Language of document : ECLI:EU:C:2020:1

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 14 de janeiro de 2020(1)

Processo C78/18

Comissão Europeia

contra

Hungria

(Transparência associativa)

«Ação por incumprimento — Livre circulação de capitais — Artigos 63.o TFUE e 65.o TFUE — Respeito pela vida privada — Proteção de dados de caráter pessoal — Liberdade de associação — Transparência — Artigos 7.o, 8.o e 12.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Donativos estrangeiros a organizações não governamentais que desenvolvem a sua atividade num Estado‑Membro — Legislação nacional que prevê obrigações sancionáveis de registo, de declaração e de transparência a organizações não governamentais que recebem ajuda estrangeira»






1.        O Tribunal de Justiça é chamado a decidir, a pedido da Comissão Europeia, a respeito da questão de saber se a Hungria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 63.o TFUE e dos artigos 7.o, 8.o e 12.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), ao ter previsto, por lei (2), determinadas restrições aos donativos provenientes do estrangeiro em benefício das denominadas «organizações da sociedade civil».

2.        O Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se sobre a ação por incumprimento intentada pela Comissão, procedendo, novamente, à fiscalização jurisdicional da atividade dos Estados, de modo a que, na sua análise, as liberdades fundamentais consagradas nos Tratados sejam harmoniosamente integradas com os direitos protegidos pela Carta.

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União

1.      Tratado FUE

3.        O artigo 63.o TFUE dispõe:

«1.      No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados‑Membros e entre Estados‑Membros e países terceiros.

2.      No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados‑Membros e entre Estados‑Membros e países terceiros.»

4.        O artigo 65.o TFUE dispõe:

«1.      O disposto no artigo 63.o não prejudica o direito de os Estados‑Membros:

a)      Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;

b)      Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.

2.      O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.

3.      As medidas e procedimentos a que se referem os n.os 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.o

[…]»

2.      Carta

5.        O artigo 7.o da Carta enuncia:

«Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações.»

6.        O artigo 8.o da Carta prevê:

«1.      Todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pessoal que lhes digam respeito.

2.      Esses dados devem ser objeto de um tratamento leal, para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento legítimo previsto por lei. Todas as pessoas têm o direito de aceder aos dados coligidos que lhes digam respeito e de obter a respetiva retificação.

3.      O cumprimento destas regras fica sujeito a fiscalização por parte de uma autoridade independente.»

7.        Em conformidade com o artigo 12.o, n.o 1, da Carta:

«Todas as pessoas têm direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de associação a todos os níveis, nomeadamente nos domínios político, sindical e cívico, o que implica o direito de, com outrem, fundarem sindicatos e de neles se filiarem para a defesa dos seus interesses.»

8.        O artigo 52.o da Carta prevê:

«1.      Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

[…]

3.      Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.

[…]»

B.      Direito húngaro

9.        O preâmbulo da Lei n.o LXXVI, de 2017, enuncia:

«[A]s organizações estabelecidas ao abrigo da liberdade de associação são a expressão da auto‑organização da sociedade e a sua atividade contribui para o controlo democrático e para o debate público sobre os assuntos públicos […] [sendo que] estas organizações desempenham um papel determinante na formação da opinião pública,

–        [A] transparência das associações e das fundações na sociedade reveste‑se de grande interesse público[.]

–        [O] apoio prestado por fontes estrangeiras desconhecidas às organizações estabelecidas ao abrigo da liberdade de associação é suscetível de ser utilizado por grupos de interesses estrangeiros para promover, através da influência social destas organizações, os seus próprios interesses em vez dos objetivos comunitários na vida social e política da Hungria e […] pode pôr em perigo os interesses políticos e económicos do país, bem como o funcionamento sem ingerências das instituições legais.»

10.      Nos termos do artigo 1.o desta lei:

«1.      Para efeitos da aplicação da presente lei, entende‑se por organização beneficiária de ajuda proveniente do estrangeiro qualquer associação ou fundação que beneficie de uma contribuição financeira conforme definida no n.° 2.

2.      Para efeitos da presente lei, considera‑se que qualquer contribuição em dinheiro ou de outros ativos que provenham direta ou indiretamente do estrangeiro, independentemente do título jurídico, é uma ajuda quando atinja, por si só ou cumulativamente, num determinado exercício fiscal, o dobro do montante fixado no artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da pénzmosás és a terrorizmus finanszírozása megelőzéséről és megakadályozásáról szóló 2017. évi LIII. törvény [(Lei n.° LIII de 2017, relativa à prevenção e ao combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo), (a seguir “Lei Pmt”)] [(3)].

3.      A ajuda que a associação ou fundação recebe, ao abrigo de uma norma de direito especial, como financiamento proveniente da [União] realizada com a intermediação de uma instituição orçamental [húngara] não é abrangida pelo cálculo do montante da ajuda na aceção do n.o 2.

4.      Estão excluídas do âmbito de aplicação da presente lei:

a)      as associações e fundações que não são consideradas organizações da sociedade civil;

b)      as associações abrangidas pela sportról szóló 2004. évi I. törvény [Lei n.° I de 2004, relativa ao desporto];

c)      as organizações que exercem uma atividade religiosa;

d)      as organizações e associações de minorias nacionais abrangidas pela nemzetiségek jogairól szóló 2011. évi CLXXIX. törvény [(Lei n.o CLXXIX, de 2011, relativa aos Direitos das Minorias Nacionais], bem como as fundações que exercem, em conformidade com o seu ato constitutivo, uma atividade diretamente relacionada com a autonomia cultural de uma minoria nacional ou que representam e defendem os interesses de uma determinada minoria nacional.»

11.      O artigo 2.o da Lei n.o LXXVI, de 2017, dispõe:

«1.      Qualquer associação ou fundação, na aceção do artigo 1.°, n.° 1, comunica, no prazo de 15 dias, a sua transformação em organização beneficiária de ajuda proveniente do estrangeiro quando o montante das ajudas que recebeu durante o ano em causa atinja o dobro do montante fixado no artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da Lei [Pmt].

2.      A organização beneficiária da ajuda proveniente do estrangeiro envia a declaração referida no n.° 1 ao tribunal competente da sua sede social (a seguir “tribunal do registo”) e fornece os dados especificados no anexo I [(4)].. O tribunal do registo anexa a declaração aos registos relativos à associação ou à fundação que constem do registo das organizações civis e outras organizações consideradas não comerciais (a seguir “registo”) e regista a associação ou a fundação como organização beneficiária de ajuda proveniente do estrangeiro.

3.      Aplicando por analogia as regras previstas no n.° 1, a organização beneficiária de ajuda proveniente do estrangeiro deve transmitir ao tribunal do registo, em simultâneo com o respetivo apuramento, uma declaração com os dados especificados no anexo I, relativos às ajudas recebidas durante o ano precedente. Da declaração devem constar, para o ano em causa,

a)      para uma ajuda não superior a 500 000 HUF [(5)] por doador, as informações indicadas na parte II, ponto A), do anexo I,

b)      para uma ajuda igual ou superior a 500 000 HUF por doador, as informações indicadas na parte II, ponto B), do anexo I.

4.      Antes do dia 15 de cada mês, o tribunal do registo envia ao ministério responsável pela gestão do portal de informações civis o nome, a sede e a identificação fiscal das associações e fundações que tenha inscrito no registo como organizações beneficiárias de ajuda proveniente do estrangeiro durante o mês precedente. O [referido] ministério responsável pela gestão do portal de informações civis divulga de imediato as informações assim transmitidas com o objetivo de as tornar acessíveis pública e gratuitamente na plataforma eletrónica criada para o efeito.

5.      Depois de entregar a sua declaração, na aceção do n.° 1, a organização beneficiária de ajuda proveniente do estrangeiro indica de imediato na página principal do seu sítio Internet, bem como nas suas publicações […]que é considerada uma organização beneficiária de ajuda proveniente do estrangeiro, na aceção da presente lei.

6.      A organização beneficiária de ajuda proveniente do estrangeiro continua sujeita à obrigação prevista no n.° 5 enquanto for considerada uma organização beneficiária de ajuda proveniente do estrangeiro, na aceção da presente lei.»

12.      Nos termos do artigo 3.o da Lei n.o LXXVI, de 2017:

«1.      Se a associação ou a fundação não respeitar as obrigações que lhe são impostas pela presente lei, o procurador, logo que tenha conhecimento deste facto […], ordena à associação ou à fundação que se conforme com as referidas obrigações nos 30 dias seguintes ao referido despacho.

2.      Se a organização beneficiária de ajuda proveniente do estrangeiro não der cumprimento à obrigação indicada no despacho do procurador, o procurador emite novo despacho para cumprimento das obrigações que lhe são impostas pela presente lei no prazo de 15 dias. Se não tiverem sido obtidos resultados 15 dias após o termo deste prazo, o procurador requer ao tribunal do registo a aplicação de uma sanção pecuniária, em conformidade com o disposto no artigo 37.°, n.° 2, da civil szervezetek bírósági nyilvántartásáról és az ezzel összefüggő eljárási szabályokról szóló 2011. évi CLXXXI. Törvény [Lei n.o CLXXXI, de 2011, relativa ao Registo nos Tribunais das Organizações da Sociedade civil e às Regras e Processos Aplicáveis] [(6)].

3.      Depois de notificar o novo despacho à organização, em conformidade com o disposto no n.° 2, o procurador age no respeito pela exigência de proporcionalidade, aplicando por analogia as regras previstas na egyesülési jogról, a közhasznú jogállásról, valamint a civil szervezetek működéséről és támogatásáról szóló 2011. évi CLXXV. törvény [Lei n.° CLXXV de 2011, relativa ao direito de associação, ao estatuto de associação sem fins lucrativos e ao financiamento das organizações da sociedade civil)] [(7)], e na Lei n.° CLXXXI de 2011, relativa ao registo nos tribunais das organizações da sociedade civil e às regras e processos aplicáveis» [(8)].

13.      Nos termos do artigo 4.o da Lei n.o LXXVI, de 2017:

«1.      Se a contribuição em dinheiro ou de outros ativos que a organização beneficiária de ajuda proveniente do estrangeiro tenha recebido não atingir, durante o ano seguinte ao exercício fiscal a que se refere o artigo 2.°, n.° 3, o dobro do montante indicado no artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da Lei Pmt, a associação ou a fundação deixa de ser considerada uma organização beneficiária de ajuda proveniente do estrangeiro e comunica esta informação, aplicando por analogia as regras relativas à declaração, nos 30 dias seguintes à adoção do seu relatório anual relativo ao ano em que ocorrer esta circunstância. O tribunal do registo também comunica esta circunstância, em aplicação do artigo 2.°, n.° 4, ao ministério responsável pela gestão do portal de informações civis, que elimina de imediato da plataforma eletrónica criada para o efeito os dados da organização em causa.

