Language of document : ECLI:EU:T:2005:332

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Segunda Secção alargada)

21 de Setembro de 2005 (*)

«Política externa e de segurança comum – Medidas restritivas contra pessoas e entidades ligadas a Oussama ben Laden, à rede Al‑Qaida e aos Talibãs – Competência da Comunidade – Congelamento de fundos – Direitos fundamentais – Jus cogens – Fiscalização jurisdicional – Recurso de anulação»

No processo T‑315/01,

Yassin Abdullah Kadi, residente em Jeddah (Arábia Saudita), representado por D. Pannick, QC, P. Saini, barrister, G. Martin e A. Tudor, solicitors, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrente,

contra

Conselho da União Europeia, representado por M. Vitsentzatos e M. Bishop, na qualidade de agentes,

e

Comissão das Comunidades Europeias, representada por A. Van Solinge e C. Brown, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorridos,

apoiados por

Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, representado inicialmente por J. E. Collins e, em seguida, por R. Caudwell, na qualidade de agentes, esta última assistida por S. Moore, barrister, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

interveniente,

que tem por objecto, inicialmente, um pedido de anulação, por um lado, do Regulamento (CE) n.° 467/2001 do Conselho, de 6 de Março de 2001, que proíbe a exportação de certas mercadorias e de certos serviços para o Afeganistão, reforça a proibição de voos, prorroga o congelamento de fundos e de outros recursos financeiros aplicável aos Taliban do Afeganistão e revoga o Regulamento (CE) n.° 337/2000 (JO L 67, p. 1), e, por outro, do Regulamento (CE) n.° 2062/2001 da Comissão, de 19 de Outubro de 2001, que altera, pela terceira vez, o Regulamento n.° 467/2001 (JO L 277, p. 25), e, seguidamente, um pedido de anulação do Regulamento (CE) n.° 881/2002 do Conselho, de 27 de Maio de 2002, que institui certas medidas restritivas específicas contra determinadas pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al‑Qaida e aos talibã, e que revoga o Regulamento n.° 467/2001 (JO L 139, p. 9), na medida em que estes actos digam respeito ao recorrente,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA
DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Segunda Secção alargada),

composto por: N. J. Forwood, presidente, J. Pirrung, P. Mengozzi, A. W. H. Meij e M. Vilaras, juízes,

secretário: H. Jung,

vistos os autos e após a audiência de 14 de Outubro de 2003,

profere o presente

Acórdão

 Quadro jurídico

1        Nos termos do artigo 24.°, n.° 1, da Carta das Nações Unidas, assinada em São Francisco (Estados Unidos), em 26 de Junho de 1945, os membros da Organização das Nações Unidas (ONU) «conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais e concordam em que no cumprimento dos deveres impostos por essa responsabilidade o Conselho de Segurança aja em nome deles».

2        Nos termos do artigo 25.° da Carta das Nações Unidas, «[o]s membros [da ONU] concordam em aceitar e aplicar as decisões do Conselho de Segurança, de acordo com a presente Carta».

3        Por força do artigo 48.°, n.° 2, da Carta das Nações Unidas, as decisões do Conselho de Segurança para a manutenção da paz e da segurança internacionais «serão executadas pelos membros das Nações Unidas directamente e, mediante a sua acção, nos organismos internacionais apropriados de que façam parte».

4        Segundo o artigo 103.° da Carta das Nações Unidas, «[n]o caso de conflito entre as obrigações dos membros das Nações Unidas em virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta».

5        Nos termos do artigo 11.°, n.° 1, UE:

«A União definirá e executará uma política externa e de segurança comum extensiva a todos os domínios da política externa e de segurança, que terá por objectivos:

–        a salvaguarda dos valores comuns, dos interesses fundamentais, da independência e da integridade da União, de acordo com os princípios da Carta das Nações Unidas;

–        o reforço da segurança da União, sob todas as formas;

–        a manutenção da paz e o reforço da segurança internacional, de acordo com os princípios da Carta das Nações Unidas […]»

6        Nos termos do artigo 301.° CE:

«Sempre que uma posição comum ou uma acção comum adoptada nos termos das disposições do Tratado da União Europeia relativas à política externa e de segurança comum prevejam uma acção da Comunidade para interromper ou reduzir, total ou parcialmente, as relações económicas com um ou mais países terceiros, o Conselho, deliberando por maioria qualificada, sob proposta da Comissão, toma as medidas urgentes necessárias.»

7        O artigo 60.°, n.° 1, CE dispõe:

«Se, no caso previsto no artigo 301.°, for considerada necessária uma acção da Comunidade, o Conselho, de acordo com o procedimento previsto no artigo 301.°, pode tomar, relativamente aos países terceiros em causa, as medidas urgentes necessárias em matéria de movimentos de capitais e de pagamentos.»

8        Nos termos do artigo 307.°, primeiro parágrafo, CE:

«As disposições do presente Tratado não prejudicam os direitos e obrigações decorrentes de convenções concluídas antes de 1 de Janeiro de 1958 ou, em relação aos Estados que aderem à Comunidade, anteriormente à data da respectiva adesão, entre um ou mais Estados‑Membros, por um lado, e um ou mais Estados terceiros, por outro.»

9        Por último, o artigo 308.° CE dispõe:

«Se uma acção da Comunidade for considerada necessária para atingir, no curso de funcionamento do mercado comum, um dos objectivos da Comunidade, sem que o presente Tratado tenha previsto os poderes de acção necessários para o efeito, o Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, e após consulta do Parlamento Europeu, adoptará as disposições adequadas.»

 Antecedentes do litígio

10      Em 15 de Outubro de 1999, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (a seguir «Conselho de Segurança») adoptou a Resolução 1267 (1999), através da qual, designadamente, condenou o facto de continuar a ser dado acolhimento e treino a terroristas e de serem preparados actos terroristas em território afegão, reafirmou a sua convicção de que a repressão do terrorismo internacional é essencial para a manutenção da paz e da segurança internacionais e deplorou que os talibãs continuassem a dar refúgio a Usama bin Laden (Oussama ben Laden, na maior parte das versões francesas dos documentos adoptados pelas instituições comunitárias) e a permitir que ele, bem como os seus associados, dirigissem uma rede de campos de treino de terroristas em território por eles controlado e utilizassem o Afeganistão como base para patrocinar operações terroristas internacionais. No n.° 2 dessa resolução, o Conselho de Segurança exigiu que os talibãs entregassem sem demora o nomeado Oussama ben Laden às autoridades competentes. A fim de assegurar o respeito dessa obrigação, o n.° 4, alínea b), da Resolução 1267 (1999) dispõe que todos os Estados deverão, designadamente, «[c]ongelar os fundos e outros recursos financeiros, incluindo fundos provenientes ou obtidos a partir de bens que sejam propriedade dos talibãs ou controlados, directa ou indirectamente, por eles ou por qualquer empresa de que os talibãs sejam proprietários ou que esteja sob o seu controlo, tal como designados pelo comité instituído em aplicação do n.° 6, infra, e assegurar que nem os referidos fundos nem quaisquer outros fundos ou recursos financeiros desta forma designados sejam postos, pelos seus nacionais ou por qualquer pessoa que se encontrem no seu território, à disposição dos talibãs ou de qualquer outra empresa propriedade dos talibãs ou controlada, directa ou indirectamente, por eles, salvo autorização contrária dada, pelo Comité, caso a caso, por razões humanitárias.»

