Language of document : ECLI:EU:T:2022:44

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção alargada)

2 de fevereiro de 2022 (*)

«Concorrência — Abuso de posição dominante — Mercados do gás da Europa Central e Oriental — Decisão de rejeição de uma denúncia — Falta de interesse da União — Exceção da ação estatal — Obrigação de análise diligente — Direitos processuais ao abrigo do Regulamento (CE) n.o 773/2004»

No processo T‑399/19,

Polskie Górnictwo Naftowe i Gazownictwo S.A., com sede em Varsóvia (Polónia), representada por K. Karasiewicz, radca prawny, T. Kaźmierczak, K. Kicun e P. Moskwa, advogados,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por B. Ernst, G. Meessen e J. Szczodrowski, na qualidade de agentes,

recorrida,

apoiada por:

Gazprom PJSC, com sede em Moscovo (Rússia),

e

Gazprom export LLC, com sede em São Petersburgo (Rússia),

representadas por J. Karenfort, J. Hainz, B. Evtimov, N. Tuominen, J. Heithecker, advogados, e D. O’Keeffe, solicitor,

intervenientes,

que tem por objeto um pedido baseado no artigo 263.o TFUE, destinado à anulação da Decisão C(2019) 3003 final da Comissão, de 17 de abril de 2019, relativa à rejeição de uma denúncia (processo AT.40497 — Preços polacos do gás),

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção alargada),

composto por: M. van der Woude, presidente, J. Svenningsen (relator), R. Barents, C. Mac Eochaidh e T. Pynnä, juízes,

secretário: M. Zwozdziak‑Carbonne, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 20 de maio de 2021,

profere o presente

Acórdão

 Antecedentes do litígio

1        A recorrente, a Polskie Górnictwo Naftowe i Gazownictwo S.A., é a sociedade‑mãe do grupo PGNiG, que opera no sector do gás e do petróleo, principalmente na Polónia. Este grupo exerce, nomeadamente, atividades de exploração e de produção de gás e de petróleo bruto, bem como de importação, de venda e de distribuição de gás.

2        A recorrente pede a anulação da Decisão C(2019) 3003 final da Comissão Europeia, de 17 de abril de 2019, relativa à rejeição de uma denúncia (processo AT.40497 — Preços polacos do gás) (a seguir «decisão impugnada»), adotada na sequência da denúncia que apresentou contra a Gazprom PJSC e suas filiais, entre as quais a Gazprom export LLC (a seguir, designadas em conjunto, «Gazprom»).

 Quanto à tramitação dos processos AT.39816 e AT.40497

3        Entre 2011 e 2015, a Comissão tomou várias medidas com vista a investigar o funcionamento dos mercados do gás na Europa Central e Oriental, bem como, em especial, a analisar, à luz da proibição de abusos de posição dominante prevista no artigo 102.o TFUE, a conformidade de certas práticas da Gazprom que afetam esses mercados, e, mais concretamente, os da Bulgária, da República Checa, da Estónia, da Letónia, da Lituânia, da Hungria, da Polónia e da Eslováquia (a seguir, designados em conjunto, «PECO em causa»). Neste contexto, a Comissão enviou, nomeadamente, pedidos de informações à recorrente. O procedimento administrativo correspondente a esta investigação foi registado sob a referência «Processo AT.39816 — Abastecimento de gás a montante na Europa Central e Oriental» (a seguir «processo AT.39816»).

4        No âmbito desse processo, após ter dado início ao procedimento previsto no artigo 11.o, n.o 6, do Regulamento (CE) n.o 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [101.o] e [102.o TFUE] (JO 2003, L 1, p. 1), e no artigo 2.o do Regulamento (CE) n.o 773/2004 da Comissão, de 7 de abril de 2004, relativo à instrução de processos pela Comissão para efeitos dos artigos [101.o] e [102.o TFUE] (JO 2004, L 123, p. 18), a Comissão enviou, em 22 de abril de 2015, nos termos do artigo 10.o do Regulamento n.o 773/2004, uma comunicação de objeções à Gazprom (a seguir «CO»). Nessa comunicação, a Comissão concluiu, a título preliminar, que a Gazprom ocupava uma posição dominante nos mercados nacionais de fornecimento grossista de gás a montante nos PECO em causa e que, em violação do artigo 102.o TFUE, abusava dessa posição ao desenvolver uma estratégia anticoncorrencial para fragmentar e isolar esses mercados e, assim, impedir a livre circulação do gás nesses países.

5        A Comissão considerou que esta estratégia da Gazprom abrangia três conjuntos de práticas anticoncorrenciais que afetavam os seus clientes nos PECO em causa, a saber, práticas baseadas no facto de, primeiro, a Gazprom ter imposto restrições territoriais nos seus contratos de fornecimento de gás com grossistas e com certos clientes industriais nos PECO em causa; segundo, estas restrições territoriais terem permitido à Gazprom conduzir uma política tarifária desleal em cinco dos PECO em causa, a saber, a Bulgária, a Estónia, a Letónia, a Lituânia e a Polónia; e, terceiro, a Gazprom ter, no que respeita à Bulgária e Polónia, sujeitado o fornecimento de gás à obtenção de certas garantias dos grossistas relativas às infraestruturas de transporte de gás. No que se refere mais concretamente à Polónia, estas garantias incidiram sobre a aceitação do grossista polaco, a saber, a recorrente, do reforço do controlo da Gazprom na gestão do troço polaco do gasoduto Yamal, um dos principais gasodutos de trânsito na Polónia (a seguir «objeções Yamal»).

6        Em 29 de setembro de 2015, a Gazprom respondeu à CO contestando as preocupações concorrenciais da Comissão. Em 14 de fevereiro de 2017, embora continuasse a contestar essas preocupações, apresentou, em aplicação do artigo 9.o do Regulamento n.o 1/2003, um projeto de compromissos.

7        Em 16 de março de 2017, ainda no processo AT.39816, para recolher as observações das partes interessadas sobre esse projeto de compromissos, a Comissão publicou no Jornal Oficial da União Europeia uma comunicação nos termos do artigo 27.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1/2003 (JO 2017, C 81, p. 9), que continha um resumo do processo AT.39816 e o conteúdo essencial desse projeto de compromissos, concedendo às partes um prazo de sete semanas a contar dessa data para apresentarem observações (a seguir «consulta do mercado»). Em seguida, designadamente a recorrente, o presidente da Urząd Regulacji Energetyki (Entidade Reguladora da Energia polaca, a seguir «Entidade Reguladora polaca») e a Gaz‑System S.A., a operadora do troço polaco do gasoduto Yamal, apresentaram observações.

8        Em 9 de março de 2017, paralelamente ao procedimento administrativo instaurado pela Comissão no processo AT.39816, a recorrente apresentou, em aplicação do artigo 5.o do Regulamento n.o 773/2004, uma denúncia que evocava o processo AT.39816 e denunciava práticas abusivas da Gazprom (a seguir «denúncia»).

9        Em 29 de março de 2017, a Comissão acusou a receção da denúncia, que, em seguida, foi registada no âmbito de um procedimento diferente, sob a referência «Processo AT.40497 — Preços polacos do gás» (a seguir «processo AT.40497»).

10      Por carta de 31 de março de 2017 dirigida à recorrente, a Comissão salientou que as práticas expostas na denúncia e as que eram objeto do projeto de compromissos pareciam sobrepor‑se e convidou‑a a apresentar observações no âmbito da consulta do mercado. Após ter obtido uma prorrogação do prazo aplicável, a recorrente apresentou as observações sobre o projeto em 19 de maio de 2017, como referido no n.o 7, supra.

11      Em 15 de maio de 2017, no processo AT.40497, a Gazprom comunicou à Comissão as suas observações sobre a denúncia.

12      Em 23 de janeiro de 2018, a Comissão, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004, informou por escrito a recorrente de que previa rejeitar a denúncia e convidou‑a a dar a conhecer o seu ponto de vista no prazo de quatro semanas (a seguir «carta de intenção de rejeição»). Neste âmbito, a Comissão enviou‑lhe igualmente uma versão não confidencial da CO, emitida no processo AT.39816, e uma versão não confidencial das observações da Gazprom sobre essa denúncia.

