Language of document : ECLI:EU:C:2016:58

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

28 de janeiro de 2016 (*)

«Recurso de decisão do Tribunal Geral – Acordos, decisões e práticas concertadas – Mercado europeu dos fosfatos para alimentação animal – Coima aplicada às recorrentes no termo de um procedimento de transação – Pagamento faseado da coima – Exigência de constituição de garantia bancária prestada por um banco com notação financeira ‘AA’ de longo prazo – Dever de fundamentação»

No processo C‑415/14 P,

que tem por objeto um recurso de uma decisão do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interposto em 2 de setembro de 2014,

Quimitécnica.com – Comércio e Indústria Química SA, com sede em Lordelo (Portugal),

José de Mello – Sociedade Gestora de Participações Sociais SA, com sede em Lisboa (Portugal),

representadas por J. Calheiros, advogado,

recorrentes,

sendo a outra parte no processo:

Comissão Europeia, representada por V. Bottka e B. Mongin, na qualidade de agentes, assistidos por M. Marques Mendes, advogado,

recorrida em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: T. von Danwitz, presidente da Quarta Secção, exercendo funções de presidente da Quinta Secção, D. Šváby, A. Rosas, E. Juhász (relator) e C. Vajda, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        Através do seu recurso, a Quimitécnica.com – Comércio e Indústria Química SA e a José de Mello – Sociedade Gestora de Participações Sociais SA (a seguir, respetivamente, «Quimitécnica» e «de Mello») pedem a anulação do acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 26 de junho de 2014, Quimitécnica.com e de Mello/Comissão (T‑564/10, EU:T:2014:583, a seguir «acórdão recorrido»), que negou provimento ao recurso que tinha por objeto a anulação parcial da decisão alegadamente contida na carta do contabilista da Comissão Europeia, de 8 de outubro de 2010, que diz respeito ao pagamento da coima que lhes foi aplicada pela Decisão C(2010) 5004 final da Comissão, de 20 de julho de 2010, relativa a um processo nos termos do artigo 101.° TFUE e do artigo 53.° do Acordo EEE (Processo COMP/38.866 – Fosfatos para alimentação animal, a seguir «decisão de base»), na parte em que a referida carta exige a constituição de uma garantia bancária prestada por um banco com notação financeira «AA» de longo prazo para poderem beneficiar do pagamento faseado da coima (a seguir «ato controvertido»).

 Quadro jurídico

2        O artigo 85.° do Regulamento (CE, Euratom) n.° 2342/2002 da Comissão, de 23 de dezembro de 2002, que estabelece as normas de execução do Regulamento (CE, Euratom) n.° 1605/2002 do Conselho, que institui o Regulamento Financeiro aplicável ao orçamento geral das Comunidades Europeias (JO L 357, p. 1), dispunha:

«O contabilista, em articulação com o gestor orçamental competente, só pode conceder prazos suplementares de pagamento mediante pedido por escrito devidamente fundamentado do devedor e na dupla condição de:

a)      O devedor se comprometer ao pagamento de juros à taxa prevista no artigo 86.°, relativamente à totalidade do prazo concedido e a contar da data de vencimento inicial;

b)      O devedor constitui[r], no intuito de se protegerem os direitos das Comunidades, uma garantia financeira aceite pelo contabilista da Instituição, que cubra o montante ainda em dívida, tanto em termos de capital como dos respetivos juros.

A garantia referida na alínea b) do primeiro parágrafo[…] pode ser substituída por um aval pessoal e solidário de um terceiro aprovado pelo contabilista da Instituição.»

3        O artigo 86.°, n.os 2 e 5, deste regulamento previa:

«2.      A taxa de juro a aplicar a créditos não reembolsados na data de vencimento é a taxa aplicada pelo Banco Central Europeu às suas principais operações de refinanciamento, como publicada no Jornal Oficial [da União Europeia], Série C, em vigor no primeiro dia de calendário do mês de vencimento, majorada de:

[…]

b)      Três pontos e meio de percentagem, em todos os restantes casos.

