Language of document : ECLI:EU:C:2023:543

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

6 de julho de 2023 (*)

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2011/95/UE — Normas relativas às condições de concessão do estatuto de refugiado ou do estatuto conferido pela proteção subsidiária — Artigo 14.o, n.o 4, alínea b) — Revogação do estatuto de refugiado — Nacional de um país terceiro condenado por sentença transitada em julgado por um crime particularmente grave — Perigo para a comunidade — Controlo da proporcionalidade»

No processo C‑402/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Países Baixos), por Decisão de 15 de junho de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 20 de junho de 2022, no processo

Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid

contra

M.A.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, L. Bay Larsen (relator), vice‑presidente do Tribunal de Justiça, P. G. Xuereb, T. von Danwitz e I. Ziemele, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de M.A., por R. C. van den Berg, advocaat,

–        em representação do Governo neerlandês, por M. K. Bulterman e H. S. Gijzen, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo húngaro, por Z. Biró‑Tóth e M. Z. Fehér, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por J. Hottiaux e F. Wilman, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 17 de maio de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (JO 2011, L 337, p. 9).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe M.A., nacional de um país terceiro, ao Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Secretário de Estado da Justiça e da Segurança, Países Baixos, a seguir «Secretário de Estado»), a respeito do indeferimento do seu pedido de proteção internacional.

 Quadro jurídico

3        O considerando 12 da Diretiva 2011/95 tem a seguinte redação:

«O principal objetivo da presente diretiva consiste em assegurar, por um lado, que os Estados‑Membros apliquem critérios comuns de identificação das pessoas que tenham efetivamente necessidade de proteção internacional e, por outro, que exista em todos os Estados‑Membros um nível mínimo de benefícios à disposição dessas pessoas.»

4        O artigo 1.o desta diretiva enuncia:

«A presente diretiva tem por objetivo estabelecer normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados e pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida.»

5        Nos termos do artigo 12.o, n.o 2, da referida diretiva:

«O nacional de um país terceiro ou o apátrida é excluído da qualidade de refugiado quando existam suspeitas graves de que:

a)      Praticou crimes contra a paz, crimes de guerra ou crimes contra a humanidade, nos termos dos instrumentos internacionais que estabelecem disposições relativas a estes crimes;

b)      Praticou um crime grave de direito comum fora do país de refúgio antes de ter sido admitido como refugiado, ou seja, antes da data em que foi emitida uma autorização de residência com base na concessão do estatuto de refugiado […]»

6        O artigo 13.o da mesma diretiva prevê:

«Os Estados‑Membros concedem o estatuto de refugiado ao nacional de um país terceiro ou ao apátrida que preencha as condições para ser considerado como refugiado nos termos dos capítulos II e III.»

7        O artigo 14.o, n.os 4 e 5, da Diretiva 2011/95 dispõe:

«4.      Os Estados‑Membros podem revogar, suprimir ou recusar renovar o estatuto concedido a um refugiado por uma entidade governamental, administrativa, judicial ou parajudicial, quando:

[…]

b)      Tendo sido condenado por sentença transitada em julgado por crime particularmente grave, represente um perigo para a comunidade desse Estado‑Membro.

5.      Nas situações descritas no n.o 4, os Estados‑Membros podem decidir não conceder o estatuto a um refugiado se essa decisão de reconhecimento ainda não tiver sido tomada.»

8        O artigo 17.o, n.os 1 e 3, desta diretiva precisa:

«1.      O nacional de um país terceiro ou o apátrida é excluído da qualidade de pessoa elegível para proteção subsidiária se existirem motivos sérios para considerar que:

[…]

b)      Praticou um crime grave;

[…]

3.      Os Estados‑Membros podem excluir um nacional de um país terceiro ou um apátrida da qualidade de pessoa elegível para proteção subsidiária se, antes de ter sido admitida no Estado‑Membro em causa, essa pessoa tiver cometido um ou mais crimes não abrangidos pelo n.o 1, que seriam puníveis com pena de prisão caso tivessem sido praticados no Estado‑Membro em causa, e tiver deixado o seu país de origem unicamente com o objetivo de evitar sanções decorrentes desses crimes.»

