CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
PEDRO CRUZ VILLALÓN
apresentadas em 6 de outubro de 2015 (1)
Processo C‑308/14
Comissão Europeia
contra
Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte
(ação por incumprimento intentada pela Comissão contra o Reino Unido da Grã‑Bretanha e Irlanda do Norte)
«Incumprimento de Estado — Coordenação dos sistemas de segurança social — Regulamento (CE) n.° 883/2004 — Artigo 4.° — Igualdade de tratamento no que respeita ao acesso a prestações de segurança social — Prestações familiares — Direito de residência — Diretiva 2004/38/CE — Legislação nacional que recusa o abono de família e o crédito de imposto por menor a cargo a quem não tem direito de residência no Estado‑Membro em causa»
1. A Comissão acusa o Reino Unido de não ter cumprido o Regulamento n.° 883/2004, relativo à coordenação dos sistemas de segurança social (2), pelo facto de sujeitar os requerentes de determinadas prestações sociais ao chamado «teste do direito de residência», alegando que esse teste é incompatível com o sentido do referido regulamento e, simultaneamente, discriminatório.
2. Nestes termos, mais uma vez, e tal como nos recentes processos Brey (3), Dano (4) e Alimanovic (5), coloca‑se ao Tribunal de Justiça a questão da relação entre o Regulamento n.° 883/2004 e a Diretiva 2004/38 (6). E também aqui se suscita a questão da legitimidade de tomar em consideração a legalidade da residência no referido contexto do processamento de prestações sociais, embora com diferenças consideráveis. Assim, o que naquelas questões prejudiciais era um problema de interpretação da referida diretiva, com referência pontual ao Regulamento n.° 883/2004, é agora um problema de cumprimento deste regulamento no qual está em discussão a própria aplicabilidade da referida diretiva nas circunstâncias do presente processo.
3. A prevalência definitiva da acusação de tratamento discriminatório formulada contra o Reino Unido exigirá, substancialmente, que seja feita uma distinção básica entre duas questões: por um lado, a questão de princípio de saber se a aplicabilidade do referido regulamento deve ou não preterir as disposições da Diretiva 2004/38 que definem o caráter legal da residência de um cidadão da União num Estado‑Membro diferente do seu; por outro lado, a questão, de características diferentes, relativa às circunstâncias e às condições em que, se for caso disso, a verificação dessa situação de residência legal é compatível com a proibição de discriminação expressa no artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004.
I – Quadro jurídico
A – Direito da União
1. Regulamento n.° 883/2004
4. Segundo o artigo 1.°, alíneas j) e z), do Regulamento n.° 883/2004:
«Para efeitos do presente regulamento entende‑se por:
[…]
j) ‘Residência’, o lugar em que a pessoa reside habitualmente;
[…]
z) ‘Prestação familiar’, qualquer prestação em espécie ou pecuniária destinada a compensar os encargos familiares, com exclusão dos adiantamentos de pensões de alimentos e dos subsídios especiais de nascimento ou de adoção referidos no Anexo I.»
5. Nos termos do artigo 3.°, n.° 1, alínea j), do referido regulamento:
«1. O presente regulamento aplica‑se a todas as legislações relativas aos ramos da segurança social que digam respeito a:
[…]
j) Prestações familiares.»
6. O artigo 4.° do referido regulamento, sob a epígrafe «Igualdade de tratamento», estabelece:
«Salvo disposição em contrário do presente regulamento, as pessoas a quem o presente regulamento se aplica beneficiam dos direitos e ficam sujeitas às obrigações da legislação de qualquer Estado‑Membro nas mesmas condições que os nacionais desse Estado‑Membro.»
7. O artigo 11.°, n.os 1 e 3, alínea e), do referido regulamento dispõe o seguinte:
«1. As pessoas a quem o presente regulamento se aplica apenas estão sujeitas à legislação de um Estado‑Membro. Essa legislação é determinada em conformidade com o presente título.
3. Sem prejuízo dos artigos 12.° a 16.°:
[…]
e) Outra pessoa à qual não sejam aplicáveis as alíneas a) a d) está sujeita à legislação do Estado‑Membro de residência, sem prejuízo de outras disposições do presente regulamento que lhe garantam prestações ao abrigo da legislação de um ou mais outros Estados‑Membros.»
8. O artigo 67.° deste mesmo regulamento estabelece o seguinte:
«Uma pessoa tem direito às prestações familiares nos termos da legislação do Estado‑Membro competente, incluindo para os seus familiares que residam noutro Estado‑Membro, como se estes últimos residissem no primeiro Estado‑Membro competente […]»
2. Diretiva 2004/38
9. O artigo 7.° da Diretiva 2004/38 tem a seguinte redação:
«1. Qualquer cidadão da União tem o direito de residir no território de outro Estado‑Membro por um período superior a três meses, desde que:
a) Exerça uma atividade assalariada ou não assalariada no Estado‑Membro de acolhimento, ou
b) Disponha de recursos suficientes para si próprio e para os membros da sua família, a fim de não se tornar uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento durante o período de residência, e de uma cobertura extensa de seguro de doença no Estado‑Membro de acolhimento, ou
c) — Esteja inscrito num estabelecimento de ensino público ou privado, reconhecido ou financiado por um Estado‑Membro de acolhimento com base na sua legislação ou prática administrativa, com o objetivo principal de frequentar um curso, inclusive de formação profissional e
— Disponha de uma cobertura extensa de seguro de doença no Estado‑Membro de acolhimento, e garanta à autoridade nacional competente, por meio de declaração ou outros meios à sua escolha, que dispõe de recursos financeiros suficientes para si próprio e para os membros da sua família a fim de evitar tornar‑se uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento durante o período de residência; ou
d) Seja membro da família que acompanha ou se reúne a um cidadão da União que preencha as condições a que se referem as alíneas a), b) ou c).
[…]
3. Para efeitos da alínea a) do n.° 1, o cidadão da União que tiver deixado de exercer uma atividade assalariada ou não assalariada mantém o estatuto de trabalhador assalariado ou não assalariado nos seguintes casos:
a) Quando tiver uma incapacidade temporária de trabalho, resultante de doença ou acidente;
b) Quando estiver em situação de desemprego involuntário devidamente registado depois de ter tido emprego durante mais de um ano e estiver inscrito no serviço de emprego como candidato a um emprego;
c) Quando estiver em situação de desemprego involuntário devidamente registado no termo de um contrato de trabalho de duração determinada inferior a um ano ou ficar em situação de desemprego involuntário durante os primeiros 12 meses, e estiver inscrito no serviço de emprego como candidato a um emprego. Neste caso, mantém o estatuto de trabalhador assalariado durante um período não inferior a seis meses;
d) Quando seguir uma formação profissional. A menos que o interessado esteja em situação de desemprego involuntário, a manutenção do estatuto de trabalhador assalariado pressupõe uma relação entre a atividade profissional anterior e a formação em causa.
[…]»
10. Nos termos do artigo 14.° da referida diretiva:
«1. Os cidadãos da União e os membros das suas famílias têm o direito de residência a que se refere o artigo 6.°, desde que não se tornem uma sobrecarga excessiva para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento.
2. Os cidadãos da União e os membros das suas famílias têm o direito de residência a que se referem os artigos 7.°, 12.° e 13.° enquanto preencherem as condições neles estabelecidas.
Em casos específicos em que haja dúvidas razoáveis quanto a saber se um cidadão da União ou os membros da sua família preenchem as condições a que se referem os artigos 7.°, 12.° e 13.°, os Estados‑Membros podem verificar se tais condições são preenchidas. Esta verificação não é feita sistematicamente.
3. O recurso ao regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento por parte de um cidadão da União ou dos membros da sua família não deve ter como consequência automática uma medida de afastamento.
[…]»
11. De acordo com o seu artigo 15.°, n.° 1, «[o]s procedimentos previstos nos artigos 30.° e 31.° aplicam‑se, por analogia, a todas as decisões de restrição da livre circulação dos cidadãos da União e membros das suas famílias, por razões que não sejam de ordem pública ou de saúde pública».