11      No n.° 6 da Resolução 1267 (1999), o Conselho de Segurança decidiu criar, em conformidade com o artigo 28.° do seu regulamento interno provisório, um Comité do Conselho de Segurança composto por todos os seus membros (a seguir «comité de sanções»), encarregado, designadamente, de velar pela execução, pelos Estados, das medidas impostas pelo n.° 4, identificar os fundos ou outros recursos financeiros visados no referido n.° 4 e examinar os pedidos de derrogação às medidas impostas por esse mesmo n.° 4.

12      Considerando que era necessária uma acção da Comunidade a fim de executar essa resolução, o Conselho adoptou, em 15 de Novembro de 1999, a Posição Comum 1999/727/PESC, relativa a medidas restritivas contra os Taliban (JO L 294, p. 1). O artigo 2.° dessa posição comum impõe o congelamento dos fundos e outros recursos financeiros detidos no estrangeiro pelos talibãs, nas condições definidas na Resolução 1267 (1999) do Conselho de Segurança.

13      Em 14 de Fevereiro de 2000, o Conselho adoptou, com base nos artigos 60.° CE e 301.° CE, o Regulamento (CE) n.° 337/2000, relativo a uma proibição de voos e a um congelamento de fundos e outros recursos financeiros aplicável aos Taliban do Afeganistão (JO L 43, p. 1).

14      Em 19 de Dezembro de 2000, o Conselho de Segurança adoptou a Resolução 1333 (2000), que exige, designadamente, que os talibãs dêem cumprimento à Resolução 1267 (1999), em particular, deixando de dar refúgio e treino aos terroristas internacionais e às suas organizações e entregando Oussama ben Laden às autoridades competentes, para que este seja julgado. O Conselho de Segurança decidiu, em particular, reforçar a proibição dos voos e o congelamento dos fundos impostos pela Resolução 1267 (1999). Assim, o n.° 8, alínea c), da Resolução 1333 (2000) dispõe que todos os Estados devem, designadamente, «[c]ongelar sem demora os fundos e outros activos financeiros de Usama bin Laden e das pessoas e entidades a ele associadas, tal como designadas pelo [comité de sanções], incluindo os da organização Al‑Qaida e os fundos provenientes ou obtidos a partir de bens que sejam propriedade de Usama bin Laden ou controlados, directa ou indirectamente, por ele e por pessoas e entidades a ele associadas, e assegurar que nem os referidos fundos nem quaisquer outros fundos ou recursos financeiros sejam postos, pelos seus nacionais ou por qualquer pessoa que se encontrem no seu território, à disposição, directa ou indirectamente, de Usama bin Laden, dos seus associados ou de qualquer entidade que seja propriedade ou que seja controlada, directa ou indirectamente, por Usama bin Laden ou por pessoas e entidades a ele associadas, incluindo os da organização Al‑Qaida».

15      Nessa mesma disposição, o Conselho de Segurança encarregou o comité de sanções de manter, com base nas informações comunicadas pelos Estados e pelos organismos regionais, uma lista actualizada dos indivíduos e entidades que o referido comité identificou como estando associados a Oussama ben Laden, incluindo a organização Al‑Qaida.

16      No n.° 23 da Resolução 1333 (2000), o Conselho de Segurança decidiu que as medidas impostas, designadamente, ao abrigo do n.° 8, seriam aplicadas durante doze meses e que, no fim desse período, determinaria se deviam ser prorrogadas por um novo período, nas mesmas condições.

17      Considerando que era necessária uma acção da Comunidade a fim de dar execução a essa resolução, o Conselho adoptou, em 26 de Fevereiro de 2001, a Posição Comum 2001/154/PESC, que impõe medidas restritivas adicionais contra os Taliban e que altera a Posição Comum 96/746/PESC (JO L 57, p. 1). O artigo 4.° dessa posição comum dispõe:

«São congelados os fundos e outros activos financeiros de Usama bin Laden e das pessoas e entidades a ele associadas, conforme designadas pelo [comité de sanções], e não serão disponibilizados fundos ou outros recursos financeiros a Usama bin Laden e às pessoas e entidades a ele associadas, tal como designadas pelo [comité de sanções], nas condições definidas na [Resolução 1333 (2000)].»

18      Em 6 de Março de 2001, o Conselho adoptou, com base nos artigos 60.° CE e 301.° CE, o Regulamento (CE) n.° 467/2001, que proíbe a exportação de certas mercadorias e de certos serviços para o Afeganistão, reforça a proibição de voos, prorroga o congelamento de fundos e de outros recursos financeiros aplicável aos Taliban do Afeganistão e revoga o Regulamento (CE) n.° 337/2000 (JO L 67, p. 1).

19      O artigo 1.° do Regulamento n.° 467/2001 define o que deve ser entendido por «fundos» e por «congelamento de fundos».

20      Nos termos do artigo 2.° do Regulamento n.° 467/2001:

«1.      São congelados todos os fundos e outros recursos financeiros pertencentes a qualquer pessoa singular ou colectiva, entidade ou organismo designado pelo Comité de Sanções […] e constante da lista do Anexo I.

2.      Os fundos ou outros recursos financeiros não devem ser, directa ou indirectamente, colocados à disposição nem utilizados em benefício das pessoas, entidades ou organismos designados pelo Comité de Sanções [contra os] Taliban e constantes da lista do Anexo I.

3.      O n.os 1 e 2 não são aplicáveis aos fundos e recursos financeiros isentados pelo Comité de Sanções [contra os] Taliban. As isenções são obtidas através das autoridades competentes dos Estados‑Membros enumeradas no Anexo II.»

21      O Anexo I do Regulamento n.° 467/2001 contém a lista das pessoas, entidades e organismos visados pelo congelamento de fundos imposto pelo artigo 2.° Nos termos do n.° 1 do artigo 10.° do Regulamento n.° 467/2001, a Comissão está habilitada a alterar ou a completar o referido Anexo I, com base nas decisões do Conselho de Segurança ou do comité de sanções.

22      Em 8 de Março de 2001, o comité de sanções publicou uma primeira lista consolidada das entidades e das pessoas que devem ser sujeitas ao congelamento de fundos por força das Resoluções 1267 (1999) e 1333 (2000) do Conselho de Segurança (v. comunicado AFG/131 SC/7028 do referido comité de 8 de Março de 2001). Essa lista foi, desde então, alterada e completada em diversas ocasiões. Assim, a Comissão adoptou diversos regulamentos ao abrigo do artigo 10.° do Regulamento n.° 467/2001, através dos quais alterou ou completou o Anexo I do referido regulamento.