9        O artigo 21.o, n.o 2, alínea b), da referida diretiva tem a seguinte redação:

«Nos casos em que as obrigações internacionais mencionadas no n.o 1 não o proíbam, os Estados‑Membros podem repelir um refugiado, formalmente reconhecido ou não, quando:

[…]

b)      Tendo sido condenado por sentença transitada em julgado por crime particularmente grave, represente um perigo para a comunidade desse Estado‑Membro.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

10      Em 5 de julho de 2018, M.A. apresentou um pedido de proteção internacional nos Países Baixos.

11      Por Decisão de 12 de junho de 2020, o Secretário de Estado indeferiu aquele pedido. Nessa decisão, considerou que o receio de M.A. de ser perseguido no seu país de origem era fundado, mas que este tinha sido condenado por sentença transitada em julgado por um crime particularmente grave, pelo que constituía um perigo para a comunidade.

12      O Secretário de Estado baseou o seu entendimento no facto de M.A. ter sido condenado, em 2018, por um tribunal criminal neerlandês, numa pena de prisão de 24 meses pela prática, na mesma noite, de três crimes de agressão sexual, um crime de agressão sexual na forma tentada e um crime de furto de um telemóvel.

13      M.A. interpôs recurso da Decisão de 12 de junho de 2020.

14      Por Sentença de 13 de julho de 2020, um tribunal de primeira instância declarou essa decisão inválida, por considerar que o Secretário de Estado não tinha apresentado fundamentos suficientes, por um lado, de que os atos praticados por M.A. apresentavam um grau de gravidade que justificava a recusa de concessão do estatuto de refugiado e, por outro, que M.A. constituía um perigo real, atual e suficientemente grave para um interesse fundamental da comunidade.

15      O Secretário de Estado interpôs recurso daquela sentença para o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Países Baixos), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

16      Em apoio desse recurso, alega, em primeiro lugar, que os factos imputados a M.A. devem ser considerados uma infração única que constitui um crime particularmente grave, atendendo à natureza dos factos, à pena aplicada e ao efeito destabilizador destes na sociedade neerlandesa. Em segundo lugar, sustenta que a condenação de M.A. por um crime particularmente grave revela, em princípio, que este representa um perigo para a comunidade.

17      O órgão jurisdicional tem dúvidas sobre os elementos que devem ser tidos em conta para determinar se um crime pelo qual um nacional de um país terceiro foi condenado por sentença transitada em julgado deve ser considerado particularmente grave, na aceção do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95. Por outro lado, uma vez que as partes estão em desacordo quanto ao alcance do conceito de «perigo para a comunidade», o órgão jurisdicional de reenvio remete para as questões prejudiciais submetidas pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica) no processo C‑8/22.

18      Nestas condições, o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Em que condições pode a natureza “particularmente grave” de uma infração, na aceção do artigo 14.o, n.o 4, alínea b) da Diretiva [2011/95], permitir ao Estado‑Membro recusar o estatuto de refugiado a uma pessoa que necessita de proteção internacional?

Para a avaliação da existência de um “crime particularmente grave” são relevantes os critérios aplicáveis ao “crime grave” previsto no artigo 17.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva [2011/95] estabelecidos no n.o 56 do Acórdão do Tribunal de Justiça, de 13 de setembro de 2018, Ahmed, C‑369/17, EU:C:2018:713? Na afirmativa, existem critérios adicionais para a caracterização de um crime como “particularmente” grave?

2)      Deve o artigo 14.o, [n.o 4, alínea] b), da Diretiva [2011/95], ser interpretado no sentido de que prevê que o perigo para a comunidade fica demonstrado pelo simples facto de o beneficiário do estatuto de refugiado ter sido condenado por sentença transitada em julgado por um crime particularmente grave ou no sentido de que prevê que a simples condenação por sentença transitada em julgado por um crime particularmente grave não é suficiente para demonstrar a existência de um perigo para a comunidade?

