Language of document : ECLI:EU:C:2008:206

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

DÁMASO RUIZ‑JARABO COLOMER

apresentadas em 8 de Abril de 2008 1(1)

Processo C‑297/07

Staatsanwaltschaft Regensburg

contra

Klaus Bourquain

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landgericht Regensburg (Alemanha)]

«Questão prejudicial ao abrigo do artigo 35.° UE – Acervo de Schengen – Convenção de aplicação do Acordo de Schengen – Interpretação do artigo 54.° – Princípio ne bis in idem – Sentença condenatória proferida à revelia – Caso julgado – Requisito de inexecução da pena»





I –    Introdução

1.        Nos últimos cinco anos, o Tribunal de Justiça desenhou os contornos difusos do princípio ne bis in idem, mediante uma jurisprudência (2) na qual as circunstâncias específicas dos casos não ensombram a vocação de generalidade que a inspira, e para a qual tenho a honra de ter contribuído (3).

2.        Tal como ao contemplar um quadro, a apreciação correcta de uma visão de conjunto requer distância em relação ao objecto pintado, pois, caso contrário, corre‑se o risco de a retina captar unicamente os traços, a textura e a massa de cores, sem conseguir compreender o significado global da obra.

3.        Às vezes, esse procedimento torna‑se verdadeiramente difícil, como acontece neste processo, impulsionado em parte pela actuação paradoxal de quem pretende assegurar o seu bem‑estar pessoal, alegando a sua própria condenação à morte (4), pronunciada há 47 anos, para accionar o princípio ne bis in idem. Aqui residem a grandeza e a miséria do direito.

II – Quadro legal

A –    O acervo de Schengen

4.        Este património jurídico integra:

a)      o Acordo assinado em 14 de Junho de 1985 na cidade luxemburguesa que lhe dá o nome pelos Estados que formam a União Económica Benelux, a República Federal da Alemanha e a República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (5);

b)      a Convenção de Aplicação do Acordo referido, assinada em 19 de Junho de 1990 (6) (a seguir «Convenção») que estabelece medidas de cooperação para neutralizar o desaparecimento desses controlos;

c)      os protocolos e os instrumentos de adesão de outros Estados‑Membros, as declarações e os actos adoptados pelo Comité Executivo criado pela Convenção, bem como os actos das entidades a que esse Comité atribui competências decisórias (7).

5.        O Protocolo (n.° 2) anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia (a seguir, «o protocolo») integra as referidas normas no quadro da União, vigorando, segundo o seu artigo 2.°, n.° 1, primeiro parágrafo, nos treze Estados enumerados no artigo 1.° (8), desde a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão (1 de Maio de 1999).

6.        A Decisão 2007/801/CE do Conselho, de 6 de Dezembro de 2007 (9) ampliou significativamente o âmbito territorial do acervo, ao declarar as suas disposições plenamente aplicáveis à República Checa, à República da Estónia, à República da Letónia, à República da Lituânia, à República da Hungria, à República de Malta, à República da Polónia, à República da Eslovénia e à República Eslovaca.

7.        O Reino Unido (10) e a República da Irlanda (11) não se associaram completamente a este projecto comum, optando por uma participação pontual.

8.        A República de Chipre (12), a República da Bulgária e a República da Roménia (13), embora permaneçam vinculadas pelo referido conjunto de normas após a sua adesão à União Europeia, requerem a mediação do Conselho para verificar o cumprimento das condições necessárias para a sua aplicação.

9.        De entre os países não pertencentes à União Europeia, o artigo 6.° do Protocolo obriga a República da Islândia e o Reino da Noruega à execução e ao desenvolvimento do Acervo de Schengen, países nos quais vigora desde 25 de Março de 2001 (14). Existe, além disso, um Acordo de associação com a Suíça para a execução, a aplicação e o desenvolvimento do acervo referido (15), ao qual aderirá provavelmente o Principado do Liechtenstein, em virtude de um projecto de decisão elaborado pelo Conselho (16).

10.      A meta, segundo o preâmbulo do protocolo, radica em reforçar a integração europeia, para possibilitar que a União se transforme mais rapidamente num espaço de liberdade, segurança e justiça.

11.      Com base no primeiro período do segundo parágrafo do artigo 2.° do Protocolo, o Conselho adoptou em 20 de Maio de 1999 as Decisões 1999/435/CE e 1999/436/CE, nas quais define o acervo de Schengen e determina, nos termos das disposições pertinentes do Tratado que institui a Comunidade Europeia e do Tratado da União Europeia, a base jurídica de cada uma das disposições ou decisões que constituem o acervo de Schengen (17).

B –    Em especial, o princípio ne bis in idem

12.      O Título III da Convenção, «Polícia e segurança», inicia com um capítulo dedicado à «Cooperação policial» (artigos 39.° a 47.°) e continua com outro que trata da «Entreajuda judiciária em matéria penal» (artigos 48.° a 53.°).

13.      O capítulo terceiro, sob o título «Aplicação do princípio ne bis in idem» é composto pelos artigos 54.° a 58.°, com correspondência nos artigos 34.° e 31.° CE, segundo o artigo 2.° e o anexo A da referida Decisão 1999/436/CE.

14.      O artigo 54.° dispõe:

«Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida.»

C –    A legislação francesa

15.      Compartilho das reflexões de um dos intervenientes (18) no presente processo prejudicial sobre a escassez de informação que contém o despacho de reenvio acerca do conteúdo exacto das disposições francesas aplicáveis (19).

16.      Não obstante, nos termos do artigo 120.° do Código de Justiça Militar (20), o revel podia apresentar oposição contra a sentença nos cinco dias seguintes à sua notificação, sem prejuízo da possibilidade de não haver notificação, o que é habitual num processo à revelia, hipótese na qual o referido artigo 120.° permitia promover a oposição até expirar o prazo de prescrição da pena.

17.      Por sua vez, do Código de Processo Penal (21) infere‑se um prazo de prescrição da pena de 20 anos contados da condenação (22).

18.      A compreensão cabal destas normas deixa vislumbrar, mediante a sua exegese conjunta, que a sentença à revelia, de cuja notificação ao interessado não havia conhecimento (23), torna‑se intangível (24) decorridos 20 anos desde a sua prolação, sem esquecer que, no caso dos autos, o prazo de prescrição coincide com o prazo concedido para pedir a revisão (25).