23      Em 19 de Outubro de 2001, o comité de sanções publicou uma nova adenda à lista de 8 de Março de 2001, que contém, designadamente, o nome da seguinte pessoa:

–        «Al‑Qadi, Yasin (A. K. A. Kadi, Shaykh Yassin Abdullah; A. K. A. Kahdi, Yasin), Jeddah, Saudi Arabia».

24      Através do Regulamento (CE) n.° 2062/2001 da Comissão, de 19 de Outubro de 2001, que altera, pela terceira vez, o Regulamento n.° 467/2001 (JO L 277, p. 25), o nome da pessoa em questão foi acrescentado, juntamente com outros, ao Anexo I do referido regulamento.

25      Em 16 de Janeiro de 2002, o Conselho de Segurança adoptou a Resolução 1390 (2002), que fixa as medidas a impor relativamente a Oussama ben Laden, aos membros da organização Al‑Qaida, bem como aos talibãs e a outras pessoas, grupos, empresas e entidades associadas. Esta resolução prevê, no essencial, nos n.os 1 e 2, a manutenção das medidas, designadamente o congelamento de fundos, impostas pelo n.° 4, alínea b), da Resolução 1267 (1999) e pelo n.° 8, alínea c), da Resolução 1333 (2000). Em conformidade com o n.° 3 da Resolução 1390 (2002), estas medidas serão reexaminadas pelo Conselho de Segurança, doze meses depois da sua adopção, prazo findo o qual as manterá ou decidirá melhorá‑las.

26      Considerando que era necessária uma acção da Comunidade a fim de dar execução a essa resolução, o Conselho adoptou, em 27 de Maio de 2002, a Posição Comum 2002/402/PESC, relativa a medidas restritivas contra Osama bin Laden, os membros da organização Al‑Qaida e os Talibã, bem como contra outros indivíduos, grupos, empresas e entidades a eles associados e que revoga as Posições Comuns 96/746/PESC, 1999/727/PESC, 2001/154/PESC e 2001/771/PESC (JO L 139, p. 4). O artigo 3.° desta posição comum prescreve, designadamente, o prosseguimento do congelamento dos fundos e dos outros haveres financeiros ou recursos económicos dos indivíduos, grupos, empresas e entidades referidos na lista elaborada pelo comité de sanções em conformidade com as Resoluções 1267 (1999) e 1333 (2000) do Conselho de Segurança.

27      Em 27 de Maio de 2002, o Conselho adoptou, com base nos artigos 60.° CE, 301.° CE e 308.° CE, o Regulamento (CE) n.° 881/2002, que institui certas medidas restritivas específicas contra determinadas pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al‑Qaida e aos talibã, e que revoga o Regulamento (CE) n.° 467/2001 (JO L 139, p. 9).

28      Nos termos do considerando 4 deste regulamento, as medidas previstas, designadamente, na Resolução 1390 (2002) do Conselho de Segurança «estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do Tratado, pelo que se torna necessário, especialmente para evitar distorções de concorrência, aprovar legislação comunitária que permita a aplicação, no território da Comunidade, das decisões pertinentes do Conselho de Segurança».

29      O artigo 1.° do Regulamento n.° 881/2002 define os «fundos» e o «congelamento de fundos» em termos, no essencial, idênticos aos do artigo 1.° do Regulamento n.° 467/2001.

30      Nos termos do artigo 2.° do Regulamento n.° 881/2002:

«1.      São congelados todos os fundos e recursos económicos que sejam propriedade das pessoas singulares ou colectivas, grupos ou entidades designados pelo Comité de Sanções e enumerados no Anexo I, ou que por eles sejam possuídos ou detidos.

2.      Os fundos não devem ser, directa ou indirectamente, colocados à disposição nem utilizados em benefício de pessoas singulares ou colectivas, grupos ou entidades designados pelo Comité de Sanções e enumerados no Anexo I.

3.      Os recursos económicos não devem ser, directa ou indirectamente, colocados à disposição nem utilizados em benefício de pessoas singulares ou colectivas, grupos ou entidades designados pelo Comité de Sanções e enumerados no Anexo I, de forma a que essas pessoas, grupos ou entidades possam vir a beneficiar de fundos, bens ou serviços.»

31      O Anexo I do Regulamento n.° 881/2002 contém a lista das pessoas, entidades e grupos visados pelo congelamento de fundos imposto pelo artigo 2.° Esta lista inclui, designadamente, o nome da seguinte pessoa singular: «Al‑Qadi, Yasin (aliás, KADI, Shaykh Yassin Abdullah; aliás, KAHDI, Yasin), Jeddah, Arábia Saudita».

32      Em 20 de Dezembro de 2002, o Conselho de Segurança adoptou a Resolução 1452 (2002), destinada a facilitar o respeito das obrigações em matéria de luta antiterrorista. O n.° 1 desta resolução prevê um determinado número de derrogações e de excepções ao congelamento dos fundos e dos recursos económicos imposto pelas Resoluções 1267 (1999), 1333 (2000) e 1390 (2002), que poderão ser concedidas por motivos humanitários pelos Estados, sob reserva da aprovação do comité de sanções.

33      Em 17 de Janeiro de 2003, o Conselho de Segurança adoptou a Resolução 1455 (2003), que se destina a melhorar a execução das medidas impostas no n.° 4, alínea b), da Resolução 1267 (1999), no n.° 8, alínea c), da Resolução 1333 (2000) e nos n.os 1 e 2 da Resolução 1390 (2002). Em conformidade com o n.° 2 da Resolução 1455 (2003), essas medidas serão de novo melhoradas dentro de doze meses ou mais cedo, se necessário.

34      Considerando que era necessária uma acção da Comunidade a fim de dar execução à Resolução 1452 (2002) do Conselho de Segurança, o Conselho adoptou, em 27 de Fevereiro de 2003, a Posição Comum 2003/140/PESC, relativa às derrogações às medidas restritivas impostas pela Posição Comum 2002/402/PESC (JO L 53, p. 62). O artigo 1.° desta posição comum prevê que, ao dar execução às medidas a que se refere o artigo 3.° da Posição Comum 2002/402, a Comunidade Europeia terá em conta as excepções permitidas pela Resolução 1452 (2002) do Conselho de Segurança.

35      Em 27 de Março de 2003, o Conselho adoptou o Regulamento (CE) n.° 561/2003, que altera, no referente às excepções ao congelamento de fundos e de recursos económicos, o Regulamento n.° 881/2002 (JO L 82, p. 1). No considerando 4 desse regulamento, o Conselho indica que, tendo em conta a Resolução 1452 (2002) do Conselho de Segurança, torna‑se necessário ajustar as medidas impostas pela Comunidade.

