumidor e da ordem social, que considerem mais adequado (26).

41.      Consequentemente, os Estados‑Membros podem fixar os objetivos da sua política em matéria de jogos de fortuna ou azar e, eventualmente, definir com precisão o nível de proteção pretendido (27). Em especial, os Estados‑Membros podem procurar garantir um nível particularmente elevado de proteção neste domínio (28). No entanto, as restrições que os Estados‑Membros impõem devem preencher as condições que resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça a respeito, nomeadamente, da sua justificação por razões imperiosas de interesse geral e da sua proporcionalidade (29).

42.      Por conseguinte, para analisar se as restrições podem ser justificadas, é necessário, por um lado, identificar os objetivos prosseguidos pela regulamentação nacional em causa e, por outro, se estas medidas são conformes ao princípio da proporcionalidade.

43.      Quanto ao primeiro ponto, tal como decorre do texto da regulamentação nacional em causa e do pedido de decisão prejudicial, o objetivo dessa regulamentação consistia especialmente no reforço da solidez económico‑financeira dos concessionários e dos seus perfis de idoneidade e de fiabilidade, e no combate à criminalidade.

44.      Dada a situação particular em que os concessionários atuam, estes são — sem dúvida — objetivos legítimos que podem permitir uma restrição nos termos do artigo 49.° TFUE. O Tribunal de Justiça tem declarado, consistentemente, que o objetivo de assegurar que o operador económico dispõe de capacidade económica e financeira que lhe permita cumprir as obrigações que poderá contrair para com os apostadores vencedores pode constituir uma razão imperiosa de interesse geral capaz de justificar uma restrição às liberdades fundamentais (30). O Tribunal de Justiça chegou a uma conclusão semelhante no que diz respeito ao objetivo de combate à criminalidade associada aos jogos de fortuna e azar (31).

45.      Quanto ao segundo ponto, importa analisar, em primeiro lugar, se a regulamentação nacional em causa é adequada a contribuir para realizar estes objetivos e, nesse caso, se ultrapassam o que é necessário para alcançar esse objetivo.

46.      No que diz respeito ao primeiro destes aspetos, entendo que requisitos tais como a obrigação de manutenção do rácio de endividamento abaixo de um determinado valor e a sujeição a autorização prévia do destino dos lucros excedentes para fins diferentes de investimentos associados à atividade objeto da concessão estão manifesta e diretamente ligados ao objetivo de reforçar a solidez económico‑financeira dos concessionários. O requisito relativo ao destino dos lucros também me parece relacionado, pelo menos, até certo ponto, com o objetivo de combater a criminalidade associada aos jogos de fortuna e azar. Com efeito, a medida parece apta a garantir que os fundos derivados das atividades de jogos de fortuna e azar não são canalizados para outras atividades de natureza diferente.

47.      O requisito de sujeição a autorização prévia para operações que impliquem alterações subjetivas do concessionário e para operações de transferência das participações detidas pelo concessionário que possam implicar uma redução do rácio de adequação do capital, também contribui para o objetivo acima referido de assegurar a viabilidade dos concessionários. Com efeito, estas medidas destinam‑se manifestamente a garantir que a necessária capacidade técnica, económica e financeira dos concessionários é alcançada não apenas aquando da adjudicação das concessões, mas também que esta capacidade permanece inalterada ao longo da duração da concessão. Uma vez mais, os objetivos de ordem e segurança públicas também não parecem estranhos a estes requisitos. De facto, os mesmos também se destinam a evitar a possibilidade das empresas que eventualmente não cumpram os padrões éticos e profissionais possam, direta ou indiretamente, obter concessões adquirindo um concessionário.

48.      No que se refere, seguidamente, ao aspeto da proporcionalidade stricto sensu, recordo que compete, em princípio, ao órgão jurisdicional de reenvio, apreciar se, à luz de toda a prova que lhe é apresentada, a regulamentação nacional em causa não ultrapassa o que é necessário para alcançar o objetivo prosseguido (32).

49.      Porém, a fim de fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta tão útil quanto possível, o Tribunal de Justiça pode decidir fornecer informações sobre os fatores que deverão orientar esta análise do órgão jurisdicional. Tendo embora em conta a margem de apreciação de que beneficiam as autoridades italianas nesta matéria, os seguintes fatores parecem ter potencial relevância.

50.      Em primeiro lugar, a obrigação de manutenção do rácio de endividamento abaixo de um determinado valor — desde que esse valor seja razoável e não seja desproporcionado em relação à provável responsabilidade da empresa em relação aos seus clientes — não parece ser um requisito incomportável para um concessionário fiável que pretenda exercer a atividade de recolha de apostas. Nada no presente caso sugere que medidas menos restritivas poderiam ter sido igualmente eficazes na prossecução dos objetivos declarados.