III – Matéria de facto, processo principal e questão prejudicial

19.      Klaus Bourquain, cidadão alemão alistado na Legião estrangeira (26), foi julgado pelo crime de homicídio e condenado na pena de morte à revelia, por sentença de 26 de Janeiro de 1961 do Tribunal Permanente das Forças Armadas na zona Est Constantinoise, em Bône (27).

20.      Esse tribunal castrense, em aplicação do Código Penal francês então vigente, considerou provado que, em 4 de Maio de 1960, Klaus Bourquain, quando tentava desertar na fronteira entre a Argélia e Tunis, na província de El Tarf (28), matou com um disparo de arma de fogo outro soldado da legião estrangeira, também de nacionalidade alemã, que pretendia impedir a sua fuga.

21.      O condenado nunca compareceu em tribunal, porque fugiu para a República Democrática Alemã; a pena nunca foi executada, embora o seu património tenha sido objecto de arresto para garantir o pagamento das custas.

22.      Após essa sentença, não foi iniciado nenhum outro procedimento penal contra Klaus Bourquain em França, nem na Argélia, embora as autoridades da República Federal da Alemanha tenham emitido em 1962 um mandado de detenção dirigido à República Democrática Alemã, que o recusou.

23.      Em 2002, a Staatsanwaltschaft Regensburg (Ministério Público de Regensburg) iniciou diligências contra Klaus Bourquain, para o julgar na Alemanha pelos mesmos crimes.

24.      Mas nessa época a pena imposta pela sentença de 26 de Janeiro de 1961 não podia ser executada em França, uma vez que, em primeiro lugar, em 1968, este país amnistiou (29) as infracções criminais cometidas pelos membros do seu exército durante a guerra na Argélia; em segundo lugar, a sua prescrição ocorreu em 1981; e em terceiro lugar, nesse ano foi abolida (30) a pena de morte.

25.      Nesta conjuntura, o Landgericht Regensburg obteve a opinião do Max‑Planck‑Institut für ausländisches und internacionales Strafrecht (instituto de direito penal estrangeiro e internacional, a seguir «Max‑Planck Institut») que atribuiu força de caso julgado, formal e material, à sentença proferida à revelia, apesar de não ser de execução imediata devido às particularidades do direito francês, impedindo a prossecução de um novo processo penal.

26.      Além disso, o órgão jurisdicional referido pediu ao Ministério da Justiça gaulês, ao abrigo do artigo 57.° da Convenção, informações sobre se a sentença de 26 de Janeiro de 1961 obstava à abertura de um novo processo na Alemanha, nos termos do artigo 54.° da Convenção.

27.      O representante do Ministério Público do Tribunal aux armées de Paris confirmou que a sentença tem força de caso julgado, sendo irrevogável desde 1981, e que não pode ser executada em França por a pena ter prescrito, embora considerasse que o princípio ne bis in idem da Convenção não era aplicável ao caso (31).

28.      Este cenário de opiniões divergentes alimenta as dúvidas do Landgericht Regensburg que, no despacho de reenvio, pretende averiguar se o artigo 54.° da Convenção exige que a pena tenha sido alguma vez susceptível de execução. Segundo os seus raciocínios, o direito a pedir um novo processo enquanto corre o prazo de prescrição (32) determina que a condenação só possa ser cumprida a partir do termo do prazo referido, no preciso instante em que a prescrição da pena se teria consumado (33).

29.      Portanto, o Landgericht Regensburg, tendo suspendido a instância, submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão, a título prejudicial:

A regra que consiste em proibir que uma pessoa que tenha sido julgada numa Parte Contratante, por sentença transitada em julgado, seja julgada, com base nos mesmos factos, noutra Parte Contratante aplica‑se no caso de a pena que lhe foi aplicada nunca ter podido ser executada em virtude da lei do Estado onde foi decretada?

IV – Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

30.      O despacho que promove este reenvio prejudicial deu entrada na secretaria do Tribunal de Justiça em 21 de Junho de 2007.

31.      Apresentaram observações, dentro do prazo fixado no artigo 23.° do Estatuto CE do Tribunal de Justiça, Klaus Bourquain, a Comissão, bem como os Governos checo, húngaro, neerlandês e português.

32.      Após a reunião geral de 19 de Fevereiro de 2008, foi‑me comunicado, em 27 de Fevereiro, que o prazo para requerer a realização de audiência tinha expirado em 25 de Fevereiro sem que ninguém a tivesse requerido, pelo que a fase para a apresentação de conclusões se iniciou com essa notificação.

V –    Análise da questão prejudicial

A –    Observações preliminares sobre o princípio ne bis in idem no Acervo de Schengen

1.      A dupla manifestação do princípio

33.      O Tribunal de Justiça atribuiu uma amplitude diferente ao princípio ne bis in idem consoante diga respeito ao domínio da concorrência (34) ou ao «terceiro pilar» da União Europeia: em ambos aludiu à proibição da dupla sanção, mas só no segundo (35) o estende à possibilidade de ser julgado duas vezes pelo mesmo facto (nemo debet bis vexart pro una et eadem causa).

34.      O reconhecimento pleno das sentenças penais estrangeiras constituía um verdadeiro desafio para o direito comunitário e o Tribunal de Justiça, sem fugir à sua responsabilidade, proclamou, sob os auspícios da livre circulação de pessoas, que o artigo 54.° da Convenção assegura às pessoas que tenham sido julgadas por sentença definitiva o exercício dessa liberdade fundamental sem temerem vir a ser alvo de novas acções penais noutro Estado contratante pelos factos já julgados (36).

2.      Os seus fundamentos tradicionais

35.      O artigo 54.° da Convenção impede que, em razão de uma determinada actuação ilícita, uma pessoa sofra mais de um processo sancionatório e que, eventualmente, seja punida de forma repetida, evitando uma inadmissível reiteração do ius puniendi (37).

36.      A segurança jurídica proporciona ao acusado num processo penal a garantia de que não voltará a ser julgado pelo seu acto, uma vez declarado inocente, e de que não lhe será imposta outra pena em caso de condenação.

37.      Há que reconhecer, além disso, a funcionalidade da equidade como suporte da proporcionalidade que proíbe a adição de penas (38) porque, para além do objectivo de reinserção (39), as penas têm uma dupla finalidade repressiva e dissuasória, ao reprimir a conduta e ao desencorajar outros eventuais infractores, e também são de ponderar tais propósitos, proporcionando o equilíbrio adequado para retribuir o comportamento que corrigem simultaneamente de modo exemplar.