36      Nos termos do artigo 1.° do Regulamento n.° 561/2003:

«No Regulamento […] n.° 881/2002 é inserido o seguinte artigo:

‘Artigo 2.°A

1.      O disposto no artigo 2.° não se aplica aos fundos ou recursos económicos quando:

a)      Qualquer uma das autoridades competentes dos Estados‑Membros referidas no Anexo II determinar, a pedido de uma pessoa singular ou colectiva interessada, que esses fundos ou recursos económicos:

i)      são necessários para cobrir despesas de base, incluindo os pagamentos de comida, rendas ou empréstimos hipotecários, medicamentos e tratamentos médicos, impostos, apólices de seguro e serviços públicos,

ii)      se destinam exclusivamente ao pagamento de honorários profissionais razoáveis e ao reembolso de despesas associadas com a prestação de serviços jurídicos,

iii)      se destinam exclusivamente ao pagamento de encargos ou taxas de serviço correspondentes à manutenção ou gestão normal de fundos ou de recursos económicos congelados, ou

iv)      são necessários para cobrir despesas extraordinárias; e

b)      Essa determinação tiver sido notificada ao Comité de Sanções e:

c)      i)     no caso de uma determinação ao abrigo da subalínea i), ii) ou iii) da alínea a), o Comité de Sanções não tiver, no prazo de 48 horas após a notificação, emitido objecções à determinação, ou

ii)      no caso de uma determinação ao abrigo da subalínea iv) da alínea a), o Comité de Sanções tiver aprovado a determinação.

2.      Quem pretenda beneficiar do disposto no n.° 1 deve apresentar um requerimento à autoridade competente do Estado‑Membro referida no Anexo II.

A autoridade competente referida no Anexo II deve notificar rapidamente por escrito o requerente, bem como quaisquer outras pessoas, organismos ou entidades reconhecidos como directamente interessados, de que o requerimento foi ou não deferido.

A autoridade competente deve também informar os restantes Estados‑Membros de que o requerimento de isenção foi ou não deferido.

3.      Os fundos descongelados e transferidos no interior da Comunidade para fazer face a despesas ou reconhecidos ao abrigo do presente artigo não ficarão sujeitos a outras medidas restritivas nos termos do artigo 2.°

[…]’»

 Tramitação processual e pedidos das partes

37      Por petição entrada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 18 de Dezembro de 2001, registada sob o número T‑315/01, Yassin Abdullah Kadi interpôs, contra o Conselho e a Comissão, um recurso nos termos do artigo 230.° CE, no qual conclui pedindo que o Tribunal se digne:

–        anular os Regulamentos n.° 2062/2001 e n.° 467/2001, na medida em que digam respeito ao recorrente;

–        condenar o Conselho e a Comissão nas despesas.

38      Nas respostas, entradas na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância, respectivamente, em 20 e 21 de Fevereiro de 2002, o Conselho e a Comissão concluem pedindo que o Tribunal se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar o recorrente nas despesas.

39      Por carta da Secretaria do Tribunal de Primeira Instância de 13 de Junho de 2002, as partes foram convidadas a apresentar as suas observações sobre as consequências da revogação do Regulamento n.° 467/2001 e da sua substituição pelo Regulamento n.° 881/2002.

40      Por requerimento entrado na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 28 de Junho de 2002, em anexo às suas observações, o recorrente alargou os seus pedidos e fundamentos iniciais ao Regulamento n.° 881/2002 (a seguir «regulamento impugnado»), na parte que lhe diz respeito.

41      Nas suas observações entradas na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 28 de Junho de 2002, o Conselho declara não ter objecções a essa ampliação dos pedidos e fundamentos iniciais do recurso.

42      Nas suas observações entradas na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 1 de Julho de 2002, a Comissão alega que o recurso inicial deve ser julgado inadmissível na parte que visa o Regulamento n.° 467/2001, uma vez que as condições constantes, designadamente, dos quarto e quinto parágrafos do artigo 230.° CE não estão preenchidas. Segundo esta instituição, o pedido inicial de anulação deste regulamento só pode, portanto, ser entendido como uma excepção de ilegalidade nos termos do artigo 241.° CE. Por isso, deve considerar‑se que o recurso inicial visa principalmente o Regulamento n.° 2062/2001 e que é apenas a título incidental que ataca o Regulamento n.° 467/2001. Contudo, no interesse de uma boa administração da justiça e por preocupações de economia processual, e tendo em conta a circunstância de que os efeitos jurídicos do Regulamento n.° 2062/2001 se prosseguem no regulamento impugnado, a Comissão declara não ter objecções a que o recorrente altere os seus actos processuais para neles incluir este último regulamento.

43      Por outro lado, a Comissão solicita ao Tribunal de Primeira Instância que declare, em conformidade com o artigo 113.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância, que o recurso contra o Regulamento n.° 2062/2001 ficou sem objecto e que não há lugar ao conhecimento do mérito da causa no que lhe diz respeito, uma vez que esse regulamento ficou privado de qualquer efeito jurídico devido à revogação do Regulamento n.° 467/2001 e à sua substituição pelo regulamento impugnado. Invoca, nesse sentido, o acórdão do Tribunal de Justiça de 5 de Outubro de 1988, Technointorg/Comissão e Conselho (294/86 e 77/87, Colect., p. 6077), e o despacho do Tribunal de Primeira Instância de 13 de Junho de 1997, TEAM e Kolprojekt/Comissão (T‑13/96, Colect., p. II‑983).

44      Além disso, a Comissão pede, ao abrigo do artigo 115.°, n.° 1, e do artigo 116.°, n.° 6, do Regulamento de Processo, que lhe seja concedido o estatuto de interveniente em apoio dos pedidos do Conselho, mantendo o seu pedido de condenação do recorrente nas despesas que ela efectuou durante o período no decurso do qual este contestou o Regulamento n.° 2062/2001.

45      Por despacho do presidente da Primeira Secção do Tribunal de Primeira Instância de 10 de Setembro de 2002, o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte foi admitido a intervir em apoio dos pedidos dos recorridos, em aplicação do artigo 116.°, n.° 6, do Regulamento de Processo.

46      Tendo a composição das secções do Tribunal de Primeira Instância sido modificada a partir do novo ano judicial, que teve início em 1 de Outubro de 2002, o juiz‑relator foi afecto à Segunda Secção, à qual o presente processo foi, por conseguinte, atribuído.

47      Ouvidas as partes, o Tribunal de Primeira Instância remeteu o processo, em conformidade com o artigo 51.° do Regulamento de Processo, a uma secção composta por cinco juízes.

48      Com base no relatório do juiz‑relator, o Tribunal de Primeira Instância (Segunda Secção alargada) decidiu iniciar a fase oral e, no âmbito das medidas de organização do processo previstas no artigo 64.° do Regulamento de Processo, colocou por escrito determinadas questões ao Conselho e à Comissão, que responderam no prazo fixado.

49      Por despacho do presidente da Segunda Secção alargada do Tribunal de Primeira Instância de 18 de Setembro de 2003, o presente processo e o processo T‑306/01, Aden e o./Conselho e Comissão, foram apensos para efeitos da fase oral, em conformidade com o artigo 50.° do Regulamento de Processo.