[…]

5.      No caso de multas e desde que o devedor constitua uma garantia financeira aceite pelo contabilista em vez de um pagamento provisório, a taxa de juro aplicável a partir da data de vencimento será a taxa referida no n.° 2, acrescida de apenas um ponto e meio de percentagem.»

 Antecedentes do litígio

4        Através da decisão de base, após ter declarado que as recorrentes infringiram o artigo 101.° TFUE e o artigo 53.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3), por terem participado num cartel com cinco outros grupos de empresas no mercado de fosfatos para alimentação animal, a Comissão aplicou, devido a esta infração, por um lado, à de Mello, a título individual, uma coima no montante de 1 044 095 euros e, por outro, à Quimitécnica e à de Mello, conjunta e solidariamente, uma coima no montante de 1 750 905 euros.

5        As recorrentes não interpuseram recurso da decisão de base. Em contrapartida, por carta de 3 de setembro de 2010, as recorrentes, tendo por base o artigo 85.° do Regulamento n.° 2342/2002, requereram ao contabilista da Comissão que aceitasse um plano de pagamento da sua dívida conjunta e solidária, que lhes permitiria pagar em duas prestações o montante da coima, a saber, a primeira em outubro de 2011 e a segunda em outubro de 2012. As recorrentes propuseram ainda apresentar uma garantia bancária, emitida pelo Banco Comercial Português SA (a seguir «BCP»), que cobrisse o montante ainda em dívida e os juros correspondentes.

6        Através do ato controvertido, o contabilista da Comissão informou as recorrentes de que o pagamento faseado podia ser efetuado em três prestações, devendo a primeira prestação ser paga antes de 25 de outubro de 2010, a segunda antes de 25 de outubro de 2011 e a terceira antes de 25 de outubro de 2012, na condição de as recorrentes apresentarem uma garantia bancária emitida por um banco com notação financeira «AA» de longo prazo. A este respeito, observou que o BCP não tinha obtido essa notação.

7        Em 22 de outubro de 2010, as recorrentes informaram o contabilista da Comissão de que os valores correspondentes à totalidade do montante da coima individualmente devida pela de Mello e a primeira prestação do montante da coima conjunta e solidariamente devida pelas recorrentes tinham sido transferidos para a conta da Comissão. As mesmas confirmaram, porém, não terem obtido uma garantia bancária emitida por um banco com notação financeira «AA» de longo prazo. O contabilista da Comissão manteve, por carta de 27 de outubro de 2010, o seu pedido de que fosse apresentada uma garantia bancária prestada por um banco com a referida notação financeira.

8        As recorrentes pagaram todas as prestações da coima em causa, em conformidade com o plano de pagamento elaborado pelo contabilista da Comissão no ato controvertido, sem contudo apresentarem uma garantia bancária prestada por um banco com a notação financeira exigida pelo referido contabilista.

9        Em 30 de outubro de 2012, a Comissão confirmou a receção das três prestações de pagamento da referida coima e informou as recorrentes de que, não tendo elas apresentado uma garantia bancária com as características requeridas, a taxa de juro aplicável era de 4,5% e que, desta forma, continuava por pagar o montante de 36 357,83 euros.

 Tramitação processual no Tribunal Geral e acórdão recorrido

10      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 15 de dezembro de 2010, as recorrentes interpuseram recurso pedindo a anulação do ato controvertido, na parte em que o contabilista da Comissão exigiu a constituição de uma garantia bancária prestada por um banco com uma notação financeira «AA» de longo prazo.

11      As recorrentes invocaram dois fundamentos de recurso.

12      Com o seu primeiro fundamento, as recorrentes invocaram a violação do dever de fundamentação, conforme previsto no artigo 296.° TFUE. Alegaram que o ato controvertido não continha qualquer fundamentação e que, atendendo ao nível de notação financeira exigida, devia ter sido comunicada essa fundamentação. Salientaram, além disso, que o ato controvertido não fazia qualquer referência ao direito da União e que a exigência de fundamentação se justificava ainda mais por estar em causa o exercício de um poder discricionário.