51.      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio deverá ter em conta o facto de a regulamentação nacional em causa não estabelecer uma proibição total no que diz respeito às operações a que se refere o artigo 1.°, n.° 78, alínea b), pontos 8, 9 e 17, da Lei n.° 220/10, sujeitando‑as apenas a um regime de autorização prévia. O impacto restritivo destas medidas, que apenas introduzem uma forma de supervisão pública de determinadas transações, é, por conseguinte, limitado. Posto isto, gostaria de recordar que, de acordo com a jurisprudência assente, um regime de autorização administrativa prévia deve basear‑se em critérios objetivos, não discriminatórios e conhecidos de antemão, de forma a enquadrar o exercício do poder de apreciação das autoridades nacionais, a fim de que este não possa ser utilizado de maneira arbitrária (33).

52.      No entanto, Comissão alega que um regime de notificação simples poderia ter sido menos restritivo a este respeito. Não obstante, não vejo como esse regime permitiria a realização dos objetivos pretendidos pelo legislador italiano com o mesmo nível de eficácia das medidas em causa. É evidente que um regime de autorização prévia confere à autoridade o poder de reagir imediatamente em relação a transações que considere problemáticas, não permitindo a realização dessas transações ou solicitando mais informações antes de tomar alguma decisão a respeito das mesmas. Em contrapartida, um regime de notificação apenas serve o objetivo de informar as autoridades que determinadas transações foram ou serão realizadas, mas não confere a estas autoridades nenhum poder específico de intervenção.

53.      Por último, no que diz respeito à introdução de sanções em caso de incumprimento dos novos requisitos por parte dos concessionários, entendo que parecem ser a consequência necessária dos novos requisitos introduzidos pela regulamentação em causa. Com efeito, o seu objetivo é garantir que os concessionários cumprem estes requisitos. Por conseguinte, a questão de saber se as sanções previstas na regulamentação nacional em causa são compatíveis com as normas da União relativas à liberdade de circulação depende sobretudo de dois fatores. Em primeiro lugar, se os requisitos nos quais assentam estas sanções infringirem o artigo 49.° TFUE, as sanções também seriam incompatíveis com o direito da União (34). Em segundo lugar, mesmo que os requisitos fossem compatíveis com o direito da União, as sanções poderiam ainda ser incompatíveis com o direito da União por violação do princípio da proporcionalidade. Seria esse o caso se a sanção fosse de tal modo desproporcional à gravidade da infração que se tornaria um entrave às liberdades consagradas nos Tratados (35).

54.      Concluindo este ponto, quanto ao primeiro desses fatores, já declarei que, em meu entender, os novos requisitos não violam o artigo 49.° TFUE. Quanto ao segundo fator, é ao órgão jurisdicional nacional que compete analisar a natureza e o valor dessas sanções, quanto mais não seja porque o pedido de decisão prejudicial não contém nenhumas informações detalhadas a esse respeito.

d)      Existência de um período transitório suficiente

55.      O órgão jurisdicional de reenvio também sublinhou que a regulamentação nacional em causa não fornece nenhum período de «cumprimento gradual» dos novos requisitos, em benefício dos concessionários existentes.

56.      Devo admitir que essa afirmação me deixa de certa forma perplexo. Com efeito, resulta do próprio texto do artigo 1.°, n.° 79, da Lei n.° 220/2010 que os concessionários existentes têm 180 dias para assinar o aditamento ao contrato existente que incluirá os novos requisitos. A Global Starnet confirmou o mesmo na audiência.

57.      Na minha opinião, um período de seis meses dificilmente pode ser considerado como curto ou insignificante.

58.      Em todo o caso, compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se este período é adequado, tendo em conta que, para a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a questão de saber se é necessário um período de transição — numa situação como a que está em causa no processo principal — antes da entrada em vigor de novas restrições depende de uma análise global de todas as circunstâncias relevantes. Por outras palavras, o Tribunal de Justiça não declarou que o direito da União exige que a regulamentação nacional forneça sempre um período de transição que permita aos operadores económicos adaptarem‑se a uma mudança de política num determinado domínio do direito (36). Isto também se aplica aos serviços de jogos de fortuna e azar (37).

2.      Artigo 16.° da Carta

59.      Considero desnecessário analisar em separado as medidas nacionais em causa do ponto de vista do artigo 16.° da Carta.