2.      Depois de efetuada a declaração prevista no n.° 1, o tribunal do registo elimina imediatamente do registo a indicação de que a associação ou a fundação é uma organização beneficiária de ajuda proveniente do estrangeiro.»

II.    Procedimento précontencioso

14.      Em 14 de julho de 2017, a Comissão dirigiu uma notificação para cumprir ao Governo húngaro, relativa à Lei n.o LXXVI, de 2017, por entender que a mesma violava as obrigações decorrentes do artigo 63.o TFUE e dos artigos 7.o, 8.o e 12.o da Carta.

15.      Na notificação, concedia‑se um prazo de um mês ao Governo húngaro para que apresentasse as suas observações. O referido Governo solicitou uma prorrogação, que lhe foi recusada pela Comissão.

16.      O Governo húngaro respondeu à Comissão, por ofícios de 14 de agosto e de 7 de setembro de 2017, contestando as acusações constantes da notificação.

17.      Não tendo ficado satisfeita com a resposta do Governo húngaro, a Comissão emitiu um parecer fundamentado em 5 de outubro de 2017, em que:

1)      declarou que, com a Lei n.o LXXVI, de 2017, e em violação das disposições de direito da União acima mencionadas, a Hungria tinha introduzido restrições discriminatórias, desnecessárias e injustificadas no que respeita aos donativos estrangeiros às organizações da sociedade civil na Hungria; e

2)      convidou o Governo húngaro a adotar as medidas indispensáveis para dar cumprimento ao parecer fundamentando ou apresentar observações no prazo de um mês.

18.      Depois de lhe ter sido recusada, novamente, a prorrogação do prazo concedido, o Governo húngaro respondeu ao parecer da Comissão em 5 de dezembro de 2017, rejeitando o incumprimento que lhe era imputado.

19.      Em 7 de dezembro de 2017, a Comissão decidiu intentar a presente ação.

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

20.      A ação por incumprimento deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de fevereiro de 2018.

21.      A Comissão pede ao Tribunal de Justiça que declare que, com a adoção da Lei n.o LXXVI, de 2017, a Hungria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 63.o TFUE e dos artigos 7.o, 8.o e 12.o da Carta, ao prever restrições discriminatórias, desnecessárias e injustificadas aos donativos estrangeiros às organizações da sociedade civil. Pede também a condenação daquele Estado‑Membro nas despesas.

22.      O Governo húngaro pede que a ação seja julgada improcedente ou, subsidiariamente, improcedente por falta de fundamento, bem como a condenação da Comissão nas despesas.

23.      Por Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 26 de setembro de 2018, foi admitida a intervenção do Reino da Suécia em apoio dos pedidos da Comissão.

24.      Em 22 de outubro de 2019, foi realizada uma audiência na qual compareceram o Governo húngaro, o Governo sueco e a Comissão.

IV.    Análise

A.      Quanto à inadmissibilidade da ação

1.      Posições das partes

25.      Segundo o Governo húngaro, o recurso é inadmissível devido às irregularidades cometidas durante a fase pré‑contenciosa. Em seu entender, a Comissão fixou‑lhe prazos inferiores aos habituais para a apresentação de observações e recusou‑lhe de forma abusiva as prorrogações solicitadas.

26.      Essas irregularidades violaram o dever de cooperação leal (artigo 4.o, n.o 3, TUE), o direito a uma boa administração (artigo 41.o da Carta), mais precisamente o direito a ser ouvido, e o princípio geral dos direitos de defesa.

27.      A Comissão defende que os prazos não eram abusivos nem irrazoavelmente curtos e que não impediram o Governo húngaro de apresentar observações detalhadas sobre o incumprimento imputado.

28.      Quanto ao prazo para apresentar observações a respeito da notificação para cumprir, a Comissão alega que a sua prorrogação estava condicionada ao facto de a Hungria lhe dar cumprimento e à elaboração de um calendário realista de medidas para o fazer (9). Alega, também, que os prazos foram fixados tendo em conta o facto de a Hungria ter decidido não prosseguir o diálogo com a Comissão, de modo que a sua curta duração foi imputável ao comportamento desse Estado‑Membro.

2.      Apreciação

29.      Para o Tribunal de Justiça, «a fase pré‑contenciosa tem por objetivo dar ao Estado‑Membro em causa a possibilidade de, por um lado, dar cumprimento às obrigações decorrentes do direito [da União] e, por outro, apresentar utilmente os seus argumentos de defesa a respeito das acusações formuladas pela Comissão» (10).

30.      Para satisfazer esse duplo objetivo, a Comissão está obrigada «a conceder aos Estados‑Membros um prazo razoável para responderem à notificação de incumprimento e para darem cumprimento a um parecer fundamentado ou, eventualmente, para prepararem a sua defesa» (11).

31.      O prazo habitual que a Comissão concede nos procedimentos pré‑contenciosos é de dois meses (12). No entanto, tal não implica que se deva limitar a esse prazo em todos os casos: o que importa é que, tal como se referiu, o prazo seja «razoável».

32.      Todavia, a razoabilidade do prazo não pode ser determinada em abstrato, mas sim por referência ao duplo objetivo que o mesmo visa (13). Concretamente, o Estado‑Membro deve poder preparar a defesa da sua posição relativamente às acusações da Comissão.

33.      Para determinar se, num caso particular, o prazo concedido pela Comissão é razoável, deve‑se «tomar em consideração o conjunto das circunstâncias que caracterizam a situação em apreço» (14). Por exemplo, «podem justificar‑se prazos muito curtos em situações especiais, designadamente quando é urgente remediar um incumprimento ou quando o Estado‑Membro em causa tinha pleno conhecimento da posição da Comissão muito antes de se iniciar o processo» (15).

34.      A Comissão considera que, neste processo, a prorrogação do prazo de resposta ao parecer fundamentado só podia ter sido decidida para que o Estado‑Membro pudesse tomar as medidas necessárias para dar cumprimento ao referido parecer (16). Acrescenta que o Governo húngaro não indicou no seu pedido de prorrogação que era essa a sua intenção.

35.      Este argumento não toma em consideração o segundo dos objetivos da fase pré‑contenciosa, isto é, facilitar a defesa do Estado‑Membro contra as acusações que lhe são imputadas. Não é, portanto, conforme com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça.

36.      No entanto, o que importa, em suma, é saber se a atuação da Comissão dificultou a preparação da defesa do Estado‑Membro. É a este último que compete produzir prova dessa dificuldade (17).

37.      O Governo húngaro não conseguiu demonstrar que os prazos concedidos tenham tido um impacto negativo na defesa do seu ponto de vista. Ainda que pudesse ter razão ao criticar o facto de a Comissão lhe ter aplicado, sem a devida justificação, um prazo (um mês) inferior ao habitual na sua prática (dois meses), este último foi, de facto, o prazo de que dispôs para responder tanto à notificação para cumprir como ao parecer fundamentado (18).

38.      Nestas circunstâncias, entendo que o Governo húngaro pôde defender‑se de modo adequado, beneficiando, no final, do prazo que tinha solicitado inicialmente.

39.      O facto de a Comissão ter decidido intentar a sua ação apenas dois dias após a receção da resposta do Governo húngaro ao parecer fundamentado é irrelevante para efeitos da admissibilidade da referida ação.

40.      Cabe à Comissão escolher o momento em que inicia o processo por incumprimento contra um Estado‑Membro, «não podendo as considerações que determinam essa escolha afetar a admissibilidade da ação», uma vez que «a Comissão dispõe do poder de apreciar em que data pode ser oportuno intentar a ação, e, portanto, não cabe ao Tribunal de Justiça, em princípio, fiscalizar essa apreciação» (19).

41.      O Governo húngaro alega que dois dias eram insuficientes para a Comissão formar uma opinião sobre a sua resposta ao parecer fundamentado (20). A Comissão responde que se pronunciou sobre a ação após ter procedido a uma análise da resposta do Governo húngaro com todo o profissionalismo (21).

42.      Já referi a competência da Comissão para escolher o momento em que opta por iniciar este tipo de ações. Com base nesta premissa, não vejo razões para defender que a Comissão tomou a sua decisão, neste caso, sem conferir às observações do Governo húngaro a atenção que mereciam.

43.      A resposta ao parecer fundamentado constitui a última fase de um processo durante o qual as partes envolvidas conhecem bem as respetivas posições. Assim sendo, uma vez concluídas as diferentes etapas da fase pré‑contenciosa, dois dias podem ser suficientes para decidir o passo seguinte, isto é, recorrer à ação por incumprimento.

44.      Uma resposta ao parecer fundamentado que, como no caso vertente, mais não é do que a repetição da tese defendida desde o início pelo Governo húngaro é suficiente para que a Comissão deduza que não houve alterações na posição jurídica daquele Estado‑Membro, já conhecida anteriormente, durante o processo. Optar, consequentemente, por intentar a ação não é algo que exija uma análise mais aprofundada do que a realizada ao longo de toda a fase pré‑contenciosa.

45.      Embora a decisão tenha sido tomada, como foi já referido, em 7 de dezembro de 2017, a ação deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de fevereiro de 2018. Dela constam diversas referências ao conteúdo da resposta do Governo húngaro, o que atesta uma análise aprofundada das suas teses. Não se pode, portanto, afirmar que a Comissão tenha negligenciado a análise da resposta a esse parecer.

46.      Em suma, o que importa é que a fase pré‑contenciosa serviu para permitir que o Governo húngaro pudesse expor os seus argumentos, tanto perante a Comissão como, finalmente, perante o Tribunal de Justiça, sem prejuízo do seu direito de defesa.

47.      Parece desnecessário referir que o Tribunal de Justiça, para apreciar esta ação, dispõe de todos os documentos elaborados pelo Governo húngaro na fase pré‑contenciosa e, desde logo, das suas alegações de resposta e de réplica neste processo jurisdicional. Nessas condições, entendo que o direito de defesa do Estado‑Membro foi respeitado.

B.      Observações das partes quanto ao mérito

48.      A Comissão acusa a Hungria, em primeiro lugar, de violação da liberdade de circulação de capitais (artigo 63.o TFUE) e, em segundo lugar, «de modo distinto» (22), da violação de diversos direitos e liberdades reconhecidos pela Carta.

49.      Pelas razões que exporei (23), considero que a análise destas duas acusações não deve ser realizada «de modo distinto», mas sim de forma integrada.