12. O artigo 24.° da referida diretiva, sob a epígrafe «Igualdade de tratamento», dispõe:
«1. Sob reserva das disposições específicas previstas expressamente no Tratado e no direito secundário, todos os cidadãos da União que, nos termos da presente diretiva, residam no território do Estado‑Membro de acolhimento beneficiam de igualdade de tratamento em relação aos nacionais desse Estado‑Membro, no âmbito de aplicação do Tratado. O benefício desse direito é extensível aos membros da família que não tenham a nacionalidade de um Estado‑Membro e tenham direito de residência ou direito de residência permanente.
2. Em derrogação do n.° 1, o Estado‑Membro de acolhimento pode não conceder o direito a prestações de assistência social durante os primeiros três meses de residência ou, quando pertinente, o período mais prolongado previsto na alínea b) do n.° 4 do artigo 14.°, assim como, antes de adquirido o direito de residência permanente, pode não conceder ajuda de subsistência, incluindo a formação profissional, constituída por bolsas de estudo ou empréstimos estudantis, a pessoas que não sejam trabalhadores assalariados ou trabalhadores não assalariados, que não conservem esse estatuto ou que não sejam membros das famílias dos mesmos.»
B – Direito nacional
13. A legislação britânica aplicável irá sendo apresentada ao longo das presentes conclusões.
II – Procedimento pré‑contencioso
14. Durante o ano de 2008, a Comissão recebeu inúmeras queixas de cidadãos de outros Estados‑Membros residentes no Reino Unido, denunciando que as autoridades britânicas competentes lhes tinham recusado determinadas prestações sociais pelo facto de não terem direito de residência nesse Estado.
15. A Comissão enviou ao referido Estado‑Membro um pedido de esclarecimento, a que este respondeu, em duas cartas datadas de 1 de outubro de 2008 e de 20 de janeiro de 2009, que, segundo a legislação britânica, enquanto o direito de residência no Reino Unido é concedido a todos os nacionais britânicos, considera‑se que os nacionais de outros Estados‑Membros, em determinadas circunstâncias, não beneficiam desse direito. Segundo o Governo do Reino Unido, esta restrição baseia‑se no conceito de direito de residência tal como é definido na Diretiva 2004/38 e nas limitações que desta decorrem para esse direito, designadamente, na exigência de que uma pessoa economicamente não ativa disponha de recursos financeiros suficientes a fim de evitar tornar‑se uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento.
16. Em 4 de julho de 2010, a Comissão enviou ao Reino Unido uma notificação para cumprir, identificando as disposições da respetiva legislação que preveem que, para poder beneficiar de determinadas prestações, os requerentes devem ter direito de residência nesse Estado como requisito prévio para poderem ser considerados habitualmente residentes no Reino Unido.
17. Em 30 de julho de 2010, o Governo do Reino Unido respondeu à notificação para cumprir, argumentando que o seu sistema nacional não era discriminatório e que o requisito do direito de residência se justificava como medida adequada para garantir que as prestações eram pagas a pessoas suficientemente integradas no Reino Unido.
18. Em 29 de setembro de 2011, a Comissão emitiu um parecer fundamentado, ao qual o Reino Unido respondeu por carta de 29 de novembro de 2011.
19. Não tendo ficado satisfeita com esta resposta, a Comissão intentou a presente ação por incumprimento. Em face das declarações do Tribunal de Justiça no acórdão Brey (7), proferido em setembro de 2013, a Comissão decidiu limitar a sua ação às prestações familiares suprarreferidas, abono de família e crédito de imposto por filho a cargo, excluindo as «prestações pecuniárias especiais de caráter não contributivo» que também tinham sido objeto do parecer fundamentado e que, segundo o acórdão Brey, podem ser qualificadas como sendo de «assistência social» para os efeitos do artigo 7.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva 2004/38.
III – Tramitação do processo no Tribunal de Justiça
A – Ação da Comissão
1. Acusação principal
20. A acusação principal da Comissão contra o Reino Unido consiste no facto de, ao exigir que o requerente do abono de família ou do crédito de imposto por filho a cargo tenha direito de residência no Reino Unido como requisito para ser tratado como residente habitual (8) nesse Estado‑Membro, o Reino Unido ter acrescentado um requisito que não figura no Regulamento n.° 883/2004 e que priva as pessoas que não o preenchem da cobertura da legislação em matéria de segurança social de um dos Estados‑Membros que o referido regulamento pretende assegurar.
21. Segundo a Comissão, a definição de «residência» do artigo 1.°, alínea j), do Regulamento n.° 883/2004 prevê que, para efeitos do referido regulamento, a residência é «o lugar em que a pessoa reside habitualmente» (9). Para a Comissão, este lugar é determinado em função de aspetos puramente factuais, nomeadamente, a localização do centro dos interesses dessa pessoa, sem que a respetiva interpretação possa ser influenciada pelo disposto no artigo 7.° da Diretiva 2004/38. Acresce que o artigo 11.°, n.° 3, alínea e), do Regulamento n.° 883/2004 estabelece um sistema de regras de conflitos para determinar o Estado‑Membro a cuja legislação estão sujeitas as pessoas a que se aplica o Regulamento n.° 883/2004. Ora, ainda segundo a Comissão, o requisito do «direito de residência» estabelecido pelo Reino Unido «introduz uma derrogação» às regras do referido regulamento que determinam a legislação aplicável, de modo que nenhum Estado‑Membro seria obrigado a pagar determinadas prestações familiares às pessoas visadas, apesar de estas viverem num Estado‑Membro e de terem filhos a seu cargo.
2. Acusação subsidiária
22. Subsidiariamente, a Comissão alega que o Reino Unido, ao fazer depender o direito a determinadas prestações de segurança social de um requisito que relativamente aos nacionais do Reino Unido se encontra automaticamente preenchido, criou uma situação de discriminação direta contra os nacionais de outros Estados‑Membros, violando assim o artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004.
23. Segundo a Comissão, no decurso do procedimento pré‑contencioso, o Reino Unido deixou de considerar o critério do «direito de residência» como sendo apenas mais um elemento do teste da residência habitual (10) para passar a considerá‑lo um requisito independente, discriminatório mas justificado. A Comissão, invocando as conclusões da advogada‑geral E. Sharpston apresentadas no processo Bressol e o. (11), considera que o requisito do direito de residência constitui uma discriminação direta em razão da nacionalidade. Trata‑se de um requisito unicamente aplicável aos estrangeiros, uma vez que é preenchido automaticamente pelos nacionais britânicos residentes no Reino Unido, e que, na sua opinião, viola o princípio da igualdade do artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004. A Comissão refere que, tratando‑se de uma discriminação direta, não pode de forma alguma ser justificada.
24. Mesmo que se considerasse uma discriminação indireta, como afirma o Reino Unido, este não invocou, segundo a Comissão, nenhum argumento que permita considerar que a desigualdade de tratamento em questão é adequada e proporcionada à prossecução do objetivo de garantir a existência de uma ligação efetiva entre o requerente da prestação e o Estado‑Membro de acolhimento.
25. Por outro lado, o Reino Unido afirmou que as pessoas economicamente não ativas devem evitar tornar‑se uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado de acolhimento a não ser que tenham um certo grau de ligação com esse Estado. A Comissão admite que um Estado‑Membro queira certificar‑se de que existe uma ligação efetiva entre o requerente da prestação e o Estado‑Membro competente, mas, no caso das prestações de segurança social, é o próprio Regulamento n.° 883/2004 que institui a forma de comprovar a existência dessa ligação (neste caso concreto, o critério da residência habitual), sem que os Estados‑Membros possam alterar o que nele se dispõe e acrescentar requisitos suplementares. Segundo a Comissão, o Reino Unido nem sequer tentou demonstrar em que medida o critério do direito de residência é adequado para determinar se a ligação de uma pessoa com o Reino Unido é suficiente para lhe serem atribuídas prestações de segurança social no âmbito do referido regulamento.