13      Em 2 de março de 2018, a recorrente apresentou observações em resposta à carta de intenção de rejeição. Além de manifestar a sua insatisfação quanto às conclusões provisórias contidas na referida carta, a recorrente alegou, nomeadamente, que considerava não ter recebido todos os documentos em que a posição da Comissão se baseava e que a versão não confidencial da CO, emitida no processo AT.39816, que lhe tinha sido enviada, não incluía certas passagens indispensáveis.

14      Em 24 de maio de 2018, no âmbito do processo AT.39816 e após a Gazprom ter apresentado um projeto de compromissos alterado na sequência da consulta do mercado, a Comissão adotou a Decisão C(2018) 3106 final, relativa a um processo nos termos do artigo 102.o TFUE e do artigo 54.o do Acordo EEE (Processo AT.39816 — Abastecimento de gás a montante na Europa Central e Oriental), em que aprovou e tornou obrigatórios os compromissos assumidos pela Gazprom e encerrou o procedimento administrativo nesse processo concluindo que já não lhe incumbia atuar no que respeitava às práticas identificadas na CO. Em 15 de outubro de 2018, a recorrente interpôs no Tribunal Geral recurso dessa decisão, registado sob o número de processo T‑616/18.

15      Em 5 de setembro de 2018, no processo AT.40497, a recorrente dirigiu‑se ao Auditor para obter determinados documentos desse processo, na aceção do artigo 7.o, n.o 2, alínea b), da Decisão 2011/695/UE do Presidente da Comissão, de 13 de outubro de 2011, relativa às funções e ao mandato do Auditor em determinados procedimentos de concorrência (JO 2011, L 275, p. 29). No dia 17 de setembro seguinte, o Auditor informou‑a de que remetia o seu pedido à Direção‑Geral (DG) da Concorrência, competente para lhe responder. Em 25 de setembro de 2018, a Comissão comunicou à recorrente que tinha adotado a sua posição com base nos documentos que já lhe tinha comunicado e recusou dar‑lhe acesso a outras passagens da CO.

16      Em 17 de abril de 2019, a Comissão encerrou o processo AT.40497 adotando a decisão impugnada.

 Quanto à decisão impugnada

17      Na decisão impugnada, a Comissão distinguiu entre as alegações da denúncia correspondentes às preocupações de concorrência cobertas pelos compromissos tornados obrigatórios pela decisão adotada no termo do processo AT.39816 e as restantes alegações deduzidas nessa denúncia contra a Gazprom.

18      Assim, quanto às primeiras alegações, a Comissão considerou, em substância, que os comportamentos em causa eram adequadamente considerados pelos referidos compromissos (v. n.os 2.2 e 2.3 da decisão impugnada). Quanto às restantes alegações, a Comissão examinou‑as sucessivamente no n.o 2.4 da decisão impugnada, intitulado «Assuntos não cobertos pelos compromissos» (Matters not covered by the commitments).

19      No âmbito do n.o 2.4.1, intitulado «A objeção relativa ao gasoduto Yamal» (The Objection concerning the Yamal Pipeline), a Comissão tratou as alegações da denúncia segundo as quais a Gazprom, no contexto de um défice de abastecimento encontrado pela recorrente em 2009 e em 2010 na sequência de um incumprimento da Gazprom‑RosUkrEnergo AG (a seguir «RUE»), uma filial ucraniana da Gazprom, sujeitou a celebração de um contrato de fornecimento a curto prazo de volumes adicionais de gás a condições alheias ao objeto desse contrato (a seguir «alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas»). Estas condições resumem‑se como sendo, primeiro, a renúncia a um crédito sobre essa filial da Gazprom; segundo, o acordo da recorrente para que a System Gazociągów Tranzytowych EuRoPol Gaz S.A. (a seguir «EuRoPol»), sociedade proprietária das infraestruturas do troço polaco do gasoduto Yamal, detida pela recorrente e pela Gazprom, renuncie a um crédito sobre esta última no valor de [confidencial]  (1) dólares dos Estados Unidos (USD); terceiro, a alteração aos estatutos da EuRoPol, dotando a Gazprom do direito de veto sobre certas decisões por ela tomadas; e, quarto, a inclusão de cláusulas no contrato celebrado entre a EuRoPol e a Gaz‑System relativo à gestão do referido troço por esta (v. considerando 18, terceiro e sétimo travessões, da decisão impugnada).

20      Ainda no que respeita às alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas, a Comissão recordou a posição defendida pela recorrente antes de expor a sua apreciação, de cada vez em relação a dois assuntos, a saber, primeiro, a decisão da Entidade Reguladora polaca de 19 de maio de 2015, adotada por intermédio do seu presidente e que certifica a Gaz‑System como operadora de rede independente para o troço polaco do gasoduto Yamal (a seguir «decisão de certificação»); e, segundo, a imposição à recorrente de garantias relativas à infraestrutura.

21      No âmbito da análise do segundo assunto, a Comissão considerou, sob a menção «A coação estatal não podia ser excluída» (State compulsion defence could not be excluded), que não estava excluído que a exceção da ação estatal fosse aplicável às práticas visadas nas alegações em causa, na medida em que não se podia excluir, em substância, que o comportamento da Gazprom lhe tivesse sido imposto pelo direito russo ou por pressões irresistíveis das autoridades russas, pelo que esse comportamento podia não ser autónomo na aceção do artigo 102.o TFUE e que a possível restrição à concorrência em questão podia não ser imputável a esta empresa. Quanto a este ponto, a Comissão salientou, nomeadamente, que a construção e o funcionamento do troço polaco do gasoduto Yamal se regiam por um acordo intergovernamental celebrado em 1993 entre a República da Polónia e a Federação da Rússia, bem como por protocolos adicionais posteriores (a seguir, designados em conjunto, «acordos Polónia‑Rússia»).

22      No âmbito do n.o 2.4.2, intitulado «Restrições ao fornecimento durante a época de inverno de 2014/2015» (Supply Restrições in the Winter Season 2014/2015), a Comissão tratou as alegações da denúncia segundo as quais a Gazprom reduziu abusivamente o fornecimento de gás durante o inverno de 2014/2015 com o objetivo de impedir eventuais reexportações de gás para a Ucrânia (a seguir «alegações relativas às restrições ao fornecimento durante a época de inverno de 2014/2015»). Devido a estas restrições, os volumes fornecidos pela Gazprom à recorrente foram inferiores aos volumes estipulados no contrato que celebraram, o que lhe causou um prejuízo financeiro, tendo em conta, em especial, os elevados custos de interligação que teve de suportar para importar gás da Europa Ocidental (v. considerando 18, quinto travessão, da decisão impugnada).

23      Os n.os 2.4.3 e 2.4.4 da decisão impugnada versam sobre alegações relativas, respetivamente, à transferência da propriedade da rede de transmissão de gás bielorrusso e a pretensas violações dos direitos processuais da recorrente como denunciante.

24      A Comissão rejeitou por diversos motivos todas as alegações cobertas pelo n.o 2.4 da decisão impugnada e rejeitou a denúncia em aplicação do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 773/2004, considerando que não havia motivo suficiente para prosseguir a investigação.

 Tramitação processual e pedidos das partes

25      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 25 de junho de 2019, a recorrente interpôs o presente recurso. A contestação, a réplica e a tréplica foram apresentadas, respetivamente, em 20 de setembro de 2019, 6 de novembro de 2019 e 9 de janeiro de 2020.

26      Por requerimento separado que acompanhava a petição, a recorrente pediu ao Tribunal Geral, nos termos do artigo 152.o do Regulamento de Processo do Tribunal, que se pronunciasse sobre o processo seguindo a tramitação acelerada. Por Decisão de 2 de agosto de 2019, o Tribunal Geral indeferiu esse pedido.

27      Em 4 de outubro de 2019, a composição das secções do Tribunal Geral foi alterada e o juiz‑relator foi afetado à Oitava Secção, à qual o presente processo foi, por conseguinte, atribuído.

28      Por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal Geral em 7 de outubro de 2019, a Gazprom pediu para intervir no presente processo em apoio dos pedidos da Comissão. Por Despacho de 5 de dezembro de 2019, o presidente da Oitava Secção do Tribunal Geral, ouvidas as partes principais, admitiu a intervenção. Em 17 de janeiro de 2020, a Gazprom apresentou um articulado de intervenção e a recorrente apresentou observações sobre esse articulado em 21 de fevereiro de 2020.