50      Por carta de 8 de Outubro de 2003, o recorrente solicitou ao Tribunal de Primeira Instância que juntasse aos autos o Terrorism (United Nations Measures) Order 2001 [Despacho britânico de 2001 sobre o Terrorismo (Medidas das Nações Unidas)]. Por carta igualmente datada de 8 de Outubro de 2003, a Comissão pediu ao Tribunal que juntasse aos autos as «directrizes que regulam a condução dos trabalhos do [comité de sanções]», conforme adoptadas por este comité em 7 de Novembro de 2002 e rectificadas em 10 de Abril de 2003. Estes dois pedidos foram deferidos por decisão do presidente da Segunda Secção alargada do Tribunal de Primeira Instância de 9 de Outubro de 2003.

51      Foram ouvidas as alegações e as respostas das partes às questões colocadas pelo Tribunal de Primeira Instância na audiência de 14 de Outubro de 2003.

 Quanto às consequências processuais decorrentes da adopção do regulamento impugnado

52      As partes principais no litígio estão de acordo em reconhecer que o recorrente tem o direito de adaptar os seus pedidos e fundamentos de modo a visar a anulação do regulamento impugnado, que revoga e substitui o Regulamento n.° 467/2001, conforme alterado pelo Regulamento n.° 2062/2001. Por requerimento entrado na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 28 de Junho de 2002, o recorrente declarou efectivamente adaptar nesse sentido os seus pedidos e fundamentos iniciais.

53      A este respeito, deve recordar‑se que, quando uma decisão é substituída, no decurso do processo, por uma decisão com o mesmo objecto, esta deve ser considerada um elemento novo que permite ao recorrente adaptar os seus pedidos e fundamentos. Seria, de facto, contrário a uma boa administração da justiça e às exigências de economia processual obrigar o recorrente a interpor novo recurso. Além disso, seria injusto que a instituição em causa pudesse, para fazer face às críticas contidas numa petição apresentada ao tribunal comunitário contra uma decisão, adaptar a decisão impugnada ou substituí‑la por outra e, no decurso da instância, invocar essa alteração ou substituição para privar a outra parte da possibilidade de tornar os seus pedidos e fundamentos iniciais extensivos à decisão ulterior ou de apresentar pedidos e fundamentos suplementares contra esta (acórdãos do Tribunal de Justiça de 3 de Março de 1982, Alpha Steel/Comissão, 14/81, Recueil, p. 749, n.° 8; de 29 de Setembro de 1987, Fabrique de fer de Charleroi e Dillinger Hüttenwerke/Comissão, 351/85 e 360/85, Colect., p. 3639, n.° 11; e de 14 de Julho de 1988, Stahlwerke Peine‑Salzgitter/Comissão, 103/85, Colect., p. 4131, n.os 11 e 12; acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 3 de Fevereiro de 2000, CCRE/Comissão, T‑46/98 e T‑151/98, Colect., p. II‑167, n.° 33).

54      Esta jurisprudência é transponível para a hipótese em que um regulamento, que diz directa e individualmente respeito a um particular, é substituído, já com o processo em curso, por um regulamento com o mesmo objecto.

55      Correspondendo esta hipótese, em todos os aspectos, à do presente caso, há que deferir o pedido do recorrente, considerar que o seu recurso tem por objecto a anulação do regulamento impugnado, na parte que este lhe diz respeito, e permitir às partes reformular os seus pedidos, fundamentos e argumentos à luz deste elemento novo.

56      Nestas condições, deve considerar‑se que o pedido inicial do recorrente destinado a obter a anulação parcial do Regulamento n.° 467/2001 ficou sem objecto, devido à revogação deste regulamento pelo regulamento impugnado. Assim, não há que decidir sobre este pedido nem, consequentemente, sobre a questão prévia de admissibilidade suscitada pela Comissão (v. n.° 42, supra). Também não há que proferir decisão sobre o pedido de anulação parcial do Regulamento n.° 2062/2001, uma vez que este ficou igualmente sem objecto.

57      Resulta do que antecede que já não há que conhecer do recurso, na parte que visa a Comissão. Nas circunstâncias do presente caso, contudo, o princípio da boa administração da justiça e as exigências de economia processual, em que se apoia a jurisprudência referida no n.° 53 supra, justificam igualmente que se tenham em conta os pedidos, os fundamentos de defesa e os argumentos da Comissão, reformulados conforme referido no n.° 55, supra, sem que seja novamente necessário admitir formalmente esta instituição no processo, nos termos do artigo 115.°, n.° 1, e do artigo 116.°, n.° 6, do Regulamento de Processo, enquanto interveniente em apoio dos pedidos do Conselho.

58      Tendo em conta o que antecede, deve considerar‑se que o presente recurso passa a visar apenas o Conselho, apoiado pela Comissão e pelo Reino Unido, e que tem por único objecto um pedido de anulação do regulamento impugnado, na parte que este diz respeito ao recorrente.

 Quanto ao mérito

1.     Considerações preliminares

59      Em apoio dos seus pedidos, o recorrente invocou, na petição, três fundamentos de anulação relativos à violação dos seus direitos fundamentais. O primeiro fundamento é relativo à violação do direito de ser ouvido, o segundo, à violação do direito ao respeito da propriedade e do princípio da proporcionalidade e o terceiro, à violação do direito a uma fiscalização jurisdicional efectiva.

60      Na réplica, o recorrente invocou um quarto fundamento, relativo à incompetência e ao excesso de poder, na medida em que as instituições recorridas adoptaram os Regulamentos n.° 467/2001 e n.° 2062/2001 com base nos artigos 60.° CE e 301.° CE, quando essas disposições autorizavam a Comunidade a interromper ou a reduzir as relações económicas com países terceiros, mas não a congelar os haveres dos particulares. Contudo, no seguimento da revogação do Regulamento n.° 467/2001 e da sua substituição pelo regulamento impugnado, adoptado com base nos artigos 60.° CE, 301.° CE e 308.° CE, o recorrente declarou, nas suas observações entradas na Secretaria do Tribunal em 28 de Junho de 2002, que renunciava a este novo fundamento.

61      O Tribunal de Primeira Instância decidiu, contudo, analisar oficiosamente a questão de saber se o Conselho era competente para adoptar o regulamento impugnado, tendo por base legal os artigos 60.° CE, 301.° CE e 308.° CE. Com efeito, o fundamento relativo à incompetência do autor do acto impugnado é de ordem pública (conclusões do advogado‑geral M. Lagrange no processo Países Baixos/Alta Autoridade, acórdão do Tribunal de Justiça de 15 de Julho de 1964, 66/63, Recueil, pp. 1047, 1086, Colect. 1962‑1964, pp. 527, 529) e pode, por isso, ser examinado oficiosamente pelo tribunal comunitário (acórdãos do Tribunal de Justiça de 17 de Dezembro de 1959, Société des fonderies de Pont‑à‑Mousson/Alta Autoridade, 14/59, Recueil, pp. 445, 473 , Colect. 1954‑1961, p. 357; de 10 de Maio de 1960, Alemanha/Alta Autoridade, 19/58, Recueil, pp. 469, 488, Colect. 1954‑1961, p. 401; de 30 de Setembro de 1982, Amylum/Conselho, 108/81, Recueil, p. 3107, n.° 28; e de 13 de Julho de 2000, Salzgitter/Comissão, C‑210/98 P, Colect., p. I‑5843, n.° 56; acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 27 de Fevereiro de 1992, BASF e o./Comissão, T‑79/89, T‑84/89, T‑85/89, T‑86/89, T‑89/89, T‑91/89, T‑92/89, T‑94/89, T‑96/89, T‑98/89, T‑102/89 e T‑104/89, Colect., p. II‑315, n.° 31; e de 24 de Setembro de 1996, Marx Esser e Del Amo Martinez/Parlamento, T‑182/94, ColectFP, p. I‑A‑411 e II‑1197, n.° 44).