B – Resposta
26. Na resposta à ação, o Reino Unido contesta a acusação principal da Comissão invocando fundamentalmente o acórdão Brey (12), no qual o Tribunal de Justiça, recusando então os mesmos argumentos que a Comissão também invoca no presente processo, declarou que «nada se opõe, em princípio, a que a atribuição de prestações sociais a cidadãos da União economicamente não ativos seja subordinada à exigência de que estes preencham requisitos para dispor de um direito de residência legal no Estado‑Membro de acolhimento» (n.° 44). Também declarou que o artigo 70.°, n.° 4, do Regulamento n.° 883/2004, que enuncia, tal como o artigo 11.°, uma «regra de conflito» que visa evitar a aplicação simultânea de várias legislações nacionais e impedir que as pessoas abrangidas pelo referido regulamento sejam privadas de proteção em matéria de segurança social por falta de legislação que lhes seja aplicável, não tem por objetivo determinar as condições de fundo da existência do direito às prestações ali em causa (prestações pecuniárias especiais de caráter não contributivo), mas que, «[e]m princípio, cabe à legislação de cada Estado‑Membro determinar essas condições» (n.° 41). Segundo o Reino Unido, o mesmo raciocínio é aplicável à regra de conflito do artigo 11.° do Regulamento n.° 883/2004, que cumpre a mesma função que o seu artigo 70.°, n.° 4 (sendo esta última específica das prestações pecuniárias especiais de caráter não contributivo), no que respeita a determinar a legislação nacional a que está sujeito o requerente.
27. No que respeita à acusação subsidiária da Comissão, o Reino Unido afirma que a acusação de discriminação direta aparece pela primeira vez na ação e que não figurava no parecer fundamentado que lhe foi enviado pela Comissão no âmbito do procedimento pré‑contencioso. Considera que o Tribunal de Justiça já declarou em vários acórdãos que é legítimo exigir aos nacionais da União economicamente não ativos que comprovem a existência de um direito de residência como requisito para poderem ter acesso igualmente a prestações de segurança social e que a Diretiva 2004/38 também reconhece expressamente esta possibilidade para evitar que estes cidadãos se tornem uma sobrecarga não razoável para regime segurança social do Estado‑Membro de acolhimento. É à luz deste princípio que deve ser interpretado o princípio da igualdade de tratamento do artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004.
28. O Reino Unido refere que o requisito do benefício de um direito de residência é apenas um dos três requisitos cumulativos a preencher pelo requerente para comprovar que se encontra no Reino Unido. O preenchimento dos outros dois (presença e residência habitual) é independente da nacionalidade do requerente, de modo que um nacional do Reino Unido não preenche automaticamente o requisito de «estar no Reino Unido» que lhe dá direito às prestações controvertidas. No entanto, o Reino Unido reconhece (13) que o preenchimento destes requisitos é mais fácil para os seus nacionais que para os nacionais de outros Estados‑Membros e que se trata de uma medida indiretamente discriminatória (14). Ora, segundo o Reino Unido, a medida está objetivamente justificada, como confirma o n.° 44 do acórdão Brey (15) num processo idêntico, designadamente pela finalidade de salvaguardar as finanças públicas, tendo em conta que as duas prestações em questão não são financiadas pelas contribuições dos beneficiários mas através dos impostos. Além do mais, não há nenhum indício de que seja desproporcionada com vista a realizar a finalidade prosseguida nos termos do acórdão Brey (16).
C – Réplica
29. Na sua réplica e no que respeita à acusação principal, a Comissão refere que o acórdão Brey (17) só se referia à aplicação da Diretiva 2004/38 relativamente às prestações pecuniárias especiais de caráter não contributivo, que apresentam características tanto de segurança social como de assistência social, enquanto a presente ação se refere a duas prestações familiares na aceção do artigo 3.°, n.° 1, alínea j), do Regulamento n.° 883/2004, ou seja, a autênticas prestações de segurança social, às quais não se aplica a Diretiva 2004/38. Neste sentido, a Comissão alude a um problema de tradução do acórdão Brey que faz com que no n.° 44 da versão inglesa se fale de «social security benefits» quando a versão em língua alemã (versão autêntica, uma vez que se tratava de um processo austríaco) fala de «Sozialleistungen» (18).
30. A Comissão chama a atenção para o facto de a legislação do Reino Unido, em vez de incentivar a livre circulação dos cidadãos da União, objetivo que está subjacente à legislação da União em matéria de coordenação dos regimes de segurança social, desencoraja‑a ao criar um obstáculo a essa liberdade sob a forma de uma discriminação em razão da nacionalidade, e fazendo com que uma pessoa possa não ter direito às prestações familiares controvertidas nem no Estado de origem, no qual já não tem a sua residência habitual, nem no Estado de acolhimento no caso de neste não beneficiar de um direito de residência.
31. Na réplica e no que respeita à acusação subsidiária, a Comissão censura o Reino Unido por interpretar a regra de conflito do artigo 11.° do Regulamento n.° 883/2004 no sentido de que permite a um Estado‑Membro introduzir um requisito discriminatório para o acesso a uma prestação de segurança social. A referência ao facto de os Estados‑Membros poderem introduzir restrições legítimas para evitar que um cidadão da União se torne uma sobrecarga não razoável para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento só se aplica no que respeita à assistência social e não às prestações de segurança social. Precisamente porque o mecanismo de coordenação dos regimes de segurança social que determina o pagamento das prestações familiares é da responsabilidade do Estado‑Membro onde a pessoa com filhos a seu cargo tem a sua residência habitual, não é legítima a finalidade de salvaguarda das finanças públicas invocada pelo Reino Unido. De qualquer modo, o critério estabelecido pelo Reino Unido não é proporcionado à prossecução dessa finalidade (por exemplo, uma pessoa que tenha pago impostos no Reino Unido durante muitos anos mas que se encontre desempregada há algum tempo pode ter perdido o seu direito de residência nesse Estado‑Membro e, consequentemente, o direito à prestação em causa) nem garante uma apreciação das circunstâncias do caso concreto como exige o acórdão Brey (19).
D – Tréplica
32. Na tréplica, o Reino Unido insiste que o seu direito interno pode ser aplicável de acordo com as regras de conflito do Regulamento n.° 883/2004 e uma pessoa que tenha a sua residência habitual nesse Estado‑Membro pode não ter, apesar de tudo, direito às prestações sociais específicas em causa.
33. O Reino Unido considera que o termo «social benefits» é mais amplo que o de «social security benefits» e que, em todo o caso, se o acórdão Brey (20) utiliza esse primeiro termo em vez do segundo nas versões alemã e francesa, essa circunstância amplia o alcance do princípio enunciado no n.° 44 e abrange também as prestações de segurança social. No acórdão Brey nunca se afirma que o que nela declara o Tribunal de Justiça se cinge exclusivamente às prestações pecuniárias especiais de caráter não contributivo. O mesmo acontece no acórdão Dano (21).
34. Além disso, segundo o Reino Unido, não se compreende que os Estados‑Membros não sejam obrigados a pagar prestações pecuniárias especiais de caráter não contributivo, que garantem um nível mínimo de subsistência, a cidadãos da União sem direito de residência e que, pelo contrário, sejam obrigados a pagar‑lhes prestações como as controvertidas no presente processo que vão para além da garantia desse nível mínimo de subsistência e que, por serem financiadas através de impostos, podem acabar por representar igualmente uma sobrecarga não razoável para as finanças públicas nos termos do acórdão Brey (22). As duas prestações controvertidas neste processo, acrescenta o Reino Unido, apresentam, de qualquer modo, características próprias da assistência social, embora tal não seja um requisito imprescindível para que o princípio enunciado no acórdão Brey (genericamente relativo a «prestações sociais») também seja aplicável às que são objeto da presente ação por incumprimento. Segundo o Reino Unido, o Tribunal de Justiça confirmou no acórdão Dano (23) que só os cidadãos da União economicamente não ativos cuja residência respeite as condições do artigo 7.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva 2004/38 podem almejar o direito a uma igualdade de tratamento com os nacionais quanto ao acesso às prestações sociais.
35. No que se refere ao argumento da Comissão de que a legislação britânica não garante uma apreciação das circunstâncias do caso concreto como exige o acórdão Brey (24), o Reino Unido afirma que este último argumento aparece pela primeira vez na réplica da Comissão e não foi mencionado durante o procedimento pré‑contencioso, o que exclui a sua admissibilidade ao abrigo do artigo 127.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.
