Language of document : ECLI:EU:C:2005:775

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

15 de Dezembro de 2005 (*)

«Livre circulação de pessoas e de serviços – Conceito de ‘trabalhador’ – Condição de uma relação de subordinação – Veículo automóvel – Colocação à disposição do trabalhador pelo empregador – Veículo matriculado no estrangeiro – Empregador estabelecido noutro Estado‑Membro – Matrícula e tributação do veículo automóvel»

Nos processos apensos C‑151/04 e C‑152/04,

que têm por objecto pedidos de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentados pelo tribunal de police de Neufchâteau (Bélgica), por decisões de 16 de Janeiro de 2004, entrados no Tribunal de Justiça em 25 de Março de 2004, nos processos penais contra

Claude Nadin,

Nadin‑Lux SA (C‑151/04)

e

Jean‑Pascal Durré (C‑152/04),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: P. Jann, presidente de secção, K. Schiemann, N. Colneric (relatora), J. N. Cunha Rodrigues e E. Levits, juízes,

advogado‑geral: F. G. Jacobs,

secretário: K. Sztranc, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 24 de Fevereiro de 2005,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de J.‑P. Durré, por J.‑F. Cartuyvels, avocat,

–        em representação do Governo belga, por E. Dominkovits, na qualidade de agente, assistida por B. van de Walle de Ghelcke, avocat,

–        em representação do Governo finlandês, por T. Pynnä e A. Guimaraes‑Purokoski, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por C. White e K. Manji, na qualidade de agentes, assistidos por P. Whipple, barrister,

–        em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por D. Martin e M. N. B. Rasmussen, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 26 de Maio de 2005,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objecto a interpretação dos artigos 10.° CE, 39.° CE, 43.° CE e 49.° CE.

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de dois processos penais instaurados contra C. Nadin e J.‑P. Durré, ambos residentes na Bélgica, por infracção à legislação belga que obriga a matricular na Bélgica os veículos de empresa que sejam disponibilizados aos trabalhadores por sociedades sediadas noutro Estado‑Membro.

 Quadro jurídico

 Regulamentação comunitária

3        O artigo 10.° CE enuncia:

«Os Estados‑Membros tomarão todas as medidas gerais ou especiais capazes de assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes do presente Tratado ou resultantes de actos das instituições da Comunidade. Os Estados‑Membros facilitarão à Comunidade o cumprimento da sua missão.

Os Estados‑Membros abster‑se‑ão de tomar quaisquer medidas susceptíveis de pôr em perigo a realização dos objectivos do presente Tratado.»

4        O artigo 39.° CE dispõe:

«1.      A livre circulação dos trabalhadores fica assegurada na Comunidade.

2.      A livre circulação dos trabalhadores implica a abolição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, entre os trabalhadores dos Estados‑Membros, no que diz respeito ao emprego, à remuneração e demais condições de trabalho.

3.      A livre circulação dos trabalhadores compreende, sem prejuízo das limitações justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, o direito de:

a)      Responder a ofertas de emprego efectivamente feitas.

b)      Deslocar‑se livremente, para o efeito, no território dos Estados‑Membros.

c)      Residir num dos Estados‑Membros a fim de nele exercer uma actividade laboral, em conformidade com as disposições legislativas, regulamentares e administrativas que regem o emprego dos trabalhadores nacionais.

d)      Permanecer no território de um Estado‑Membro depois de nele ter exercido uma actividade laboral, nas condições que serão objecto de regulamentos de execução a estabelecer pela Comissão.

4.      O disposto no presente artigo não é aplicável aos empregos na Administração Pública.»

5        O artigo 43.° CE preceitua:

«No âmbito das disposições seguintes, são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro. Esta proibição abrangerá igualmente as restrições à constituição de agências, sucursais ou filiais pelos nacionais de um Estado‑Membro estabelecidos no território de outro Estado‑Membro.

A liberdade de estabelecimento compreende tanto o acesso às actividades não assalariadas e o seu exercício, como a constituição e a gestão de empresas e designadamente de sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 48.°, nas condições definidas na legislação do país de estabelecimento para os seus próprios nacionais, sem prejuízo do disposto no capítulo relativo aos capitais.»

6        O artigo 49.°, primeiro parágrafo, CE preceitua:

«No âmbito das disposições seguintes, as restrições à livre prestação de serviços na Comunidade serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados‑Membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação.»