1.      Argumentos da Comissão e do Governo sueco

50.      Para a Comissão, com a qual concorda o Governo sueco, os donativos regulados na Lei n.o LXXVI, de 2017, constituem uma modalidade de movimento (transmissão) de capitais. Essa lei implica uma restrição discriminatória indireta da liberdade de circulação de capitais, baseada na nacionalidade, para cuja existência não se pode invocar como justificação uma diferença objetiva, quanto à transparência e ao controlo, entre a situação dos doadores residentes na Hungria e a dos residentes no estrangeiro.

51.      Mesmo que a Lei n.o LXXVI, de 2017, fosse aplicável de modo não discriminatório, não deixaria de constituir uma restrição à livre circulação de capitais, dada a onerosidade das obrigações de declaração, registo e publicidade que impõe, com os seus consequentes efeitos dissuasivos. Por outro lado, o facto de as obrigações de declaração e de publicidade serem ex post não afeta a sua natureza restritiva, mesmo que se revelem menos pesadas do que uma obrigação ex ante.

52.      Os motivos de ordem pública e de transparência invocados pelo Governo húngaro também não sustentam uma legislação que: a) estigmatiza as organizações beneficiárias de ajuda estrangeira (não todas, pois, sem razão objetiva, exclui algumas, como as desportivas ou as religiosas); e b) parte do princípio de que a natureza das atividades que beneficiam dessa ajuda é ilícita.

53.      Além disso, essas medidas não são adequadas para atingir os objetivos prosseguidos pelo legislador húngaro:

–        No que diz respeito à proteção da ordem e da segurança públicas, embora reconheça uma certa margem de apreciação aos Estados‑Membros (artigo 4.o, n.o 2, TUE), o Governo húngaro não justificou que as organizações afetadas representem uma ameaça suficientemente grave para a soberania e a ordem constitucional.

–        Também não justificou que o combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo torna necessária a divulgação do financiamento por capital estrangeiro das organizações húngaras sem fins lucrativos nem como é que as medidas em causa contribuem para esse combate.

54.      De qualquer modo, essas medidas, que acrescem às já aplicáveis às organizações da sociedade civil, são desproporcionadas, sendo possível conceber outras menos restritivas.

55.      No que respeita ao artigo 12.o da Carta, as exigências, as formalidades e as sanções previstas na Lei n.o LXXVI, de 2017, violam a liberdade de associação das organizações da sociedade civil, incidindo no seu funcionamento, organização e financiamento. As sanções, em especial, comportam um risco jurídico para a sua existência, uma vez que incluem a possibilidade da sua dissolução.

56.      Além disso, estas restrições à liberdade de associação são injustificadas, uma vez que não respondem aos objetivos que supostamente prosseguem.

57.      O sistema sancionatório previsto também não respeita o princípio da proporcionalidade: uma medida como a dissolução só pode ser contemplada em último recurso e em situações de gravidade excecional, não perante infrações menores, designadamente de natureza administrativa.

58.      Quanto aos artigos 7.o e 8.o da Carta, a Lei n.o LXXVI, de 2017, constitui uma ingerência injustificada e desproporcionada nos direitos ao respeito pela vida privada e à proteção de dados de caráter pessoal de quem tenha efetuado os donativos.

59.      Sem negar que a transparência das organizações da sociedade civil e o combate aos donativos anónimos possam constituir objetivos de interesse geral, parece excessivo considerar que os doadores cujos donativos excedam 500 000 HUF são «atores públicos» merecedores de uma menor proteção dos seus dados pessoais (o que permitiria, inter alia, publicar os seus nomes num registo acessível ao público). Deste modo, o objetivo de transparência adquire automaticamente prioridade relativamente ao respeito dos direitos fundamentais dos doadores.

2.      Resposta do Governo húngaro

60.      O Governo húngaro alega que a Lei n.o LXXVI, de 2017, se insere no contexto da preocupação da União em assegurar a transparência e a rastreabilidade dos movimentos de capitais, no âmbito do combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.

61.      A lei em causa não implica uma restrição discriminatória indireta baseada na nacionalidade, centrando‑se antes na fonte das ajudas. Além disso, também se aplica às ajudas provenientes do estrangeiro por parte de nacionais húngaros, sem que a Comissão tenha podido demonstrar que quem, de facto, doa esses montantes são predominantemente estrangeiros. De qualquer modo, o critério da fonte é justificado pela circunstância de as ajudas de proveniência interna serem mais facilmente controláveis do que as externas.

62.      As medidas em causa não têm um efeito dissuasivo, uma vez que não impõem aos afetados nenhuma obrigação administrativa nova. Além disso, as obrigações de publicação são neutras e não afetam o doador médio, mas sim quem contribua com mais de 500 000 HUF. O Tribunal de Justiça admitiu obrigações de declaração ex post como estas.

63.      Quanto à sua justificação, a Lei n.o LXXVI, de 2017, pretende:

–        aumentar a transparência das organizações da sociedade civil, pela sua crescente influência na formação da opinião pública e na própria vida pública. Longe de censurar a sua função, o legislador teria pretendido reconhecê‑las e estimulá‑las, sempre que se desenvolvam no respeito da legalidade. Nesta linha, é‑lhes concedido um tratamento mais favorável que aos partidos políticos, que não podem receber ajudas do estrangeiro;

–        contribuir para o combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.

64.      A Lei n.o LXXVI, de 2017, não prossegue esses objetivos de modo incoerente: excetua algumas ajudas porque, se provêm de fontes húngaras, podem ser controladas graças à legislação preexistente; e, quando se trata de associações religiosas ou desportivas, as suas particularidades jurídicas impõem a sua exclusão.

65.      Quanto à proporcionalidade das medidas, o conceito de «ajuda» foi definido de tal modo que não se afigura menos indeterminado que outros conceitos comparáveis utilizados pelo direito da União.

66.      Não é exato que a legislação preexistente tenha imposto às organizações da sociedade civil a obrigação de comunicar os donativos recebidos. Além disso, medidas como as sugeridas pela Comissão seriam muito mais intrusivas.

67.      No que respeita às obrigações de registo e de publicidade, as mesmas não se aplicam sistematicamente, mas apenas nos limites previstos pela lei. Esses limites respondem à preocupação de restringir a informação aos financiamentos relevantes provenientes do estrangeiro e são muito superiores à média dos donativos realizados na prática.

68.      Quanto às sanções, é instituído um conjunto gradual de medidas, aplicáveis por etapas e sujeitas à fiscalização jurisdicional, sendo a dissolução o último recurso para as situações em que seja revelada uma vontade clara e persistente de não respeitar a lei.

69.      A Lei n.o LXXVI, de 2017, não limitou o conteúdo material da liberdade de associação, tendo ao invés, respeitando‑o, regulado o seu exercício. As obrigações de registo e de publicidade reduzem‑se à divulgação de um facto neutro (a receção de uma ajuda financeira de determinada importância proveniente do estrangeiro), sem implicarem os efeitos estigmatizantes e dissuasivos denunciados pela Comissão.

70.      O objetivo da transparência justifica a adoção de medidas declarativas (não proibitivas), aplicáveis normalmente aos partidos políticos e, por conseguinte, também às organizações da sociedade civil, a que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem confere uma importância comparável.

71.      Os dados visados pela Lei n.o LXXVI, de 2017 — o nome do doador, a cidade e o país de residência —, não têm caráter pessoal e, em todo o caso, as obrigações que lhes dizem respeito não representam uma ingerência nos direitos protegidos pela Carta. Apenas uma parte das informações recolhidas, que afetam uma porção ínfima de pessoas singulares (3,6 % dos doadores em 2015), é tornada pública.

72.      Por último, uma eventual ingerência nos direitos garantidos pelos artigos 7.o e 8.o da Carta justificar‑se‑ia com base em objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, como a maior transparência do financiamento das organizações da sociedade civil e o combate aos donativos anónimos.

73.      Por último, era necessário preencher o vazio jurídico preexistente nessa matéria. A prova da proporcionalidade das medidas é que as mesmas coincidem com as previstas pela legislação da União relativa aos partidos políticos europeus.

C.      Apreciação preliminar quanto à necessidade de utilizar um critério de fiscalização integrado

1.      A posição do Tribunal de Justiça

74.      Nas suas Conclusões no processo Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas) (24), o advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe salientou que a Comissão pedia pela primeira vez ao Tribunal de Justiça a declaração de que um Estado‑Membro — também a Hungria — não tinha cumprido as obrigações impostas pela Carta (25).

75.      Esse facto não suscitava nenhum problema de admissibilidade, uma vez que, como afirmava o advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe, entre as obrigações cujo incumprimento a Comissão pode denunciar no Tribunal de Justiça em conformidade com o artigo 258.o TFUE consta o respeito pelos direitos garantidos pela Carta (26).

76.      A questão delicada consistia então (como agora) em saber, segundo a Comissão, se o Tribunal de Justiça se devia pronunciar relativamente a uma pretensa violação da Carta, independentemente, e de forma autónoma, de uma violação da liberdade de circulação, também imputada à Hungria no âmbito desse processo.

77.      Perante esta abordagem, o advogado‑geral defendia que o Tribunal de Justiça não podia examinar a eventual violação da Carta independentemente da questão da violação das liberdades de circulação (27). Tal teria sido a interpretação do Tribunal de Justiça no Acórdão SEGRO e Horváth (28), ao pronunciar‑se num processo em que existia «uma sobreposição integral entre o direito de propriedade e a livre circulação de capitais» (29).

78.      No entanto, o Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 21 de maio de 2019 (30), optou por analisar sucessivamente a violação do artigo 63.o TFUE e a do artigo 17.o da Carta:

–        Quanto ao artigo 63.o TFUE, declarou que a norma nacional restringia o direito dos interessados à livre circulação de capitais (31).

–        Em seguida, concentrou‑se na questão de saber se a restrição era justificada, quer por razões imperiosas de interesse geral, quer pelas referidas no artigo 65.o TFUE (32).

–        Nesta perspetiva, considerou que uma legislação nacional que invoque esses dois tipos de razões deve respeitar os direitos garantidos pela Carta. Consequentemente, a sua compatibilidade com o direito da União devia ser examinada «à luz tanto das exceções previstas pelos Tratados e pela jurisprudência […] como dos direitos fundamentais garantidos pela Carta» (33).

–        Por conseguinte, havia que determinar se a norma nacional também violava o direito fundamental então invocado (o direito de propriedade garantido pelo artigo 17.o da Carta) (34).

79.      Depois de constatar a existência das duas infrações — ao artigo 63.o TFUE e ao artigo 17.o da Carta —, o Tribunal de Justiça debruçou‑se sobre a questão de saber as mesmas se justificavam.

–        Quanto à violação do artigo 63.o TFUE, rejeitou sucessivamente a justificação baseada em determinados objetivos de interesse geral (35), a que resultava da violação da regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios (36) e a baseada na proteção da ordem pública (37).