62      Uma vez que nem o Conselho nem a Comissão tiveram a possibilidade de tomar posição sobre esta questão no decurso da fase escrita, o Tribunal convidou‑os a fazê‑lo por escrito ao abrigo das medidas de organização do processo (v. n.° 48, supra). Estas instituições responderam a esse pedido do Tribunal no prazo que lhes foi fixado para o efeito. Por outro lado, durante a audiência, o recorrente pôs em causa a competência do Conselho para adoptar o regulamento impugnado com base nos artigos 60.° CE, 301.° CE e 308.° CE. O Reino Unido tomou igualmente posição sobre esta questão na audiência.

63      O Tribunal decide pronunciar‑se, em primeiro lugar, sobre o fundamento, suscitado oficiosamente, relativo à incompetência do Conselho para adoptar o regulamento impugnado. O Tribunal pronunciar‑se‑á, seguidamente, sobre os três fundamentos de anulação, agrupando‑os, relativos à violação dos direitos fundamentais do recorrente.

2.     Quanto ao fundamento relativo à incompetência do Conselho para adoptar o regulamento impugnado

 Questões do Tribunal e respostas das partes

64      Nas suas questões escritas colocadas ao Conselho e à Comissão, o Tribunal de Primeira Instância recordou que, no parecer 2/94 de 28 de Março de 1996 (Colect., p. I‑1759, n.os 29 e 30), o Tribunal de Justiça precisou que o artigo 235.° do Tratado CE (actual artigo 308.° CE) visa suprir a falta de poderes para agir, conferidos expressa ou implicitamente às instituições comunitárias por disposições específicas do Tratado, na medida em que tais poderes se revelem, porém, necessários para que a Comunidade possa exercer as suas funções tendo em vista alcançar um dos objectivos fixados pelo Tratado. Sendo parte integrante de uma ordem institucional baseada no princípio das competências de atribuição, esta disposição não pode constituir um fundamento para alargar o âmbito das competências da Comunidade para além do quadro geral resultante do conjunto das disposições do Tratado e, em particular, das que definem as missões e as acções da Comunidade. Não pode, em qualquer caso, servir de fundamento à adopção de disposições que conduzam, em substância, pelas suas consequências, a uma alteração do Tratado que escape ao processo que este prevê para esse efeito. À luz deste parecer, o Tribunal convidou mais particularmente o Conselho e a Comissão a indicar quais eram os objectivos da Comunidade fixados pelo Tratado CE que se propunham atingir pela via das disposições previstas pelo regulamento impugnado.

65      O Conselho respondeu, no essencial, que essas disposições prosseguiam um objectivo de coerção económica e financeira que constitui, em seu entender, um objectivo do Tratado CE.

66      A este respeito, o Conselho alega que os objectivos da Comunidade não são apenas os definidos no artigo 3.° CE, podendo também resultar de disposições mais específicas.

67      O elemento determinante, a este respeito, é o de que, depois da revisão resultante do Tratado de Maastricht, os artigos 60.° CE e 301.° CE definem as missões e as acções da Comunidade em matéria de sanções económicas e financeiras e oferecem uma base legal para uma transferência expressa de competências para a Comunidade com vista ao seu cumprimento. Essas competências estão expressamente ligadas e, de facto, subordinadas à adopção de um acto ao abrigo das disposições do Tratado UE relativas à política estrangeira e de segurança comum (PESC). Ora, um dos objectivos da PESC é, nos termos do artigo 11.°, n.° 1, terceiro travessão, EU, «a manutenção da paz e o reforço da segurança internacional, de acordo com os princípios da Carta das Nações Unidas».

68      Há, assim, que admitir que a coerção económica e financeira por razões políticas, a fortiori, no âmbito da execução de uma decisão vinculativa do Conselho de Segurança, constitui um objectivo expresso e legítimo do Tratado CE, mesmo que esse objectivo seja marginal, ligado de maneira indirecta aos objectivos principais deste Tratado, designadamente os relativos à livre circulação de capitais [artigo 3.°, n.° 1, alínea c), CE] e ao estabelecimento de um regime de concorrência não falseada [artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE], e ligado ao Tratado UE.

69      No presente caso, o artigo 308.° CE foi incluído, enquanto base jurídica do regulamento impugnado, a fim de completar a base fornecida pelos artigos 60.° CE e 301.° CE, de forma a permitir a adopção de medidas não apenas relativamente a países terceiros mas também contra indivíduos e entidades não estatais que não tenham necessariamente ligações com o governo ou o regime desses países, num caso em que o Tratado CE não prevê os poderes de acção exigidos para esse efeito.

70      Ao proceder desta forma, a Comunidade pôde adaptar‑se à evolução da prática internacional, que consiste, de ora em diante, em adoptar «sanções inteligentes» contra indivíduos que constituem uma ameaça para a segurança internacional, e não contra populações inocentes.

71      O Conselho sustenta que as condições em que recorreu, no presente caso, ao artigo 308.° CE não são diferentes daquelas em que esta disposição foi utilizada, no passado, para realizar, no funcionamento do mercado comum, um dos objectivos do Tratado CE, sem que o referido Tratado tenha previsto os poderes de acção exigidos para esse efeito. Invoca, nesse sentido:

–        No domínio da política social, as diversas directivas que, com base no artigo 235.° do Tratado CE, completado por vezes pelo artigo 100.° do Tratado CE (actual artigo 94.° CE), alargaram o princípio da igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos, conforme previsto pelo artigo 119.° do Tratado CE (os artigos 117.° a 120.° do Tratado CE foram substituídos pelos artigos 136.° CE a 143.° CE), a fim de o erigir a princípio geral de igualdade de tratamento em todos os domínios onde pudessem subsistir discriminações potenciais e para dele beneficiarem os trabalhadores independentes, incluindo do sector agrícola, designadamente, a Directiva 76/207/CEE do Conselho, de 9 de Fevereiro de 1976, relativa à concretização do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção profissionais e às condições de trabalho (JO L 39, p. 40; EE 05 F2 p. 70), a Directiva 79/7/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social (JO 1979, L 6, p. 24; EE 05 F2 p. 174), a Directiva 86/378/CEE do Conselho, de 24 de Julho de 1986, relativa à aplicação do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres aos regimes profissionais de segurança social (JO L 225, p. 40), e a Directiva 86/613/CEE do Conselho, de 11 de Dezembro de 1986, relativa à aplicação do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres que exerçam uma actividade independente incluindo a actividade agrícola, bem como à protecção da maternidade (JO L 359, p. 56);