29      Por Decisão de 28 de maio de 2020, o presidente da Oitava Secção, ao abrigo do artigo 67.o, n.o 2, do Regulamento de Processo, lido em conjugação com o artigo 19.o, n.o 2, do mesmo regulamento, decidiu, tendo em conta as circunstâncias particulares do presente processo, conceder‑lhe tratamento prioritário.

30      Em 8 de junho de 2020, sob proposta da Oitava Secção, o Tribunal Geral decidiu, em aplicação do artigo 28.o do Regulamento de Processo, remeter o presente processo à Oitava Secção alargada. Por impedimento de um membro desta secção alargada, o presidente do Tribunal Geral foi designado para completar a secção por Decisão de 15 de junho de 2020.

31      Sob proposta do juiz‑relator, o Tribunal Geral decidiu dar início à fase oral do processo. Para o efeito, no âmbito das medidas de organização do processo, a recorrente e a Comissão foram convidadas a responder por escrito a questões colocadas pelo Tribunal e a Comissão foi também convidada a apresentar documentos. A recorrente e a Comissão entregaram as suas respostas a estas questões, respetivamente, em 3 de dezembro e 8 de dezembro de 2020, e a Comissão apresentou, em anexo às suas respostas, os documentos solicitados.

32      Por razões ligadas à crise sanitária devida à COVID‑19 e na sequência de pedidos formulados por algumas partes, o presidente da Oitava Secção alargada decidiu adiar a audiência, inicialmente marcada para 22 de janeiro de 2021.

33      Na audiência de 20 de maio de 2021, foram ouvidas as alegações das partes e suas respostas às questões colocadas pelo Tribunal Geral. Nessa ocasião, o Tribunal referiu igualmente ter tomado nota das observações sobre o relatório para audiência apresentadas pela Comissão em 27 de abril de 2021.

34      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

—        ordenar à Comissão a apresentação de todos os documentos relativos ao processo AT.40497, além dos apresentados em anexo ao recurso;

—        a título principal, anular parcialmente a decisão impugnada, na parte em que rejeita as alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas e as alegações relativas às restrições ao fornecimento durante a época de inverno de 2014/2015, e, a título subsidiário, anular a decisão impugnada na íntegra;

—        condenar a Comissão nas despesas.

35      A Comissão, apoiada pela Gazprom, conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

—        indeferir o pedido de medidas de organização do processo;

—        negar provimento ao recurso;

—        condenar a recorrente nas despesas.

 Questão de direito

36      A recorrente invoca cinco fundamentos de recurso relativos, respetivamente:

—        o primeiro, a um desvio de poder, na medida em que a Comissão, por um lado, adotou a decisão impugnada, na parte em que se baseia na possível aplicação da exceção dita da ação estatal relativamente aos atos imputados à Gazprom, numa base jurídica incorreta, a saber, o artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 773/2004, e não o artigo 10.o do Regulamento n.o 1/2003, e, por outro, decidiu analisar a denúncia no âmbito de um novo processo (processo AT.40497) com o objetivo de restringir o direito da recorrente de ser ouvida no âmbito do processo AT.39816;

—        o segundo, à violação do artigo 102.o TFUE, na medida em que a Comissão admitiu como elemento exoneratório do abuso de posição dominante a coação estatal exercida por um Estado terceiro;

—        o terceiro, à violação do artigo 7.o, n.o 1, e do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004, do artigo 296.o TFUE e do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), devido à falta de comunicação, na carta de intenção de rejeição, de todas as informações pertinentes e à falta de comunicação, com essa carta, dos documentos subjacentes à apreciação provisória da Comissão;

—        o quarto, à violação do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004 e do artigo 296.o TFUE, devido ao incumprimento da obrigação de proceder a uma análise diligente de todas as circunstâncias de facto e de direito expostas na denúncia e do dever de fundamentação;

—        o quinto, à violação do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 773/2004, lido em conjugação com o artigo 102.o TFUE, devido a erros manifestos de apreciação relativos, por um lado, à decisão de certificação e, por outro, às alegações relativas às restrições ao fornecimento durante a época de inverno de 2014/2015.

37      O presente recurso, nos seus diferentes fundamentos, tem essencialmente por objeto os n.os 2.4.1 e 2.4.2 da decisão impugnada, referentes, por um lado, às alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas e, por outro, às alegações relativas às restrições ao fornecimento durante a época de inverno de 2014/2015.

38      O Tribunal Geral considera oportuno começar por analisar o terceiro fundamento.

 Quanto ao terceiro fundamento, relativo à violação do artigo 7.o, n.o 1, e do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004, do artigo 296.o TFUE e do artigo 47.o da Carta

39      A recorrente acusa a Comissão de, por um lado, ter omitido informações pertinentes na carta de intenção de rejeição e, por outro, não lhe ter comunicado todos os documentos em que se baseavam a avaliação provisória emitida na referida carta e a avaliação constante da decisão impugnada. Ao fazê‑lo, a Comissão violou os direitos da recorrente de ser ouvida e informada, conforme consagrados no artigo 7.o, n.o 1, e no artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004, no artigo 296.o TFUE e no artigo 47.o da Carta.

40      Quanto à violação do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004, a recorrente sustenta que, por força desta disposição, a Comissão deve fornecer ao denunciante todos os elementos de facto e de direito em que se baseia, para que este possa reagir utilmente.

41      Ora, a Comissão não referiu claramente na carta de intenção de rejeição que a rejeição das alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas (apresentadas no n.o 19, supra) se baseava na possível aplicação da exceção da ação estatal, tendo em conta a existência de coação estatal resultante do direito russo. Limitou‑se, nos n.os 96 a 106 dessa carta, a recordar a importância do «caráter intergovernamental» das relações no sector do gás, que pôde condicionar o comportamento da Gazprom, e a vagas referências a disposições dos acordos Polónia‑Rússia, sem, contudo, relacionar o seu conteúdo com esse comportamento. A única alusão relativa ao direito russo encontra‑se no n.o 102 da referida carta, onde figurava uma mera especulação sem remissão para qualquer documento que permitisse à recorrente reconstituir o raciocínio da Comissão e, portanto, responder‑lhe.

42      Por seu lado, a Comissão considera que o teor dos acordos Polónia‑Rússia, certas afirmações constantes da denúncia e o conteúdo de uma carta de 30 de agosto de 2016 do Ministro da Energia russo ao seu homólogo polaco (a seguir «carta de 30 de agosto de 2016») eram suficientes para justificar a sua conclusão provisória sobre as objeções Yamal.

43      Assim, a Comissão alega que expôs no n.o 102 da carta de intenção de rejeição que as suas dúvidas se baseavam nas eventuais obrigações impostas à Gazprom pelo direito russo ou pelo estatuto dos acordos Polónia‑Rússia na égide desse direito. Além disso, nessa carta, a Comissão esclareceu as disposições destes acordos que regiam as questões da construção e do funcionamento do troço polaco do gasoduto Yamal e constituíam as bases para a celebração dos contratos de fornecimento de gás entre a Gazprom e a recorrente. Por último, a Comissão mencionou ainda na referida carta que certos elementos da denúncia sugeriam que era a Federação da Rússia, e não a Gazprom, que estava na origem da sujeição da celebração de contratos de fornecimento de gás à obtenção de garantias alheias a esses contratos e que as questões do fornecimento de gás tinham caráter intergovernamental.

44      Quanto ao restante, na medida em que a recorrente sustenta que a Comissão deveria ter feito referência a atos legislativos ou a outros documentos, esta posição decorre da convicção errada de que a Comissão está obrigada a proceder a constatações certas ou, pelo menos, fortemente prováveis, quando tal obrigação não se impõe no âmbito da rejeição de uma denúncia.

45      Nos termos do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004, sempre que a Comissão considere, com base nas informações de que dispõe, que não existem fundamentos bastantes para dar seguimento a uma denúncia, deve informar o autor da denúncia das respetivas razões e estabelecer um prazo para que este apresente, por escrito, as suas observações.