–        Quanto ao artigo 17.o da Carta, rejeitou que existissem causas de utilidade pública que justificassem a privação do direito de propriedade, sem que a norma nacional previsse o pagamento de uma indemnização justa (38).

80.      O Tribunal de Justiça procurou, sem dúvida, articular as liberdades básicas garantidas pelos Tratados e os direitos fundamentais da Carta, mas verifica‑se um certo risco de sobreposição na sua análise, como sublinhou o advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe (39).

81.      Mesmo que, com toda a probabilidade, essa sobreposição não tenha consequências práticas exageradas, parece‑me ser possível proceder a uma articulação entre as liberdades garantidas pelos Tratados e os direitos protegidos pela Carta que implique a integração de ambas num critério de fiscalização único.

2.      Procura de um critério de fiscalização integrado

82.      Segundo a conceção tradicional do Tribunal de Justiça, ao avaliar a existência de uma violação das liberdades protegidas pelos Tratados, os direitos fundamentais só entram em linha de conta na medida em que os Estados‑Membros entravem ou limitem essas liberdades invocando causas ou motivos previstos no direito da União (40).

83.      A regra consiste, portanto, no facto de que o Tribunal de Justiça «não pode apreciar, à luz da Carta, uma regulamentação nacional que não se enquadra no âmbito do direito da União» (41). Este é o pressuposto para que os direitos da Carta sejam oponíveis à referida regulamentação.

84.      A esta abordagem tradicional talvez possa sobrepor‑se outra, mais focada na aplicabilidade da Carta, quando o Tribunal de Justiça interpreta as liberdades dos Tratados, de cujo conteúdo os direitos fundamentais garantidos pela própria Carta fazem necessariamente parte.

85.      Como acaba de ser referido, o Tribunal de Justiça «não pode apreciar, à luz da Carta, uma regulamentação nacional que não se enquadra no âmbito do direito da União» (42). Ora, ao interpretar o direito da União (no que aqui importa, o artigo 63.o TFUE), devem, indiscutivelmente, ter‑se em conta, as implicações da Carta.

86.      O conjunto do direito da União, tanto originário como derivado, foi imbuído do conteúdo dos direitos fundamentais proclamados na Carta, cujo valor jurídico equivale ao dos Tratados (artigo 6.o, n.o 1, TUE). E tal facto sucedeu de modo radical, como compete a uma União fundada nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade e dos direitos humanos (artigo 2.o TUE), que coloca a pessoa no núcleo da sua atuação (preâmbulo da Carta).

87.      A entrada em vigor da Carta implicou a transição definitiva do sistema jurídico anterior para outro focado na pessoa do cidadão, isto é, num ator titular de direitos que lhe garantem um quadro jurídico em que pode viver de modo autónomo, procurando, em liberdade, atingir os seus próprios objetivos.

88.      Por este motivo, em especial, as liberdades clássicas protegidas pelos Tratados já não podem ser interpretadas independentemente da Carta, cujos direitos devem considerar‑se incorporados na substância de tais liberdades. Neste sentido, a União garante as referidas liberdades num contexto jurídico definido pelos direitos fundamentais da Carta.

89.      Consequentemente, estando em causa a compatibilidade de uma legislação nacional com qualquer uma dessas liberdades clássicas, a Carta será aplicável tanto se os Estados‑Membros pretendem invocar uma das exceções previstas nos Tratados como em qualquer outro caso em que os direitos fundamentais sejam afetados. Estes últimos, por outras palavras, não entram em cena por via do artigo 65.o TFUE, mas sim de modo direto e principal pela via do artigo 63.o TFUE.

90.      Pode parecer que esta abordagem não difere significativamente da adotada quando a aplicabilidade da Carta está relacionada com a aplicação de uma justificação admitida expressamente pelos Tratados. Penso, no entanto, que são abordagens distintas, no seu fundamento conceptual e nas suas consequências.

91.      A integração dos direitos fundamentais no conteúdo das liberdades garantidas pelos Tratados (obrigatória, como se referiu, após a entrada em vigor da Carta) implica que os direitos da Carta devem ser respeitados não só pelas regulamentações nacionais que invocam o direito da União para limitar essas liberdades mas também pelas regulamentações que, não pretendendo invocar o direito da União, violam ou restringem as referidas liberdades. Se assim não fosse, dar‑se‑ia o paradoxo de os Estados‑Membros só terem de respeitar os direitos fundamentais quando quisessem justificar uma restrição das liberdades protegidas, mas não quando as restrinjam sem nenhuma justificação.

92.      Partindo desta premissa, deve considerar‑se que o conteúdo de cada uma das liberdades que os Tratados protegem é redefinido com a integração dos direitos da Carta nos conceitos que essas liberdades encerram.

93.      Se, como no caso em apreço, está em causa a liberdade de circulação de capitais, as transações que beneficiam dessa liberdade não são apenas as suscetíveis de restrição ao abrigo dos artigos 64.o e 65.o TFUE, mas também as suscetíveis de qualquer outra restrição, para cuja identificação terá de se verificar se,  em conformidade com os Tratados, são respeitados os direitos fundamentais afetados. Entre estes podem naturalmente figurar o direito de propriedade, o exercício do direito a trabalhar ou a liberdade de associação.

94.      As restrições às liberdades fundamentais que eram admissíveis nos termos dos Tratados, antes da entrada em vigor da Carta, deviam satisfazer as exigências de necessidade, adequação e proporcionalidade relativamente às quais foi proferida abundante jurisprudência.

95.      Estando a Carta em vigor, terá que se averiguar quando é que o exame de uma eventual violação da liberdade de circulação de capitais deve ser realizado de acordo com essa técnica tradicional (juízo de necessidade, adequação e proporcionalidade) e quando deve ser efetuado à luz dos direitos fundamentais, isto é, com um critério de fiscalização mais exigente.

96.      Na minha opinião, se é posta em causa uma regulamentação nacional por violação do artigo 63.o TFUE sem referência expressa a uma possível violação da Carta (ou seja, se se denuncia a simples restrição da liberdade de movimento de capitais enquanto tal, sem a associar à violação de um direito fundamental concreto), o critério de decisão deve ser o que sempre foi utilizado pelo Tribunal de Justiça para este fim: o critério clássico.

97.      Em contrapartida, se a restrição dessa liberdade surge como a causa principal ou imediata da violação de um direito fundamental (isto é, se a regulamentação nacional que limita a livre circulação de capitais implica, em si mesma, a restrição de um direito ou conduz inevitavelmente a esse resultado), o critério de decisão deveria ser o que corresponde a qualquer violação de direitos fundamentais.

98.      Por conseguinte, deveria ultrapassar‑se a duplicidade entre «violações do artigo 63.o TFUE», por um lado, e «violações dos direitos fundamentais resultantes de uma restrição do artigo 63.o TFUE autorizada pelos Tratados», por outro.

99.      A liberdade protegida pelo artigo 63.o TFUE é apenas uma. O seu conteúdo é igualmente unitário, e tem por objeto a livre circulação de capitais, sem outras limitações além das permitidas pelos Tratados, o que inclui o respeito pelos direitos fundamentais, tanto se o seu exercício pode ser facilitado pelo gozo dessa liberdade como se o mesmo pode ser prejudicado pela sua restrição.

100. Por conseguinte, terá de se determinar, em cada caso, se a violação do artigo 63.o TFUE está na origem de uma limitação da liberdade de movimento de capitais que se esgota na mera restrição desse movimento enquanto tal ou se, através dessa restrição, se instrumentaliza, na realidade, a violação de um direito fundamental (43). O critério de fiscalização incluirá, em ambos os casos, os critérios clássicos (juízo de necessidade, adequação e proporcionalidade), mas com níveis de exigência específicos, nos casos em que o núcleo da questão tenha origem na violação de um direito fundamental.

101. Partindo dessas premissas, passo à análise da ação intentada pela Comissão.

D.      Restrição à liberdade de circulação de capitais

102. O núcleo da ação da Comissão tem origem no tratamento que a Lei n.o LXXVI, de 2017, confere às organizações da sociedade civil beneficiárias de financiamento estrangeiro. Esse tratamento implicaria, pelas suas características e consequências, uma violação da liberdade de associação (artigo 12.o da Carta), bem como, paralelamente, uma violação dos direitos à vida privada e à proteção de dados de caráter pessoal (artigos 7.o e 8.o da Carta, respetivamente).

103. Considerando a ação nestes termos, a legislação em causa pode, à primeira vista, violar o artigo 63.o TFUE. Se as suas normas se traduzirem numa restrição injustificada à circulação de capitais, as mesmas são incompatíveis com essa disposição e podem, simultaneamente, afetar os direitos reconhecidos na Carta.

104. Por conseguinte, terá que se averiguar:

–        se essa legislação tem por objeto um movimento de capitais e, sendo o caso, a que condições o sujeita;

–        se, caso se verifique que a legislação condiciona efetivamente um movimento de capitais, os requisitos impostos se traduzem numa violação dos direitos fundamentais invocados pela Comissão, em cujo caso constituiriam uma restrição da liberdade garantida pelo artigo 63.o TFUE;

–        se, por último, essa restrição pode ser justificada à luz do direito da União, o que impediria que a mesma fosse qualificada de indevida e excluiria, por conseguinte, a violação denunciada pela Comissão.

1.      Quanto à existência de um movimento de capitais e ao seu condicionamento pela lei nacional

105. A Lei n.o LXXVI, de 2017, impõe às associações ou fundações que recebem ajuda estrangeira — com algumas exceções — a obrigação de comunicar às autoridades o seu status de «organização beneficiária de ajuda estrangeira», desde que o montante das ajudas recebidas atinja um determinado limiar.

106. Essas organizações ou fundações também devem comunicar um conjunto de dados relativos ao montante e à natureza da ajuda recebida, bem como à identidade do doador. A declaração obrigatória é incluída num registo, do qual se faz constar a qualidade de organização beneficiária de ajuda estrangeira. Todos esses dados são publicados nesse registo oficial, acessível gratuitamente. A organização beneficiária de ajuda estrangeira deve expressar esta qualidade nas suas páginas de acesso e nas suas publicações.

107. O Governo húngaro não nega que a «ajuda» regulada pela Lei n.o LXXVI, de 2017 — cujo artigo 1.o, n.o 2, define como «qualquer entrada de dinheiro ou de outros ativos […] independentemente do título jurídico» —, constitui um «movimento de capitais».

108. Com efeito, esse tipo de operação pode ser incluído, sem dificuldade na categoria de «movimentos de capitais», como resulta da nomenclatura que consta do anexo I da Diretiva 88/361/CEE (44) e que, de acordo com a jurisprudência, mantém o valor indicativo que lhe era próprio para definir o referido conceito (45).