13      As recorrentes acrescentaram que tinham apresentado uma garantia bancária em conformidade com as normas em vigor, que nenhuma norma jurídica aplicável exigia um tipo de garantia específico e que os contactos com a Comissão não tinham permitido às recorrentes tomar conhecimento dos fundamentos que justificavam o requisito da notação «AA» de longo prazo.

14      Com o seu segundo fundamento, as recorrentes invocaram a violação do princípio da proporcionalidade, resultante de uma desproporção entre a exigência imposta pela Comissão e o objetivo por esta prosseguido.

15      Recordaram, por um lado, que os critérios previstos no artigo 85.° do Regulamento n.° 2342/2002 são suficientes para proteger os direitos da União e que a garantia bancária que propuseram preenchia esses critérios.

16      Por outro lado, as recorrentes salientaram que, segundo as conclusões do teste de stress coordenado pelo Comité das Autoridades Europeias de Supervisão Bancária, em cooperação com o Banco Central Europeu, com a Comissão e com o Banco de Portugal, o BCP apresentou um elevado grau de resistência a um cenário adverso. Acrescentaram que a confiança nas notações financeiras das agências tem vindo a diminuir. Além disso, segundo as mesmas, entre as medidas possíveis, a Comissão optou por aquela que mais lesava os interesses das recorrentes.

17      No Tribunal Geral, a Comissão alegou, em primeiro lugar, que o recurso de anulação interposto pelas recorrentes ficou sem objeto, pelo que não havia que conhecer do seu mérito. Em seguida, invocou a inadmissibilidade do recurso, pelo facto de o ato controvertido não constituir um ato suscetível de ser objeto de recurso de anulação na aceção do artigo 263.° TFUE. Por último, quanto ao mérito, a Comissão sustentou que o Tribunal Geral deveria negar provimento ao recurso.

18      O Tribunal Geral, sem conhecer da exceção de inadmissibilidade suscitada pela Comissão, pronunciou‑se quanto ao mérito do recurso.

19      Relativamente ao primeiro fundamento, o Tribunal Geral começou por indicar, no n.° 42 do acórdão recorrido, fazendo referência ao n.° 76 do acórdão Freistaat Sachsen e o./Comissão (C‑57/00 P e C‑61/00 P, EU:C:2003:510) e à jurisprudência referida no mesmo número que «a fundamentação exigida pelo artigo 296.° TFUE deve ser adaptada à natureza do ato em causa e deixar transparecer, de forma clara e inequívoca, o raciocínio da instituição autora do ato, por forma a permitir aos interessados conhecerem as razões da medida adotada e ao órgão jurisdicional competente exercer a sua fiscalização. A exigência de fundamentação deve ser apreciada em função das circunstâncias do caso concreto, designadamente do conteúdo do ato, da natureza dos fundamentos invocados e do interesse que os destinatários ou outras pessoas direta e individualmente afetadas pelo ato possam ter em obter explicações. Não é exigido que a fundamentação especifique todos os elementos de facto e de direito relevantes, na medida em que a questão de saber se a fundamentação de um ato satisfaz as exigências do artigo 296.° TFUE deve ser apreciada à luz não somente do seu teor mas também do seu contexto e do conjunto das normas jurídicas que regem a matéria em causa».

20      O Tribunal Geral observou em seguida, no n.° 43 do acórdão recorrido, que, segundo o ato controvertido, «o banco emissor da garantia bancária deve[ria] ter um rating ‘AA’ de longo prazo e que o banco proposto, o BCP, não satisfaz[ia] esta exigência».

21      Por último, referiu no n.° 44 desse acórdão que, «embora a Comissão não [tivesse fundamentado] expressamente esta exigência, não deixa[va] de ser verdade que a base do seu raciocínio, a saber, a proteção dos interesses financeiros da União, decorr[ia] da própria exigência».

22      Assim, no n.° 45 do mesmo acórdão, o Tribunal Geral considerou que a fundamentação da Comissão permitia às recorrentes conhecerem as razões desta exigência e ao Tribunal Geral exercer a sua fiscalização.