36. De qualquer modo, o Reino Unido explica (25) como funciona na prática a atribuição das duas prestações controvertidas. O departamento responsável pela administração destas duas prestações, Her Majesty’s Revenue and Customs, tem em consideração, entre outros dados, a informação fornecida pelo Department for Work and Pensions relativamente ao facto de uma determinada pessoa ter recorrido à assistência social. Isto permite‑lhe verificar se essa pessoa tem um direito de residência no Reino Unido e, por conseguinte, se tem direito às duas prestações controvertidas. Nos casos em que existem dúvidas quanto à existência deste direito de residência, são apreciadas, caso a caso, as circunstâncias pessoais do requerente, incluindo o registo contributivo, a procura ativa de emprego e as reais perspetivas de o conseguir.
37. Em 4 de junho de 2015 realizou‑se uma audiência, na qual as duas partes reproduziram, no essencial, as alegações expostas e responderam às perguntas do Tribunal de Justiça.
IV – Apreciação
A – Introdução
38. Como já se referiu, por intermédio da presente ação a Comissão pede que o Tribunal de Justiça declare que o Reino Unido não cumpriu as obrigações decorrentes do artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004, por ter estabelecido, como condição para atribuição do abono e do crédito de imposto por filho a cargo a sujeição a um controlo, ou teste, de residência legal nesse Estado‑Membro.
39. A Comissão articula a sua ação sob a forma de uma acusação principal e uma acusação subsidiária. Através da acusação principal, a Comissão argumenta que o Reino Unido pretendeu incorporar um teste de residência legal no contexto da apreciação da residência habitual prevista no artigo 11.°, n.° 3, alínea e), do Regulamento n.° 883/2004, criando assim um requisito suplementar que não figura no referido preceito. Todavia, subsidiariamente, a Comissão argumenta que o referido Estado‑Membro impõe uma condição apenas exigível aos estrangeiros (dado que os cidadãos do Reino Unido beneficiam por princípio de um direito de residência nesse Estado‑Membro), e comete, assim, uma discriminação proibida pelo artigo 4.° do referido Regulamento.
40. Por conseguinte, segundo a abordagem da Comissão, pareceria necessário, em princípio, analisar ambos os argumentos pela ordem de prioridade indicada: em primeiro lugar, o da irregularidade de incorporar um teste de residência legal naquilo que, nos termos do artigo 11.°, n.° 3, alínea e), do Regulamento n.° 883/2004, é um teste de residência habitual; em segundo lugar, a discriminação resultante de exigir aos cidadãos da União não britânicos um teste de residência legal que não é exigido aos nacionais do Reino Unido. Pelas razões que exponho em seguida, a resposta a dar a estes argumentos não seguirá exatamente esta forma.
41. Com efeito, o argumento principal da Comissão foi, por assim dizer, «perdendo força», no decurso do presente litígio. Há que ter em conta que, a partir da resposta dada ao parecer fundamentado que lhe foi enviado pela Comissão, o Reino Unido negou reiteradamente que, com base na legislação controvertida, tenha pretendido justificar um controlo de legalidade como parte integrante do controlo do caráter habitual da residência. Com efeito, desde esse momento que o Reino Unido tem vindo a alegar que o teste de residência legal que aplica em casos como os que são objeto do presente processo é independente do controlo do caráter habitual da residência (26). Deste modo, o núcleo do conflito foi‑se deslocando para o alegado em segundo lugar, a acusação por uma discriminação proibida pelo artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004.
42. Em consequência, analisarei de forma relativamente breve o argumento invocado como acusação principal pela Comissão, antes de me debruçar sobre o que inicialmente foi alegado como subsidiário. No entanto, e antes de mais, as circunstâncias do caso exigem que se comece por esclarecer a natureza das prestações sociais objeto do presente processo.
B – Quanto às prestações sociais objeto da ação
43. A presente ação por incumprimento refere‑se ao abono de família («child benefit») e ao crédito de imposto por filho a cargo («child tax credit»), sendo ambas as prestações pecuniárias financiadas através dos impostos e não pelas contribuições dos beneficiários e tendo a finalidade comum de contribuir para compensar os encargos familiares. Nenhuma delas foi incluída pelo Reino Unido no Anexo X do Regulamento n.° 883/2004, não tendo sido posto em causa na presente lide, o facto de não serem consideradas prestações pecuniárias especiais de caráter não contributivo para efeitos do seu artigo 70.°
44. Segundo o artigo 141.° da Lei de 1992 relativa às contribuições e prestações de segurança social (Social Security Contributions and Benefits Act 1992), «qualquer pessoa que, durante a semana, tenha a seu cargo um ou mais filhos terá direito, ao abrigo do disposto neste título da presente lei, ao abono (denominado «child benefit») correspondente a essa semana, para o filho ou para cada um dos filhos a seu cargo» (27). O abono de família é uma prestação familiar destinada fundamentalmente a compensar parte das despesas decorrentes dos cuidados dispensados aos filhos por parte de quem tenha um ou mais a seu cargo. Regra geral, trata‑se de uma prestação universal, embora os requerentes com rendimentos mais elevados, sejam obrigados a devolver, aquando do cumprimento das suas obrigações fiscais, uma quantia que pode ir até ao limite da que receberam a esse título (28).
45. Por seu lado, o «crédito de imposto» por filho a cargo, regulado nos artigos 8.° e 9.° da Lei de 2002 sobre o crédito de imposto (Tax Credits Act de 2002 (29)) é igualmente uma prestação pecuniária paga a pessoas com filhos a cargo e cujo montante varia em função do nível de rendimentos do agregado familiar, do número de filhos a cargo, bem como de outras circunstâncias, como a eventual incapacidade de um dos membros do agregado familiar (30). O crédito de imposto por filho a cargo veio substituir uma série de prestações complementares que eram pagas aos requerentes de diversos meios de subsistência (dependentes do rendimento) por terem filhos a seu cargo, com a finalidade geral de reduzir a pobreza infantil (31).
46. No que respeita à natureza das referidas prestações, concordo com a Comissão quanto ao facto de se tratar de prestações de segurança social para efeitos do Regulamento n.° 883/2004. Concretamente, são prestações familiares na aceção do artigo 3.°, n.° 1, alínea j), conjugado com o artigo 1.°, alínea z), do referido regulamento, na medida em que, de acordo com as características enunciadas na jurisprudência do Tribunal de Justiça, são prestações concedidas automaticamente às pessoas que preencham determinados critérios objetivos, independentemente de qualquer apreciação individual e discricionária das necessidades pessoais, e que visam compensar os encargos familiares (32).
47. Além do mais, também concordo com a Comissão no sentido de a qualificação das prestações controvertidas como prestações de segurança social não ser posta em questão pelo facto de a sua concessão não estar sujeita a qualquer condição de cotização. Com efeito, o modo de financiamento de uma prestação é irrelevante para a sua qualificação como prestação de segurança social, o que se infere de, nos termos do artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 883/2004, as prestações não contributivas não serem excluídas do âmbito de aplicação do referido regulamento (33).
C – Quanto à conformidade do teste de residência legal, enquanto requisito suplementar incorporado na apreciação da residência habitual, com o regulamento
48. A acusação principal da Comissão baseia‑se no facto de o Reino Unido incorporar um teste de residência legal na apreciação da residência habitual prevista no artigo 11.°, n.° 3, alínea e), do Regulamento n.° 883/2004, criando assim um requisito suplementar que não figura no referido preceito. Nos termos da referida alínea e), «outra pessoa à qual não sejam aplicáveis as disposições das alíneas a) a d) [do artigo 11.°, n.° 3], está sujeita à legislação do Estado‑Membro de residência». Algumas precisões devem facilitar a resposta a esta acusação.
49. Há que recordar que o Regulamento n.° 883/2004 tem como objetivo coordenar os sistemas nacionais de segurança social dos Estados‑Membros, visando garantir o exercício efetivo do direito à livre circulação de pessoas. Neste sentido, o Regulamento n.° 883/2004 enuncia uma série de princípios comuns a respeitar pela legislação em matéria de segurança social de todos os Estados‑Membros e que asseguram, juntamente com o sistema de regras de conflito nele contido, que as pessoas que exercem a sua liberdade de circulação e residência no interior da União não sejam prejudicadas pelos diversos sistemas nacionais pelo facto de terem feito uso dessa liberdade (34). Um desses princípios comuns é o princípio da igualdade do artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004, que concretiza, no domínio específico da segurança social, a proibição de discriminação em razão da nacionalidade que é consagrada para todo o direito da União no artigo 18.° TFUE (35).