–        No domínio da livre circulação de pessoas, os diversos actos que, com base no artigo 235.° do Tratado CE e do artigo 51.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 42.° CE), tornaram extensivos aos trabalhadores independentes, aos membros da sua família e aos estudantes os direitos reconhecidos aos trabalhadores assalariados que se deslocam no interior da Comunidade, designadamente, o Regulamento (CEE) n.° 1390/81 do Conselho, de 12 de Maio de 1981, que torna extensivo aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família o Regulamento (CEE) n.° 1408/71 relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade (JO L 143, p. 1);

–        Mais recentemente, o Regulamento (CE) n.° 1035/97 do Conselho, de 2 de Junho de 1997, que cria um Observatório Europeu do Racismo e da Xenofobia (JO L 151, p. 1), adoptado com base no artigo 213.° do Tratado CE (actual artigo 284.° CE) e no artigo 235.° do Tratado CE.

72      O próprio Tribunal de Justiça reconheceu a legalidade desta prática (acórdão de 5 de Dezembro de 1989, Delbar, C‑114/88, Colect., p. 4067).

73      Mais do que isso, o legislador comunitário já recorreu, no passado, à base legal do artigo 235.° do Tratado CE no domínio das sanções. A este respeito, o Conselho expõe que, antes da introdução, no Tratado CE, dos artigos 301.° CE e 60.° CE, diversos regulamentos do Conselho que impunham sanções comerciais tiveram por base o artigo 113.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 133.° CE) [v., por exemplo, o Regulamento (CEE) n.° 596/82 do Conselho, de 15 de Março de 1982, que modifica o regime de importação de determinados produtos originários da União Soviética (JO L 72, p. 15), o Regulamento (CEE) n.° 877/82 do Conselho, de 16 de Abril de 1982, que suspende a importação de quaisquer produtos originários da Argentina (JO L 102, p. 1), e o Regulamento (CEE) n.° 3302/86 do Conselho, de 27 de Outubro de 1986, que suspende a importação de moedas de ouro da República da África do Sul (JO L 305, p. 11)]. Contudo, quando essas medidas excedessem o âmbito de aplicação da política comercial comum ou dissessem respeito a pessoas singulares ou colectivas estabelecidas na Comunidade, tiveram igualmente por base o artigo 235.° do Tratado CE. Foi esse o caso, em particular, do Regulamento (CEE) n.° 3541/92 do Conselho, de 7 de Dezembro de 1992, que proíbe que sejam satisfeitos os pedidos do Iraque no que se refere aos contratos e transacções cuja realização foi afectada pela Resolução 661 (1990) do Conselho de Segurança das Nações Unidas e pelas resoluções conexas (JO L 361, p. 1), cujo artigo 2.° dispõe que «[é] proibido satisfazer, ou tomar quaisquer disposições no sentido de satisfazer, pedidos apresentados por […] [q]ualquer pessoa singular ou colectiva no Iraque ou que actue por intermédio de uma pessoa singular ou colectiva no Iraque».

74      Em resposta às mesmas questões escritas do Tribunal de Primeira Instância, a Comissão alega que a execução de sanções impostas pelo Conselho de Segurança podia estar, no todo ou em parte, abrangida pelo âmbito de aplicação do Tratado CE, quer ao abrigo da política comercial comum quer ao abrigo do mercado interno.

75      No presente caso, a Comissão sustenta, remetendo para o considerando 4 do regulamento impugnado, que as medidas em causa eram necessárias para garantir uma aplicação e uma interpretação uniformes das restrições aos movimentos de capitais postas em prática em conformidade com as resoluções em causa do Conselho de Segurança, de forma a preservar a livre circulação de capitais na Comunidade e a evitar distorções de concorrência.

76      Por outro lado, a Comissão entende que a defesa da segurança internacional, tanto no exterior como no interior da União, se deve considerar inscrita no quadro geral das disposições do Tratado CE. A este respeito, a Comissão remete, por um lado, para os artigos 3.° UE e 11.° UE e, por outro, para o preâmbulo do Tratado CE, no qual as partes contratantes confirmaram «a solidariedade que liga a Europa e os países ultramarinos, […] em conformidade com os princípios da Carta das Nações Unidas», e se declararam determinadas a «consolidar […] a defesa da paz e da liberdade». Daqui a Comissão infere um «objectivo geral fixado à Comunidade de defender a paz e a segurança», do qual emanam especificamente os artigos 60.° CE e 301.° CE, ao mesmo tempo que são manifestações específicas da competência comunitária na regulação dos movimentos de capitais internos e externos.

77      Não conferindo as disposições do título III, capítulo 4, do Tratado CE, relativas aos movimentos de capitais, nenhum poder particular à Comunidade, o artigo 308.° CE foi considerado, no presente caso, base jurídica complementar para garantir que a Comunidade possa impor as restrições em causa, designadamente em relação aos particulares, em conformidade com a posição comum adoptada pelo Conselho.

78      Na audiência, o Reino Unido descreveu o objectivo comunitário prosseguido pela adopção do regulamento impugnado como sendo a aplicação uniforme, no interior da Comunidade, de obrigações relativas a restrições aos movimentos de capitais, impostas aos Estados‑Membros pelo Conselho de Segurança.

79      O Reino Unido salienta que a criação de um mercado interno no domínio dos movimentos de capitais é um dos objectivos da Comunidade enunciados no artigo 3.° CE. Considera que a aplicação uniforme de todas as restrições à livre circulação de capitais no mercado constitui um aspecto essencial da criação de um mercado interno.

80      Se, pelo contrário, a execução das resoluções em causa do Conselho de Segurança não tivesse sido objecto de medidas adoptadas a nível comunitário, isso teria criado, segundo o Reino Unido, um risco de divergências na aplicação do congelamento dos haveres entre Estados‑Membros. Se os Estados‑Membros tivessem executado essas resoluções individualmente, teriam inevitavelmente surgido diferentes interpretações sobre o alcance das obrigações que lhes incumbem, que teriam criado disparidades no domínio da livre circulação de capitais entre os Estados‑Membros, o que teria provocado um risco de distorção da concorrência.

81      Além disso, o Reino Unido sustenta que não se pode considerar que as medidas destinadas a congelar os fundos dos particulares, com o objectivo de interromper as relações económicas com organizações terroristas internacionais, em vez de com países terceiros, alargam o «âmbito de competências da Comunidade para além do quadro geral resultante do conjunto das disposições do Tratado», segundo os termos do parecer 2/94, n.° 64, supra. Em conformidade com o quadro do Tratado, a Comunidade é competente para adoptar medidas que se destinam a regulamentar os movimentos de capitais, designadamente, tomando medidas contra os particulares. Consequentemente, se é verdade que as medidas destinadas a regulamentar os movimentos de capitais de particulares, com o objectivo de interromper as relações económicas com organizações terroristas internacionais, estão abrangidas por um domínio para o qual o Tratado CE não conferiu poderes específicos às instituições, e se é igualmente verdade que essas medidas exigem o recurso ao artigo 308.° CE, não se pode considerar que estas vão além do quadro geral do Tratado.