38.      Por último, como exigência estrutural do sistema jurídico, a legitimidade do princípio ne bis in idem assenta, igualmente, no respeito do caso julgado.

3.      Os seus últimos desenvolvimentos

a)      Da confiança entre Estados…

39.      Este conceito, ainda recente na construção de uma justiça penal europeia, subjaz ao princípio do reconhecimento mútuo (40), introduzido no n.° 33 das conclusões do Conselho Europeu de Tampere de 16 de Outubro de 1999 (41).

40.      A Decisão‑quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (42), postula sem rodeios no seu décimo considerando um elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros.

41.      Tais ingredientes pressagiavam uma rápida decisão do Tribunal de Justiça que, na primeira ocasião que se lhe ofereceu (43), enfatizou a importância da confiança recíproca, peça chave da virtualidade do artigo 54.° da Convenção, de forma tal que cada um dos Estados‑Membros tem de aceitar a aplicação do direito penal vigente nos restantes Estados‑Membros, mesmo quando o seu direito penal conduza a uma solução diferente; por outras palavras, na vertente dos efeitos, a ratio da confiança recíproca caracteriza‑se pelo utilitarismo ao intervir em prol do princípio do reconhecimento mútuo.

42.      No entanto, essa postura esclarecedora do Tribunal de Justiça facilita o desenlace em certos casos, mas é insuficiente noutros, sobretudo porque este sistema de cooperação reforçada atribui aos diversos órgãos jurisdicionais nacionais um protagonismo que exige grandes dotes de interpretação (44).

43.      Um método adequado para superar as situações de confusão radicaria na harmonização (45) do direito penal substantivo e processual dos Estados‑Membros, pois os receios no momento de adoptar decisões neste ramo do ordenamento diluem‑se ao verificar que as decisões penais proferidas noutro Estado‑Membro se revestem de idênticas garantias.

44.      Entretanto, o princípio ne bis in idem continua a arvorar a bandeira da confiança partilhada, pois, independentemente de a convergência vir a ser realidade algum dia, o artigo 54.° da Convenção não se subordina a uma aproximação de legislações penais entre os Estados (46), pelo contrário, o seu vigor é potenciado precisamente na sua falta.

45.      Se entre os Estados‑Membros deve presumir‑se o preenchimento de certas condições, especialmente no que se refere aos direitos fundamentais, a experiência mostra que a confiança recíproca vigora como um princípio normativo, que condensa os critérios interpretativos das obrigações relativas ao «terceiro pilar», desempenhando um papel próximo ao da cooperação leal (47).

46.      O reconhecimento mútuo, embora parta do âmbito de cooperação abstracto entre Estados, materializa‑se no aspecto mais tangível das garantias individuais (48) e reconduz‑se à verificação de padrões usuais no domínio dos ordenamentos jurídicos, em que a sua habitual invocação pelos operadores jurídicos aumenta as probabilidades de um entendimento compartilhado.

b)      …ao reconhecimento de um direito para o indivíduo

47.      Apesar dos avanços conseguidos, desligar as grandes liberdades (como a de circulação) da proibição de julgar ou punir «duas vezes pelo mesmo» exige ainda árduos esforços, que se justificam com o nível de integração alcançado numa União Europeia que concebe o cidadão como titular de direitos e beneficiário último das cautelas normativas (49).

48.      Mas isso não constitui obstáculo para completar (não para substituir) as directrizes de uma cooperação entre Estados, erigidas sobre a confiança mútua, com uma visão propensa à aplicação dos direitos fundamentais como estrutura de referência (50), uma vez que o princípio ne bis in idem pressupõe uma manifestação da protecção judicial contra o ius puniendi, resultante do direito a um julgamento justo (51), de nível constitucional em alguns Estados envolvidos no Acervo de Schengen (52).

49.      A regra do ne bis in idem adquire a sua verdadeira densidade normativa com a elaboração de um direito subjectivo ao tratamento unitário da acção repressiva (53), aparecendo assim baseada em princípios e alicerces sólidos que ajudam a cobrir os flancos fracos (54) de algumas instituições, como a prescrição, o caso julgado ou as múltiplas teorias da proporcionalidade, que o simples recurso à confiança recíproca entre Estados (55) não permite resolver de modo satisfatório.

50.      Este horizonte vislumbra‑se mais claro com a proclamação autónoma do princípio ne bis in idem na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (56), cujo artigo 50.° dispõe que «[ninguém] pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei.»

51.      De entre as múltiplas facetas dos direitos fundamentais, assume especial relevância a de estabelecer limites definidores e, inclusivamente, excepções ao reconhecimento mútuo (57) sempre que sejam aplicáveis como princípios comuns nos Estados‑Membros (58).

B –    O conceito de «sentença definitiva»

52.      Os termos em que o Landgericht Regensburg formula a pergunta demonstram que o seu dilema se limita ao alcance do artigo 54.° da Convenção, que proíbe perseguir os mesmos factos quando, em caso de condenação, a sanção «já não possa ser executada».

53.      Não obstante, a base de facto suscita a indagação prévia de saber se a condenação proferida à revelia constitui uma «sentença definitiva» para efeitos do referido preceito, avaliando a impossibilidade de executar de imediato a sanção que contém face à exigência processual de iniciar novo processo, uma vez encontrado o revel.

1.      A sua interpretação

54.      O acórdão Kretzinger, de 18 de Julho de 2007, já referido, evitou esta controvérsia (59) porque no seu n.° 67 não considerou «necessário examinar […] se uma decisão proferida na ausência do arguido, cuja força executória pode ser subordinada a condições nos termos do artigo 5.°, ponto 1, da decisão‑quadro, deve ser considerada uma decisão pela qual um indivíduo ‘tenha sido definitivamente julgado’ na acepção do artigo 54.° da CAAS.»

55.      No entanto, o Tribunal de Justiça defendeu um critério amplo, que reafirma a necessidade de acatar no seio da União Europeia as decisões que ponham termo à situação processual do demandado segundo a legislação do Estado em que se iniciaram as diligências correspondentes.

56.      Assim, o Tribunal de Justiça incluiu no conceito de sentença definitiva a extinção da acção pública nos processos em que o Ministério Público ordena o arquivamento sem intervenção de um órgão jurisdicional (processos Gözütok e Brügge) bem como as decisões pelas quais o culpado é definitivamente absolvido, quer por falta de provas (processo van Straaten), quer por prescrição (processo Gasparini).