46      A este respeito, segundo jurisprudência constante, a Comissão dispõe de um poder discricionário para o tratamento das denúncias, podendo assim conceder diferentes graus de prioridade às denúncias que lhe são apresentadas, o que inclui a possibilidade de rejeitar uma denúncia por falta de interesse suficiente da União Europeia em prosseguir a análise do processo (v. Acórdão de 16 de maio de 2017, Agria Polska e o./Comissão, T‑480/15, EU:T:2017:339, n.os 34 e 35 e jurisprudência referida).

47      Dado que esta avaliação do interesse que uma denúncia em matéria de concorrência representa para a União depende das circunstâncias factuais e jurídicas de cada caso concreto, não há que limitar o número de critérios de apreciação a que a Comissão se pode referir, nem, pelo contrário, impor‑lhe o recurso exclusivo a certos critérios. Em todo o caso, quando essa instituição decide não dar início a uma investigação, não é obrigada a demonstrar, em apoio de tal decisão, que não existe uma infração (v. Acórdão de 16 de maio de 2017, Agria Polska e o./Comissão, T‑480/15, EU:T:2017:339, n.os 35 e 37 e jurisprudência referida).

48      O poder discricionário da Comissão não é, contudo, ilimitado. Quando as instituições dispõem de um amplo poder de apreciação, o respeito pelas garantias conferidas pela ordem jurídica da União nos procedimentos administrativos reveste uma importância ainda mais fundamental. Entre essas garantias figuram, nomeadamente, o dever de tomar em consideração, examinando‑os atentamente, todos os elementos de direito e de facto pertinentes, em especial os elementos levados ao seu conhecimento pelo denunciante (v. Acórdãos de 16 de outubro de 2013, Vivendi/Comissão, T‑432/10, não publicado, EU:T:2013:538, n.o 27 e jurisprudência referida, e de 16 de maio de 2017, Agria Polska e o./Comissão, T‑480/15, EU:T:2017:339, n.o 36 e jurisprudência referida), e a obrigação de ouvir utilmente o denunciante, a fim de decidir do seguimento a dar à denúncia que lhe foi apresentada.

49      No caso em apreço, importa observar que, na decisão impugnada, a Comissão tratou as alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas no âmbito do n.o 2.4.1, intitulado «A objeção relativa ao gasoduto Yamal» (The Objection concerning the Yamal Pipeline), e, mais especificamente, nos considerandos 99 a 110 desta decisão. Resulta da referida decisão e da carta de intenção de rejeição, corroboradas pelas respostas da Comissão às questões do Tribunal Geral, que estas alegações foram rejeitadas por motivo de probabilidade limitada de demonstrar uma infração ao artigo 102.o TFUE, motivo baseado em duas justificações, uma relativa à possível aplicação da exceção da ação estatal (state action doctrine ou, segundo os termos desta decisão, state compulsion defence) e, a outra, relativa à decisão de certificação adotada pela Entidade Reguladora polaca.

50      No passado, na carta de intenção de rejeição, anterior à adoção da decisão impugnada, a Comissão considerou igualmente que não havia motivos suficientes para aprofundar a investigação sobre as alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas, devido à probabilidade limitada de demonstrar uma infração ao artigo 102.o TFUE (v. n.os 107 e 108 da referida carta). Esta conclusão provisória assentava igualmente em duas justificações, a saber, por um lado, a decisão de certificação e, por outro, o contexto intergovernamental das relações entre a República da Polónia e a Federação da Rússia em matéria de gás (sendo estas justificações examinadas, respetivamente, nos n.os 92 a 95 e nos n.os 96 a 106 da carta de intenção de rejeição).

51      A alegada violação do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004 diz respeito a esta segunda justificação, relativa ao contexto intergovernamental das relações entre a República da Polónia e a Federação da Rússia em matéria de gás.

52      A este respeito, na carta de intenção de rejeição, face ao contexto intergovernamental que caracteriza as relações no sector do gás na Polónia e na Rússia, a Comissão evocou, primeiro, certas disposições dos acordos Polónia‑Rússia e o facto de esses acordos estabelecerem um conjunto exaustivo de regras sobre a construção e a gestão do gasoduto Yamal e preverem a celebração do contrato de fornecimento de gás entre a recorrente e a Gazprom. Segundo, salientou que o papel chave dos Governos polaco e russo resultava igualmente da denúncia apresentada pela recorrente. Terceiro, a Comissão referiu‑se ao papel eventualmente desempenhado pela Federação da Rússia e às disposições específicas dos acordos Polónia‑Rússia para explicar que os factos alegados e imputados à Gazprom não eram necessariamente imputáveis a essa empresa.

53      Todavia, não se pode deixar de observar que o conceito de exceção da ação estatal não aparece minimamente nas considerações pertinentes da carta de intenção de rejeição.

54      Ora, importa recordar que a exceção da ação estatal permite excluir um comportamento anticoncorrencial do âmbito de aplicação dos artigos 101.o e 102.o TFUE e, portanto, absolver as empresas da responsabilidade por esse comportamento quando o mesmo lhes é imposto por uma legislação nacional, por um quadro jurídico criado por essa legislação ou ainda por pressões irresistíveis exercidas pelas autoridades nacionais. Em contrapartida, os artigos 101.o e 102.o TFUE podem ser aplicados se se verificar que subsiste a possibilidade de a concorrência ser impedida, restringida ou falseada por comportamentos autónomos das empresas (v. Acórdãos de 11 de novembro de 1997, Comissão e França/Ladbroke Racing, C‑359/95 P e C‑379/95 P, EU:C:1997:531, n.os 33 e 34 e jurisprudência referida; de 18 de setembro de 1996, Asia Motor France e o./Comissão, T‑387/94, EU:T:1996:120, n.os 60 e 65 e jurisprudência referida; e de 11 de dezembro de 2003, Strintzis Lines Shipping/Comissão, T‑65/99, EU:T:2003:336, n.o 119 e jurisprudência referida).

55      Além disso, segundo a jurisprudência, esta exceção deve ser aplicada restritivamente (v. Acórdãos de 30 de março de 2000, Consiglio Nazionale degli Spedizionieri Doganali/Comissão, T‑513/93, EU:T:2000:91, n.o 60 e jurisprudência referida, e de 11 de dezembro de 2003, Strintzis Lines Shipping/Comissão, T‑65/99, EU:T:2003:336, n.o 121 e jurisprudência referida). Assim, o juiz da União considerou, nomeadamente, que a Comissão só pode rejeitar as denúncias por falta de autonomia das empresas postas em causa se resultar, com base em indícios objetivos, pertinentes e concordantes, que esse comportamento lhes foi unilateralmente imposto pelas autoridades nacionais através do exercício de pressões irresistíveis, como, por exemplo, a ameaça da adoção de medidas estatais suscetíveis de lhes causar grandes prejuízos (v. Acórdão de 18 de setembro de 1996, Asia Motor France e o./Comissão, T‑387/94, EU:T:1996:120, n.os 60 e 65 e jurisprudência referida).

56      Assim, tendo em conta a natureza especial, exoneratória de responsabilidade, da exceção da ação estatal e o facto de a jurisprudência não ter reconhecido a sua aplicação em caso de coação estatal exercida por um Estado terceiro, a Comissão deveria ter referido expressamente, na carta de intenção de rejeição, e para que a recorrente pudesse ser ouvida utilmente sobre os motivos justificativos da rejeição da denúncia, que a apreciação provisória da probabilidade limitada de demonstrar uma infração ao artigo 102.o TFUE assentava num possível caso de aplicação dessa exceção. A Comissão não pode esperar que a recorrente depreenda essa justificação implícita dos elementos adiantados na referida carta.

57      Esta conclusão não é posta em causa pelo argumento da Comissão de que, no n.o 102 da carta de intenção de rejeição, observou que a não ratificação dos acordos Polónia‑Rússia pela República da Polónia não produziria necessariamente efeitos nas obrigações impostas à Gazprom por força do direito russo e no reconhecimento conferido a esses acordos por força desse direito.

58      Com efeito, esta alusão não pode ser considerada suficientemente precisa e a Comissão não cumpre o seu dever de informação, nos termos do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004, com a transmissão de um indício sobre a invocação, em substância, da exceção da ação estatal. Esta conclusão impõe‑se tanto mais que resulta da redação do n.o 102 da carta de intenção de rejeição, lido à luz do n.o 99 da referida carta, que a Comissão pretendia principalmente responder a uma objeção suscitada pela recorrente nas observações apresentadas no âmbito da consulta do mercado, relativamente ao processo AT.39816.