60.      Em primeiro lugar, não há no pedido de decisão prejudicial nenhum elemento ou argumento que expresse uma preocupação particular com a eventual violação do artigo 16.° da Carta. Com efeito, o pedido de decisão prejudicial foca‑se sobretudo na eventual violação das normas da União relativas ao mercado interno.

61.      Em segundo lugar, conforme o Tribunal de Justiça já declarou, uma análise dos efeitos restritivos da legislação nacional em matéria de serviços de jogos de fortuna e azar do ponto de vista, por exemplo, do artigo 56.° TFUE abrange igualmente as eventuais restrições ao exercício dos direitos e das liberdades previstos nos artigos 15.° a 17.° da Carta. Assim, não é necessária uma análise separada a este título (38).

3.      O princípio da tutela da confiança legítima

62.      Por último, não me parece que um pedido baseado na confiança legítima possa, ao abrigo do direito da União, obter provimento.

63.      Desde logo, recordo que tal confiança só pode surgir se alguém receber garantias precisas, incondicionais e concordantes, provenientes de fontes autorizadas e fiáveis (39). Isto significa, por um lado, que as expectativas relativamente a uma situação particular merecedora de proteção ao abrigo do direito da União são criadas por uma instituição da UE (40) ou por outro organismo que atue na qualidade de «agente» da União (por exemplo, autoridades nacionais encarregadas da missão de transpor ou implementar o direito da União) (41) e, por outro, que as mesmas expectativas também são frustradas por uma instituição da UE ou por outro organismo que atue na qualidade de «agente» da União (42).

64.      Contudo, no presente caso, nenhuma destas condições parece estar preenchida. Por um lado, não foi dada nenhuma garantia por nenhuma instituição ou organismo da União ou por autoridades nacionais agindo na qualidade de agentes da União. Por outro lado, não houve nenhuma medida da União que tenha afetado a situação da recorrente no processo principal. Com efeito, tendo sido questionada na audiência, a Global Starnet confirmou que: (i) as alegadas garantias decorrem apenas da existência de uma determinada regulamentação nacional (que existia antes da adoção da regulamentação nacional em causa), e (ii) a alegada violação resulta da mera adoção da regulamentação nacional em causa.

65.      Consequentemente, a situação em causa no processo principal, incluindo no que diz respeito a esta matéria, não revela nenhum aspeto significativo que tenha relevância para a União Europeia. Nestas circunstâncias, um pedido baseado em legítimas expectativas — caso fosse possível — poderia, quando muito, basear‑se no direito nacional. Em todo o caso, as condições exigidas pelo direito da União para esse pedido ser submetido com sucesso não estão, manifestamente, satisfeitas.

66.      Com efeito, o Tribunal de Justiça tem declarado, consistentemente, que, na ausência de qualquer compromisso claro e expresso por parte da autoridade competente, um operador económico prudente e avisado não tem fundamento para depositar a sua confiança legítima na manutenção de uma situação existente que pode ser alterada no quadro do poder de apreciação das autoridades nacionais (43). Contudo, conforme acima referido, o presente caso não contém esse compromisso claro e expresso.

67.      Isto parece‑me tanto mais evidente quando a Global Starnet aceitou participar num programa de ensaios em troca do direito à renovação automática das suas concessões. Em meu entender, a razão de ser de um período de ensaio é precisamente testar, durante um período específico, o funcionamento de novos serviços e a eficácia e a adequação das regras pelas quais os mesmos se regem. Por conseguinte, deve esperar‑se — e um operador económico prudente deverá estar consciente desse facto — que estas regras podem vir a ser alteradas após a fase de ensaio.

68.      Por último, saliento ainda que o Tribunal de Justiça declarou que, pelo menos em determinadas circunstâncias, as autoridades italianas deviam garantir que tanto os antigos como os futuros concessionários estavam sujeitos às mesmas condições, a fim de garantir que têm oportunidades iguais no mercado (44). Nestas circunstâncias, e devido à natureza sensível dos serviços de jogos de fortuna e azar, um operador não pode presumir que, durante toda a vigência das suas concessões (e muito menos quando as suas concessões são renovadas), não possa ocorrer qualquer espécie de revisão das normas que regem estas atividades. Por outras palavras, o simples facto de determinadas normas (em especial, de natureza técnica, tal como as que estão em causa no processo principal) serem alteradas — incluindo no que diz respeito aos concessionários existentes — não pode conduzir automaticamente à violação da confiança legítima.