3)      Se a simples condenação por sentença transitada em julgado por um crime particularmente grave não for suficiente para demonstrar a existência de um perigo para a comunidade, deve o artigo 14.o, [n.o 4, alínea] b), da Diretiva [2011/95], ser interpretado no sentido de que o Estado‑Membro deve demonstrar que, desde a sua condenação, o recorrente continua a representar um perigo para a comunidade? Deve o Estado‑Membro demonstrar que esse perigo é real e atual ou a existência de um perigo potencial é, por si só, suficiente? Deve o artigo 14.o, [n.o 4, alínea] b), da Diretiva [2011/95], lido isoladamente ou em conjugação com o princípio da proporcionalidade, ser interpretado no sentido de que apenas permite a revogação do estatuto de refugiado se tal revogação for proporcionada e se o perigo que o beneficiário desse estatuto representar for suficientemente grave para justificar tal revogação?

4)      Se o Estado‑Membro não tiver de demonstrar que, desde a sua condenação, o recorrente continua a representar um perigo para a comunidade e que esse perigo é real, atual e suficientemente grave para justificar a revogação do estatuto de refugiado, deve o artigo 14.o, [n.o 4, alínea] b), da Diretiva [2011/95] ser interpretado no sentido de que implica que o perigo para a comunidade fica demonstrado, em princípio, pelo facto de o beneficiário do estatuto de refugiado ter sido condenado por sentença transitada em julgado por um crime particularmente grave[,] mas que este último pode demonstrar que não representa ou que deixou de representar tal perigo?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

19      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, com base em que critérios pode um crime ser considerado um «crime particularmente grave» na aceção do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95.

20      O artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 prevê que os Estados‑Membros podem revogar o estatuto concedido a um refugiado quando, tendo sido condenado por sentença transitada em julgado por crime particularmente grave, represente um perigo para a comunidade do Estado‑Membro em que se encontra.

21      O artigo 14.o, n.o 5, desta diretiva prevê que, nas situações descritas no artigo 14.o, n.o 4, da referida diretiva, os Estados‑Membros podem decidir não conceder o estatuto de refugiado a um nacional de um país terceiro se a decisão sobre o seu pedido de proteção internacional ainda não tiver sido tomada.

22      Resulta dos n.os 27 a 42 do acórdão hoje proferido, Commissaire général aux réfugiés et aux apatrides (Refugiado que cometeu um crime grave) (C‑8/22), que a aplicação do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da referida diretiva está sujeita ao preenchimento de duas condições distintas, a saber, por um lado, que o nacional de um país terceiro em causa tenha sido condenado por sentença transitada em julgado por um crime particularmente grave e, por outro, que tenha sido demonstrado que este constitui um perigo para a comunidade do Estado‑Membro em que se encontra.

23      Em relação à primeira destas condições, há que começar por recordar que, em conformidade com as exigências tanto da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade, os termos de uma disposição deste direito que, à semelhança do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95, não comporte uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance, devem em princípio ser objeto de uma interpretação autónoma e uniforme em toda a União (v., neste sentido, Acórdãos de 13 de setembro de 2018, Ahmed, C‑369/17, EU:C:2018:713, n.o 36, e de 15 de novembro de 2022, Senatsverwaltung für Inneres und Sport, C‑646/20, EU:C:2022:879, n.o 40).

24      A este respeito, uma vez que nem o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), desta diretiva nem nenhuma outra disposição da mesma definem os termos «crime particularmente grave», estes devem ser interpretados de acordo com o seu sentido habitual na linguagem corrente, tendo em conta o contexto em que são utilizados e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que fazem parte [v., neste sentido, Acórdão de 7 de setembro de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Natureza do direito de residência baseado no artigo 20.o TFUE), C‑624/20, EU:C:2022:639, n.o 28 e jurisprudência referida].

25      No que se refere, antes de mais, ao sentido habitual na linguagem corrente dos termos «crime particularmente grave», saliente‑se, por um lado, que o termo «crime» caracteriza, neste contexto, um ato ou uma omissão que constitui uma violação grave do ordenamento jurídico da sociedade em causa e que, por esta razão, é punido pelo direito penal no seio dessa sociedade.