59      Por outro lado, o teor das suas observações em resposta à carta de intenção de rejeição confirma que a recorrente não compreendeu que a Comissão fazia referência, evocando os acordos Polónia‑Rússia e a ordem jurídica russa, à possível aplicação da exceção da ação estatal. Nessas observações, a recorrente sublinhou o facto de, em seu entender, esses acordos não regularem a conduta da Gazprom de uma forma que explicasse os comportamentos anticoncorrenciais imputados a essa empresa, sem nunca evocar a referida exceção.

60      Por conseguinte, há que considerar que a Comissão violou o artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004.

61      Todavia, de acordo com jurisprudência constante, a referida violação só pode acarretar a anulação, total ou parcial, da decisão impugnada se se provar que, na falta dessa irregularidade, o processo AT.40497 poderia ter conduzido a um resultado diferente e, por conseguinte, a decisão impugnada poderia ter tido um conteúdo diferente (v. Acórdãos de 11 de março de 2020, Comissão/Gmina Miasto Gdynia e Port Lotniczy Gdynia Kosakowo, C‑56/18 P, EU:C:2020:192, n.o 80 e jurisprudência referida, e de 11 de setembro de 2014, Gold East Paper e Gold Huasheng Paper/Conselho, T‑443/11, EU:T:2014:774, n.o 113 e jurisprudência referida; v. igualmente, neste sentido, Acórdão de 29 de outubro de 1980, van Landewyck e o./Comissão, 209/78 a 215/78 e 218/78, não publicado, EU:C:1980:248, n.o 47).

62      Para apreciar se, inexistindo a referida violação, o processo poderia ter conduzido a um resultado diferente e se a decisão impugnada poderia ter tido um conteúdo diferente, há que salientar que, em apoio do primeiro, segundo e quarto fundamentos invocados no âmbito do processo contencioso no Tribunal Geral, a recorrente adiantou, nomeadamente, argumentos que rejeitavam, por princípio, a aplicação da exceção da ação estatal no caso em apreço, pondo em causa a análise diligente da denúncia pela Comissão e contestando as apreciações e a fundamentação concretamente adiantadas para justificar que não se podia excluir que essa exceção fosse aplicável aos comportamentos da Gazprom.

63      Antes de mais, no que respeita ao princípio da aplicação da exceção da ação estatal, a recorrente alegou, no âmbito do segundo fundamento, que esta exceção não podia ser aplicada num caso como o presente, a saber, um caso em que, por um lado, a coação estatal era exercida por um Estado terceiro, in casu, a Federação da Rússia, em vez de um Estado‑Membro e, por outro, a empresa em causa, in casu, a Gazprom, era controlada por esse Estado terceiro e podia ter ela própria solicitado o exercício da coação.

64      Ora, não se pode excluir que a coação estatal visada na exceção da ação estatal possa ser exercida por um Estado terceiro (v., neste sentido, Acórdão de 30 de setembro de 2003, Atlantic Container Line e o./Comissão, T‑191/98 e T‑212/98 a T‑214/98, EU:T:2003:245, n.os 1128 a 1150). Contudo, não deixa de ser verdade que, atendendo especialmente à aplicação restritiva desta exceção, a Comissão deve, no âmbito da sua análise das circunstâncias factuais e jurídicas ligadas a uma denúncia e, mais especificamente, do grau de autonomia de uma empresa, ter em conta a eventual porosidade entre esta última e as estruturas estatais na origem da coação em causa.

65      A este respeito, resulta precisamente da petição que a recorrente poderia, no decurso do procedimento administrativo, ter invocado circunstâncias pertinentes em relação à apreciação da existência e das implicações dessa porosidade no caso em apreço, tendo em conta, nomeadamente, as intervenções da Federação da Rússia mencionadas na denúncia ou o alegado controlo desta última da Gazprom [confidencial].

66      Em seguida, há que observar que os argumentos adiantados no âmbito do primeiro e quarto fundamentos censuram à Comissão a insuficiência de fundamentação da decisão impugnada, bem como a violação do dever de proceder a uma análise atenta dos elementos de facto e de direito expostos na denúncia. Com efeito, a recorrente sublinha que a Comissão não evocou nenhuma disposição precisa de direito russo e se limitou a remissões gerais para determinadas disposições dos acordos Polónia‑Rússia, o que não basta para justificar a rejeição da denúncia. Essas remissões são tanto mais contestáveis quanto determinadas exigências da Gazprom foram impostas antes da celebração do protocolo adicional de 29 de outubro de 2010 e que esse protocolo foi celebrado precisamente na sequência de pressões por parte dessa empresa.

67      Quanto à questão da fundamentação, o Tribunal Geral salienta ainda que a redação do considerando 110 da decisão impugnada suscita dúvidas quanto ao teor preciso da conclusão global que figura nesse considerando e, portanto, quanto a uma das justificações adiantadas para rejeitar as alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas. Com efeito, a Comissão parece visar, no referido considerando, por um lado, a possível aplicação da exceção da ação estatal, como resulta dos dois primeiros períodos deste considerando, mas também, por outro lado e distintamente, o facto de os acordos Polónia‑Rússia poderem ter amplamente determinado o conteúdo do contrato de gestão celebrado entre a EuRoPol e a Gaz‑System, como resulta do terceiro período do referido considerando e da utilização do termo «furthermore» (além disso).

68      Ainda, além da carta de intenção de rejeição e da decisão impugnada, importa salientar que, nas suas respostas escritas às questões do Tribunal Geral, a Comissão afirmou que, mesmo admitindo que estivesse suficientemente demonstrado, à luz do conteúdo dos acordos Polónia‑Rússia e do contexto intergovernamental invocado, que as condições relativas à exceção da ação estatal não estavam preenchidas stricto sensu, estes acordos constituem, não obstante, um sinal político emitido por um país terceiro que pode ser tomado em consideração, a título do princípio do respeito mútuo (comity), para apreciar o interesse da União em dar seguimento à análise das alegações na denúncia.

69      Por conseguinte, daí resulta uma confusão, pelo menos aparente, quanto às justificações subjacentes ao motivo segundo o qual havia uma probabilidade limitada de demonstrar uma infração ao artigo 102.o TFUE, ou mesmo quanto a eventuais outros motivos que permitissem à Comissão concluir pela inexistência de interesse suficiente da União em prosseguir a análise do processo AT.40497.

70      Ora, embora a Comissão se pudesse basear, a título de critérios de apreciação do interesse da União, na probabilidade limitada de demonstrar uma infração ou ainda em considerações relativas à influência de acordos intergovernamentais num determinado sector, ou mesmo relativas à tomada em conta de considerações ligadas à política internacional de concorrência da União, era obrigada a assegurar que a recorrente fosse ouvida utilmente a este respeito e a fundamentar com clareza a decisão impugnada, uma vez que essas obrigações revestem uma importância ainda mais fundamental quando dispõe de um amplo poder de apreciação (v., neste sentido, Acórdão de 16 de outubro de 2013, Vivendi/Comissão, T‑432/10, não publicado, EU:T:2013:538, n.o 27 e jurisprudência referida).

71      Resulta do exposto que, na falta de violação do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004 declarada pelo Tribunal Geral, a tramitação do processo AT.40497 poderia ter conduzido a um resultado diferente e a decisão impugnada poderia ter tido um conteúdo diferente no que respeita à justificação relacionada com a exceção da ação estatal.

72      Todavia, uma vez que a rejeição das alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas se baseia igualmente, como se expõe no n.o 49, supra, numa justificação relacionada com a decisão de certificação, há que anular a decisão impugnada unicamente se esta segunda justificação for igualmente contestada pela recorrente. Ora, esta segunda justificação é precisamente visada na primeira parte do quinto fundamento.

73      Por conseguinte, se a primeira parte do quinto fundamento, que visa a referida segunda justificação, for considerada procedente, haverá que acolher o presente fundamento, na parte em que é relativo à violação do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004, sem que seja necessário analisar a alegada violação do artigo 8.o, n.o 1, deste regulamento, do artigo 296.o TFUE e do artigo 47.o da Carta.