 Legislação nacional

7        O artigo 1.° do Decreto real, de 20 de Julho de 2001, relativo à matrícula de veículos (Moniteur belge de 8 de Agosto de 2001, p. 27031), precisa:

«Para efeitos de aplicação do presente decreto, entende‑se por:

[…]

27.°      estabelecimento fixo:

–        estabelecimento estável e físico no qual uma pessoa colectiva tem a sua sede social ou no qual se encontra a sua direcção efectiva, ou local em que um ou vários dos seus órgãos se reúnem e tomam as suas decisões, ou local em que é exercida uma actividade que faça parte da sua actividade económica ou do seu objecto social ou ainda local em que essa pessoa é representada por uma ou várias pessoas singulares que actuam em seu nome ou em sua representação.»

8        O artigo 3.° do referido decreto dispõe:

«1.      Os residentes na Bélgica matriculam os veículos que pretendem pôr em circulação na Bélgica no registo de veículos referido no artigo 6.°, mesmo que esses veículos já tenham sido matriculados no estrangeiro.

Ser residente na Bélgica significa preencher um dos seguintes requisitos:

a)      estar inscrito nas listas de habitantes de um município belga;

b)      estar registado no registo comercial belga ou no registo do artesanato belga como pessoa singular ou colectiva;

c)      tratando‑se de pessoa colectiva que não esteja registada junto do registo comercial ou do artesanato belga, ter sido constituída por ou nos termos de direito internacional, estrangeiro ou belga e possuir um estabelecimento fixo na Bélgica onde o veículo é administrado ou utilizado.

2.      No entanto, nos casos seguintes, a matrícula na Bélgica de veículos matriculados no estrangeiro e postos em circulação pelas pessoas referidas no n.° 1 não é obrigatória para:

[…]

2.°      os veículos utilizados por uma pessoa singular no exercício da sua profissão, matriculados no estrangeiro em nome de um proprietário estrangeiro a que essa pessoa está vinculada por um contrato de trabalho; uma declaração emitida pela entidade legal competente em matéria de IVA [a seguir ‘declaração IVA’] tem de acompanhar o veículo; as condições detalhadas de utilização do veículo são fixadas pelo Ministro das Finanças.»

9        O artigo 14.° da circular n.° 1/2000 da Administração Fiscal belga, de 3 de Maio de 2000, intitulada «Utilização de veículos na Bélgica – Regime da transferência e da não transferência», prevê:

«Todos os veículos aqui referidos são veículos a motor utilizados como veículo de empresa que não se enquadram na definição constante no n.° 12, supra. Trata‑se, entre outros, de automóveis, automóveis mistos, mini‑autocarros, veículos todo‑o‑terreno, etc.

Quando esses veículos sejam utilizados por pessoas singulares que residam na Bélgica por imperativos profissionais, com ordem do respectivo empregador, estabelecido noutro Estado‑Membro, aplica‑se a esses veículos o regime da não transferência nos termos do artigo 12.° bis, segundo parágrafo, ponto 7, do código do IVA, desde que o regime de importação temporária com isenção total dos direitos de importação fosse aplicável se este veículo proviesse de um país terceiro e tivesse sido enviado para a Bélgica. Além disso, o trabalhador residente na Bélgica pode dar ao veículo uma utilização privada desde que esta tenha natureza acessória e ocasional relativamente à utilização profissional e esteja prevista no contrato de trabalho.

Relativamente a estes veículos, o regime especial da isenção de importação temporária e ipso facto o regime das não transferências só são aplicáveis se estiverem reunidas as condições previstas no n.° 15.»

10      Esta circular enumera no artigo 15.° as condições que têm de estar reunidas para se poder beneficiar do regime de importação temporária e enuncia designadamente:

«[…]

b)      o veículo tem de ser propriedade do empregador. No entanto, relativamente aos veículos alugados ou adquiridos através de contrato de locação financeira, aplica‑se o disposto no n.° 9, supra;

[…]

f)      ocupando o beneficiário um lugar de dirigente (gerente ou administrador da sociedade), só poderá recorrer ao regime especial se tiver um estatuto de empregado, tendo consequentemente de demonstrar que existe uma verdadeira relação de subordinação que o liga à sociedade. A existência de uma relação de subordinação pressupõe que o dirigente da empresa tem de provar que está sujeito à autoridade de outra pessoa mandatada ou de um órgão da sociedade (conselho de administração, comissão executiva, gerência […]), que detenha uma posição de autoridade em relação à qual ele não pode exercer qualquer influência significativa. Neste sentido, os representantes de uma sociedade unipessoal, os sócios fundadores de uma sociedade ou os principais accionistas não podem beneficiar do regime especial.»