23      O primeiro fundamento foi, portanto, julgado improcedente.

24      No que se refere ao segundo fundamento, o Tribunal Geral observou, nos n.os 59 e 60 do acórdão recorrido, que a Comissão dispõe de um amplo poder de apreciação nos termos do artigo 85.° do Regulamento n.° 2342/2002, designadamente na determinação do tipo de garantia bancária aceitável, e que o Tribunal Geral deve limitar‑se, no exercício da sua fiscalização da proporcionalidade, a um exame pelo qual verifique se a aplicação do referido artigo pela Comissão é manifestamente desadequada. Como tal, fazendo referência ao n.° 33 do acórdão Agrana Zucker (C‑33/08, EU:C:2009:367), enunciou, no n.° 61 do acórdão recorrido, que, no caso vertente, o que estava em causa «não [era] saber se a exigência do contabilista da Comissão correspond[ia] à única ou à melhor condição possível, mas se a condição era manifestamente desadequada aos objetivos prosseguidos».

25      No n.° 62 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral salientou que o objetivo da garantia bancária era o de garantir que a União Europeia não sofresse qualquer custo ou risco nos casos de concessão de um prazo para pagamento e que, para assegurar a solvência do banco emissor dessa garantia, a Comissão considerou que a notação «AA» de longo prazo era uma condição adequada. Referiu, no n.° 63 desse acórdão, que aceitar todo o tipo de garantias bancárias, incluindo de bancos com a notação mais baixa, seria contrário ao objetivo previsto no referido artigo 85.° e à sua letra, que prevê a apresentação de uma garantia bancária «aceite» pelo contabilista da Comissão.

26      O Tribunal Geral acrescentou, no n.° 64 do referido acórdão, que a notação financeira «AA» de longo prazo não foi aplicada apenas às recorrentes, mas também a outras empresas concorrentes destinatárias da decisão de base. Recordou, além disso, no n.° 65 do mesmo acórdão, que as recorrentes não demonstraram em que é que a exigência de tal garantia bancária seria um encargo desproporcional a seu respeito, nem deram nenhuma explicação quanto à impossibilidade de obtê‑la.

27      Nessas circunstâncias, o Tribunal Geral considerou que a exigência segundo a qual a garantia bancária devia ser prestada por um banco com a notação financeira «AA» de longo prazo não era manifestamente desadequada para alcançar os objetivos prosseguidos e, por conseguinte, não era contrária ao princípio da proporcionalidade.

28      Consequentemente, julgou improcedente o segundo fundamento invocado pelas recorrentes e negou provimento ao recurso na íntegra.

 Pedidos das partes

29      As recorrentes pedem ao Tribunal que se digne:

–        anular o acórdão recorrido;

–        julgar procedentes os pedidos deduzidos em primeira instância e, portanto, anular o ato controvertido na parte em que exige que a garantia bancária seja prestada por um banco com uma notação financeira «AA» de longo prazo; e

–        condenar a Comissão a suportar as despesas efetuadas nas duas instâncias.

30      A Comissão pede ao Tribunal que se digne:

–        declarar o recurso desprovido de objeto;

–        subsidiariamente, negar provimento ao recurso;

–        a título ainda mais subsidiário, em caso de anulação do acórdão recorrido, negar provimento ao recurso de anulação do ato controvertido por ser inadmissível; e

–        condenar as recorrentes a suportar as despesas efetuadas nas duas instâncias.

 Quanto ao presente recurso

31      As recorrentes invocam dois fundamentos de recurso, relativos, por um lado, a um erro de direito quanto ao caráter suficiente da fundamentação do ato controvertido e, por outro, à incorreta interpretação e aplicação das disposições do Regulamento n.° 2342/2002 e a uma desvirtuação dos factos, que teve como consequência um erro de direito quanto ao respeito do princípio da proporcionalidade por parte da Comissão.

32      A Comissão entende que não há que conhecer do mérito do recurso e, subsidiariamente, que todos os fundamentos do recurso são improcedentes. Alega, a título ainda mais subsidiário, que, em caso de anulação do acórdão recorrido, deve ser negado provimento ao recurso de anulação do ato controvertido por ser inadmissível, uma vez que o ato controvertido não é suscetível de ser objeto de recurso de anulação e não tem incidência sobre a situação jurídica das recorrentes.