 Quanto à primeira parte do quinto fundamento, relativa à violação do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 773/2004, lido em conjugação com o artigo 102.o TFUE, na medida em que a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação sobre as alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas

74      A recorrente acusa a Comissão de ter cometido um erro manifesto de apreciação ao considerar que a decisão de certificação demonstrava que a Gaz‑System controlava os investimentos no troço polaco do gasoduto Yamal, pelo que não era necessário analisar outros elementos atinentes às alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas (apresentadas no n.o 19, supra, e tratadas no âmbito do n.o 2.4.1 da decisão impugnada). Em especial, a Comissão não pode validamente invocar esta decisão como constituindo uma justificação essencial para a rejeição da denúncia, minimizando o facto de a referida decisão não ter sido corretamente executada.

75      Com efeito, a recorrente sublinha que o dispositivo da decisão de certificação continha dois números. Enquanto o n.o 1 do dispositivo dessa decisão certificava a Gaz‑System como operadora independente do troço polaco do gasoduto Yamal, o n.o 2 preconizava que, no prazo de 24 meses, a exploração diária das estações de compressão e de contagem de gás desse troço fosse assegurada pela Gaz‑System. Ora, este n.o 2 não foi executado devido à obstrução exercida pela EuRoPol, enquanto proprietária das infraestruturas do referido troço, e indiretamente pela Gazprom, na qualidade de acionista da EuRoPol (conforme exposto no n.o 19, supra), designadamente aproveitando a alteração aos estatutos dessa empresa comum e o direito de veto que a Gazprom obteve abusando da sua posição dominante.

76      A este respeito, três elementos ilustram a importância do n.o 2 do dispositivo da decisão de certificação. Em primeiro lugar, o presidente da Entidade Reguladora polaca, no âmbito da consulta do mercado organizada durante o processo AT.39816, sublinhou a inexecução da transferência exigida nesse número. Em segundo lugar, na carta de 30 de agosto de 2016, o Ministro da Energia russo ameaçou reduzir ou suspender o fornecimento de gás pela Gazprom em caso de implementação integral da referida decisão. Em terceiro lugar, a própria Comissão, em dois pareceres emitidos em 2014 e em 2015, respetivamente, sobre dois projetos de decisão que antecederam a decisão de certificação, sublinhou a pertinência da transferência para a Gaz‑System da exploração diária das estações de compressão e de contagem. Invocou, mais especificamente, o risco, na falta dessa transferência, de a EuRoPol dispor de um acesso injustificado a informações confidenciais e de se prestar a práticas discriminatórias para com os concorrentes dos seus acionistas, a saber, a recorrente e a Gazprom. Por conseguinte, a decisão de certificação não pode ser considerada de modo independente em relação às reservas expressas nesses pareceres.

77      Assim, não se pode deduzir da decisão de certificação a confirmação absoluta ou a prova inegável da inexistência de uma prática restritiva da concorrência relativamente ao gasoduto Yamal por parte da Gazprom, tanto mais que a inexecução do n.o 2 da decisão lhe é imputável, continuando, portanto, a exercer uma influência ilegal sobre esse gasoduto.

78      A Comissão, apoiada pela Gazprom, insiste no facto de a decisão impugnada versar exclusivamente sobre a probabilidade de demonstrar uma violação das regras de concorrência. Ora, a decisão de certificação era um indicador de que essa probabilidade era reduzida. Com efeito, embora a opinião inicial da Comissão fosse a de que a Gazprom exercia um controlo sobre os investimentos no troço polaco do gasoduto Yamal, esta decisão contém conclusões segundo as quais a situação se alterou a este respeito.

79      Quanto à recomendação de transferência da exploração enunciada no n.o 2 da decisão de certificação, a Comissão sublinha que essa decisão certificava incondicionalmente, e, portanto, definitivamente, a Gaz‑System como operadora de rede independente. Contrariamente ao que sustenta a recorrente, tal decisão tem um alcance jurídico real sobre a independência do operador em causa e não é simplesmente declaratória. Além disso, a não implementação desta recomendação não tem incidência nas conclusões e nas apreciações da Entidade Reguladora polaca relativas aos investimentos no troço polaco do gasoduto Yamal.

80      Quanto aos dois pareceres que a Comissão emitiu no âmbito do procedimento de certificação da Gaz‑System, por um lado, não eram vinculativos. Por outro lado, esses pareceres têm por objetivo assegurar a aplicação plena das regras do direito da União em matéria de energia, mas não têm incidência, no âmbito da análise da denúncia, sobre as dúvidas da Comissão quanto à possibilidade de declarar, no que respeita às alegações em causa, uma infração às regras da concorrência enquanto tais.

81      Por seu turno, a Gazprom sustenta que a decisão de certificação constituía uma indicação importante da probabilidade reduzida de a mesma exercer influência sobre os investimentos no troço polaco do gasoduto Yamal e, portanto, da probabilidade reduzida de poder declarar uma infração.

82      Quanto à inexecução da recomendação que figura nessa decisão, a denúncia não continha nenhuma prova de que essa inexecução era imputável a um bloqueio da Gazprom, de que não é responsável. Em apoio desta afirmação, a Gazprom sublinha, primeiro, que, em conformidade com o direito polaco, a decisão de certificação é definitiva e confere à Gaz‑System prerrogativas cujo exercício não pode impedir; segundo, que a Gaz‑System é a única destinatária da decisão de certificação e, por conseguinte, só ela está obrigada a executá‑la, ao passo que, em contrapartida, não há qualquer razão para exigir que a EuRoPol (ou ela própria) execute essa decisão; e, terceiro, que, em caso de inexecução, a Entidade Reguladora polaca pode, ou mesmo deve, prosseguir a execução dessa decisão, nomeadamente impondo sanções financeiras, ou revogando‑a.

83      O Tribunal Geral recorda, como já se expôs no n.o 49, supra, que, na decisão impugnada, a Comissão rejeitou as alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas por motivo de probabilidade limitada de demonstrar uma infração ao artigo 102.o TFUE, motivo baseado em duas justificações, uma relativa à possível aplicação da exceção da ação estatal e, a outra, relativa à decisão de certificação, sendo esta última justificação exposta nos considerandos 99 a 102 e 109 da decisão impugnada.

84      A este respeito, em primeiro lugar, é pacífico entre as partes que, com a decisão de certificação, o presidente da Entidade Reguladora polaca atribuiu à Gaz‑System um certificado de independência e, em especial, procedeu a diversas conclusões sobre o controlo exercido pela Gaz‑System sobre os investimentos no troço polaco do gasoduto Yamal e sobre a realização de certos investimentos nesse troço.

85      Todavia, é verdade que a decisão de certificação incluía igualmente, no seu dispositivo, um número relativo à transferência, para a Gaz‑System, da exploração diária das estações de compressão e de contagem situadas no troço polaco do gasoduto Yamal. Ora, independentemente do que a Comissão dá a entender, a questão desta transferência, não obstante o facto de estar abrangida pela regulamentação da União em matéria de gás, implica aspetos concorrenciais que podem estar abrangidos pelas regras de concorrência da União.

86      Com efeito, os serviços competentes da Comissão, embora distintos da DG da Concorrência, salientaram a necessidade de assegurar a transferência da exploração das estações de compressão e de contagem em cada um dos dois pareceres emitidos, em 9 de setembro de 2014 e em 19 de março de 2015, no âmbito do procedimento de certificação da Gaz‑System. Em especial, no parecer de 9 de setembro de 2014, esses serviços referiram que a exploração das estações constituía uma das tarefas essenciais de um operador da rede de transporte e sublinharam a problemática, no terreno da concorrência, decorrente da exploração das referidas estações pela EuRoPol, a saber, a proprietária do troço polaco do gasoduto Yamal, uma vez que, devido ao controlo exercido sobre esta pela Gazprom e pela recorrente, fazia parte de uma empresa verticalmente integrada. Em especial, a exploração das referidas estações pela EuRoPol aumentava o risco de um comportamento discriminatório e permitia a esta empresa dispor de informações confidenciais suscetíveis de conferir uma vantagem concorrencial aos seus acionistas, entre os quais a Gazprom.

87      Mais genericamente, há que salientar que a regulamentação da União em matéria de gás tem seguramente implicações na concorrência e que, em especial, a Diretiva 2009/73/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural e que revoga a Diretiva 2003/55/CE (JO 2009, L 211, p. 94), como resulta da leitura dos seus considerandos 4 a 17, visa, nomeadamente, a criação de condições de concorrência equitativas para os fornecedores de gás através da disponibilização de um acesso não discriminatório às redes de transporte, dissociando o operador da rede da empresa verticalmente integrada proprietária dessa rede.