50. Enquanto regra de conflito (36), a finalidade do artigo 11.°, n.° 3, alínea e), do Regulamento n.° 883/2004 consiste em determinar a legislação nacional aplicável à atribuição das prestações de segurança social enunciadas no seu artigo 3.°, n.° 1 (nomeadamente, as prestações familiares), no caso das pessoas a que não sejam aplicáveis as disposições das alíneas a) a d) do referido artigo 11.°, n.° 3, ou seja, essencialmente, as pessoas economicamente inativas. A regra do artigo 11.°, n.° 3, alínea e), do Regulamento n.° 883/2004 tem por finalidade não só evitar a aplicação simultânea de várias legislações nacionais a uma determinada situação e as complicações que daí podem resultar, como também impedir que as pessoas abrangidas no âmbito de aplicação do referido regulamento sejam privadas de proteção em matéria de segurança social por falta de legislação que lhes seja aplicável (37).
51. Em virtude do referido artigo 11.°, n.° 3, as pessoas às quais é aplicável a alínea e) estão sujeitas à legislação do Estado‑Membro de residência, sem prejuízo de outras disposições do Regulamento n.° 883/2004 que lhes garantam prestações ao abrigo da legislação de um ou mais dos outros Estados‑Membros, que, tal como se define no artigo 1.°, alínea j), do referido regulamento, é «o lugar em que a pessoa reside habitualmente» (38).
52. Por conseguinte, para determinar onde se situa a residência «habitual» de uma pessoa abrangida no âmbito de aplicação do Regulamento n.° 883/2004 para efeitos do seu artigo 11.°, n.° 3, alínea e), há que atender a circunstâncias puramente factuais. Na verdade, a jurisprudência do Tribunal de Justiça (39) tem vindo a elaborar uma lista não exaustiva de elementos (todos eles factuais) que importa considerar para determinar o local de residência habitual da pessoa, lista que atualmente está consagrada no artigo 11.°, n.° 1, do Regulamento n.° 987/2009 (40), a fim de se poder estabelecer qual é o Estado‑Membro cuja legislação deve ser aplicada a uma situação concreta no âmbito do Regulamento n.° 883/2004. Ambas as partes parecem estar definitivamente de acordo quanto ao caráter factual do conceito de «residência habitual».
53. Dito isto, tudo indica que o problema é suscitado pelos termos em que foi redigida a legislação britânica, a qual evoca uma espécie de ficção jurídica ao declarar que «não se encontram» no território do Reino Unido as pessoas que aí não estiverem legalmente segundo o direito da União (41). Desta forma, a legislação nacional estaria a misturar desnecessariamente duas categorias, as de «residência legal» e «residência habitual», que, como corretamente expõe a Comissão, não se devem confundir. E mais do que isso, uma interpretação que se cinja estritamente ao teor literal dessa legislação podia inclusivamente levar‑nos a dar razão à Comissão quando diz que o Reino Unido incorporou no teste da residência habitual um elemento suplementar, o da residência legal, que é completamente alheio àquele e que, de certo modo, o «desvirtua», e, só por esse motivo, a defender que o Reino Unido não cumpre o Regulamento n.° 883/2004.
54. Ora, esta forma de raciocínio seria excessivamente simplista e, na minha opinião, definitivamente errada. É evidente que, independentemente de uma formulação ou linguagem claramente equívocas, o que o legislador nacional faz no presente processo não é «desvirtuar» o teste da residência habitual, utilizando o caráter legal da residência como forma de apreciar o caráter habitual da mesma (42). De facto, como já se referiu anteriormente, o Reino Unido, a partir da resposta dada ao parecer fundamentado da Comissão, afastou‑se de uma defesa do teste da residência legal que o vincule ao controlo da residência habitual do artigo 11.°, n.° 3, alínea e), do Regulamento n.° 883/2004. O que o Reino Unido efetivamente pretende, de forma autónoma em relação ao artigo 11.°, n.° 3, alínea e), do Regulamento n.° 883/2004, e, inclusivamente, em relação ao regulamento no seu conjunto, é apreciar a legalidade da residência tal como resulta do direito da União (e, designadamente, da Diretiva 2004/38) no âmbito da atribuição de determinadas prestações sociais.
55. A própria Comissão reconheceu esta mudança na argumentação do Reino Unido, formulando a sua acusação subsidiária no sentido de que, se não se incorpora um teste de residência legal à apreciação da residência habitual mas se controla apenas a legalidade da residência de forma autónoma, comete‑se inevitavelmente uma discriminação proibida pelo artigo 4.° do referido regulamento. Pode dizer‑se que a Comissão teve consciência desde o início de que o cerne do problema se encontra no artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004. De facto, embora tenha feito incidir toda a sua argumentação relativa à acusação principal na apreciação da residência (habitual) como elemento de conexão utilizado na regra de conflito do artigo 11.°, n.° 3, alínea e), do mesmo, a verdade é que só alega que o Reino Unido não cumpriu o artigo 4.° do referido regulamento.
56. Em face do exposto, deve ser julgada improcedente a acusação formulada a título principal pela Comissão, na medida em que o teste da residência legal introduzido pela legislação britânica não põe em causa, por si próprio, o estabelecido no artigo 11.°, n.° 3, alínea e), do Regulamento n.° 883/2004.
D – Quanto à discriminação contrária ao artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004 eventualmente cometida pelo Reino Unido ao proceder a um controlo da legalidade da residência do requerente no processamento de determinadas prestações sociais
1. Considerações preliminares
57. A Comissão, embora admitindo que o teste de residência legal possa ser autónomo em relação à apreciação da residência habitual do artigo 11.°, n.° 3, alínea e), do Regulamento n.° 883/2004, considera que o Reino Unido viola, ainda assim, esse regulamento. No entender da Comissão, apreciar a legalidade da residência no contexto do processamento de uma prestação de segurança social é discriminatório e contrário ao artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004, uma vez que se estabelece uma exigência aplicável unicamente aos estrangeiros, já que os nacionais do Reino Unido beneficiam, por princípio, de um direito de residência nesse Estado‑Membro. Com efeito, o referido artigo 4.°, impõe uma igualdade de tratamento no que respeito aos benefícios e às obrigações previstas na legislação nacional em matéria de segurança social. Este argumento exige uma resposta algo mais complexa que a abordagem que dele foi levada a efeito pela Comissão.
58. Em primeiro lugar, há que abordar uma questão de princípio, a de saber se um Estado‑Membro é obrigado a atribuir prestações sociais como as que são objeto do presente processo, as quais são atribuídas aos seus próprios nacionais e aos cidadãos da União que aí residam legalmente, a um cidadão da União cuja residência no respetivo território não é legal, ou seja, não preenche os requisitos estabelecidos, designadamente, na Diretiva 2004/38. É em função da resposta que seja dada a esta questão que se poderá avaliar se o facto de um Estado‑Membro só permitir a atribuição de determinadas prestações sociais às pessoas que residam legalmente no seu território é, por si só, discriminatório na aceção do artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004.
59. Em segundo lugar, no caso de ficar resolvido o problema anterior, há que a abordar a questão mais específica, mas também de princípio, de saber se Estado‑Membro do qual se pretende uma determinada prestação social como as que são objeto do presente processo pode legitimamente verificar a legalidade da residência do requerente simultaneamente com a apreciação da prova relativa ao caráter habitual da sua residência.
60. Finalmente, no caso de o problema referido em segundo lugar ser igualmente solucionado, haveria que abordar ainda a questão relativa a saber se este poder do Estado‑Membro é, por assim dizer, ilimitado, ou se, pelo contrário, só é legítimo sob determinadas condições. Como se verá, esta dimensão do problema surge apenas na parte final, e de forma lapidar, designadamente na réplica da Comissão, razão pela qual o Reino Unido considera esta alegação inadmissível por extemporânea. Assim, há que abordar, se for caso disso, a eventual inadmissibilidade desta alegação, independentemente das razões de oportunidade que me possam levar a propor uma resposta à mesma.