109. Nos termos da legislação objeto da ação, os movimentos de capitais sob a forma de ajudas a certas associações e fundações situadas na Hungria não são, portanto, inteiramente livres, estando sujeitos a determinadas condições. Em especial, as já referidas (os beneficiários das ajudas devem declará‑las às autoridades nacionais para efeitos do seu registo e publicidade) (46).

110. Estas condições são aplicáveis em função da sede ou domicílio do doador, uma vez que o critério decisivo consiste no facto de a contribuição provir «direta ou indiretamente do estrangeiro», nos termos do artigo 1.o, n.o 2, da Lei n.o LXXVI, de 2017.

111. No entanto, o requisito da «proveniência estrangeira» diz muito mais provavelmente respeito aos nacionais de outros Estados‑Membros que aos nacionais húngaros, mesmo que estes possam também residir fora da Hungria e, por conseguinte, possam ser afetados pelas medidas em causa.

112. Recorde‑se, neste contexto, que, para o Tribunal de Justiça, deve considerar‑se indiretamente discriminatória uma regulamentação interna que, pela sua natureza, for suscetível de afetar mais os nacionais de outros Estados‑Membros que os próprios nacionais (47).

113. No caso em apreço, as acusações da Comissão não constituem simples «presunções», como defende o Governo húngaro. Na sua ação, a Comissão não contesta a compatibilidade com o direito da União de uma mera prática administrativa, mas sim de uma legislação cuja aplicação pode produzir os efeitos explicados na sua ação (48).

114. Além de serem impostas principalmente aos estrangeiros e, em particular, aos nacionais de outros Estados‑Membros, as condições previstas pela Lei n.o LXXVI, de 2017, para os donativos a determinadas associações e fundações traduzem‑se, em meu entender, numa restrição dos referidos movimentos de capital.

115. Essas condições, repito, podem restringir a liberdade de movimentos de capitais, uma vez que:

–        podem afetar negativamente o financiamento das associações e fundações sediadas na Hungria que recebam fundos do exterior. Nesta mesma medida, afetarão negativamente o exercício da liberdade de associação garantida pelo artigo 12.o da Carta;

–        podem afetar, também negativamente, os direitos à vida privada e à proteção dos dados pessoais (artigos 7.o e 8.o da Carta) de quem contribui, a partir do estrangeiro, para as referidas organizações da sociedade civil.

116. A restrição do movimento de capitais não se esgota em si mesma, configurando‑se, como exporei a seguir, como um meio para a violação de determinados direitos fundamentais. Assim, no sentido do acima exposto (49), o critério de fiscalização deve ser o característico destes direitos e não o típico das liberdades clássicas protegidas pelos Tratados. Trata‑se, por conseguinte, de um critério qualificado ou reforçado na sua intensidade e exigência.

2.      Quanto à ingerência nos direitos fundamentais garantidos pelos artigos 7.o, 8.o e 12.o da Carta

a)      Liberdade de associação

117. O artigo 12.o da Carta reconhece a qualquer pessoa a «liberdade de associação a todos os níveis, nomeadamente nos domínios político, sindical e cívico».

118. Conjuntamente com a sua dimensão estritamente individual, esta liberdade tem uma dimensão objetiva que a converte num dos pilares das sociedades pluralistas, uma vez que o seu exercício torna possível a criação de entidades essenciais num sistema democrático. Entre essas entidades figuram, desde logo, os partidos políticos, mas também todas as que contribuem para a formação e expressão do pluralismo cultural, religioso, social e económico da sociedade.

119. As entidades afetadas pela Lei n.o LXXVI, de 2017 («organizações da sociedade civil»), correspondem ao segundo grupo dos dois anteriormente referidos, o que implica excluir os partidos políticos e os sindicatos, cujas particularidades não permitem uma equiparação às primeiras (50).

120. A referida lei, embora não impeça a criação dessas entidades nem restrinja as suas possibilidades de auto‑organização, tem efeitos negativos sobre as suas possibilidades de financiamento, o que pressupõe que a sua viabilidade e a sua sobrevivência seja afetada, com o respetivo prejuízo para a realização dos seus fins sociais (51).

121. Os requisitos de publicidade aplicáveis aos donativos recebidos do estrangeiro podem produzir um efeito dissuasório no espírito dos potenciais doadores, com a consequente redução das contribuições destes para as associações. Por menor que seja esse impacto, o mesmo pode revelar‑se significativo para as finanças das organizações da sociedade civil, que são normalmente mantidas pelas contribuições dos seus associados e simpatizantes (algumas dessas organizações chegam a converter a renúncia a qualquer financiamento público numa questão de princípio, para preservar a sua independência).

122. Em particular, seja qual for o seu valor económico, os donativos provenientes do estrangeiro representam para os doadores residentes no exterior a forma mais imediata, senão mesmo a única, de participar nas atividades das associações que apoiam com o seu financiamento. Dificultar a contribuição económica dessas pessoas significa impedir de facto o exercício da sua liberdade de associação tout court: através do apoio económico à associação, essas pessoas agrupam‑se com outras para a prossecução coletiva de determinados fins, o que constitui, em última análise, o objeto da liberdade de associação.

123. A Comissão faz referência ao efeito estigmatizante provocado pela obrigação de as associações beneficiárias de donativos provenientes do exterior serem etiquetadas como «organização beneficiária de ajuda estrangeira» (52). Esse efeito é alcançado, precisamente, quando a própria Lei n.o LXXVI, de 2017, sublinha no seu preâmbulo, de modo destacado, as potenciais conotações negativas desses donativos (53), que poderiam pôr em risco os interesses políticos e económicos do país. Assim, estende‑se, pelo menos, uma suspeita generalizada sobre os doadores, suficiente para inibir alguns, ou mesmo muitos, de contribuírem para o financiamento das organizações da sociedade civil.

124. Importa sublinhar, além disso, que, como admitiu o Governo húngaro durante a audiência, os cidadãos da União têm um interesse particular na participação na vida económica, social e cultural do conjunto dos Estados‑Membros e, por conseguinte, em tornar efetivo o ideal de «uma união cada vez mais estreita». Os seus direitos de elegerem e de serem eleitos nas eleições municipais (desvinculados da sua qualidade de nacionais no Estado de residência) e nas eleições para o Parlamento Europeu em quaisquer das suas circunscrições nacionais constituem o corolário institucional de um interesse partilhado na vida pública de todos os Estados‑Membros. A liberdade de se associarem e de se envolverem, deste modo, no debate público das suas respetivas sociedades reduz‑se, frequentemente, à possibilidade de contribuírem para o financiamento das associações da sua preferência, em qualquer um desses Estados. Motivo suficiente para que essa via de participação coletiva nos assuntos cívicos não possa ser restringida nem posta em causa.

125. A Lei n.o LXXVI, de 2017, prevê, também, a possibilidade de dissolução forçada das associações e fundações que não respeitem os deveres de comunicação e publicidade dos donativos recebidos, o que constitui o grau máximo de ingerência na vida destas (54). Mesmo que a sua aplicação seja gradual e esteja sujeita a decisão judicial, não deixa de estar em causa uma ingerência na liberdade garantida pelo artigo 12.o da Carta.

b)      Direitos à vida privada e à proteção de dados pessoais

126. A Lei n.o LXXVI, de 2017, obriga as entidades afetadas a comunicar à jurisdição de registo o montante do donativo proveniente do estrangeiro, bem como o nome, a cidade e o país do doador, quer se trate de uma pessoa singular ou coletiva (55). O registo em que esses dados se inscrevem é de acesso livre.

127. O respeito pelo direito à vida privada, no que se refere ao tratamento dos dados de caráter pessoal, abrange qualquer informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (56).

128. O Regulamento (UE) 2016/679 (57) dispõe no seu artigo 4.o, n.o 1, que «é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular».

129. Por conseguinte, o nome é suficiente, por si só, para estabelecer a identidade, o que permite afastar o argumento do Governo húngaro, segundo o qual a simples comunicação do nome do doador, da sua cidade e do seu país de residência são insuficientes para o identificar.

130. O Governo húngaro procura sustentar que esses dados não são de caráter pessoal (e, por isso, escapam ao âmbito do artigo 8.o da Carta) invocando dois acórdãos do Tribunal de Justiça:

–        o Acórdão de 6 de novembro de 2003, Lindqvist (58), do qual deduz que não se pode identificar uma pessoa só com o nome, sendo para tal necessários outros dados adicionais, como o número de telefone ou informações relativas às suas condições de trabalho ou aos seus passatempos (59);

–        o Acórdão de 9 de novembro de 2010, Volker und Markus Schecke e Eifert (60), do qual deduz que, na falta de publicidade da direção do doador, o seu nome, a sua cidade e o seu país não são suficientes para o identificar (61).

131. Na minha opinião, estas tomadas de posição do Tribunal de Justiça contrariam a posição do Governo húngaro. Quanto ao Acórdão Lindqvist, nele afirmou‑se que o conceito de «qualquer informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável» abrange, «seguramente, o nome de uma pessoa a par do seu contacto telefónico ou de informações relativas às suas condições de trabalho ou aos seus passatempos» (62).

132. A obrigação imposta pela Lei n.o LXXVI, de 2017, implica que o nome do doador (que, insisto, é suficiente, por si só, para o identificar) (63) está indissociavelmente ligado ao donativo em benefício de determinada associação. Essa ligação revela, por si só, uma afinidade com esta associação que pode contribuir para a definição do perfil ideológico do doador, na aceção mais ampla deste conceito (64).

133. O Acórdão Volker und Markus Schecke e Eifert indicou que a publicação num sítio Internet dos nomes e municípios de residência dos beneficiários de determinadas ajudas públicas, bem como dos seus montantes, «constitui […], pelo facto de esses dados passarem a ser acessíveis a terceiros, uma ingerência na respetiva vida privada na aceção do artigo 7.o da Carta» (65). O que vale para as ajudas recebidas por uma pessoa deve igualmente valer, em meu entender, para as ajudas com as quais essa pessoa contribui para sustentar uma associação.

134. Consequentemente, a publicação, num registo acessível ao público, tanto do nome das pessoas singulares que fazem um donativo a partir do estrangeiro a algumas associações sediadas na Hungria como do montante dos referidos donativos constitui uma ingerência na vida privada dessas mesmas pessoas no que respeita ao tratamento dos seus dados de caráter pessoal.

135. Além disso, na medida em que, como acabo de explicar, os dados publicados (nome e donativo) permitem a elaboração de um perfil ideológico dos doadores, estes podem ser dissuadidos ou, pelo menos, desencorajados, de contribuírem para o apoio da organização cívica com a qual desejam colaborar no exercício da sua liberdade de associação.