57.      Além disso, embora as diferentes versões linguísticas do artigo 54.° apresentem divergências (60), a razão teleológica de garantir a livre circulação de pessoas é uniforme no espaço de liberdade, segurança e justiça, desígnio que será diminuído, se não for aceite, por causa das particularidades processuais nacionais, uma acepção generosa de sentença definitiva.

58.      O arquétipo da res iudicata (61) confere à sentença um estatuto jurídico que não é modificável por meio de impugnação, por não caber recurso da sentença ou por não ter sido interposto recurso no prazo legal (62).

2.      A sentença proferida à revelia

59.      As diferentes aproximações dos Estados sobre as decisões judiciais adoptadas in absentia dificultam uma cooperação fluida em matéria penal, o que não passa inadvertido a iniciativas recentes (63) que conferem uma certa unidade, estruturando os critérios mediante regras comuns destinadas a atenuar este problema.

60.      No caso em apreço, uma eventual sentença posterior diminuiria, aparentemente, para efeitos do artigo 54.° da Convenção, o carácter «definitivo» da sentença do Tribunal de Bône.

61.      Mas a sombra da dúvida projectava‑se temporariamente, uma vez que, como sustenta o representante do Ministério Público do Tribunal aux armées de Paris, a sentença tinha força de caso julgado em 1981 e, portanto, antes de o processo ter início na Alemanha, declaração esta (64) que é incontestável na esfera do direito comunitário.

62.      Compete, não obstante, ao Tribunal de Justiça ter em conta que o artigo 54.° da Convenção não exige que a sentença seja definitiva quando é proferida, pois basta que essa condição esteja preenchida ao iniciar‑se o segundo processo (65), o que, para Klaus Bourquain, ocorreu em 2002, data em que a decisão do tribunal militar já tinha ganho a condição de caso julgado, segundo a própria regulamentação francesa.

63.      Além disso, de acordo com diversos instrumentos (66), a presença do arguido na audiência permite a concretização da sua defesa e do seu direito ao processo devido (67) e mesmo a Decisão‑quadro 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho de 2002 (68), permite exigir ao Estado requerente, quando pretenda executar uma pena imposta à revelia, um indício claro de que o condenado pode requerer novo julgamento em que seja assegurado o respeito dos seus direitos fundamentais.

64.      Transformar esta garantia do arguido numa condição que anule a aplicação de outros direitos conduziria a uma situação absurda, que se consumaria se a aplicação do princípio ne bis in idem fosse limitada às decisões que impedem uma revisão em seu benefício.

65.      Pelos motivos expostos, a sentença de condenação proferida à revelia deve considerar‑se «definitiva» para efeitos da aplicação do artigo 54.° da Convenção.

C –    O requisito da «inexecução da pena»

66.      Neste processo prejudicial todos concordam que, quando se iniciou o processo na Alemanha, a pena não era susceptível de execução em França, pois, além da sua prescrição, este país tinha abolido a pena de morte e, ainda antes, tinha promulgado uma lei de amnistia para os acontecimentos da Argélia.

67.      Mas a pergunta do Landgericht Regensburg visa esclarecer se o impedimento à execução da pena deve ser posterior à imposição, tese defendida pelo Governo húngaro ao indicar que o artigo 54.° da Convenção admite que as dificuldades surjam depois, mas não contempla a hipótese de uma pena inviável logo na sentença, como acontece neste processo, em que o imperativo de um novo processo, necessário para materializar a sanção, era uma utopia dada a contumácia de Klaus Bourquain.

68.      O referido Governo húngaro apoia‑se na expressão literal do referido artigo 54.° de que «[a sanção] não possa já ser executada» para, a contrario sensu, inferir que podia ter sido executada anteriormente.

69.      Este argumento não parece convincente, pois o sentido das palavras não constitui sempre um axioma adequado, como alertou o Tribunal de Justiça nalgumas ocasiões (69); além disso, em minha opinião, a brevidade da alocução indica unicamente que a susceptibilidade de execução da sanção se desencadeia quando se pretende iniciar o novo processo e não antes, o que preserva o efeito útil do preceito.

70.      Mas o artigo 54.° dá cobertura a normas penais nacionais que, em função da sua natureza de última ratio, abandonam qualquer interpretação extensiva (70) contrária ao princípio da legalidade (71) vigente nas tradições comuns (72) dos Estados e plasmado de forma positiva no direito comunitário (73).

71.      Sem prejuízo do exposto, tem interesse a reflexão do Governo neerlandês sobre a dificuldade de imaginar que uma sentença definitiva imponha penas não susceptíveis de execução (74).

72.      Há que ter especial cuidado ao apreciar nos seus justos termos o alcance do preceito, que refere a possibilidade de execução da sanção e não da sentença.

73.      Formulada a cautela, há que distinguir a sentença susceptível de execução da sentença executória (75) dado que a regulamentação francesa não permite a consumação da punição sem se iniciar um processo posterior, o que em nada diminui o valor da sentença como título jurídico que se projecta ipso iure sobre a pessoa e o património do arguido, segundo demonstram quer a depuração da responsabilidade de Klaus Bourquain num novo processo sobre a anterior decisão, no caso de ser encontrado, quer a perseguição dos seus bens.

74.      Em paralelo, a pena tornar‑se‑ia executória, uma vez superado o impedimento processual que a prejudicava que, quanto ao resto, não afectava a sua validade intrínseca (76), substantivada assim da sua mera eficácia.

75.      À luz do exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que interprete o artigo 54.° da Convenção no sentido de que a sua protecção não deixa de lado a pena derivada de uma sentença definitiva que, devido à idiossincrasia processual do direito nacional, nunca tenha podido ser executada.

D –    Da amnistia, do princípio ne bis in idem e das suas naturezas divergentes

76.      Não há escapatória jurídica na omissão de uma argumentação sobre o modo como a abolição da pena de morte e a prescrição da sanção impedem a execução da sentença do Tribunal de Bône: o carácter óbvio, por um lado, e o respeito da competência exclusiva do juiz nacional, por outro, tornariam qualquer raciocínio supérfluo e inconveniente.

77.      Não obstante, a prudência aconselha a reflectir, ainda que com brevidade, sobre as implicações da amnistia, perante a variada gama de registos que este mecanismo excepcional de clemência experimenta nos sistemas jurídicos comparados.