26      Por outro lado, a expressão «particularmente grave», ao acrescentar duas qualificações a este conceito de «crime», remete, como o advogado‑geral sublinhou no n.o 38 das suas conclusões, para um crime de gravidade excecional.

27      No que respeita, em seguida, ao contexto em que são utilizados os termos «crime particularmente grave», sublinhe‑se, em primeiro lugar, que o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 constitui uma derrogação à regra, enunciada no artigo 13.o desta diretiva, segundo a qual os Estados‑Membros concedem o estatuto de refugiado ao nacional de um país terceiro que preencha as condições para ser considerado como refugiado. Por conseguinte, esta disposição deve ser objeto de interpretação estrita (v., por analogia, Acórdão de 13 de setembro de 2018, Ahmed, C‑369/17, EU:C:2018:713, n.o 52).

28      Em segundo lugar, ao passo que algumas disposições da Diretiva 2011/95, como o artigo 12.o, n.o 2, alínea a), especificam a natureza concreta dos crimes a que se referem, o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), desta diretiva abrange qualquer «crime particularmente grave».

29      Em terceiro lugar, uma vez que o artigo 12.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2011/95, que faz referência a um «crime grave de direito comum», e o artigo 17.o, n.o 1, alínea b), desta diretiva, que se refere a um «crime grave», também têm por objetivo impedir que um nacional de um país terceiro que tenha praticado um crime com um certo grau de gravidade possa beneficiar de proteção internacional, há que ter atender à jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa a estas disposições para efeitos de interpretação do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), desta diretiva.

30      Ora, por um lado, resulta dessa jurisprudência que a autoridade competente do Estado‑Membro em causa só pode invocar as causas de exclusão previstas no artigo 12.o, n.o 2, alínea b), e no artigo 17.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2011/95, que têm por objeto a prática, pelo requerente de proteção internacional, de um «crime grave», após ter procedido, em relação a cada caso individual, a uma apreciação dos factos concretos de que tem conhecimento a fim de determinar se existem suspeitas graves de que os atos praticados pelo interessado, que, por outro lado, preenche os critérios para obter o estatuto pedido, se enquadram nessa causa de exclusão, exigindo a apreciação da gravidade da infração em causa um exame completo de todas as circunstâncias próprias do caso individual em questão [v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 2020, Comissão/Polónia e o. (Mecanismo temporário de recolocação de requerentes de proteção internacional), C‑715/17, C‑718/17 e C‑719/17, EU:C:2020:257, n.o 154, e de 22 de setembro de 2022, Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o., C‑159/21, EU:C:2022:708, n.o 92].

31      Por outro lado, no que respeita mais concretamente aos critérios que devem ser utilizados para apreciar o grau de gravidade de um crime para efeitos de aplicação do artigo 17.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2011/95, o Tribunal de Justiça declarou que o critério da pena prevista pela legislação penal do Estado‑Membro em causa reveste especial importância para este efeito, sem, contudo, ser decisivo por si só (v., neste sentido, Acórdão de 13 de setembro de 2018, Ahmed, C‑369/17, EU:C:2018:713, n.o 55).

32      Além disso, no n.o 56 desse Acórdão de 13 de setembro de 2018, Ahmed (C‑369/17, EU:C:2018:713), o Tribunal de Justiça aludiu ao relatório do Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo (EASO) de janeiro de 2016, intitulado «Exclusão: artigos 12.o e 17.o da Diretiva Qualificação (2011/95/UE)», o qual recomenda, no seu ponto 3.2.2, relativo ao artigo 17.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2011/95, que a gravidade do crime suscetível de excluir uma pessoa da proteção subsidiária seja apreciada à luz de uma pluralidade de critérios, tais como, nomeadamente, a natureza do ato em causa, os danos causados, a forma do processo utilizado para atuar judicialmente, a natureza da pena prevista e a questão de saber se a maioria dos órgãos jurisdicionais considera igualmente o ato em causa um crime grave.