88      Estas considerações sobre os pareceres emitidos pelos serviços competentes da Comissão no âmbito do procedimento de certificação da Gaz‑System não podem ser postas em causa pelo argumento de que os pareceres não são vinculativos, uma vez que, independentemente da força jurídica, é o teor dos referidos pareceres, em especial em relação aos potenciais problemas de concorrência identificados nos mesmos, que a DG da Concorrência deveria ter tido em conta no âmbito da apreciação da decisão de certificação.

89      Além disso, não se pode deixar de observar que a transferência da exploração das estações de compressão e de contagem não ocorreu no termo do prazo de 24 meses previsto no n.o 2 da decisão de certificação, a saber, 19 de maio de 2017, nem na data da adoção da decisão impugnada, a saber, 17 de abril de 2019. Quanto a este aspeto, cumpre afastar o argumento de que a responsabilidade por essa falha cabe à Gaz‑System, enquanto destinatária da decisão de certificação, ou mesmo à recorrente, enquanto acionista que controla a EuRoPol conjuntamente com a Gazprom.

90      Com efeito, resulta da carta de 30 de agosto de 2016, enviada pelo Ministro da Energia russo, que o bloqueio ligado à transferência da exploração provinha provavelmente da Gazprom, em vez da recorrente ou da Gaz‑System, independentemente de eventuais dúvidas sobre a questão de saber se essa carta indiciava a pressão da Federação da Rússia sobre a Gazprom ou podia constituir uma intervenção solicitada por esta última com vista a defender os seus próprios interesses. Em todo o caso, a interrogação sobre a origem desse bloqueio pode reforçar a pertinência da falta de transferência da exploração das estações de compressão e de contagem.

91      Daqui resulta que a Comissão não podia conferir uma importância determinante à decisão de certificação sem ter em conta o n.o 2 do dispositivo dessa decisão e, mais genericamente, as circunstâncias que rodeavam a falta de transferência da exploração das estações de compressão e de contagem.

92      Em segundo lugar, importa sublinhar que, na decisão impugnada, a Comissão considerou que as conclusões e as apreciações que figuram na decisão de certificação relativas aos investimentos no troço polaco do gasoduto Yamal lhe tinham permitido concluir que as suas preocupações liminares de concorrência identificadas na CO, emitida no processo AT.39816, e relativas às objeções Yamal, não tinham sido confirmadas e que, portanto, não era necessário qualquer compromisso a este respeito.

93      No entanto, como salientou a recorrente, o conteúdo da sua denúncia ultrapassava o âmbito das objeções cobertas pela CO e, em especial, as alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas abrangiam práticas que ultrapassavam a mera questão do controlo dos investimentos no troço polaco do gasoduto Yamal. Com efeito, como acima se expõe no n.o 19, supra, essas alegações, feitas paralelamente na denúncia, diziam respeito, de forma mais geral, às práticas pelas quais a Gazprom impôs diversas condições, a saber, exigiu alterações aos estatutos da EuRoPol que lhe permitiam bloquear qualquer atividade desta última que julgasse contrária aos seus interesses; impôs determinadas cláusulas no contrato de gestão que devia ser celebrado pela EuRoPol e pela Gaz‑System; e pediu que a recorrente aceitasse, incluindo como acionista da EuRoPol, renunciar a determinados créditos devidos pela RUE e pela Gazprom.

94      Por conseguinte, ao invocar as conclusões e as apreciações que figuram na decisão de certificação relativas aos investimentos no troço polaco do gasoduto Yamal, a Comissão reduziu as alegações expostas na denúncia ao alcance das objeções Yamal expostas na CO.

95      Ora, contrariamente ao que sustenta a Comissão, tal abordagem não pode ser justificada pelo facto de, como resulta da própria denúncia, a Gazprom ter tratado em conjunto as condições que subordinavam a celebração de um contrato de fornecimento de volumes adicionais de gás, pelo que as conclusões e as apreciações relativas aos investimentos no troço polaco do gasoduto Yamal tiveram incidência na apreciação global dessas condições. Com efeito, como resulta do número anterior, a natureza das práticas em causa era diferente, em especial na medida em que também diziam respeito a renúncias a créditos devidos pela RUE e pela Gazprom, e ultrapassavam a questão dos investimentos.

96      Ademais, dado que a Comissão contesta a premissa da recorrente de que seria mais adequado resolver, no âmbito de um procedimento de concorrência, dificuldades que se prendem com a aplicação da regulamentação da União em matéria de gás, cabe observar que, sendo caso disso, a Comissão podia invocar, a título de critérios de apreciação do interesse da União, um fundamento de rejeição de denúncia relacionado com o facto de existirem outros canais que permitiam corrigir as práticas em causa, ou pelo menos algumas delas, como a verificação por parte das autoridades polacas do cumprimento dessa regulamentação. No entanto, a Comissão estava obrigada a assegurar que a recorrente era devidamente ouvida a esse respeito e a fundamentar claramente a decisão impugnada, sendo essas obrigações de importância ainda mais fundamental quando dispõe de um amplo poder discricionário (v., neste sentido, Acórdão de 16 de outubro de 2013, Vivendi/Comissão, T‑432/10, não publicado, EU:T:2013:538, n.o 27 e jurisprudência referida).

97      Por conseguinte, no que respeita às alegações relativas às condições em matéria de infraestruturas, a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação ao considerar que as conclusões e as apreciações relativas aos investimentos no troço polaco do gasoduto Yamal que figuram na decisão de certificação justificavam a conclusão de que apenas havia uma probabilidade limitada de demonstrar uma infração ao artigo 102.o TFUE.

98      Resulta do exposto que, no que respeita à violação do artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004 exposta no n.o 60, supra, há que concluir, na linha das conclusões expostas nos n.os 71 a 73, supra, que, tendo igualmente em conta a segunda justificação, relativa à decisão de certificação, a tramitação do processo AT.40497 poderia ter conduzido a um resultado diferente e a decisão impugnada poderia ter tido um conteúdo diferente, e, por conseguinte, tal violação acarreta a anulação dessa decisão.

99      O Tribunal Geral considera, no entanto, oportuno analisar a segunda parte do quinto fundamento.

 Quanto à segunda parte do quinto fundamento, relativa à violação do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 773/2004, lido em conjugação com o artigo 102.o TFUE, na medida em que a Comissão cometeu erros manifestos de apreciação relativamente às restrições ao fornecimento durante a época de inverno de 2014/2015

100    Segundo a recorrente, a Comissão cometeu vários erros manifestos de apreciação ao rejeitar as alegações relativas às restrições ao fornecimento durante a época de inverno de 2014/2015, expostas no n.o 19, supra, e tratadas no âmbito do n.o 2.4.2 da decisão impugnada, sem os quais poderia ter considerado que o interesse da União consistia em eliminar o risco de a Gazprom poder novamente aplicar restrições ao fornecimento para impedir reexportações de gás.

101    Em primeiro lugar, a Comissão considerou erradamente que o risco de impacto resultante de perturbações no fornecimento de gás era agora reduzido devido à melhoria da ligação do mercado polaco com o mercado alemão. Com efeito, a instauração de fluxos físicos invertidos no gasoduto Yamal era anterior ao incidente denunciado, uma vez que remonta ao mês de abril de 2014. Além disso, esta melhoria era inútil para outros Estados‑Membros afetados pelas restrições em causa.

102    Em segundo lugar, a Comissão concluiu erradamente que não dispunha da prova de que o referido incidente constituía um abuso de posição dominante, quando não analisou corretamente os elementos de prova à sua disposição. Com efeito, o objetivo das restrições às reexportações de gás para a Ucrânia é demonstrado por uma declaração pública do Ministro da Energia russo de 25 de setembro de 2014, mencionada tanto na denúncia como na resposta à carta de intenção de rejeição. Foram fornecidos outros elementos concordantes, que demonstram que essas restrições afetaram a Hungria, a Áustria e a Eslováquia e que a Hungria interrompeu as reexportações para a Ucrânia. Posteriormente, além das ameaças constantes da carta de 30 de agosto de 2016, tais restrições ocorreram ainda em 2018, na Roménia e na Ucrânia.