4.      Conclusão sobre a segunda questão

69.      Em face do exposto, a resposta à segunda questão deve ser que, numa leitura adequada, os artigos 49.°, 56.° e 63.° TFUE, o artigo 16.° da Carta e o princípio geral da tutela da confiança legítima devem ser interpretados no sentido de que não obstam a uma regulamentação nacional como a que aqui está em causa, que estabelece novos requisitos financeiros, técnicos e profissionais aplicáveis tanto a concessionários existentes como a futuros concessionários no domínio dos serviços de jogos de fortuna e azar.

70.      Para concluir este ponto, afigura‑se útil sublinhar uma vez mais que, quando muito, a adoção das medidas em causa pode suscitar questões ao abrigo do direito administrativo ou contratual italiano — o que compete aos órgãos jurisdicionais italianos apreciar. Com base na informação incluída no processo e à luz dos argumentos apresentados pela Global Starnet, não vejo nenhuma questão de incompatibilidade destas medidas com o direito da União.

IV.    Conclusão

71.      À luz das considerações anteriores, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália) nos seguintes termos:

–        o facto de o Tribunal Constitucional de um Estado‑Membro ter declarado a compatibilidade de uma medida nacional com a Constituição não afeta a obrigação, imposta aos órgãos jurisdicionais de última instância nos termos do artigo 267.° TFUE, de reenviar a título prejudicial ao Tribunal de Justiça uma questão relativa à interpretação do direito da União, mesmo quando as regras de direito nacional que constituem a base da apreciação do Tribunal Constitucional são semelhantes às regras relevantes da União.

–        numa leitura adequada, os artigos 49.°, 56.° e 63.° TFUE, o artigo 16.°, da Carta e o princípio geral da tutela da confiança legítima, devem ser interpretados no sentido de que não obstam a uma regulamentação nacional como a que aqui está em causa, que estabelece novos requisitos financeiros, técnicos e profissionais aplicáveis tanto a concessionários existentes como a futuros concessionários no domínio dos serviços de jogos de fortuna e azar..


1      Língua original: inglês.


2      V. as minhas conclusões nos processos Laezza (C‑375/14, EU:C:2015:788, n.° 2), e Politanò (C‑225/15, EU:C:2016:456, n.os 1 a 3), que descrevem a jurisprudência do Tribunal de Justiça nesta matéria.


3      GURI n.° 297, de 21 de dezembro de 2010.


4      O artigo 1.°, n.° 78, alínea b), pontos 4, 8, 9, 17, 23 e 25, da Lei n.° 220/2010 e o Decreto AAMS serão a seguir designados «disposições nacionais em causa».


5      V. acórdãos de 16 de de 2008, Cartesio (C‑210/06, EU:C:2008:723, n.° 88), e de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli (C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363, n.° 41).


6      V. acórdãos de 27 de junho de 1991, Mecanarte (C‑348/89, EU:C:1991:278, n.os 39, 45 e 46), e de 22 de junho de 2010 (Melki e Abdeli, C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363, n.° 45).


7      V., neste sentido, de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli (C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363, n.° 47).


8      V., neste sentido, acórdãos de 5 de outubro de 2010, Elchinov (C‑173/09, EU:C:2010:581, n.° 27), e de 15 de janeiro de 2013, Križan e o. (C‑416/10, EU:C:2013:8, n.° 68).


9      V. acórdão de 6 de outubro de 1982, Cilfit e o. (283/81, EU:C:1982:335).


10      Ibidem, n.° 16.


11      Ibidem, n.° 19.


12      Acórdão de 19 de novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428). V., acórdão de 5 de março de 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame (C‑46/93 e C‑48/93, EU:C:1996:79).


13      Acórdão de 30 de setembro de 2003, Köbler (C‑224/01, EU:C:2003:513). V., também, acórdãos de 28 de julho de 2016, Tomášová (C‑168/15, EU:C:2016:602), e de 9 de setembro de 2015, Ferreira da Silva e Brito e o. (C‑160/14, EU:C:2015:565).


14      Parecer 2/13 (Adesão da União Europeia à CEDH), de 18 de dezembro de 2014, (EU:C::2454, n.° 176).


15      V. acórdão de 18 de julho de 2013, Consiglio Nazionale dei Geologi e Autorità garante della concorrenza e del mercato (C‑136/12, EU:C:2013:489, n.° 28 e jurisprudência referida).


16      V. acórdão de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten (C‑268/15, EU:C:2016:874, n.° 47 e jurisprudência referida). V. também as minhas conclusões nos processos apensos Venturini (C‑159/12 a C‑161/12, EU:C:2013:529, n.os 26 e segs.); e Gullotta e Farmacia di Gullotta Davide & C. (C‑497/12, EU:C:2015:168, n.° 30 e segs.).