33      No entanto, e em quarto lugar, resulta da comparação dos artigos 12.o, 14.o, 17.o e 21.o da Diretiva 2011/95 que o legislador da União impôs requisitos diferentes quanto ao grau de gravidade dos crimes que podem ser invocados para justificar a aplicação de uma causa de exclusão ou de revogação da proteção internacional ou a repulsão de um refugiado.

34      Assim, o artigo 17.o, n.o 3, da Diretiva 2011/95 prevê a prática de «um ou mais crimes». O artigo 12.o, n.o 2, alínea b), e o artigo 17.o, n.o 1, alínea b), desta diretiva referem‑se, conforme salientado no n.o 29 do presente acórdão, à prática de um «crime grave». Em contrapartida, o legislador da União decidiu utilizar os mesmos termos no artigo 14.o, n.o 4, alínea b), e no artigo 21.o, n.o 2, alínea b), da referida diretiva, ao exigir que o nacional de um país terceiro em causa tenha sido condenado por sentença transitada em julgado por um «crime particularmente grave».

35      Daqui decorre que a utilização, no artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95, da expressão «crime particularmente grave» demonstra que o legislador da União pretendeu sujeitar a aplicação desta disposição ao preenchimento, nomeadamente, de um requisito particularmente rigoroso, relativo à existência de uma condenação por sentença transitada em julgado por um crime de gravidade excecional, superior à dos crimes que podem justificar a aplicação do artigo 12.o, n.o 2, alínea b), ou do artigo 17.o, n.o 1, alínea b), e n.o 3, desta diretiva.

36      Por último, o objetivo principal da Diretiva 2011/95, conforme resulta do seu artigo 1.o e do seu considerando 12, de assegurar que os Estados‑Membros apliquem critérios comuns de identificação das pessoas que tenham efetivamente necessidade de proteção internacional e que exista em todos os Estados‑Membros um nível mínimo de benefícios à disposição dessas pessoas, também milita a favor de uma interpretação estrita do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), desta diretiva.

37      Resulta de tudo o que foi exposto que o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 só pode ser aplicado a um nacional de um país terceiro que tenha sido condenado por sentença transitada em julgado por um crime cujos elementos específicos permitam considerar que reveste uma gravidade excecional, uma vez que faz parte dos crimes que mais lesam o ordenamento jurídico da sociedade em causa.

38      A este respeito, embora a apreciação do grau de gravidade de um determinado crime para efeitos de aplicação da Diretiva 2011/95 deva ser feita, em linha com a jurisprudência mencionada no n.o 23 do presente acórdão, com base num padrão e em critérios comuns, não deixa de ser certo que, no estado atual do direito da União, o direito penal dos Estados‑Membros não é objeto de medidas gerais de harmonização. Por conseguinte, a apreciação deve ser realizada tendo em conta as opções feitas, no contexto do sistema penal do Estado‑Membro em causa, relativamente à identificação dos crimes que mais lesam o ordenamento jurídico da sociedade.

39      No entanto, dado que aquela disposição se refere a uma condenação por sentença transitada em julgado por um «crime particularmente grave» utilizando o singular e que a mesma deve ser objeto de interpretação estrita, a sua aplicação só pode ser justificada em caso de condenação por sentença transitada em julgado por um crime que, considerado isoladamente, esteja abrangido pelo conceito de «crime particularmente grave», o que pressupõe que este apresente o grau de gravidade referido no n.o 37 do presente acórdão, havendo que referir que este grau de gravidade não pode ser atingido através de um concurso de crimes distintos em que nenhum constitua, enquanto tal, um crime particularmente grave.

40      Além disso, conforme resulta da jurisprudência mencionada no n.o 30 do presente acórdão, a apreciação do grau de gravidade de um crime pelo qual um nacional de um país terceiro foi condenado exige uma avaliação de todas as circunstâncias próprias do processo em causa. A este respeito, os fundamentos da decisão de condenação são particularmente importantes para identificar essas circunstâncias, posto que exprimem a avaliação, pelo tribunal criminal competente, do comportamento do nacional de um país terceiro em causa.