136. A publicidade desses dados não constitui apenas uma ingerência nos direitos garantidos pelos artigos 7.o e 8.o da Carta mas também na liberdade de associação, uma vez que o seu efeito dissuasivo pode ter impacto na situação financeira das organizações da sociedade civil e, por conseguinte, na sua capacidade para exercer as suas atividades (66).

3.      Quanto à justificação das ingerências detetadas

137. As ingerências que acabo de analisar podem ser justificadas à luz do artigo 52.o, n.o 1, da Carta? Recordo que, nos termos dessa disposição, «[q]ualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros».

138. As medidas controvertidas cumprem, desde logo, o requisito de terem sido instituídas por lei. Além disso, considero que não põem em causa o conteúdo essencial dos direitos afetados, embora o condicionem.

139. Questão diferente consiste em saber se estas ingerências são imprescindíveis para a satisfação de um interesse geral legítimo e que permitam fazê‑lo de modo proporcional, uma vez afastada a existência de medidas ou soluções menos restritivas.

i)      Quanto à necessidade e à eficácia das medidas em causa

140. O Governo húngaro invoca a transparência do financiamento das associações que recebem ajuda do estrangeiro como motivo de interesse público. Esse interesse, acrescenta, está estritamente ligado ao da proteção da ordem pública e ao do combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.

141. Segundo a Comissão, esses objetivos correspondem, em princípio, aos objetivos que justificam uma intrusão nos direitos afetados. Pela minha parte, partilho desta apreciação, também coincidente com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (67).

142. Admito, também, que os Estados‑Membros beneficiam de uma certa margem de apreciação ao especificarem os objetivos de interesse geral que desejam promover (68).

143. Ora, a jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de invocação da ordem pública como causa justificativa de uma restrição das liberdades protegidas pelos Tratados é aplicável às limitações dos direitos fundamentais. Por isso, «as exigências de segurança pública devem […] ser interpretadas em sentido estrito, de modo que o seu âmbito não pode ser determinado unilateralmente por cada Estado‑Membro sem fiscalização das instituições da União Europeia», e «a segurança pública apenas pode ser invocada em caso de ameaça real e suficientemente grave, que afete um interesse fundamental da sociedade» (69).

144. Com base nesta premissa, a cláusula de ordem pública poderia legitimar medidas impostas às associações e fundações suspeitas de a violarem (ou seja, que a ameacem de modo real e grave), mas não uma regulamentação generalizada que impõe, ex ante, a todas elas, independentemente do seu objeto e das suas atividades, os deveres de publicidade dos donativos provenientes do estrangeiro (70).

145. No que diz respeito ao combate ao branqueamento de capitais e, em particular, ao financiamento do terrorismo, concordo com o Governo húngaro quanto ao facto de que se poderiam justificar medidas de transparência e de controlo do financiamento de qualquer pessoa, singular ou coletiva (71). Concretamente, exigir às pessoas coletivas estabelecidas num Estado‑Membro que comuniquem às autoridades as suas fontes de financiamento objetivamente suspeitas parece, em princípio, adequado para prevenir e perseguir o branqueamento de capitais e o financiamento de atividades terroristas (72).

146. Não penso que nada disto possa ser razoavelmente posto em causa. Ora, na audiência, o Governo húngaro não foi capaz de explicar, de modo satisfatório, por que motivo seriam insuficientes as disposições legislativas comuns em matéria de combate ao branqueamento de capitais (73).

147. Mesmo que fosse demonstrada (quod non) a relação entre as medidas em causa e o combate ao branqueamento de capitais, a obrigação de dar publicidade, de modo geral e indiferenciado, a essa informação, mesmo antes de a mesma ter sido sujeita a análise pelas autoridades responsáveis por verificar se existem indícios de branqueamento de capitais, excederia, em meu entender, o estritamente necessário para legitimar essa ingerência.

148. Assentes estas premissas, há que averiguar se as medidas do legislador húngaro estão à altura de outro dos objetivos invocados, a transparência no financiamento das organizações da sociedade civil. Pelos motivos que exporei seguidamente, entendo que não.

149. Há três fatores nessas medidas que chamam a atenção:

–        Em primeiro lugar, as referidas medidas não afetam todas as associações e fundações estabelecidas na Hungria. Não abrangem as sociedades comerciais, embora algumas destas (por exemplo, as proprietárias de meios de comunicação) também «desempenh[e]m um papel determinante na formação da opinião pública» (74).

–        Em segundo lugar, não está demonstrado de que modo as informações obtidas servem, verdadeiramente, para a realização dos objetivos que justificam que sejam recolhidas.

–        Em terceiro lugar, além de serem insuficientes sob o ponto de vista do círculo de entidades obrigadas a fornecer a informação e sob a perspetiva da sua funcionalidade, as medidas são desproporcionadas no respeitante às suas consequências.

150. Quanto às organizações afetadas, a Lei n.o LXXVI, de 2017, exclui as financiadas a partir do interior do país, incidindo apenas nas que recebem ajuda financeira do estrangeiro. Além disso, quanto a estas últimas, exclui as que «não são consideradas organizações da sociedade civil» (75), as desportivas, as que exercem uma atividade religiosa e as ligadas a minorias nacionais.

151. Concordo com a Comissão quanto ao facto de não se compreender porque outro motivo a lei se foca nas contribuições provenientes do estrangeiro, que não seja por se basear numa presunção geral (na realidade, uma suspeita) de fraude, de que seriam protagonistas as pessoas estabelecidas no estrangeiro ou noutros Estados‑Membros, que é incompatível com o direito da União (76).

152. O argumento invocado pelo Governo húngaro a propósito da maior dificuldade de fiscalização das ajudas exteriores é dificilmente conciliável com o facto, também salientado pela Comissão, de o quadro jurídico anterior já prever a obrigação de as associações fornecerem informação detalhada relativa às suas fontes de financiamento, incluindo as estrangeiras (77). Em todo o caso, essa dificuldade poderia ter sido colmatada, como se explicará, com medidas menos restritivas.

153. Se o que está realmente em causa é controlar o financiamento proveniente do estrangeiro, não parece coerente excluir as associações desportivas, as religiosas e as ligadas a minorias nacionais: qualquer uma delas poderia também «ser utilizad[a] [a partir do exterior] para promover — pela influência social destas organizações — os seus próprios interesses em vez dos objetivos comunitários na vida social e política da Hungria», nos termos do preâmbulo da Lei n.o LXXVI, de 2017.

154. Nenhuma das características das associações excluídas diz respeito a particularidades do seu financiamento que as tornem imunes aos riscos que, para qualquer das associações sujeitas às medidas em causa, a receção de fundos do exterior possa fazer supor (78).

155. Por outro lado, a Comissão tem sérias dúvidas quanto à utilidade da informação recolhida: nada indica se a mesma é colocada à disposição dos responsáveis pelo combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo (79). Pela minha parte, limito‑me a partilhar dessas dúvidas que aliás o Governo húngaro não dissipou na audiência.

156. Nestas condições, a invocação da transparência associativa não é verdadeiramente coerente atendendo ao regime legal instituído. E, acima de tudo, não legitima que se tornem públicos os dados pessoais de quem contribui com os seus donativos para o financiamento das respetivas entidades.

157. Além de insuficientes e de eficácia questionável, as medidas em causa são desproporcionadas.

ii)    Quanto ao caráter proporcionado das medidas

158. Considero desproporcionado, em primeiro lugar, o facto de o limite para a obrigação de declarar as ajudas recebidas do estrangeiro ter sido quantificado em 500 000 HUF. Este montante constitui um limiar excessivamente reduzido para um dever que, pelos motivos expostos, compromete gravemente o exercício da liberdade de associação e os direitos à vida privada e à proteção dos dados pessoais, sempre que a informação fornecida deva ser publicada.

159. Em segundo lugar, é também desproporcionada a igualdade de tratamento conferida a todas as contribuições estrangeiras, incluindo as provenientes dos restantes Estados‑Membros, quando, repito (80), os cidadãos da União podem ter interesse em participar na vida pública de qualquer um deles.

160. Em terceiro lugar, o dever de inscrever a condição de «organização beneficiária de ajuda estrangeira» na sua página de acesso e nas suas publicações constitui uma exigência que, na minha opinião, também é excessiva. Não tanto pelo encargo material que a inscrição desse dado possa pressupor, mas sim pelo efeito estigmatizante que a acompanha, a que já fiz referência.

161. Em quarto lugar, parece‑me desproporcionado que o incumprimento das obrigações em causa possa implicar, em última instância, a dissolução da associação infratora. É certo que se trata de uma solução extrema que, de acordo com o Governo húngaro, se enquadra numa resposta por etapas à violação da lei (81). Essas etapas são as representadas por um primeiro incumprimento (a que segue uma injunção do procurador), pela eventual desobediência a essa injunção (com a eventual aplicação de uma multa) e pela inobservância de uma nova injunção, que abre a porta a outras sanções, entre as quais figura a dissolução.

162. O Governo húngaro defende que a inobservância consciente das sucessivas injunções não constitui uma «violação menor de natureza administrativa» e justifica a dissolução (82). Na minha opinião, pelo contrário, uma sanção tão drástica exige bastante mais que a recusa, ainda que reiterada, de fornecer uma informação como a prevista na Lei n.o LXXVI de 2017 (83).

iii) Quanto à possibilidade de medidas restritivas mais proporcionadas

163. A natureza e a importância das medidas em causa não conferem grande margem para conceber outras alternativas do mesmo teor, isto é, para delinear medidas centradas na informação que se pretende tornar pública.

164. Essas alternativas implicariam a adoção de uma abordagem diferente na realização dos objetivos da Lei n.o LXXVI, de 2017. Teria de ter em conta, desde logo, uma avaliação, rigorosa e particularizada, dos riscos de instrumentalização das associações, que permitisse identificar as que se encontram numa situação de risco relativamente a esses objetivos (84).

165. Se se trata de controlar as fontes de financiamento irregular, a Comissão sugere, por exemplo, a aplicação prática de obrigações de notificação e de vigilância relativas a transações suspeitas provenientes de países de elevado risco. Considero que é neste domínio que se podem esperar os melhores resultados de uma ação eficaz dos poderes públicos.

166. A exigência de registar e tornar públicos os nomes das pessoas singulares que efetuam donativos às associações da sua escolha parece‑me, em contrapartida, impossível de substituir por uma medida alternativa, tendo em conta a sua natureza radicalmente invasiva da esfera da privacidade garantida pela Carta.