11      O artigo 9.°, primeiro período, da referida circular dispõe:

«Tendo um empregador estrangeiro disponibilizado um veículo alugado ou adquirido por contrato de locação financeira para que seja utilizado por um empregado/residente na Bélgica que pode beneficiar do regime especial constante dos n.os 14 e 15, infra, esse empregado pode requerer que seja emitida a seu favor uma declaração desde que sejam observadas as condições exigidas e as formalidades fixadas.»

12      Na Bélgica, vários impostos sobre os veículos automóveis estão directamente ligados à sua matrícula. Deste modo, é devido um imposto quando um veículo é posto em circulação por força do artigo 94.°, primeiro parágrafo, n.° 1, do Código dos Impostos Equiparados a Impostos sobre os Rendimentos (code des taxes assimilées aux impôts sur le revenu, a seguir «CTA»).

13      Esta disposição prevê:

«Institui‑se a favor do Estado um imposto equiparado aos impostos sobre os rendimentos que incide sobre:

1.°      os automóveis, automóveis mistos, mini‑autocarros e motociclos, como definidos na legislação relativa à matrícula dos veículos a motor e reboques, na medida em que esses veículos tenham ou devam ter uma chapa de matrícula que não seja de ‘teste’, ‘comerciante’ ou provisória que não seja uma chapa de matrícula internacional, atribuída no âmbito desta legislação.»

14      O artigo 99.°, n.° 1, do CTA enuncia a este propósito:

«Presume‑se que os veículos referidos no artigo 94.°, n.° 1, são postos em circulação na Bélgica a partir do momento em que estão ou deviam estar registados no registo de matrículas do Serviço de Circulação Rodoviária.»

15      O artigo 21.° do CTA, que fixa o imposto de circulação sobre os veículos automóveis, dispõe:

«O imposto é devido pela pessoa singular ou colectiva cujo nome conste ou deva constar do certificado de matrícula, enquanto o veículo estiver ou deva estar registado em nome dessa pessoa no registo de matrículas da Direcção para Matrícula de Veículos.

Os veículos referidos no primeiro parágrafo são os automóveis, os automóveis mistos, os mini‑autocarros, as ambulâncias, os motociclos, os triciclos com motor, os quadriciclos com motor, as camionetas, camionetas lentas, os reboques de barcos, os reboques de campismo, os veículos de campismo, os reboques e os semi‑reboques com peso bruto máximo autorizado até 3 500 kg.»

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

 Processo C‑151/04

16      C. Nadin, de nacionalidade belga, reside na Bélgica, mas trabalha no Luxemburgo onde é administrador‑delegado da sociedade Nadin‑Lux SA.

17      Em 21 de Março de 2002, circulava na Bélgica, num veículo matriculado no Grão‑Ducado do Luxemburgo e propriedade da sociedade Crédit Lease SA, sociedade estabelecida no Luxemburgo, quando foi alvo de um controlo rodoviário efectuado pelos serviços de alfândegas.

18      No decurso do procedimento criminal, no órgão jurisdicional de reenvio, C. Nadin declarou que o veículo tinha sido comprado pela sociedade Nadin‑Lux SA, que foi ele quem assinou a nota de encomenda do veículo e que este foi pago pela sociedade Crédit Lease SA. Dispunha de um contrato de locação com a duração de cerca de 42 meses que tivera o seu início em Janeiro de 2000.

19      Resulta igualmente do processo anexo à decisão de reenvio que o interessado requereu que lhe fosse emitida a declaração IVA, mas que este pedido foi indeferido por C. Nadin ser administrador da sociedade que o emprega.

20      É acusado de, em 21 de Março de 2002, ter utilizado no exercício da sua profissão um veículo matriculado no estrangeiro em nome de um proprietário estrangeiro ao qual estava vinculado por um contrato de trabalho sem que uma declaração IVA acompanhasse o veículo.

21      C. Nadin alega que deve ser considerado um trabalhador comunitário.

 Processo C‑152/04

22      J.‑P. Durré, de nacionalidade belga, reside na Bélgica, mas trabalha no Luxemburgo para a sociedade Delisalade SA.