2. Relação com a jurisprudência dos acórdãos Brey e Dano
61. No entanto, previamente à ordem de exposição indicada, deve aqui referir‑se a eventual relevância para este processo da jurisprudência contida nos acórdãos Brey (43) e Dano (44), os quais foram reiteradamente referidos pelas partes ao longo do presente procedimento (45).
62. Desde logo, não há quaisquer dúvidas de que a jurisprudência contida nos acórdãos Brey (46) e Dano (47) é aplicável ao presente processo, na medida em que nesses acórdãos se aborda a questão de saber se é legítimo que um Estado‑Membro tenha em conta a legalidade da residência no contexto da atribuição de prestações sociais a cidadãos da União que residem no seu território.
63. Ora, enquanto nos processos Brey e Dano o Tribunal de Justiça se devia pronunciar, no âmbito dos respetivos pedidos de decisão prejudicial, sobre a correta interpretação do artigo 7.° da Diretiva 2004/38, cuja aplicabilidade não era posta em causa, no presente processo discute‑se, no âmbito de uma ação por incumprimento, se essa diretiva é aplicável, designadamente o referido preceito, no contexto da aplicação do Regulamento n.° 883/2004 (48).
64. Por outro lado, contrariamente ao processo em análise, os referidos acórdãos, tal como o acórdão Alimanovic (49), tinham por objeto prestações pecuniárias especiais de caráter não contributivo, reguladas no artigo 70.° do Regulamento n.° 883/2004 e consideradas prestações de assistência social para efeitos da Diretiva 2004/38 (50). A este respeito, enquanto a Diretiva 2004/38 toma em consideração a necessidade do recurso a prestações de assistência social no contexto da legalidade da residência (51), nada diz a respeito das prestações de segurança social como as que são objeto do presente processo.
65. Dito isto, à medida que a minha argumentação se for desenvolvendo irão surgindo as referências a esta jurisprudência consideradas relevantes.
3. Quanto à relação entre a obrigação de atribuição de prestações sociais por parte do Estado‑Membro e o caráter legal da residência, e respetivas consequências para a acusação de tratamento discriminatório
66. A primeira questão a abordar, como questão de princípio, é a de saber se um Estado‑Membro só é obrigado a atribuir, a um cidadão da União com residência no seu território, as prestações sociais que concede aos seus próprios cidadãos, quando a residência daquele preenche os requisitos estabelecidos, designadamente, na Diretiva 2004/38. Como já referi, a conclusão a que se chegue terá consequências relativamente à questão de saber se é discriminatório, na aceção do artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004, o facto de um Estado‑Membro não permitir a atribuição de prestações sociais como as que são objeto do presente processo às pessoas que não residem legalmente no seu território.
67. Para responder a esta questão, há que partir do princípio, seguindo o recordado pelo Tribunal de Justiça no acórdão Dano (52), que o artigo 20.°, n.° 1, TFUE confere o estatuto de cidadão da União a qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro. Como reiteradamente declarou o Tribunal de Justiça, o estatuto de cidadão da União tende a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros, que permite àqueles que, de entre estes últimos, se encontrem na mesma situação, obter, no domínio de aplicação ratione materiae do Tratado FUE, independentemente da sua nacionalidade e sem prejuízo das exceções expressamente previstas a este respeito, o mesmo tratamento jurídico (53).
68. Por conseguinte, qualquer cidadão da União pode invocar a proibição de discriminação em razão da nacionalidade que figura no artigo 18.° TFUE, em todas as situações abrangidas pelo domínio de aplicação ratione materiae do direito da União. Estas situações incluem as decorrentes do exercício da liberdade de circular e de permanecer no território dos Estados‑Membros, consagrada nos artigos 20.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alínea a), e 21.° TFUE (54).
69. No que respeita a este ponto, há que referir todavia, seguindo o declarado pelo Tribunal de Justiça no acórdão Dano (55), que, o artigo 18.°, n.° 1, TFUE proíbe toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade «no âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais». O artigo 20, n.° 2, segundo parágrafo, TFUE, precisa, expressamente, que os direitos que este artigo confere aos cidadãos da União «são exercidos nas condições e nos limites definidos pelos Tratados e pelas medidas adotadas para a sua aplicação». Além disso, o artigo 21.°, n.° 1, TFUE subordina, também ele, o direito dos cidadãos da União circularem e permanecerem livremente no território dos Estados‑Membros ao respeito «das limitações e das condições previstas no Tratados e nas disposições adotadas em sua aplicação» (56). Esta referência ao caráter limitado da referida liberdade também se encontra na anotação relativa ao artigo 45.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que consagra a liberdade de circulação e de permanência, quando se afirma que «o direito garantido pelo n.° 1 é o garantido pela alínea a) do n.° 2 do artigo 20.° [TFUE] […]. Nos termos do n.° 2 do artigo 52.° da carta, é aplicável nas condições e limites previstos nos Tratados» (57).
70. Há que recordar a este respeito que o Regulamento n.° 883/2004 apresenta uma relação direta de sentido com o direito fundamental à livre circulação dos cidadãos da União, uma vez que foi adotado para facilitar e garantir o seu exercício efetivo através da coordenação dos sistemas nacionais de segurança social (58). Com efeito, como já se referiu, o objetivo do Regulamento n.° 883/2004 é a coordenação dos sistemas nacionais de segurança social dos Estados‑Membros a fim de, como salientam os respetivos considerandos, de «garantir o exercício efetivo do direito à livre circulação de pessoas» (considerando 45) e, assim, «contribuir para a melhoria do nível de vida e das condições de emprego» das pessoas que se deslocam no interior da União (considerando 1). Por conseguinte, os direitos consagrados no Regulamento n.° 883/2004 destinam‑se a garantir a liberdade de circulação e de permanência dos cidadãos da União, nas condições legais em que essa liberdade é reconhecida (59).
71. Algumas das condições e limitações a que os artigos 20.° e 21.° TFUE sujeitam o exercício do direito de livre circulação e permanência no interior da União, enquanto liberdade não absoluta (60) mas «regulada», são estabelecidas na Diretiva 2004/38 (61). Esta diretiva, cuja conformidade com os Tratados não foi posta em causa pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos Brey (62), Dano (63) e Alimanovic (64), nem foi contestada no decurso deste processo, foi adotada, segundo o seu considerando 4, para remediar a abordagem sectorial e fragmentada que, até essa data, era característica da regulação do direito à livre circulação e permanência e para facilitar o exercício desse direito.
72. Assim, há que partir do princípio que as disposições da Diretiva 2004/38 que regulam o direito de livre circulação e permanência dos cidadãos da União também continuam a vigorar plenamente no quadro de um regulamento como o que está aqui em análise, destinado, em suma, a garantir a efetividade do direito à livre circulação e permanência no interior da União, não podendo ser consideradas inoperantes neste contexto. Neste sentido, não posso concordar com a afirmação da Comissão (65) de que «o conceito de residência no Regulamento n.° 883/2004 […] não está sujeito a qualquer condicionamento legal» (66).
73. Penso que não será excessivo recordar neste sentido que a ordem jurídica da União dificilmente poderia ser composta por uma pluralidade de compartimentos estanques. E, por maioria de razão, será assim no caso de duas normas de direito da União tão estreitamente relacionadas como as que são objeto do presente processo (67). Se, como se acaba de referir, o direito da União submete o exercício da livre circulação e residência a determinadas limitações e condições, contidas designadamente na Diretiva 2004/38, parece claro que as disposições do Regulamento n.° 883/2004 não podem ser interpretadas de maneira a neutralizar as condições e limitações que acompanham o reconhecimento e a consagração da referida liberdade (68). Em suma, há que procurar uma interpretação que, simultaneamente, promova o mais possível o estatuto de cidadania da União e a livre circulação e permanência dos cidadãos da União e respeite os objetivos prosseguidos por ambos os diplomas e a regulação neles contida.