167. Quanto à obrigação de as associações indicarem na sua página de acesso e nas suas publicações a sua condição de beneficiárias de fundos estrangeiros, parece‑me também deslocada, na medida em que pode constituir um entrave ao exercício da liberdade de associação (85).

168. Por último, eliminar a referência aos Estados‑Membros e restringi‑la apenas a países terceiros aliviaria a ingerência que representa no direito dos cidadãos da União a participar, por via associativa, na vida pública de todos os Estados‑Membros. No entanto, essa restrição geográfica não excluiria completamente a conotação estigmatizante que continuaria a prejudicar as associações afetadas.

169. Na medida em que as obrigações de registo e de publicidade não são, em si mesmas, suscetíveis de substituição por outras de natureza equivalente, o regime de sanções previsto é incompatível com a Carta. Por conseguinte, eliminar a sanção de dissolução não seria suficiente para corrigir um regime que, por si só, na medida em que permite punir o incumprimento de condições incompatíveis com a Carta, não pode ser sanado.

170. Em suma, entendo que a Lei n.o LXXVI, de 2017, restringe indevidamente a livre circulação de capitais, garantida no artigo 63.o TFUE, ao conter disposições que implicam uma ingerência injustificada nos direitos fundamentais protegidos pelos artigos 7.o, 8.o e 12.o da Carta.

V.      Quanto às despesas

171. Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas, se a parte vencedora o tiver requerido. Estas duas condições estão preenchidas no caso em apreço.

VI.    Conclusão

172. Atendendo aos motivos expostos, proponho ao Tribunal de Justiça que julgue procedente a ação da Comissão Europeia e:

–        declare que a Hungria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 63.o TFUE, por violação dos artigos 7.o, 8.o e 12.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, na medida em que a külföldről támogatott szervezetek átláthatóságáról szóló 2017. évi LXXVI. törvény (Lei n.o LXXVI, de 2017, sobre a Transparência das Organizações que Recebem Apoio Estrangeiro) prevê restrições injustificadas quanto aos donativos provenientes do estrangeiro de que são beneficiárias determinadas associações e fundações estabelecidas na Hungria;

–        condene a Hungria nas despesas.


1      Língua original: espanhol.


2      A külföldről támogatott szervezetek átláthatóságáról szóló 2017. évi LXXVI. törvény (Lei n.o LXXVI, de 2017, sobre a Transparência das Organizações que Recebem Ajuda do Estrangeiro, a seguir «Lei n.o LXXVI, de 2017»).


3      7,2 milhões de forints húngaros (HUF) (cerca de 24 000 euros).


4      Esses dados dizem respeito à identidade da organização beneficiária da ajuda e do doador, bem como ao montante da ajuda em função dos limites fixados no n.o 3 da mesma disposição, indicando‑se se se trata de contribuições em dinheiro ou de outros ativos.


5      Cerca de 1 500 euros.


6      A referida disposição dispõe: «Se resultar do pedido de alteração que a organização ou, no caso de uma fundação, o ou os fundadores não apresentarem o pedido de alteração no prazo concedido, o órgão jurisdicional pode aplicar uma multa entre 10 000 HUF e 900 000 HUF à organização, ao fundador da fundação ou, em caso de pluralidade de fundadores, aos fundadores conjuntamente».


7      Nos termos do artigo 3.o da Lei n.o CLXXV, de 2011, o direito de associação não pode violar o artigo C), n.o 2, da Lei Fundamental nem pode consistir numa violação ou num incentivo à prática de uma infração ou implicar a violação dos direitos e liberdades de outras pessoas. Em conformidade com esta disposição, o direito de associação não abrange a criação de organizações armadas nem a criação de organizações que tenham por objeto a realização de uma função pública legalmente abrangida pelo âmbito das competências exclusivas de um organismo do Estado.


8      No âmbito das «regras comuns aplicáveis ao controlo da legalidade» definidas pela referida lei, o seu artigo 71.o/G prevê que a jurisdição competente pode tomar as medidas seguintes, em função das circunstâncias: a) aplicar uma multa de 10 000 HUF a 900 000 HUF à organização ou ao representante; b) anular a decisão […] irregular da organização e, se necessário, ordenar a adoção de uma nova decisão num prazo adequado; c) se for provável que o funcionamento correto da organização possa ser restabelecido convocando o seu órgão principal, convocar o órgão decisório da organização ou atribuir essa competência a uma pessoa ou a uma organização adequadas — a expensas da organização —; d) designar um administrador por um período máximo de 90 dias se o restabelecimento do funcionamento correto da organização não puder ser assegurado de outro modo e se, tendo em conta o resultado, tal se afigurar particularmente justificado tendo em conta o funcionamento da organização ou outras circunstâncias; e) dissolver a organização.


9      O Governo húngaro rejeita este argumento na réplica, alegando que o mesmo implica não ter em conta a razão de ser da fase pré‑contenciosa, cuja vocação consiste em conferir ao Estado‑Membro a possibilidade de dar cumprimento à obrigação que lhe é reclamada ou de fazer valer os seus meios de defesa contra ela.


10      Acórdão de 2 de fevereiro de 1988, Comissão/Bélgica (293/85, a seguir «Acórdão Comissão/Bélgica», EU:C:1988:40, n.o 13).


11      Acórdão Comissão/Bélgica, n.o 14.


12      N.os 9 e 18 da contestação do Governo húngaro.


13      Assim, no Acórdão de 31 de janeiro de 1984, Comissão/Irlanda (74/82, EU:C:1984:34, n.os 12 e 13), o Tribunal de Justiça concluiu que, embora não seja «razoável conceder um prazo de cinco dias a um Estado‑Membro para que altere uma legislação que foi aplicável durante mais de quarenta anos e que, além disso, não tenha resultado em nenhuma ação por parte da Comissão durante o período decorrido desde a adesão [do] Estado‑Membro», e sem que tenha sido constatada qualquer urgência, tal não era suficiente «para tornar a ação inadmissível» (o sublinhado é meu).


14      Acórdão de 13 de dezembro de 2001, Comissão/França (C‑1/00, EU:C:2001:687, n.o 65).


15      Acórdão Comissão/Bélgica, n.o 14.


16      N.o 16 da réplica da Comissão.


17      Acórdão de 18 de julho de 2007, Comissão/Alemanha (C‑490/04, EU:C:2007:430, n.o 26).


18      A notificação para cumprir, de 14 de julho de 2017, foi contestada pelo Governo húngaro por ofícios de 14 de agosto e de 7 de setembro de 2017. A resposta ao parecer fundamentado, de 5 de outubro de 2017, foi enviada em 5 de dezembro de 2017.


19      Acórdão de 19 de setembro de 2017, Comissão/Irlanda (Imposto de matrícula) (C‑552/15, EU:C:2017:698, n.o 34).


20      N.o 25 da contestação do Governo húngaro.


21      N.o 11 da réplica da Comissão.


22      N.o 90 da petição.


23      V. n.os 93 a 113 das presentes conclusões.


24      Processo C‑235/17, EU:C:2018:971; a seguir «Conclusões Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas)».


25      Conclusões Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas, n.o 64).


26      Conclusões Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas, n.o 66.


27      Conclusões Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas, n.o 76. Sublinhado no original. Posição já defendida nas suas Conclusões nos processos apensos SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2017:410, n.o 121), na sequência da jurisprudência estabelecida no Acórdão de 18 de junho de 1991, ERT (C‑260/89, EU:C:1991:254).


28      Acórdão de 6 de março de 2018 (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.os 127 e 128).


29      Conclusões Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), n.o 117. Sublinhado no original. Nesse caso, continuava o advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe, «as análises a efetuar para demonstrar tanto uma ingerência nos direitos garantidos pelo artigo 63.o TFUE e pelo artigo 17.o da Carta como a impossibilidade de justificar essa ingerência repousam nos mesmos elementos, que conduzem a um resultado substancialmente idêntico» (n.o 120, sublinhado no original). Assim, «um exame distinto da legislação controvertida na perspetiva do artigo 17.o da Carta, além do exame previamente realizado a título do artigo 63.o TFUE» suporia uma clara «artificialidade» (n.o 121).


30      Acórdão Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas) [C‑235/17, a seguir «Acórdão Comissão/Hungria», EU:C:2019:432 (Usufruto sobre terrenos agrícolas)].


31      Acórdão Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), n.o 58. A restrição resultava do facto de privar os afetados tanto da possibilidade de continuarem a gozar do seu direito de usufruto sobre terrenos agrícolas como da possibilidade de o alienarem.


32      Acórdão Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), n.os 59 e 60.


33      Acórdão Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), n.o 66.


34      Acórdão Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), n.o 86.


35      Acórdão Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), n.os 90 a 101.


36      Acórdão Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), n.os 102 a 109.


37      Acórdão Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), n.os 110 a 122.


38      Acórdão Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), n.os 123 a 129.


39      Remeto para a citação reproduzida na nota 28 das Conclusões Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas). Na realidade, tanto a constatação das respetivas infrações como a sua eventual justificação respondem a um escrutínio jurídico substancialmente equivalente. Com efeito, no Acórdão Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), n.o 124, o Tribunal de Justiça confirma que não existiam causas de utilidade pública que pudessem justificar a violação do artigo 17.o da Carta, referindo‑se às razões pelas quais tinha anteriormente afastado a sua existência no atinente à violação do artigo 63.o TFUE.


40      Quando um Estado‑Membro invoca os Tratados «para justificar uma regulamentação suscetível de entravar o exercício [da liberdade fundamental], esta justificação, prevista pelo direito [da União], deve ser interpretada à luz dos princípios gerais de direito e, nomeadamente, dos direitos fundamentais», de modo que «só poderá beneficiar das exceções previstas [pelos Tratados] se se conformar com os direitos fundamentais cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça» (Acórdão de 18 de junho de 1991, ERT, C‑260/89, EU:C:1991:254, n.o 43).


41      Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 19).


42      Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 19).


43      Dificilmente uma restrição da liberdade de movimento de capitais será neutra sob o ponto de vista dos direitos fundamentais. Por exemplo, o direito de não ser alvo de discriminação será inevitavelmente prejudicado por uma medida de restrição seletiva, como o serão, em geral, todos os direitos cujo exercício pode ser facilitado com os capitais cuja circulação se restringe. Mais significativa do que essa afetação estrutural ou de princípio, é a que é característica das restrições instrumentalizadas especificamente em prejuízo de um direito, para as quais esse prejuízo não é um simples dano colateral, mas sim a sua consequência principal.


44      Diretiva do Conselho, de 24 de junho de 1988, para a execução do artigo 67.o do Tratado [artigo revogado pelo Tratado de Amesterdão] (JO 1988, L 178, p. 5).