17      V., neste sentido, acórdãos de 8 de setembro de 2005, Mobistar e Belgacom Mobile (C‑544/03 e C‑545/03, EU:C:2005:518, n.° 31), e de 11 de junho de 2015, Berlington Hungary e o. (C‑98/14, EU:C:2015:386, n.° 36).


18      V. acórdão de 8 de maio de 2014, Pelckmans Turnhout (C‑483/12, EU:C:2014:304, n.° 25 e jurisprudência referida).


19      Acórdão de 5 de outubro de 2004, CaixaBank France (C‑442/02, EU:C:2004:586).


20      Conclusões do advogado‑geral A. Tizzano no processo CaixaBank France (C‑442/02, EU:C:2004:187, n.os 23 a 76) (Os sublinhados figuram no original).


21      Ibidem, n.os 77 a 89.


22      Acórdão de 5 de outubro de 2004, CaixaBank France (C‑442/02, EU:C:2004:586, n.os 8 a 16).


23      V., neste sentido, acórdãos de 7 de maio de 1997, Pistre e o. (C‑321/94 a C‑324/94, EU:C:1997:229, n.° 45), e de 14 de julho de 1988, Smanor (298/87, EU:C:1988:415, n.os 8 a 10).


24      V., neste sentido, acórdão de 18 de novembro de 1999, X e Y (C‑200/98, EU:C:1999:566, n.° 30).


25      V. acórdão de 22 de janeiro de 2015, Stanley International Betting e Stanleybet Malta (C‑463/13, EU:C:2015:25, n.° 45 e jurisprudência referida).


26      V. acórdão de 8 de setembro de 2016, Politanò (C‑225/15, EU:C:2016:645, n.° 39 e jurisprudência referida).


27      V., entre muitos, acórdão de 8 de setembro de 2009, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Baw International (C‑42/07, EU:C:2009:519, n.° 59).


28      V., neste sentido, acórdão de 15 de setembro de 2011, Dickinger e Ömer (C‑347/09, EU:C:2011:582, n.° 48).


29      V. acórdão de 8 de setembro de 2016, Politanò (C‑225/15, EU:C:2016:645, n.° 40 e jurisprudência referida).


30      Ibidem, n.° 46.


31      Acórdão de 28 de janeiro de 2016, Laezza (C‑375/14, EU:C:2016:60, n.° 32 e jurisprudência referida).


32      Ibidem, n.° 37 e jurisprudência referida.


33      V. acórdão de 4 de fevereiro de 2016, Ince (C‑336/14, EU:C:2016:72, n.° 55 e jurisprudência referida).


34      V., entre muitos, acórdão de 6 de março de 2007, Placanica e o. (C‑338/04, C‑359/04 e C‑360/04, EU:C:2007:133, n.os 68 a 71).


35      V. acórdão de 5 de julho de 2007, Ntionik e Pikoulas (C‑430/05, EU:C:2007:410, n.° 54 e jurisprudência referida).


36      V., por analogia, acórdão de 17 de julho de 1997, Affish (C‑183/95, EU:C:1997:373, n.° 57 e jurisprudência referida). V., também, as minhas conclusões no processo Kotnik e o. (C‑526/14, EU:C:2016:102, n.os 69 e 70).


37      V., neste sentido, acórdão de 11 de junho de 2015, Berlington Hungary e o. (C‑98/14, EU:C:2015:386, n.° 76 e segs.).


38      V. acórdão de 30 de abril de 2014, Pfleger e o. (C‑390/12, EU:C:2014:281, n.os 57 a 60).


39      V., entre muitos, acórdão de 13 de junho de 2013, HGA e o./Comissão (C‑630/11 P a C‑633/11 P, EU:C:2013:387, n.° 132 e jurisprudência referida).


40      V. acórdão de 17 de março de 2011, AJD Tuna (C‑221/09, EU:C:2011:153, n.° 71 e jurisprudência referida).


41      V., por exemplo, acórdãos de 20 de junho de 2002, Mulligan e o. (C‑313/99, EU:C:2002:386, n.° 48), e de 11 de julho de 2002, Marks & Spencer (C‑62/00, EU:C:2002:435, n.os 43 a 47).


42      V., neste sentido, acórdão de 28 de março de 1996, Anglo Irish Beef Processors International e o. (C‑299/94, EU:C:1996:148, n.os 34 e 35).


43      V., neste sentido, acórdão de 10 de setembro de 2009, Plantanol (C‑201/08, EU:C:2009:539, n.° 53 e jurisprudência referida).


44      V. acórdão de 16 de fevereiro de 2012, Costa e Cifone (C‑72/10 e C‑77/10, EU:C:2012:80, n.os 50 e segs.).