74. Além do mais, entendo que a posição anteriormente exposta é confirmada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça que, tradicionalmente, tem associado o acesso a prestações sociais em igualdade de condições com os cidadãos do Estado‑Membro de acolhimento ao facto de o requerente residir «legalmente» no território desse Estado (69). Além disso, também o Tribunal de Justiça o confirmou recentemente no acórdão Brey quando afirmou que «nada se opõe, em princípio, a que a atribuição de prestações sociais a cidadãos da União economicamente não ativos seja subordinada à exigência de que estes preencham os requisitos para dispor de um direito de residência legal no Estado‑Membro de acolhimento» (70), e no acórdão Dano ao afirmar que um «cidadão da União, no que respeita ao acesso a prestações sociais […] só pode reclamar uma igualdade de tratamento com os nacionais do Estado‑Membro de acolhimento se a sua residência no território do Estado‑Membro de acolhimento respeitar as condições da Diretiva 2004/38» (71). Em meu entender, nada nos referidos acórdãos permite deduzir que tais afirmações se apliquem exclusivamente às prestações de assistência social ou às prestações pecuniárias de caráter não contributivas objeto daqueles litígios e não a outras prestações sociais (72).
75. Dito isto, não é possível negar que a premissa da regularidade da residência do requerente de uma prestação social como as que são objeto do presente processo podia ser abordada em termos de diferença de tratamento entre os cidadãos do Reino Unido e os cidadãos de outros Estados‑Membros. Ora, esta diferença de tratamento no que se refere ao direito de residência, por assim dizer, é inerente ao sistema e, de certa forma, anterior (73): por definição, a um nacional de um Estado‑Membro não é negado o direito a nele residir.
76. Por outras palavras, a diferença que surge entre cidadãos britânicos e cidadãos de outros Estados‑Membros decorre da própria natureza do sistema, no sentido de que, no atual estado do direito da União, pertencer a um determinado Estado‑Membro não é irrelevante quanto ao exercício do direito à livre circulação e permanência.
77. Em suma, em virtude de todas as considerações anteriores, considero que um Estado‑Membro só é obrigado pelo Regulamento n.° 883/2004 a conceder prestações sociais como as que são objeto do presente processo a um cidadão da União que, no respetivo território, exerça legalmente o seu direito de livre circulação e de permanência, ou seja, designadamente, preenchendo os requisitos estabelecidos na Diretiva 2004/38. Neste sentido, a diferença entre cidadãos britânicos e cidadãos de outros Estados‑Membros situa‑se num estádio anterior ao da aplicabilidade do artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004, motivo pelo qual não o desvirtua.
4. Quanto à apreciação da regularidade da residência do requerente para atribuição de determinadas prestações sociais
78. Solucionada a anterior questão de princípio, há que abordar um segundo aspeto que julgo se refere mais diretamente a argumento da Comissão: a questão de saber se, partindo do anteriormente exposto, um Estado‑Membro pode, sem violar a proibição de discriminação contida no artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004, proceder à apreciação da regularidade da residência de um cidadão da União que é nacional de outro Estado‑Membro precisamente com vista à decisão do requerimento de uma prestação social como as que são objeto do presente processo.
79. Assim enquadrada, o fulcro da questão seria agora, fundamentalmente, saber se o Estado‑Membro introduz uma desigualdade nas «obrigações», nos termos do artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004, pela circunstância, praticamente inegável, de serem os cidadãos da União não britânicos que suportam, em maior medida que os nacionais britânicos, o transtorno resultante de se submeter e, eventualmente, ultrapassar, a diligência de apreciação, por parte das autoridades britânicas da legalidade da sua residência para o processamento dos pedidos com vista à obtenção de uma prestação como o abono ou o crédito de imposto por filho a cargo. Dos esclarecimentos prestados pelo Reino Unido durante a audiência decorre que a maior ou menor necessidade de prova depende sempre das circunstâncias específicas do interessado, sendo provavelmente os cidadãos da União economicamente inativos os mais afetados por tais transtornos.
80. Neste sentido, pode desde já dizer‑se que esta complexidade adicional na atribuição das referidas prestações podia praticamente ser evitada na medida em que a Diretiva 2004/38 prevê mecanismos (concretamente, no seu artigo 8.°) (74) que permitem comprovar a legalidade da residência de um cidadão da União não nacional do Estado‑Membro de acolhimento através de um certificado de registo para cuja emissão as autoridades competentes do Estado‑Membro verificaram o preenchimento específico dos requisitos do artigo 7.° da referida diretiva. Caso o requerente possua esse certificado, o transtorno a que será sujeito para a decisão do requerimento de uma prestação social será mínimo ou, inclusivamente, nenhum: o requerente apenas terá de exibir, se tal lhe for solicitado, o documento em que o Estado‑Membro atesta que reside legalmente no seu território.
81. Ora, o Reino Unido observou durante a audiência que, embora os cidadãos da União tenham a possibilidade de pedir às autoridades britânicas um documento comprovativo de que gozam de um direito de residência nesse Estado‑Membro (o qual, evidentemente, faz prova deste facto), não é obrigatório possuir tal documento. De facto, na maioria dos casos o normal será o requerente não possuir um certificado comprovativo da legalidade da sua residência no Reino Unido.
82. No entanto, a possibilidade de um Estado‑Membro poder prever a emissão obrigatória desse tipo de documentos não exclui a viabilidade de um sistema como o do Reino Unido que, na maioria dos casos, na falta de um reconhecimento prévio como o anteriormente descrito, aplica um teste de residência legal para processamento dos pedidos de prestações sociais.
83. Com efeito, há que admitir aqui a existência de uma diferença de tratamento, a qualificar como discriminação indireta na medida em que serão os cidadãos da União não britânicos (sobretudo os economicamente não ativos) os mais afetados pelos transtornos e incómodos decorrentes desta diligência.
84. A este respeito, a questão que se coloca é a de saber se é necessário justificar esta discriminação indireta, facto que é negado pela Comissão. Neste sentido, e sem necessidade de uma maior argumentação, entendo que a necessidade de proteger as finanças do Estado‑Membro de acolhimento (75), argumento invocado pelo Reino Unido (76), justifica, em princípio, suficientemente a possibilidade de verificar nesse momento a legalidade da residência. Em suma, a referida apreciação é o meio que dispõe o Estado‑Membro de acolhimento para se assegurar de que não está a atribuir prestações sociais como as que são objeto do presente processo a pessoas às quais, em face do exposto sob a epígrafe anterior, não é obrigado a fazê‑lo.
85. Em conclusão, considero que, abordado em termos de princípio, o Estado‑Membro de acolhimento tem legitimidade para, se for caso disso, se certificar que um cidadão da União não se encontra ilegalmente no seu território, ou seja, fundamentalmente, que preenche os requisitos da Diretiva 2004/38, a fim de proceder à atribuição de prestações sociais como as que são objeto do presente processo, sem que a diferença de tratamento entre nacionais britânicos e os demais cidadãos da União daí decorrente represente uma discriminação proibida pelo artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004, na medida em que se encontra justificada nos termos ora expostos.
5. Quanto às exigências a que se submete a apreciação da regularidade da residência no Estado‑Membro de acolhimento
86. Os raciocínios expostos parecem ser suficientes para julgar improcedentes os argumentos da Comissão centrados na ilegitimidade, considerada em termos de princípio, do teste da residência legal previsto na legislação britânica. Há que ter em conta, todavia, que esta conclusão não equivale a aceitar qualquer forma de comprovar a legalidade da residência. Pelo contrário, considero que, para estar em conformidade com o direito da União, a referida apreciação deve respeitar uma série de requisitos, do ponto de vista processual, e até material, que exporei em seguida.
87. Na verdade, importa não esquecer que a apreciação em análise, na medida em que pode afetar o direito de livre circulação e de permanência que faz parte do estatuto de cidadania, deve ser interpretada em conformidade com este direito fundamental e ser exercida de uma forma o menos intrusiva possível.