45      Não existindo nos Tratados uma definição do conceito de «movimentos de capitais», o Tribunal de Justiça reconheceu um valor indicativo à nomenclatura anexa à Diretiva 88/361, considerando‑se que, de acordo com a sua introdução, a lista dela constante não tem caráter taxativo. V. Acórdão de 27 de janeiro de 2009, Persche (C‑318/07, EU:C:2009:33, n.o 24). Ora, a rubrica XI do referido anexo, sob o título «Movimentos de capitais de caráter pessoal», refere, na letra B, os «donativos e doações».


46      Na audiência, o Governo húngaro realçou o artigo 65.o TFUE, sem reparar que o seu n.o 1, alínea b), autoriza a «preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística», mas não de publicidade nos termos da legislação em causa.


47      Acórdão de 11 de setembro de 2008, Petersen (C‑228/07, EU:C:2008:494, n.os 54 e 55).


48      Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Comissão/Bélgica (C‑577/10, EU:C:2012:814, n.o 35).


49      N.o 113 das presentes conclusões.


50      Os partidos políticos contribuem para a formação e a manifestação da vontade popular, como meio para configurar a vontade do Estado. Não sendo órgãos do Estado, contribuem para a escolha dos titulares do poder público e, neste sentido, são entidades particularmente relevantes para a estabilidade do próprio Estado. Este caráter justifica que alguns sistemas constitucionais consagrem condições e garantias que não regulam (nem seriam justificadas) outras associações. Estas últimas, embora participem na vida pública, não pretendem ocupar o poder, mas sim desenvolver livremente as suas atividades ao abrigo do poder público ou, quando muito, influenciar o seu exercício. Assim, o artigo 12.o da Carta refere‑se, separadamente, às associações «nos domínios político, sindical e cívico». Nas palavras do preâmbulo da Lei n.o LXXVI, de 2017, as associações da sociedade civil contribuem «para o controlo democrático e para o debate público sobre os assuntos públicos», mas não têm por objeto o exercício do poder. O mesmo vale para os sindicatos, cuja atuação no âmbito das relações laborais os torna credores de um regime jurídico especial.


51      Para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o impacto de determinadas medidas do poder público sobre a capacidade financeira das associações para exercer as suas atividades pode significar uma ingerência no exercício da liberdade de associação garantida pelo artigo 11.o da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem (a seguir «CEDH»). TEDH, 7 de junho de 2007, Parti nationaliste basque — Organisation régionale d’Iparralde c. França, CE:ECHR:2007:0607JUD007125101, §§ 37 e 38.


52      Este é também o entendimento da Comissão de Veneza no seu parecer sobre o projeto de lei [Parecer 889/2017, de 20 de junho de 2017, sobre o projeto de Lei sobre a Transparência das Organizações que Recebem Ajuda do Estrangeiro (CDL‑AD[2017]015), a seguir «Parecer da Comissão de Veneza», n.os 54 a 56]. Apesar do caráter relativamente neutro dessa etiquetagem, a Comissão de Veneza chama a atenção para o seu caráter estigmatizante no contexto húngaro, singularizado por posicionamentos políticos claros contra as associações que recebem fundos do exterior (n.o 65 do referido parecer).


53      «[O] apoio prestado por fontes estrangeiras desconhecidas às organizações estabelecidas ao abrigo da liberdade de associação é suscetível de ser utilizado por grupos de interesses estrangeiros para promover — pela influência social destas organizações — os seus próprios interesses em vez dos objetivos comunitários na vida social e política da Hungria e […] pode pôr em perigo os interesses políticos e económicos do país, bem como o funcionamento sem ingerências das instituições legais».


54      TEDH, 11 de outubro de 2011, Associação Rhino e o. c. Suíça (CE:ECHR:2011:1011JUD004884807), § 54.


55      O Governo húngaro defende que a grande maioria dos doadores são pessoas coletivas, o que excluiria qualquer eventual ingerência nos direitos cuja titularidade pertence a pessoas singulares. Concordo com a Comissão quanto ao facto de, para além da realidade prática, a obrigação em causa não distinguir entre pessoas coletivas e pessoas singulares: estas últimas são claramente abrangidas por aquela obrigação.


56      Parecer 1/15 (Acordo PNR UE — Canadá), de 26 de julho de 2017 (EU:C:2016:656, n.o 122).


57      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) (JO 2016, L 119, p. 1). O sublinhado é meu.


58      C‑101/01, a seguir «Acórdão Lindqvist», EU:C:2003:596.


59      N.o 155 da contestação do Governo húngaro.


60      C‑92/09 e C‑93/09, a seguir «Acórdão Volker und Markus Schecke e Eifert», EU:C:2010:662.


61      N.o 154 da contestação do Governo húngaro.


62      Acórdão Lindqvist, n.o 24.


63      Por definição, o nome identifica a pessoa, ainda que, como argumenta o Governo húngaro no n.o 156 da sua contestação, seja possível que haja muitas pessoas que têm o mesmo nome numa mesma cidade.


64      Nos termos do artigo 4.o, ponto 4, do Regulamento 2016/679, entende‑se por «definição de perfis» «qualquer forma de tratamento automatizado de dados pessoais que consista em utilizar esses dados pessoais para avaliar certos aspetos pessoais de uma pessoa singular, nomeadamente para analisar ou prever aspetos relacionados com o seu desempenho profissional, a sua situação económica, saúde, preferências pessoais, interesses, fiabilidade, comportamento, localização ou deslocações».


65      Acórdão Volker und Markus Schecke e Eifert, n.o 58, com referência ao Acórdão de 20 de maio de 2003, Österreichischer Rundfunk e o. (C‑465/00, C‑138/01 e C‑139/01, EU:C:2003:294), em cujo n.o 74 se afirma que «a comunicação desses dados a um terceiro […] viola o direito ao respeito da vida privada dos interessados […] e apresenta a natureza de uma ingerência na aceção do artigo 8.o da CEDH».


66      N.os 140 e 141 das presentes conclusões.


67      TEDH, 17 de fevereiro de 2004, Gorzelik e o. c. Polónia, CE:ECHR:2004:0217JUD004415898, §§ 94 e 95.


68      Acórdão de 16 de junho de 2011, Comissão/Áustria (C‑10/10, EU:C:2011:399, n.o 32).


69      Acórdão de 8 de julho de 2010, Comissão/Portugal (C‑171/08, EU:C:2010:412, n.o 73).


70      O Governo húngaro invocou também a proteção da segurança pública em sentido estrito e, em especial, a necessidade de eliminar a influência do crime organizado em algumas organizações humanitárias cujos propósitos podem coincidir com os interesses das redes internacionais de tráfico de pessoas (n.os 84 e 85 da contestação do Governo húngaro). Esse interesse poderia justificar a adoção de medidas específicas contra as entidades singulares, mas não a tomada de medidas de alcance geral, como as que estão em causa, contra todas as organizações da sociedade civil.


71      Segundo a Comissão (n.os 62 a 64 da sua petição), a Hungria não teria comprovado a existência de um risco certo nesta aceção. Mesmo que fosse esse o caso, esse risco pode ser considerado comum ao conjunto dos Estados‑Membros. As recomendações do Groupe d’action financière (GAFI) em matéria de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo identificam as organizações sem fins lucrativos como possíveis instrumentos para a prática dessas atividades ilícitas [GAFI (2012‑2017), Recommandations du GAFI — Normes internationales sur la lutte contre le blanchiment de capitaux et le financement du terrorisme et de la proliferation, mise à jour noviembre 2017, a seguir «Recomendações do GAFI», n.o 8]. Diferente é o facto de a eventual insuficiência das avaliações acerca dos riscos aos quais se pretende fazer face legitimar, na perspetiva da sua necessidade, adequação e eficácia, qualquer medida adotada pelo legislador nacional.


72      O que não é aceitável é qualificar, implicitamente, de suspeita qualquer donativo proveniente de qualquer Estado‑Membro ou de um país terceiro.


73      A Comissão faz referência, neste sentido, à possibilidade de os Estados‑Membros estenderem às organizações da sociedade civil o âmbito de aplicação da Diretiva (UE) 2015/849 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, que altera o Regulamento (UE) n.o 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, e que revoga a Diretiva 2005/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e a Diretiva 2006/70/CE da Comissão (JO 2015, L 141, p. 73). Esta legislação assenta numa avaliação rigorosa dos riscos em presença.


74      O preâmbulo da Lei n.o LXXVI, de 2017, faz referência a este fator para caracterizar as organizações da sociedade civil.


75      É o que dispõe o artigo 1.o, n.o 4, alínea a), da Lei n.o LXXVI, de 2017. Para saber que organizações «não são consideradas organizações da sociedade civil», é necessário recorrer, como salientou o Governo húngaro na audiência, à Lei n.o CLXXV, de 2011, relativa ao Direito de Associação, ao Estatuto de Associação sem Fins Lucrativos e ao Financiamento das Organizações da Sociedade Civil. Do seu artigo 2.o, n.o 6, resulta que considera «organizações não governamentais» as associações registadas na Hungria, com exceção dos partidos, das fundações e para determinados efeitos, das sociedades mutualistas e dos sindicatos. A definição não me parece muito útil para delimitar, com precisão, as entidades afetadas pela Lei n.o LXXVI, de 2017. Esta indefinição do âmbito de aplicação ratione personae não é compatível com a objetividade exigível a uma legislação que incide tão diretamente no exercício de diversos direitos fundamentais.


76      Acórdão de 6 de outubro de 2009, Comissão/Espanha (C‑153/08, EU:C:2009:618, n.o 39).


77      N.os 75 a 77 da petição da Comissão e n.os 74 a 76 da sua tréplica.


78      É também o entendimento do Governo sueco (n.o 39 das suas alegações de intervenção).


79      N.o 66 da petição da Comissão.


80      V. n.o 144 das presentes conclusões.


81      N.o 122 da contestação do Governo húngaro.


82      N.o 122 da contestação do Governo húngaro.


83      Importa sublinhar que, de acordo com o CEDH, a dissolução constitui uma medida que só pode ser adotada nos «casos mais graves». TEDH, 13 de fevereiro de 2003, Refah Partisi (Partido do Bem‑Estar) e o. c. Turquia, CE:ECHR:2003:0213JUD004134098, § 100.


84      As Recomendações do GAFI (n.o 8) apontam nesse sentido. Na inexistência dessa avaliação, a legislação em causa confunde num todo o conjunto das organizações da sociedade civil (com exceção de apenas três tipos de entidades que, pelo que foi já referido, são objeto de um tratamento diferenciado não justificado, sob a perspetiva da finalidade da própria legislação).


85      É o que se afirma também no Parecer da Comissão de Veneza, n.o 67, quarto travessão.