23      Em 15 de Março de 2002, circulava na Bélgica num veículo matriculado no Luxemburgo em nome da Delisalade SA, quando foi alvo de um controlo rodoviário efectuado pelos serviços de alfândegas.

24      Durante esse controlo, J.‑P. Durré exibiu uma declaração emitida pelo seu empregador, relativa à utilização do veículo, declaração que estava certificada pelo Instituto de Segurança Social luxemburguesa. O contrato de trabalho celebrado entre o interessado e o seu empregador previa que este último punha um veículo à disposição do primeiro e que esse veículo podia ser utilizado acessoriamente para fins privados. J.‑P. Durré não tinha na sua posse uma declaração IVA.

25      Inicialmente, a Delisalade SA era uma sociedade unipessoal de responsabilidade limitada constituída por J.‑P. Durré, tendo‑se transformado em sociedade anónima em 1997, na qual o interessado é accionista minoritário e administrador.

26      J.‑P. Durré é acusado de, em 15 de Março de 2002, sendo residente na Bélgica, não ter matriculado um veículo que pretendia pôr em circulação nesse país, independentemente do facto de esse veículo já estar matriculado no estrangeiro.

27      J.‑P. Durré também alegou que deve ser considerado trabalhador comunitário.

28      Nestas circunstâncias, o tribunal de police de Neufchâteau decidiu suspender a instância nos dois processos e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os artigos 10.° CE, 39.° CE, 43.° CE e 49.° CE opõem‑se a que um Estado‑Membro adopte uma medida que impõe a um trabalhador, [residente] no seu território, que aí matricule um veículo, quando este veículo pertence ao seu empregador, sociedade estabelecida no território de outro Estado‑Membro, sociedade à qual este trabalhador se encontra vinculado por um contrato de trabalho mas onde ocupa paralelamente uma função de accionista, de administrador, de administrador‑delegado para a gestão corrente ou uma função análoga?»

 Quanto à questão prejudicial

29      O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, essencialmente, se os artigos 10.° CE, 39.° CE, 43.° CE e 49.° CE se opõem à obrigação imposta a um residente num primeiro Estado‑Membro de matricular nesse Estado um veículo de empresa que lhe é disponibilizado pela sociedade que o emprega, que tem sede noutro Estado‑Membro, quando o empregado, sujeito a um contrato de trabalho, seja igualmente accionista, administrador ou gerente dessa sociedade.

 Quanto à qualidade de trabalhador assalariado ou não assalariado

30      O artigo 39.° CE tem por objecto os trabalhadores assalariados, ao passo que o artigo 43.° CE tem por objecto os trabalhadores não assalariados.

31      Como a característica essencial de uma relação de trabalho na acepção do artigo 39.° CE é a circunstância de uma pessoa realizar, durante certo tempo, em benefício de outra e sob a sua direcção, prestações em contrapartida das quais recebe uma remuneração, deve qualificar‑se de actividade não assalariada na acepção do artigo 43.° CE a actividade que seja exercida por uma pessoa sem qualquer relação de subordinação (v. acórdão de 20 de Novembro de 2001, Jany e o., C‑268/99, Colect., p. I‑8615, n.° 34, e jurisprudência aí referida).

32      Não cabe ao Tribunal determinar se nos processos principais existe ou não uma relação de subordinação.

33      Na medida em que a legislação em causa permite que um trabalhador assalariado residente na Bélgica circule no território belga num veículo de empresa que lhe é disponibilizado por um empregador estabelecido noutro Estado‑Membro, sem impor a obrigação de o matricular, há que apreciar se a exclusão desta possibilidade para os trabalhadores não assalariados contraria o artigo 43.° CE.

 Quanto à existência de restrições à livre de circulação dos trabalhadores não assalariados

34      A totalidade das disposições do Tratado CE relativas à livre circulação de pessoas visa facilitar aos nacionais comunitários o exercício de actividades profissionais de qualquer natureza em todo o território da Comunidade e opõe‑se a medidas que possam desfavorecer esses nacionais quando desejem exercer uma actividade económica no território de outro Estado‑Membro (v. acórdão de 15 de Setembro de 2005, Comissão/Dinamarca, C‑464/02, ainda não publicado na Colectânea, n.° 34, e jurisprudência aí referida).