88. Ora, há que observar novamente que a ação da Comissão não visou pôr em causa a forma como o Reino Unido efetua a referida apreciação. É certo que a Comissão alegou que o Reino Unido ao examinar o preenchimento dos requisitos do artigo 7.° da Diretiva 2004/38 não garante uma apreciação das circunstâncias do caso concreto, tal como exige o acórdão Brey (77). No entanto, este argumento aparece pela primeira vez na réplica da Comissão, não tendo sido mencionado no processo pré‑contencioso nem na própria ação. A Comissão referiu durante a audiência que não se trata aqui de um fundamento novo mas apenas mais um dos elementos que se devem ter em consideração para apreciar se o teste da residência legal, enquanto medida discriminatória, é proporcionado para alcançar o objetivo prosseguido. No entanto, concordo com o Reino Unido quanto ao facto de se tratar de um fundamento novo invocado numa fase processual em que não é admissível nos termos do artigo 127.° do Regulamento de Processo.
89. A Comissão fez incidir a sua ação na recusa de que, no âmbito da decisão dos requerimentos de atribuição de prestações sociais como as que são objeto do presente processo, um Estado‑Membro possa exigir que os requerentes dessas prestações não se encontrem no seu território em situação irregular no seu território e comprovar esse facto, e não na forma pela qual as autoridades britânicas apreciam, tanto de um ponto de vista processual como material, se um cidadão da União preenche ou não os requisitos da Diretiva 2004/38.
90. Não obstante o exposto, no caso de o Tribunal de Justiça considerar que deve apreciar o mérito deste argumento, e dado que o Reino Unido forneceu alguns elementos em resposta ao mesmo na tréplica e na audiência, formularei em seguida, de forma não exaustiva, uma série de considerações a este respeito.
91. Do ponto de vista processual, a diferença de tratamento em relação aos nacionais do referido Estado‑Membro que resulta do poder de apreciação das autoridades nacionais a que se fez referência, só será compatível com o estatuto de cidadania europeia e com o princípio da igualdade na medida em que seja exercido respeitando estritamente o princípio da proporcionalidade, ou seja, de forma adequada ao objetivo prosseguido, o menos invasiva possível e na medida estritamente necessária para alcançar o referido objetivo.
92. Por outro lado, a apreciação por parte das autoridades nacionais, no âmbito da atribuição das prestações sociais em causa, de que o requerente não se encontra ilegalmente no seu território, deve ser apreciada como um caso de verificação da legalidade da residência dos cidadãos da União nos termos da Diretiva 2004/38 à qual se refere o artigo 14.°, n.° 2, segundo parágrafo, da mesma e deve, por conseguinte, preencher também as respetivas condições (78).
93. Como se infere do referido pelo Reino Unido durante a audiência, a verificação de que se encontram preenchidas as condições estabelecidas na Diretiva 2004/38 para ter um direito de residência não é efetuada indiscriminadamente em todos os casos, facto que entendo ser proibido pelo artigo 14.°, n.° 2, da referida Diretiva (79): embora todos os requerentes das prestações sociais em causa (80) devam indicar no respetivo formulário os dados que atestam se têm um direito de residência no referido Estado‑Membro, só em caso de dúvidas é que as autoridades britânicas, segundo indicou o Reino Unido no n.° 21 da tréplica e confirmou na audiência, procedem às verificações necessárias para apreciar se o requerente preenche ou não os requisitos da Diretiva 2004/38 (designadamente, do seu artigo 7.°), ou seja, se tem um direito de residência nos termos desta.
94. Em meu entender, das afirmações do Reino Unido também não parece deduzir‑se que o referido Estado‑Membro presuma que a pessoa que requer as prestações objeto do presente processo se encontra ilegalmente no seu território, facto que seria contrário aos artigos 20.°, n.° 2 e 21.° TFUE, que reconhecem o direito dos cidadãos da União a circular e a permanecer livremente no território dos Estados‑Membros. Com efeito, o estatuto de cidadania europeia e, designadamente, a consagração de princípio do direito do cidadão da União a fixar a sua residência no território de qualquer Estado‑Membro, nas condições estabelecidas pelo direito da União, impede que a legislação nacional parta de qualquer pressuposto que possa ser equivalente à presunção de que um determinado cidadão, após os primeiros três meses de residência e anteriormente à aquisição da residência permanente, se encontra ilegalmente no referido território de tal modo que seja a este que cabe sistematicamente o ónus de provar o contrário. Em princípio, a presunção até deve ser no sentido contrário.
95. Além do mais, subsumindo‑se a verificação legítima da legalidade da presença do requerente no Reino Unido ao disposto no artigo 14.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/38, a eventual constatação por parte das autoridades nacionais de que este cidadão da União não tem um direito de residência nos termos da referida diretiva por não preencher os requisitos que esta estabelece, independentemente de implicar ou não uma medida de afastamento e apesar da sua natureza meramente declarativa (81), é uma «decisão [que restringe] a livre circulação dos cidadãos da União» na aceção do artigo 15.°, n.° 1, da referida diretiva (82), que, segundo se prevê nessa disposição, tem como consequência a aplicação das garantias dos artigos 30.° e 31.° desta.
96. Em meu entender, tal significa que as autoridades competentes, nestas circunstâncias, não se podem limitar a recusar pura e simplesmente a prestação requerida, mas que, além disso, ao abrigo do referido artigo 30.°, no que respeita especificamente à constatação da inexistência de um direito de residência nos termos da Diretiva 2004/38, devem informar a pessoa em questão, «de forma clara e completa» e «de uma forma que lhe permita compreender o conteúdo e os efeitos que têm para si», das razões em que se baseia a referida constatação, especificando também o tribunal ou autoridade administrativa perante o qual a pessoa em questão pode impugnar a decisão e o prazo de que dispõe para o efeito. Além disso, aplicam‑se as garantias processuais do artigo 31.° da Diretiva 2004/38, o que permitirá ao interessado submeter a fiscalização (administrativa e/ou jurisdicional) a legalidade da apreciação da administração.
97. Por último, do ponto de vista material, é fundamentalmente considerar que, no caso particular de um cidadão economicamente não ativo, as autoridades nacionais devem verificar, nos termos do disposto no artigo 7.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva 2004/38, se este dispõe «de recursos suficientes, para si próprio e para os membros da sua família, a fim de não se tornar uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento» durante o período de residência, bem como de um seguro de doença. Há que recordar neste ponto que o mero facto de um cidadão da União recorrer ao regime de assistência social no Estado‑Membro de acolhimento não é suficiente para lhe recusar o direito de residência (83), mas que, para tanto, será necessário que se tenha tornado uma sobrecarga não razoável para o regime de segurança social desse Estado. Ao apreciar este facto, as autoridades nacionais devem respeitar as diretrizes estabelecidas na jurisprudência do Tribunal de Justiça, designadamente, a obrigatoriedade de ter em conta as circunstâncias do caso concreto a que se faz referência no acórdão Brey (84), e informar, se for caso disso, o requerente do resultado negativo da sua decisão nos termos previstos no artigo 30.° da referida Diretiva.
98. Dito isto e no caso de se considerar que é necessário analisar, sob esta perspetiva, a legalidade da legislação nacional impugnada, entendo que a Comissão não logrou demonstrar que o Reino Unido não está a respeitar as condições de forma e mérito que se acabam de referir, pelo que também deste ponto de vista não deve a presente ação por incumprimento ser julgada procedente.
6. Recapitulação
99. Em conclusão, considero que não constitui uma discriminação proibida pelo artigo 4.° do Regulamento n.° 883/2004 o facto de a legislação nacional prever que, para o processamento dos pedidos de atribuição de prestações sociais como o abono de família ou o crédito de imposto por filho a cargo, as autoridades do Estado‑Membro possam efetuar as verificações necessárias para se certificarem de que a residência no seu território dos nacionais de outros Estados‑Membros que requerem essas prestações é legal. No entanto, para esse efeito, as autoridades que efetuam essa verificação devem, do ponto de vista processual, respeitar sempre os princípios expostos, designadamente, o princípio da proporcionalidade, bem como o disposto nos artigos 14.°, n.° 2, segundo parágrafo, 15.°, n.° 1, 30.° e 31.° da Diretiva 2004/38.
V – Despesas
100. Uma vez que proponho que a ação seja julgada improcedente, deve a Comissão ser condenada no pagamento das despesas em conformidade com o artigo 138.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.
VI – Conclusão
101. Por conseguinte, em face das considerações anteriormente expostas, proponho ao Tribunal de Justiça que decida o seguinte:
1) Julgar a ação improcedente.
2) Condenar a Comissão Europeia no pagamento das despesas.