78.      O Segundo Protocolo da Convenção de Genebra (77) aproxima a amnistia a um sentimento de pacificação e de reconciliação, depois de períodos de convulsões que tenham gerado confrontos violentos no seio de uma comunidade.

79.      Há que apaziguar sentimentos em confronto, de etiologia muito precisa, gerados em acontecimentos de carácter colectivo, que tenham fracturado política e socialmente a população.

80.      Com esta nomenclatura designam‑se, numa acepção flexível (78), quaisquer medidas de perdão ou remissão das penas, incluindo o indulto (79), diversamente de outras concepções que limitam a amnistia a decisões de carácter geral do Parlamento, adoptadas segundo o procedimento interno para a aprovação das leis.

81.      As diferenças existentes na Europa a propósito destas fórmulas de clemência, perceptíveis a partir de ângulos tão diversos como o da sua tipologia ou o da sua finalidade, passando pelo da categoria de crimes que podem redimir (80), não distorcem a sua virtualidade extintiva do ius puniendi em todos os Estados nem a inegável realidade de que as autoridades não judiciais revogam, através do seu exercício, os efeitos de uma sentença penal (81).

82.      Este leque de medidas de perdão, disperso pelas distintas ideias que aglutina, embora uniforme nos objectivos que serve, demonstra autênticos gestos de vontade política, nutridos por princípios de oportunidade que se enraízam na soberania dos Estados, como expressão da gestão dos seus próprios conflitos.

83.      A confiança mútua não deveria acolher, ao abrigo do princípio ne bis in idem comunitário, os pressupostos de inexecução de uma pena provocados pela excitação destas faculdades exorbitantes dos poderes nacionais, pois a lógica do reconhecimento recíproco deixa de operar na esfera da aplicação judicial da lei, tomando outro rumo propiciado por ventos de forte componente sociológica e política.

84.      Não é por acaso que a Decisão‑quadro sobre a ordem de detenção europeia expõe como um dos motivos obrigatórios para a sua não execução, desde que o Estado requerido tenha competência para perseguir o crime segundo a sua própria legislação penal (artigo 3.°, n.° 1).

85.      Na óptica dos direitos fundamentais, a amnistia também não resiste ao desafio de proporcionar uma cobertura capaz de justificar a não execução da pena por aplicação do princípio ne bis in idem, pois, independentemente de se poder erigir num perigoso catalizador para a sua postergação (82), verifica‑se novamente a presença de duas dimensões diferentes, uma vez que a base que a inspira não bebe do manancial dos valores que os direitos fundamentais encarnam, ao mesmo tempo que actua sob parâmetros tão difusos e aleatórios que transcendem os parâmetros clássicos de racionalidade jurídica, cerceando a possibilidade de uma fiscalização judicial (83).

VI – Conclusão

86.      À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial declarando que:

«O artigo 54.° da Convenção assinada em 19 de Junho de 1990, para a aplicação do Acervo de Schengen, deve ser interpretado no sentido de que uma pessoa definitivamente julgada num Estado não pode ser arguida noutro Estado pelos mesmos factos, quando, nos termos da legislação do Estado de condenação, a pena em que foi condenada nunca pôde ser executada».


1 – Língua original: espanhol.


2 – O Tribunal de Justiça debruçou‑se sobre este princípio em sete ocasiões: acórdãos de 11 de Fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge (C‑187/01 e C‑385/01, Colect., p. I‑1345); de 10 de Março de 2005, Miraglia (C‑469/03, Colect., p. I‑2009); de 9 de Março de 2006, van Esbroeck (C‑436/04, Colect., I‑2333); de 28 de Setembro de 2006, van Straaten (C‑150/05, Colect., p. I‑9327); de 28 de Setembro de 2006, Gasparini e o. (C‑467/04, Colect., p. I‑9199); de 18 de Julho de 2007, Kretzinger (C‑288/05, Colect., p. I‑6441); e de 18 de Julho de 2007, Kraaijenbrink (C‑367/05, Colect., p. I‑6619).


3 – Nos processos Gözütok e Brügge, van Esbroeck e van Straaten podem consultar‑se as minhas conclusões, apresentadas, respectivamente, em 19 de Setembro de 2002, em 20 de Outubro de 2005 e em 8 de Junho de 2006. Nos restantes processos, salvo no processo Miraglia, decidido sem conclusões, a advogada‑geral E. Sharpston apresentou conclusões em 15 de Junho de 2006 no processo Gasparini e em 5 de Dezembro de 2006 no processo Kretzinger e Kraaijenbrink.


4 – Nietzsche, F., El crepúsculo de los ídolos, Alianza Editorial, Madrid, 2006, p. 34, sob o pano de fundo do instinto de sobrevivência, mostra a capacidade do género humano para rentabilizar as adversidades no aforismo 8 das suas sentenças e ditos satíricos, que se refere à escola de guerra da vida, indicando que «o que não me mata, faz‑me mais forte». Uma versão mais castiça consta do refrão espanhol «lo que no mata, engorda» [N.T.: com o equivalente em português «o que não mata engorda»].


5 –      JO 2000, L 239, p. 13.


6 –      JO 2000, L 239, p. 19.


7 –      JO 2000, L 239, p. 63 e seguintes.


8 – O Reino da Bélgica, a República Federal da Alemanha, a República Helénica, o Reino de Espanha, a República Francesa, o Grão‑Ducado do Luxemburgo, a República da Áustria, a República Portuguesa, a República Italiana, a República da Finlândia, o Reino dos Países Baixos, o Reino da Suécia e o Reino da Dinamarca, embora este último goze de um estatuto especial, que lhe permite emitir reservas às resoluções adoptadas nesse âmbito.


9 – JO L 323, p. 34.


10 – Decisão 2000/365/CE do Conselho, de 29 de Maio de 2000, sobre o pedido do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte para participar em algumas das disposições do acervo de Schengen (JO L 131, p. 43) e Decisão 2004/926/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 2004, relativa à produção de efeitos de parte do acervo de Schengen no Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte (JO L 395, p. 70).


11 – O seu pedido foi atendido por meio da Decisão 2002/192/CE do Conselho, de 28 de Fevereiro de 2002, sobre o pedido da Irlanda para participar em algumas das disposições do acervo de Schengen.


12 – Artigo 3.°, n.° 2, do Acto relativo às condições de adesão (JO 2003, L 236, p. 50).