35      Assim, disposições que impedem ou dissuadem um nacional de um Estado‑Membro de abandonar o seu país de origem para exercer o seu direito de livre circulação constituem entraves a essa liberdade, mesmo que se apliquem independentemente da nacionalidade dos trabalhadores em causa (acórdãos de 15 de Dezembro de 1995, Bosman, C‑415/93, Colect., p. I‑4921, n.° 96, e Comissão/Dinamarca, já referido, n.° 35).

36      Relativamente à obrigação de matricular na Dinamarca um veículo colocado à disposição, por uma sociedade sediada noutro Estado‑Membro, dos trabalhadores assalariados residentes na Dinamarca, o Tribunal já declarou que esta obrigação constitui um entrave à livre circulação dos trabalhadores (v. acórdão Comissão/Dinamarca, já referido, n.os 46 e 52). Não há qualquer dúvida de que uma obrigação de matrícula como a que está em causa nos processos principais, na medida em que imponha esta obrigação aos trabalhadores não assalariados, constitui igualmente um entrave à livre circulação de pessoas.

37      Com efeito, é um entrave ao acesso de residentes na Bélgica a empregos de trabalhadores não assalariados noutros Estados‑Membros, sendo, portanto, susceptível de dissuadir essas pessoas de exercerem o seu direito à livre circulação.

38      Contrariamente ao que alega o Governo belga, a obrigação de matrícula não perde a sua natureza de entrave por a sociedade sediada noutro Estado‑Membro poder matricular o veículo de empresa em seu nome na Bélgica sem aí ter um estabelecimento estável, a fim de evitar que o próprio dirigente seja obrigado a matriculá‑lo.

39      Tal medida só pode ser admitida a título das medidas derrogatórias expressamente previstas no artigo 46.°, n.° 1, CE ou quando prossiga um objectivo legítimo compatível com o Tratado e se justifique por razões imperiosas de interesse geral. Mas, mesmo em tal caso, é necessário que a sua aplicação seja adequada para garantir a realização do objectivo em causa e não ultrapasse o necessário para atingir esse objectivo (v., por analogia, designadamente, acórdão Comissão/Dinamarca, já referido, n.° 53, e jurisprudência aí referida).

 Quanto à justificação da restrição à livre de circulação das pessoas

40      Sob reserva de determinadas excepções irrelevantes para o presente caso, a tributação dos veículos automóveis não foi harmonizada. Os Estados‑Membros são portanto livres de exercer a sua competência fiscal neste domínio desde que respeitem o direito comunitário (acórdão de 21 de Março de 2002, Cura Anlagen, C‑451/99, Colect., p. I‑3193, n.° 40).

41      Resulta dos n.os 75 a 78 do acórdão Comissão/Dinamarca, já referido, que um Estado‑Membro pode sujeitar ao pagamento de um imposto, por ocasião da sua matrícula, um veículo de empresa disponibilizado a um trabalhador que nele resida por uma sociedade sediada noutro Estado‑Membro, quando esse veículo se destine a ser essencialmente utilizado no território do primeiro Estado‑Membro de forma permanente ou quando for de facto utilizado desta forma.

42      Cabe ao juiz nacional analisar se os trabalhadores em causa utilizaram dessa forma os veículos que foram colocados à sua disposição.

43      Em caso de resposta negativa, o princípio da livre circulação de pessoas opõe‑se a uma obrigação de matrícula semelhante à dos processos principais e os argumentos apresentados nos presentes processos, designadamente pelo Governo belga, não justificam essa restrição.

44      Em primeiro lugar, resulta designadamente dos n.os 80 e 81 do acórdão Comissão/Dinamarca, já referido, que, não estando reunidas as condições enumeradas no n.° 39 do presente acórdão, o objectivo da luta contra a evasão fiscal não pode justificar um imposto e, consequentemente, uma obrigação de matrícula numa situação semelhante à dos processos principais.

45      No que respeita à prevenção de atitudes abusivas, resulta da jurisprudência, nomeadamente do acórdão de 9 de Março de 1999, Centros (C‑212/97, Colect., p. I‑1459, n.° 24), que um Estado‑Membro tem o direito de tomar medidas destinadas a impedir que, com base nas facilidades criadas ao abrigo do Tratado, alguns dos seus nacionais tentem subtrair‑se abusivamente à aplicação da sua legislação nacional e que os particulares possam, abusiva ou fraudulentamente, prevalecer‑se das normas comunitárias.

46      Contudo, uma presunção geral de abuso não pode assentar na circunstância de um trabalhador não assalariado residente na Bélgica utilizar no território deste Estado um automóvel de empresa disponibilizado pela sociedade que o emprega sediada noutro Estado‑Membro (v., neste sentido, acórdão Comissão/Dinamarca, já referido, n.° 67).