 Quanto ao pedido de não conhecimento do mérito da Comissão

 Argumentos das partes

33      A Comissão expõe que, à data da prolação do acórdão recorrido, as recorrentes tinham pagado a totalidade da coima que lhes fora aplicada pela decisão de base e que não podiam beneficiar de uma taxa reduzida para os juros de mora sobre os créditos, uma vez que não tinham apresentado garantia bancária prestada por um banco com notação financeira «AA». Recorda que, em agosto de 2014, as recorrentes procederam ao pagamento dos juros de mora, à taxa prevista. Nestas circunstâncias, a Comissão entende que o litígio submetido ao Tribunal de Justiça ficou sem objeto. Sustenta que o pagamento dos juros de mora deve distinguir‑se do pagamento provisório de uma coima nos casos em que é interposto recurso da decisão que a aplicou. O pagamento dos juros de mora tem caráter final e definitivo. A Comissão refere que, no presente processo, as recorrentes não contestaram a decisão de base que lhes aplicou uma coima acrescida de juros de mora nem, em seguida, independentemente do recurso de anulação que interpuseram, apresentaram garantia bancária. A Comissão entende que os juros em causa resultam diretamente do artigo 86.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento n.° 2342/2002, aplicável na falta de constituição de garantia bancária, que esses juros não decorrem de uma decisão da Comissão e que as recorrentes não podem beneficiar de uma taxa de juros favorável, visto que tal está exclusivamente reservado às pessoas que constituem uma garantia financeira adequada. Nestas circunstâncias, segundo a Comissão, a questão jurídica suscitada no presente recurso é puramente teórica e o mesmo carece de objeto.

34      As recorrentes alegam que a Comissão invoca perante o Tribunal de Justiça factos posteriores à prolação do acórdão recorrido. Referem que o seu pagamento de juros de mora foi efetuado a título provisório e que precisaram, na sua carta de 27 de agosto de 2014 em que informaram a Comissão desse pagamento, que o mesmo foi efetuado sem prejuízo do futuro reembolso desse montante em caso de decisão favorável do Tribunal de Justiça. Segundo as recorrentes, caso seja dado provimento ao recurso e o ato controvertido seja anulado, a majoração dos juros de mora fica privada de base legal e o montante relativo a esses juros deve ser reembolsado. Entendem, por conseguinte, que o pedido de não conhecimento do mérito deduzido pela Comissão deve ser julgado improcedente.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

35      A fim de se pronunciar sobre o pedido de não conhecimento do mérito deduzido pela Comissão, importa determinar se as recorrentes têm interesse em obter a anulação do acórdão recorrido.

36      O interesse em agir de um recorrente deve, tendo em conta o objeto do recurso, existir no momento em que o recurso é interposto e perdurar até à prolação da decisão jurisdicional, sob pena de não conhecimento do mérito, o que pressupõe que o recurso possa, pelo seu resultado, conferir um benefício à parte que o interpôs (acórdãos Wunenburger/Comissão, C‑362/05 P, EU:C:2007:322, n.° 42, e Abdulrahim/Conselho e Comissão, C‑239/12 P, EU:C:2013:331, n.° 61).

37      No caso vertente, as recorrentes não podiam diferir o pagamento dos juros que lhes foram imputados até à decisão do recurso de anulação do ato controvertido ou do recurso interposto do acórdão recorrido. Assim, a circunstância de as recorrentes terem pagado os juros de mora à taxa prevista não pode privar de objeto o recurso do ato controvertido, incluindo na fase do recurso de decisão do Tribunal Geral.

38      Afigura‑se, com efeito, que as recorrentes conservaram interesse em obter a anulação do ato controvertido uma vez que a exigência imposta pelo contabilista da Comissão nesse ato, ou seja, a constituição de garantia bancária prestada por um banco com notação financeira «AA» de longo prazo para garantir os pagamentos faseados das prestações da coima, enquanto requisito para poder beneficiar da taxa de juro prevista no artigo 86.°, n.° 5, do Regulamento n.° 2342/2002, as privou do benefício dessa taxa.