13 – Artigo 4.°, n.° 2, do Acto relativo às condições de adesão (JO 2005, L 157, p. 203).


14 – Em 19 de Dezembro de 1996, os treze Estados‑Membros da União Europeia então signatários de Schengen e os países nórdicos mencionados assinaram no Luxemburgo um acordo ad hoc, anterior ao Acordo celebrado em 18 de Maio de 1999 pelo Conselho da União Europeia com a República da Islândia e o Reino da Noruega sobre a associação destes dois Estados à execução, à aplicação e ao desenvolvimento do Acervo de Schengen (JO L 176, p. 36). O artigo 15.°, n.° 4, deste acordo incumbiu o Conselho de fixar a data de entrada em vigor para os novos signatários, o que o Conselho cumpriu na Decisão 2000/777/CE do Conselho, de 1 de Dezembro de 2000, (JO L 309, p. 24) assinalando, com carácter geral, a data de 25 de Março de 2001 (artigo 1.°).


15 – Aprovado pela Decisão 2004/860/CE do Conselho, de 25 de Outubro de 2004 (JO L 370, p. 78).


16 – Proposta de Decisão do Conselho, de 1 de Dezembro de 2006 COM (2006), 752 final.


17 – JO L 176, p. 1 e 17, respectivamente.


18 – Especificamente, as do Governo húngaro, no n.° 8 das suas observações.


19 – A intervenção da França, e até da Alemanha, que lamentavelmente não ocorreram, teriam preenchido certas lacunas.


20 – Este Código foi revogado, mas é aplicável ratione tempore ao litígio no processo principal, na sua redacção de 1958, com antecedente numa Lei de 19 de Março de 1928.


21 – Artigo 133.°, n.° 2, do código vigente e artigos 639.°, 640.° e 763.° do código aplicável no momento em que foi cometido o homicídio.


22 – A República Portuguesa, no n.° 27 das suas observações, acrescenta o artigo 639.° do Código de Processo Penal, do qual resulta que a prescrição da pena começa a correr antes da detenção do contumaz: «si le contumax se constitue prisonnier ou s´il est arrêté avant que la peine sois éteinte par prescription…».


23 – Neste caso, não consta a notificação da sentença ao condenado.


24 – O termo francês que caracteriza este estado é o de «irrevocabilité», que expressa uma prolação formalmente definitiva.


25 – Em sintonia com a informação emitida pelo fiscal do Tribunal aux armées de Paris, a que me referirei posteriormente com mais pormenor.


26 – Com uma intervenção activa na guerra da Argélia, este corpo de elite das tropas francesas, criado em 1831 pelo rei Louis‑Philippe I, escreveu no México em 30 de Abril de 1863 uma das suas páginas mais célebres, com a batalha de Camarón, em que 65 soldados capitaneados por Jean Danjou resistiram durante dez largas horas ao assalto de milhares de soldados do exército regular mexicano, episódio histórico relatado com rigor por Mañes J., in El mito de Camerone, 2ª ed., Hergué Editorial, Huelva, 2005.


27 – Cidade da Argélia, actual Annaba, conhecida na antiguidade como Hipona, onde Santo Agostinho professou como bispo durante os anos de 396 a 430.


28 – Embora consciente da barreira intransponível entre a realidade e a ficção, as circunstâncias do triste acontecimento evocam a obra de Albert Camus, L’étranger. O prémio Nobel da literatura, nascido na Argélia, fazendo gala de um existencialismo descarnado, narra as penúrias de Meursault em Argel, absolutamente indiferente à morte da sua mãe ou à oportunidade de matrimónio que se lhe oferece, apatia que o leva a disparar o seu revólver contra o «árabe», por se ter sentido deslumbrado com o reflexo do sol que projectava o aço do seu gatilho, e que se prolonga, inclusivamente, durante o processo em que acabou por ser condenado à morte, ao declarar, perante a hilaridade dos assistentes ao processo, que o astro rei foi o único móbil da sua acção.


29 – Lei de 31 de Julho de 1968.


30 – Por força da Lei n.° 81‑908, de 9 de Outubro (Journal Officiel de 10 de Outubro de 1981, p. 2759). Recentemente, por causa da reforma introduzida pela Lei Constitucional n.° 2007‑239, de 23 de Fevereiro de 2007 (Journal Officiel de 24 de Fevereiro de 2007, p. 3355), a República Francesa reproduz a mencionada supressão no artigo 66.° da sua Constituição.


31 – Esta ideia incorre numa contradição manifesta, pois, independentemente de a pena não ter sido executada ou de não estar em curso a sua execução, a outra condição que confere virtualidade ao princípio é que «já não pode ser executada» segundo a legislação do Estado de condenação.


32 – Insisto em que se trata de prazos que decorrem de forma claramente sobreposta.


33 – Deliberadamente, evito considerações acerca da não execução da pena por efeito da amnistia, pois é um aspecto que incumbe ao juiz nacional decidir, sem prejuízo da competência do Tribunal de Justiça para averiguar a sua projecção no âmbito do artigo 54.° da Convenção.


34 – O acórdão de 14 de Dezembro de 1972, Boehringer Mannheim/Comissão (7/72, Colect., p. 447) elevou‑o à categoria de princípio geral do direito comunitário.


35 – Vervaele J., «El principio non bis in idem en Europa», in La orden de detención y entrega europea, Arroyo L. e Nieto A., Ed. de la Universidad de Castilla‑La Mancha, Cuenca, 2006, p. 229, sublinha a limitação do princípio no direito da concorrência.


36 – N.os 38, 32, 57 e 27, respectivamente, dos acórdãos proferidos nos processos Gözütok e Brügge, Miraglia, Van Straaten e Gasparini e outros.


37 – Conclusões nos processos Gözütok e Brügge (n.os 48 e segs.) e Van Esbroeck (n.os 18 e segs.).


38 – O prosaico do tema não incita ao seu tratamento literário, embora chame a atenção a concepção que Dumas A., in Impressions de voyage, Michel Lévy Frères Libraires‑Éditeurs, Paris 1855, p. 57, mantém do referido princípio, ao ligá‑lo, num certo tom jocoso desprovido de rigor jurídico, à dificuldade de executar duas vezes a mesma pena, quando descreve o método infalível do «cadí» para simplificar a acção da justiça no Cairo, pois, quando é detido um ladrão, corta‑se‑lhe uma orelha, pelo que, em caso de reincidência, «il n´y a pas de dénégation posible, à moins que l´oreille n´ait repoussé, ce qui est rare; alors on coupe l´autre, en vertu de cet axioma de droit: non bis in idem».