47      Além disso, o Tribunal já declarou que os artigos 39.° CE e 43.° CE asseguram a mesma protecção jurídica (acórdão de 5 de Fevereiro de 1991, Roux, C‑363/89, Colect., p. I‑273, n.° 23).

48      Relativamente ao argumento baseado na necessidade de uma identificação fidedigna, há que referir que impor a matrícula de veículos de empresa pertencentes a sociedades sediadas noutro Estado‑Membro a fim de garantir uma identificação fidedigna dos proprietários desses veículos ultrapassa aquilo que é necessário para atingir esse objectivo. Com efeito, dado que todos os Estados‑Membros possuem um sistema de matrícula dos veículos, é possível localizar o proprietário de um veículo seja qual for o Estado‑Membro em que o veículo esteja matriculado.

49      No que se refere ao argumento baseado na segurança rodoviária, é certo que esta constitui uma razão imperiosa de interesse geral susceptível de justificar o entrave à livre circulação de pessoas (v. acórdão Cura Anlagen, já referido, n.° 59).

50      Contudo, quando um veículo tenha sido submetido à inspecção técnica num Estado‑Membro, o princípio da equivalência e do reconhecimento mútuo, consagrado pelo artigo 3.°, n.° 2, da Directiva 96/96/CE do Conselho, de 20 de Dezembro de 1996, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao controlo técnico dos veículos a motor e seus reboques (JO 1997, L 46, p. 1), exige que todos os outros Estados‑Membros reconheçam o certificado emitido nessa ocasião, sem que isso os impeça de exigir testes suplementares para fins de legalização no seu território, desde que estes testes não estejam já cobertos pelo referido certificado (acórdão Cura Anlagen, já referido, n.° 62).

51      Ainda que o Tribunal tenha reconhecido a possibilidade de efectuar testes suplementares para efeitos da matrícula no seu território, desde que esses testes não estejam já cobertos por um certificado de inspecção técnica, não decorre da regulamentação belga em causa que a obrigação de matrícula tenha por objectivo a segurança rodoviária.

52      Relativamente ao argumento baseado na política ambiental, é certo que resulta do n.° 68 do acórdão Cura Anlagen, já referido, que um imposto sobre o consumo como o que está em causa no processo que deu origem a este acórdão pode ter por finalidade o interesse geral de desencorajar a compra ou a posse de veículos com elevado nível de consumo de combustível. Contudo, por um lado, o Governo do Reino Unido não explicou de que forma pode o ambiente ser protegido por uma obrigação de matrícula como a que está em causa nos processos principais e, por outro, o Governo belga justifica, essencialmente, a exigência de matrícula de um veículo de empresa com objectivos fiscais.

53      Quando um veículo de empresa não é utilizado nas condições enumeradas no n.° 41 do presente acórdão, a obrigação de matrícula em causa também não se justifica se o trabalhador não assalariado puder utilizar o veículo de empresa acessoriamente para fins privados (v. acórdão Comissão/Dinamarca, já referido, n.° 51).

54      Nestas circunstâncias, não há que analisar os artigos 10.° CE e 49.° CE.

55      Atendendo à totalidade das considerações que precedem, há que responder à questão colocada que o artigo 43.° CE se opõe a que uma regulamentação nacional de um primeiro Estado‑Membro, como a que está em causa nos processos principais, imponha a um trabalhador não assalariado residente nesse Estado‑Membro a matrícula de um veículo de empresa que lhe tenha sido disponibilizado pela sociedade que o emprega, que tem sede num segundo Estado‑Membro, quando esse veículo não se destine a ser essencialmente utilizado no território do primeiro Estado‑Membro de forma permanente nem seja, de facto, utilizado dessa forma.

 Quanto às despesas

56      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 43.° CE opõe‑se a que uma regulamentação nacional de um primeiro Estado‑Membro, como a que está em causa nos processos principais, imponha a um trabalhador não assalariado residente nesse Estado‑Membro a matrícula de um veículo de empresa que lhe tenha sido disponibilizado pela sociedade que o emprega, que tem sede num segundo Estado‑Membro, quando esse veículo não se destine a ser essencialmente utilizado no território do primeiro Estado‑Membro de forma permanente nem seja, de facto, utilizado dessa forma.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.