103    Em terceiro lugar, a Comissão qualificou erradamente as restrições denunciadas de violações contratuais, pelas quais a recorrente pode pedir uma indemnização em aplicação dos mecanismos contratuais de resolução de litígios. Ora, esta qualificação decorre da desconsideração do contexto mais amplo em que se inscrevem essas restrições, a saber, uma estratégia da Gazprom destinada a restringir a concorrência. Por outro lado, o facto de uma prática se inscrever num contexto contratual e de existir um mecanismo contratual de resolução de conflitos não implica, por si só, que não se justifique a intervenção da Comissão, uma vez que essas circunstâncias não excluem a existência de práticas anticoncorrenciais.

104    Em quarto lugar, contrariamente ao que considerou a Comissão, a prática denunciada pela recorrente perdura e continua a ter impacto no estado atual da concorrência. Com efeito, a posição defendida pela Comissão resulta da não consideração de outros elementos, a saber, os outros exemplos de restrições apresentadas pela recorrente e o facto de essas restrições serem utilizadas como um instrumento com finalidade anticoncorrencial, com vista a segmentar os mercados ou a impor as concessões pretendidas pela Gazprom aos seus clientes. Além disso, a Comissão negligenciou o facto de o desenvolvimento das infraestruturas de transporte de gás controladas pela Gazprom, e que permitem contornar os Estados‑Membros da Europa Central (gasoduto Nord Stream 1 e projetos de gasodutos Nord Stream 2 e TurkStream), reforçar a sua capacidade de implementação dessas práticas, o que não foi resolvido pelos compromissos da Gazprom tornados obrigatórios no âmbito do processo AT.39816.

105    A Comissão, apoiada pela Gazprom, contesta os erros de apreciação alegados pela recorrente, pelo que, defende, a presente parte deve ser julgada improcedente.

106    A este respeito, resulta da decisão impugnada e da carta de intenção de rejeição que a Comissão considerou que não tinha de continuar a investigar as alegações relativas às restrições ao fornecimento durante a época de inverno de 2014/2015, essencialmente por quatro motivos. Em primeiro lugar, as práticas em causa constituíam um diferendo de natureza contratual, sem que os elementos à sua disposição lhe permitissem concluir que eram abusivas. Em segundo lugar, o mecanismo de resolução de litígios previsto no contrato entre a Gazprom e a recorrente oferecia uma alternativa a uma investigação de concorrência e um meio adequado para corrigir essas práticas. Em terceiro lugar, as referidas práticas pertenciam ao passado, sem que se afigure que afetariam a concorrência no momento da adoção da decisão impugnada. Por último, em quarto lugar, a melhoria da interligação entre a Alemanha e a Polónia reduziu significativamente o risco de futuros problemas de fornecimento afetarem esta última.

107    Quanto ao primeiro motivo, o Tribunal Geral salienta que o principal elemento de prova que vai no sentido da existência de um comportamento potencialmente abusivo é a declaração pública do Ministro da Energia russo de 25 de setembro de 2014, dando a entender que o móbil das restrições ao fornecimento era impedir as reexportações de gás dos PECO em causa para a Ucrânia. Ora, como alega a Comissão, este elemento não basta para declarar uma infração ao artigo 102.o TFUE, nem para justificar, por si só, uma investigação mais aprofundada dessas restrições, tanto mais que, como resulta da carta de intenção de rejeição, podia haver outra razão para explicar as referidas restrições, a saber, a constituição das reservas russas de gás, mesmo admitindo que a verosimilhança desta outra razão possa ser contestada.

108    Tal não é posto em causa pelo facto de as restrições ao fornecimento durante a época de inverno de 2014/2015 estarem inseridas numa estratégia geral da Gazprom, que foi documentada na CO, emitida no processo AT.39816, e é ainda confirmada pelas ameaças contidas na carta de 30 de agosto de 2016.

109    Com efeito, embora tenha sido evocada na CO, essa estratégia decompõe‑se em diversas categorias de práticas e, mesmo supondo que o móbil dessas restrições tenha sido impedir reexportações para a Ucrânia, tais restrições distinguem‑se das práticas expostas na CO, que visam as trocas entre os PECO em causa, bem como as pretensas ameaças que figuram na carta de 30 de agosto de 2016, que dizem respeito à gestão do troço polaco do gasoduto Yamal. Por conseguinte, a Comissão podia razoavelmente examinar as referidas restrições isoladamente, tendo em conta igualmente o facto de a decisão adotada no termo do processo AT.39816, examinada nomeadamente nos n.os 2.2 e 2.3 da decisão impugnada, ter tornado obrigatórios os compromissos assumidos pela Gazprom para responder às preocupações de concorrência da Comissão nesse processo.

110    Além disso, o aumento das despesas de interligações durante a época de inverno de 2014/2015 e o facto de as restrições ao fornecimento durante essa época terem afetado vários Estados‑Membros, e não apenas a República da Polónia, evocados pela recorrente, não são, enquanto tais, suscetíveis de demonstrar uma infração ao artigo 102.o TFUE.

111    Quanto ao segundo motivo, é verdade que, como alega a recorrente, a natureza contratual de uma prática e a existência de um modo contratual de resolução de litígios não excluem que essa prática constitua uma infração às regras da concorrência da União. Todavia, é certo que a recorrente não contestou que, como declarado na decisão impugnada, esse modo de resolução de litígios existia no seu contrato de fornecimento de gás celebrado com a Gazprom. Ora, a Comissão pode validamente ter em conta a existência de canais alternativos que permitam, em princípio, corrigir as práticas contestadas por um denunciante.

112    Quanto ao terceiro motivo, a saber, que as restrições ao fornecimento em causa pertencem ao passado, há que considerar que, pelas razões expostas no n.o 108, supra, essas restrições podiam ser consideradas isoladamente pela Comissão. Quanto ao resto, os demais elementos evocados pela recorrente, em especial os problemas causados pela Gazprom na Roménia em 2018 e o alegado controlo dessa empresa das infraestruturas de transporte de gás na Europa, mesmo admitindo que constituam práticas comparáveis às referidas restrições, não foram avançados no procedimento administrativo ou constituem alegações demasiado genéricas para pôr em causa a apreciação da Comissão.

113    Quanto ao quarto motivo, basta observar que a recorrente não contesta a realidade da melhoria da interligação entre a Alemanha e a Polónia, nem o aumento dos volumes de gás transportados do primeiro para o segundo país a partir de 2016.

114    Por conseguinte, há que concluir que a Comissão não cometeu um erro manifesto de apreciação ao considerar que não havia motivos suficientes para aprofundar a investigação das alegações relativas às restrições ao fornecimento durante a época de inverno de 2014/2015.

115    Atendendo a todas as considerações anteriores, e, em especial, à conclusão, exposta no n.o 98, supra, de que a Comissão violou o artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 773/2004, uma vez que, sem essa violação, a tramitação do processo AT.40497 poderia ter conduzido a um resultado diferente e a decisão impugnada poderia ter tido um conteúdo diferente, há que dar provimento ao recurso. Nestas condições, o Tribunal Geral considera que não há que se pronunciar sobre o pedido de medidas de organização do processo formulado pela recorrente.

 Quanto às despesas

116    Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão sido vencida, há que condená‑la nas despesas da recorrente, em conformidade com o pedido desta.

117    Por outro lado, nos termos do artigo 138.o, n.o 3, do Regulamento de Processo, o Tribunal Geral pode decidir que um interveniente que não seja Estado‑Membro ou instituição da União suporte as suas próprias despesas. No caso em apreço, a Gazprom suportará, portanto, as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção alargada)

decide:

1)      A Decisão C(2019) 3003 final da Comissão Europeia, de 17 de abril de 2019, relativa à rejeição de uma denúncia (processo AT.40497 — Preços polacos do gás), é anulada.

2)      A Comissão suportará as suas próprias despesas e as despesas efetuadas pela Polskie Górnictwo Naftowe i Gazownictwo S.A.

3)      A Gazprom PJSC e a Gazprom export LLC suportarão as suas próprias despesas.

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 2 de fevereiro de 2022.

Assinaturas


*      Língua do processo: polaco.


1      Dados confidenciais omitidos.