41      Por outro lado, quanto às outras circunstâncias que devem ser tidas em conta para apreciar se um crime atinge o grau de gravidade referido no n.o 37 do presente acórdão, a natureza e o quantum da pena aplicável e, a fortiori, da pena aplicada revestem importância essencial.

42      Assim, uma vez que o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 é aplicável apenas a crimes de gravidade excecional, só um crime que tenha justificado a aplicação de uma pena particularmente severa à luz da escala das penas geralmente aplicadas no Estado‑Membro em causa pode ser considerado um «crime particularmente grave», na aceção desta disposição.

43      Além da pena aplicável e da pena aplicada, cabe à autoridade responsável pela determinação, sob a fiscalização dos tribunais competentes, ter em conta, nomeadamente, a natureza do crime praticado, dado que esta pode contribuir para revelar a extensão dos danos causados ao ordenamento jurídico da sociedade em causa, e todas as circunstâncias em torno da prática do crime, nomeadamente eventuais circunstâncias atenuantes ou agravantes, o caráter doloso ou não deste crime, bem como a natureza e a extensão dos danos causados pelo mesmo.

44      A natureza do processo penal aplicado para sancionar o crime em causa também pode ser pertinente, se refletir o grau de gravidade que as autoridades responsáveis pelo processo penal atribuíram a esse crime.

45      Em contrapartida, a eventual repercussão do crime em causa nos meios de comunicação social ou junto do público não pode, atendendo ao caráter essencialmente subjetivo e contingente desta circunstância, ser considerada para efeitos de aplicação do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95.

46      Esclareça‑se ainda que, uma vez que, conforme decorre do n.o 40 do presente acórdão, a apreciação do crime em causa exige uma avaliação de todas as circunstâncias próprias do processo em causa, os critérios de apreciação expostos nos n.os 40 a 44 do presente acórdão não têm caráter exaustivo e podem, por isso, consoante o caso, ser completados por critérios adicionais.

47      Neste contexto, embora os Estados‑Membros possam estabelecer limiares mínimos destinados a facilitar uma aplicação uniforme daquela disposição, esses limiares devem necessariamente ser coerentes com o grau de gravidade referido no n.o 37 do presente acórdão e não devem, de modo nenhum, permitir determinar o caráter «particularmente grave» do crime em causa sem que a autoridade competente tenha procedido a uma análise completa de todas as circunstâncias próprias do caso individual em questão (v., por analogia, Acórdão de 13 de setembro de 2018, Ahmed, C‑369/17, EU:C:2018:713, n.o 55).

48      Por conseguinte, há que responder à primeira questão que o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 deve ser interpretado no sentido de que constitui um «crime particularmente grave», na aceção desta disposição, um crime que, atendendo aos seus elementos específicos, apresenta uma gravidade excecional, na medida em que faz parte dos crimes que mais lesam o ordenamento jurídico da sociedade em causa. Para apreciar se um crime pelo qual um nacional de um país terceiro foi condenado por sentença transitada em julgado apresenta esse grau de gravidade, há que ter em conta, nomeadamente, a pena aplicável e a pena aplicada a esse crime, a sua natureza, eventuais circunstâncias agravantes ou atenuantes, o caráter doloso ou não do referido crime, a natureza e a dimensão dos danos causados pelo mesmo, bem como o processo aplicado para o sancionar.

 Quanto à segunda questão

49      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 deve ser interpretado no sentido de que a existência de um perigo para a comunidade do Estado‑Membro em que se encontra o nacional de um país terceiro em causa pode ser considerada demonstrada pelo simples facto de este ter sido condenado por sentença transitada em julgado por um crime particularmente grave.

50      Conforme salientado no n.o 22 do presente acórdão, decorre dos n.os 27 a 42 do acórdão hoje proferido, Commissaire général aux réfugiés et aux apatrides (Refugiado que cometeu um crime grave) (C‑8/22), que a aplicação do artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 está sujeita ao preenchimento de duas condições distintas, a saber, por um lado, que o nacional de um país terceiro em causa tenha sido condenado por sentença transitada em julgado por um crime particularmente grave e, por outro, que tenha sido demonstrado que este constitui um perigo para a comunidade do Estado‑Membro em que se encontra.