39      Com efeito, conforme sustenta a Comissão, em caso de pagamento faseado de uma coima, o benefício de uma taxa de juro favorável para os créditos não reembolsados no prazo previsto está reservado, nos termos dos artigos 85.° e 86.° do Regulamento n.° 2342/2002, às pessoas que constituem uma garantia financeira aceite pelo contabilista da Comissão.

40      O facto de a taxa de juro aplicável e o montante desses juros numa determinada data decorrerem diretamente das disposições do Regulamento n.° 2342/2002 não é pertinente a este respeito, uma vez que o objeto do recurso das recorrentes consiste em contestar a recusa da Comissão em aplicar‑lhes uma taxa de juro favorável.

41      Importa precisar que, caso seja dado provimento ao presente recurso e os requisitos de aplicação do artigo 61.°, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia se encontrem preenchidos, o Tribunal Geral ou o Tribunal de Justiça podem ser chamados a pronunciarem‑se sobre o recurso do ato controvertido interposto pelas recorrentes em primeira instância.

42      Ora, caso seja dado provimento ao próprio recurso do ato controvertido, a exigência imposta pelo contabilista da Comissão nesse ato, de constituição de garantia bancária prestada por um banco com notação financeira «AA» de longo prazo para garantir os pagamentos faseados das prestações da coima, enquanto requisito para poder beneficiar da taxa de juro prevista no artigo 86.°, n.° 5, do Regulamento n.° 2342/2002, deixa de existir. Desse modo, as recorrentes terão sido privadas pela Comissão, de modo injustificado, do benefício da taxa de juro favorável aplicável ao montante não pago, ainda devido a título da coima que lhes foi aplicada.

43      Nestas circunstâncias, deve considerar‑se que o presente recurso não é desprovido de objeto e julgar improcedente o pedido de não conhecimento do mérito deduzido pela Comissão.

 Quanto à exigência de fundamentação do acórdão recorrido

44      O Tribunal Geral, por razões de economia processual, apreciou os argumentos invocados pelas recorrentes em apoio dos fundamentos de mérito sem previamente decidir sobre a exceção de inadmissibilidade invocada pela Comissão, segundo a qual o ato controvertido não constitui um ato suscetível de ser objeto de recurso de anulação na aceção do artigo 263.° TFUE.

45      É certo que, em determinados casos, o juiz pode, se a boa administração da justiça o justificar, negar provimento ao recurso de que conhece sem apreciar previamente a exceção de inadmissibilidade suscitada (v., neste sentido, acórdão Conselho/Boehringer, C‑23/00 P, EU:C:2002:118, n.° 52).

46      No caso vertente, o Tribunal Geral, no âmbito da sua apreciação do mérito do ato controvertido, pronunciou‑se em primeiro lugar quanto ao fundamento das recorrentes relativo à falta de fundamentação conforme com a jurisprudência.

47      Ora, é pacífico que o ato controvertido não contém fundamentação expressa da exigência de obtenção de uma garantia financeira prestada por um banco com notação financeira «AA» de longo prazo. Por conseguinte, a questão de saber se a fundamentação desse ato cumpre as exigências do artigo 296.° TFUE só podia ser apreciada após a análise dos factos que estiveram na origem da adoção desse ato. Além disso, importa recordar que o dever de fundamentação que incumbe ao autor de um ato varia em função da natureza do ato em questão.

48      Por conseguinte, no presente processo, teria sido preferível, em primeira instância, que a natureza do ato impugnado fosse apreciada em primeiro lugar.

49      No âmbito da apreciação da fundamentação do ato controvertido, o Tribunal Geral observou, no n.° 39 do acórdão recorrido, que as recorrentes sustentaram em primeira instância que os contactos com a Comissão não lhes permitiram tomar conhecimento dos fundamentos que justificam o requisito da notação «AA» de longo prazo.

50      Quanto a esta argumentação das recorrentes, o Tribunal Geral referiu, no n.° 43 do acórdão recorrido, que constava do ato controvertido que o banco emissor da garantia bancária devia ter uma notação financeira «AA» de longo prazo e que o banco proposto, o BCP, não satisfazia essa exigência.