39 – Henzelin M., «Ne bis in idem, un principe à géométrie variable», Revue Pénale Suisse, tomo 123, 2005, fasc. 4, Stampfli Éditions SA, p. 347.


40 – Que deveria aceitar‑se sem reticências, pois, como recorda Moreiro González, C. J., in Las cláusulas de seguridad nacional, Ed. Iustel, Portal Derecho S.A., Madrid, 2007, pp. 132 e 133, o consentimento estatal opera como princípio criador das normas internacionais e faz surgir a questão principal das obrigações que os vinculam.


41 – Pouco tempo depois, a confiança explicita‑se já no Programa de medidas destinadas a aplicar o princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais (JO C 12, de 15.1.2001, p. 10 a 19), para «permitir não só o reforço da cooperação entre Estados‑Membros, mas também a protecção dos direitos das pessoas […]. A aplicação do princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais pressupõe a confiança recíproca dos Estados‑Membros nos respectivos sistemas de justiça penal. Esta confiança repousa, em especial, na plataforma comum constituída pelo empenho dos Estados‑Membros nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, e do Estado de direito.»


42 – JO L 190, p. 1.


43 – No n.° 33 do acórdão de 11 de Fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge, já referido, seguindo o n.° 124 das minhas conclusões.


44 – Os meus anos de juiz nacional e os anos vividos como advogado‑geral no Luxemburgo conferem‑me adicionalmente uma qualidade de veterano privilegiada para discordar das ilustrativas reflexões de Flore D., «La notion de confiance mutuelle: l´alpha ou l´oméga d´une justice pénale européenne» in La confiance mutuelle dans l´espace européen/Mutual Trust in the European Criminal Area, Éditions de l´Université de Bruxelles, 2005, p. 17: «Se em certas ocasiões um juiz de Bruxelas pode inquietar‑se sobre a aptidão de um colega de Arlon ou de Bruges, quando mais não haveria de o sentir relativamente a decisões de um colega longínquo, que nunca viu nem verá, que exerce as suas funções num país que não conhece, onde nunca porá os pés e que não tem, talvez, nem o seu estatuto nem a sua independência, aplicando outra legislação e falando outra língua…».


45 – Concebível como meta, mas de modo nenhum pressuposto único de um espaço comum de liberdade, segurança e justiça.


46 – No n.° 32 do acórdão de 11 de Fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge, já referido.


47 – De Schutter O., «La contribution du contrôle jurisdictionnel à la confiance mutuelle», in La confiance mutuelle dans l´espace européen/Mutual Trust in the European Criminal Area, Éditions de l´Université de Bruxelles, 2005, p. 103.


48 – Sublinho que o princípio ne bis in idem encerra uma dessas garantias individuais.


49 – Nas minhas conclusões nos processos Gözütok e Brügge, alerto para este défice de sensibilidade e saliento que os artigos 54.° e seguintes da Convenção devem ser compreendidos do ponto de vista do cidadão (n.os 114 e 115).


50 – Peers S., EU Justice and Home Affaire Law, 2.ª ed., Oxford University Press, 2006, p. 460, descobre na União Europeia, como reflexo da alta integração, certas medidas de cooperação penal que, em sua opinião, contribuirão para o desenvolvimento das normas internacionais sobre direitos humanos.


51 – Sugiro esta linha interpretativa nas minhas conclusões nos processos Gözütok e Brügge.


52 – Esta regra encontra‑se também em acordos internacionais como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 19 de Dezembro de 1966 (artigo 14.°, n.° 7), ou o Protocolo n.° 7 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (artigo 4.°). Mas estes textos contemplam o princípio na sua dimensão interna, assegurando a sua vigência dentro da jurisdição de um Estado.


53 – Segundo a advogada‑geral E. Sharpston, «o Estado tem uma oportunidade de apreciar e julgar a conduta alegadamente criminosa de um indivíduo» (n.° 92 das suas conclusões de 15 de Junho de 2006 no processo Gasparini).


54 – Flancos que afloram na falta de uma harmonização do direito penal, substantivo ou processual.


55 – É paradigmático para esse efeito o acórdão Gasparini, já referido, em que o Tribunal de Justiça manteve uma postura maximalista da confiança recíproca, afastando‑se das conclusões da advogada‑geral E. Sharpston, para quem, pelo contrário, o referido conceito não constitui uma base razoável para a aplicação do princípio ne bis in idem em relação ao arquivamento do processo por prescrição da acção penal (n.° 108 e seguintes).


56 – Nas minhas conclusões de 12 de Setembro de 2006, no processo Advocaten voor de Wereld VZW, no qual foi proferido o acórdão de 3 de Maio de 2007 (C‑303/05, Colect., p. I‑3633) sustento que «a Carta tem que se impor como instrumento interpretativo de primeira ordem na defesa das garantias dos cidadãos que pertencem ao património dos Estados‑Membros. O repto deve ser encarado com prudência, mas com vigor, com a plena convicção de que, se a protecção dos direitos fundamentais assume carácter imprescindível no pilar comunitário, torna‑se igualmente irrenunciável no terceiro pilar, capaz de incidir, pela própria natureza do seu conteúdo, no núcleo essencial da liberdade pessoal, pressuposto das demais.» Também o Tratado de Lisboa, de 13 de Dezembro de 2007, altera o artigo 6.° TUE, ao qual acrescenta o seguinte parágrafo: «A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 7 de Dezembro de 2000, com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de Dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados».


57 – Isso decorre do artigo 6.° TUE e do artigo 1.°, n.° 3, da Decisão‑quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros.


58 – N.os 34, 37 e 38 do acórdão do Tribunal de Justiça de 14 de Outubro de 2004, Omega (C‑36/02, Colect., p. I‑9609).


59 – Pelo contrário, a advogada‑geral Sharpston não a evitou nas suas conclusões de 5 de Dezembro de 2006, ao sustentar que a sentença à revelia, pela confiança mútua, dispensa a protecção do artigo 54.° da Convenção, desde que respeite os princípios do artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (n.° 101).


60 – Noutro contexto, aludo a essas diferenças linguísticas nas minhas conclusões nos processos Gözütok e Brügge.