51      Consequentemente, não se pode considerar, sem descurar a opção feita pelo legislador da União, que o facto de uma das duas condições estar preenchida é suficiente para demonstrar que a segunda também está preenchida.

52      Por conseguinte, há que responder à segunda questão que o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 deve ser interpretado no sentido de que não se pode considerar que está provada a existência de um perigo para a comunidade do Estado‑Membro em que se encontra o nacional de um país terceiro em causa pelo simples facto de este ter sido condenado por sentença transitada em julgado pela prática de um crime particularmente grave.

 Quanto à terceira e quarta questões

53      Com as suas terceira e quarta questões, que devem ser analisadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 deve ser interpretado no sentido de que a aplicação desta disposição implica que a autoridade competente demonstre que o perigo representado pelo nacional de país terceiro em causa para a comunidade do Estado‑Membro em que se encontra reveste caráter real, atual e grave e que a revogação do estatuto de refugiado constitui uma medida proporcionada a esse perigo.

54      Resulta dos n.os 47 a 65 do acórdão hoje proferido, Commissaire général aux réfugiés et aux apatrides (Refugiado que cometeu um crime grave) (C‑8/22), que uma medida prevista no artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 só pode ser adotada se o nacional de um país terceiro em causa constituir um perigo real, atual e suficientemente grave para um interesse fundamental da comunidade do Estado‑Membro em que se encontra. No âmbito da apreciação da existência desse perigo, incumbe à autoridade competente proceder a uma avaliação de todas as circunstâncias próprias do caso.

55      Além disso, conforme salientado nos n.os 66 a 70 daquele acórdão, a referida autoridade deve ponderar, por um lado, o perigo que constitui o nacional de um país terceiro em causa para a comunidade do Estado‑Membro em que se encontra e, por outro, os direitos que devem ser garantidos, em conformidade com a Diretiva 2011/95, às pessoas que preenchem as condições materiais do artigo 2.o, alínea d), desta diretiva, para determinar se a adoção de uma medida prevista no artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da referida diretiva constitui uma medida proporcionada a esse perigo.

56      À luz do que precede, há que responder à terceira e quarta questões que o artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95 deve ser interpretado no sentido de que a aplicação desta disposição implica que a autoridade competente demonstre que o perigo que o nacional de um país terceiro em causa representa para um interesse fundamental da comunidade do Estado‑Membro em que se encontra reveste caráter real, atual e suficientemente grave e que a revogação do estatuto de refugiado constitui uma medida proporcionada a esse perigo.

 Quanto às despesas

57      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida,

deve ser interpretado no sentido de que:

constitui um «crime particularmente grave», na aceção desta disposição, um crime que, atendendo aos seus elementos específicos, apresenta uma gravidade excecional, na medida em que faz parte dos crimes que mais lesam o ordenamento jurídico da sociedade em causa. Para apreciar se um crime pelo qual um nacional de um país terceiro foi condenado por sentença transitada em julgado apresenta esse grau de gravidade, há que ter em conta, nomeadamente, a pena aplicável e a pena aplicada a esse crime, a sua natureza, eventuais circunstâncias agravantes ou atenuantes, o caráter doloso ou não do referido crime, a natureza e a dimensão dos danos causados pelo mesmo, bem como o processo aplicado para o sancionar.

2)      O artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95

deve ser interpretado no sentido de que:

não se pode considerar que está provada a existência de um perigo para a comunidade do EstadoMembro em que se encontra o nacional de um país terceiro em causa pelo simples facto de este ter sido condenado por sentença transitada em julgado pela prática de um crime particularmente grave.

3)      O artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2011/95

deve ser interpretado no sentido de que:

a aplicação desta disposição implica que a autoridade competente demonstre que o perigo que o nacional de um país terceiro em causa representa para um interesse fundamental da comunidade do EstadoMembro em que se encontra reveste caráter real, atual e suficientemente grave e que a revogação do estatuto de refugiado constitui uma medida proporcionada a esse perigo.

Assinaturas


*      Língua do processo: neerlandês.