51      No n.° 44 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral considerou que, embora a Comissão não tivesse fundamentado expressamente essa exigência, não deixava de ser verdade que a base do seu raciocínio, a saber, a proteção dos interesses financeiros da União, decorria da própria exigência.

52      O Tribunal Geral declarou em seguida, no n.° 45 do acórdão recorrido, que a Comissão tinha apresentado uma fundamentação que permitia às recorrentes conhecerem as razões dessa exigência.

53      A este respeito, importa salientar que, além de parecer existir uma contradição entre os n.os 44 e 45 do acórdão recorrido, não resulta da exposição dos factos na origem do litígio, que figura nos n.os 2 a 11 desse acórdão, nem dos n.os 43 e 44 do mesmo que o Tribunal Geral verificou e apreciou efetivamente os elementos factuais relativos às trocas de informação entre as recorrentes e a Comissão, a fim de poder pronunciar‑se quanto à argumentação quer das recorrentes quer da Comissão.

54      Nestas circunstâncias, cumpre observar que o Tribunal Geral não se pronunciou quanto à argumentação desenvolvida pelas partes em primeira instância, relativa aos contactos entre as recorrentes e a Comissão e à justificação da necessidade de uma notação «AA» de longo prazo. Por consequência, o acórdão apresenta uma insuficiência de fundamentação que não permite ao Tribunal de Justiça exercer a sua fiscalização no âmbito do presente recurso.

55      É certo que o dever de fundamentação que incumbe ao Tribunal Geral não lhe impõe que faça uma exposição exaustiva e individual de todos os passos do raciocínio articulado pelas partes no litígio (v., neste sentido, designadamente, acórdãos FIAMM e o./Conselho e Comissão, C‑120/06 P e C‑121/06 P, EU:C:2008:476, n.° 96, e Itália/Comissão, C‑385/13 P, EU:C:2014:2350, n.° 87).

56      Todavia, a fundamentação de um acórdão do Tribunal Geral deve revelar de forma clara e inequívoca o raciocínio deste, de forma a permitir aos interessados conhecerem as justificações da medida tomada e ao Tribunal de Justiça exercer a sua fiscalização jurisdicional (acórdão Mitteldeutsche Flughafen e Flughafen Leipzig‑Halle/Comissão, C‑288/11 P, EU:C:2012:821, n.° 83 e jurisprudência referida).

57      Dado que o acórdão recorrido não contém uma fundamentação conforme com as exigências recordadas no número anterior e que a falta de fundamentação constitui violação de formalidades substanciais e um fundamento de ordem pública que deve ser conhecido oficiosamente pelo Tribunal de Justiça (v., neste sentido, acórdão Mindo/Comissão, C‑652/11 P, EU:C:2013:229, n.° 30 e jurisprudência referida), o acórdão recorrido deve ser anulado, sem que seja necessário apreciar os fundamentos de recurso invocados pelas recorrentes.

58      Nos termos do artigo 61.°, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, este último pode, em caso de anulação da decisão do Tribunal Geral, decidir definitivamente o litígio, se estiver em condições de ser julgado.

59      Não é o que sucede no caso vertente.

60      Com efeito, por um lado, o Tribunal Geral negou provimento ao recurso quanto ao mérito, sem ter apreciado a exceção de inadmissibilidade suscitada pela Comissão segundo a qual o ato controvertido não constitui um ato suscetível de ser objeto de um recurso de anulação na aceção do artigo 263.° TFUE.

61      Por outro lado, a resolução do litígio implica, caso necessário, a apreciação dos elementos factuais, o que incumbe ao Tribunal Geral efetuar.

62      Por conseguinte, há que remeter o processo ao Tribunal Geral e reservar para final a decisão quanto às despesas.

 Quanto às despesas

63      Uma vez que há que remeter o processo ao Tribunal Geral, reserva‑se para final a decisão quanto às despesas no presente recurso.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) decide:

1)      O acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 26 de junho de 2014, Quimitécnica.com e de Mello/Comissão (T‑564/10, EU:T:2014:583), é anulado.

2)      O processo é remetido ao Tribunal Geral da União Europeia.

3)      Reserva‑se para final a decisão quanto às despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: português.