61 – O artigo 1.° da malograda Proposta da República Helénica para a adopção de uma Decisão‑quadro do Conselho sobre a aplicação do princípio ne bis in idem (JO C 100, p. 24 a 27) atribui carácter de sentença definitiva a qualquer decisão que tenha estatuto de res iudicata em conformidade com a legislação nacional. Noutra perspectiva, Almagro J. e Tomé J., Instituciones de Derecho Procesal. Proceso Penal, Ed. Trivium, Madrid, 1994, p. 347, e Cortés V., Derecho Procesal. Parte General. Proceso Civil, 6.ª ed., Ed. Tirant lo Blanch, Valencia, 1992, tomo I (vol. I), p. 488.


62 – Ideia que transmitem as redacções francesa «définitivement jugé», inglesa «finally disposed», alemã «rechtskräftig abgeurteilt» ou italiana «giudicata com sentenza definitiva», apesar de outros ordenamentos, como o espanhol, designarem este tipo de decisões com o termo de «sentencia firme», como corrobora a versão espanhola do artigo 54.° da Convenção, entendendo que a «sentença definitiva» apenas decide o processo em primeira instância.


63 – Como as dos Governos esloveno, francês, checo, sueco, eslovaco, britânico e alemão, recolhidas pelo Conselho da União Europeia num documento de trabalho (5213/08) de 14 de Janeiro de 2008, para facilitar a cooperação judicial e o reconhecimento mútuo das decisões judiciais, quando se pronunciem na ausência do arguido.


64 – Não deixo de salientar a coerência com a informação fornecida através da questão prejudicial, já que desde a prolação da sentença começou a correr o prazo para o condenado a impugnar, bem como o prazo de prescrição da pena, pelo que, terminados os prazos, sem nenhuma possibilidade de recurso, a decisão tornou‑se irreversível, material e formalmente.


65 – As minhas conclusões no processo van Esbroeck podem fazer alguma luz, já que analiso a aplicação no tempo do artigo 54.° da Convenção.


66 – Artigo 6.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais e artigos 47.° e 48.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.


67 – Com a finalidade de conhecer as acusações, de ser ouvido por um juiz imparcial, de dispor de apoio judiciário e de participar na produção da prova.


68 – Artigo 5.1.


69 – O acórdão de 13 de Julho de 1989, Skattenministeriet/Henriksen (173/88, Colect., p. 2763) rejeitou este mecanismo exegético, ao advertir que «não se pode apreciar o alcance do conceito controvertido com base numa interpretação exclusivamente textual» (n.° 11).


70 – Berdugo I., Arroyo L., García N., Ferré J., e Ramón J., in Lecciones de Derecho penal. Parte general, Ed. Praxis, Barcelona, 1996, p. 37, afirmam que uma perspectiva que parte do princípio da legalidade necessita de «reserva de lei absoluta – monopólio do Parlamento ‑ para definir as condutas criminosas e aplicar as penas, com exclusão de outras disposições legais de nível inferior e do costume; a exigência de determinação, certeza ou carácter taxativo das normas penais; a proibição da interpretação extensiva e da analogia in malam partem; a irretroactividade das normas penais desfavoráveis para o réu […]». Em sentido semelhante, Vogel J., «Principio de legalidad, territorialidad y competencia judicial», in Eurodelitos. El derecho penal económico de la Unión Europea, Tiedemann K. e Nieto A., Ed. de la Universidad de Castilla‑La Mancha, Cuenca, 2004, pp. 32, salienta que a proibição da analogia e a regra da interpretação restritiva são reconhecidas sem excepção em todos os Estados‑Membros, como corolário do princípio da legalidade.


71 – O princípio da legalidade como princípio geral do direito comunitário é referido, entre outros, no acórdão de 3 de Maio de 2007, Advocaten voor de Wereld VZW (C‑303/05, Colect., p. I‑3633), n.os 46 e 49.


72 – N.° 67 do acórdão de 3 de Maio de 2005, Berlusconi, e o. (C‑387/02, C‑391/02 e C‑403/02, Colect., p. I‑3565), com referências aos acórdãos de 12 de Junho de 2003, Schmidberger (C‑112/00, Colect., p. I‑5659), e de 10 de Julho de 2003, Broker Aquaculture e Hydro Seafood (C‑20/00 e C‑64/00, Colect., p. I‑7411).


73 – Princípio consagrado no artigo 49.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.


74 – «Le gouvernement néerlandais ne peut par ailleurs pas imaginer une situation dans laquelle une sanction est infligée par un jugement définitif, sanction à propos de laquelle on peut déclarer à un quelconque moment ultérieur qu'elle n'a jamais pu être exécutée» (n.° 40 das suas observações).


75 – Ilustram esta dupla perspectiva as categorias do direito administrativo da «autotutela declarativa e executiva», pois se a primeira significa que os actos do poder público gozam de uma presunção de legalidade, afectando os interessados enquanto não a destruírem por meio do recurso oportuno, a segunda conduz ao terreno dos factos e implica a execução forçada quando os destinatários resistam ao cumprimento (García de Enterría E. e Fernández T. R., Curso de Derecho administrativo I, 6.ª ed., Ed. Civitas, Madrid, 1996, p. 490 e 491).


76 – Independentemente de se tratar da pena de morte, incompatível na sua essência com as liberdades e com os direitos cuja salvaguarda inquebrantável a União Europeia deseja ardentemente.


77 – Especificamente, o seu artigo 6.°, n.° 5, ao referir «a cessação das hostilidades, as autoridades no poder procurarão conceder a amnistia mais ampla possível às pessoas que tenham tomado parte no conflito armado […]».


78 – Bernardi A. e Grande C., «Amnistía. La prescripción del delito y de la sanción», in La orden de detención y entrega europea, Arroyo L. e Nieto A., Ed. de la Universidad de Castilla‑La Mancha, Cuenca, 2006, p. 260, 261 e 275.


79 – O indulto caracteriza‑se pela individualidade, frente a outras medidas de perdão dirigidas a um grupo de pessoas.


80 – Bernardi A. e Grande C., op cit, p., 262.


81 – Pradel, Droit Pénal général, Paris, 2002, p. 669.


82 – O Tribunal Interamericano dos Direitos Humanos pronunciou‑se de modo crítico sobre certas figuras de perdão, no processo Barrios Altos contra Peru, acórdão de 14 de Março de 2001, série C, n.° 45.


83 – Consubstancial à sua definição, o acto de «perdão», como categoria autónoma do «discricionário», escapa a uma eventual revisão jurisdicional.