82      O Reino Unido sustenta que o recurso ao artigo 308.° CE nas circunstâncias do presente caso não é diferente da utilização que foi feita dessa disposição em situações, designadamente no domínio da política social, em que esse artigo serviu para alcançar outros objectivos da Comunidade quando o Tratado não fornecia uma base jurídica precisa (v. n.° 71, supra).

83      Na audiência, o recorrente contestou a competência do Conselho para adoptar o regulamento impugnado com base nos artigos 60.° CE, 301.° CE e 308.° CE.

84      Por um lado, o recurso aos artigos 60.° CE e 301.° CE não é permitido no presente caso, uma vez que o regulamento impugnado prevê a adopção de medidas contra particulares e não contra países terceiros.

85      Por outro lado, também não é permitido o recurso ao artigo 308.° CE, uma vez que o regulamento impugnado não prossegue a realização de um qualquer objectivo do Tratado CE, mas unicamente a realização de objectivos em matéria de PESC, que são abrangidos pelo Tratado UE. Em particular, o congelamento dos haveres dos interessados não tem relação real e efectiva com o objectivo de «evitar distorções de concorrência», referido no considerando 4 do regulamento impugnado (acórdão do Tribunal de Justiça de 5 de Outubro de 2000, Alemanha/Parlamento e Conselho, C‑376/98, Colect., p. I‑8419, n.os 84 e 85).

86      A este respeito, o recorrente alega, mais particularmente, que não basta que uma medida se destine à realização de um objectivo do Tratado UE para que possa ser adoptada pela Comunidade com base no artigo 308.° CE. Assim, no parecer 2/94, referido no n.° 64, supra, o Tribunal de Justiça considerou que essa disposição não permitia a adesão da Comunidade à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), apesar de o objectivo do respeito dos direitos do homem estar expressamente mencionado no Tratado UE. Consequentemente, o recorrente convida o Tribunal de Primeira Instância a rejeitar a interpretação lata do artigo 308.° CE, proposta pelo Conselho e pela Comissão, que teria por efeito, segundo o recorrente, conferir a essa disposição um alcance potencialmente ilimitado.

 Apreciação do Tribunal de Primeira Instância

87      Diversamente do Regulamento n.° 467/2001, o regulamento impugnando tem por base legal não apenas os artigos 60.° CE e 301.° CE mas igualmente o artigo 308.° CE. Nisso, ele reflecte a evolução da situação internacional no âmbito da qual se inscreveram, sucessivamente, as sanções decretadas pelo Conselho de Segurança e executadas pela Comunidade.

88      Adoptada no âmbito das acções empreendidas para fins de repressão do terrorismo internacional, considerada essencial para a manutenção da paz e da segurança internacionais (v. sétimo considerando), a Resolução 1333 (2000) do Conselho de Segurança não deixava, não obstante, de visar especificamente o regime dos talibãs que, na época, controlava a maior parte do território afegão e dava refúgio e apoio a Oussama ben Laden, bem como aos seus associados.

89      É precisamente essa ligação expressamente estabelecida com o território e o regime dirigente de um país terceiro que levou o Conselho a considerar que o Regulamento n.° 467/2001 podia ter por base jurídica os artigos 60.° CE e 301.° CE. Esta consideração deve ser aprovada, pois, no texto dessas disposições, nada permite excluir a adopção de medidas restritivas que afectem directamente indivíduos ou organizações, quando essas medidas visem efectivamente reduzir, total ou parcialmente, as relações económicas com um ou vários países terceiros.

90      Como o Conselho salientou com razão, as medidas previstas no Regulamento n.° 467/2001 estavam abrangidas pelo que se convencionou chamar «sanções inteligentes» (smart sanctions), que surgiram na prática da ONU durante os anos 90. Essas sanções substituem as medidas clássicas de embargo comercial geral, dirigidas contra um país, por medidas mais específicas e selectivas, de modo a reduzir os sofrimentos infligidos à população civil do país em causa, ao mesmo tempo que impõem verdadeiras sanções ao regime visado e aos seus dirigentes. A prática das instituições comunitárias evoluiu no mesmo sentido, tendo o Conselho considerado, sucessivamente, que os artigos 60.° CE e 301.° CE lhe permitiam tomar medidas restritivas contra entidades ou pessoas que controlam fisicamente uma parte do território de um país terceiro e contra entidades ou pessoas que controlam efectivamente o aparelho governamental de um país terceiro, bem como contra pessoas e entidades associadas a estes últimos e que lhes dão apoio económico.

91      Esta interpretação, que não é contrária à letra dos artigos 60.° CE e 301.° CE, é justificada tanto por considerações de eficácia como por preocupações de ordem humanitária.

92      Contudo, a Resolução 1390 (2002) do Conselho de Segurança foi adoptada, em 16 de Janeiro de 2002, depois da queda do regime dos talibãs, consecutiva à intervenção armada da coligação internacional no Afeganistão, desencadeada em Outubro de 2001. Consequentemente, embora ainda vise expressamente os talibãs, já não visa o seu regime destituído, mas sim directamente Oussama ben Laden, a rede Al‑Qaida e as pessoas e entidades a ele associadas.

93      A inexistência de qualquer ligação entre as sanções a adoptar ao abrigo dessa resolução e o território ou o regime dirigente de um país terceiro, já indicada no ponto 2 da exposição de motivos da proposta de regulamento do Conselho apresentada pela Comissão em 6 de Março de 2002, que está na origem do regulamento impugnado [documento COM (2002) 117 final], foi expressamente admitida pelo Conselho na audiência, pelo menos no que diz respeito às pessoas e entidades que não se encontravam no Afeganistão nessa época.

94      Na falta dessa ligação, o Conselho e a Comissão consideraram que os artigos 60.° CE e 301.° CE não constituíam, por si sós, uma base jurídica suficiente para permitir a adopção do regulamento impugnado. Estas considerações devem ser aprovadas.

95      Com efeito, o artigo 60.°, n.° 1, CE dispõe que o Conselho, em conformidade com o procedimento previsto no artigo 301.° CE, pode tomar, «relativamente aos países terceiros em causa», as medidas urgentes necessárias em matéria de movimentos de capitais e de pagamentos. O artigo 301.° CE prevê expressamente a possibilidade de uma acção da Comunidade que vise interromper ou reduzir, total ou parcialmente, as relações económicas «com um ou mais países terceiros».

96      Por outro lado, o facto de essas disposições autorizarem a adopção de «sanções inteligentes» não apenas contra um país terceiro enquanto tal mas também contra dirigentes de um país terceiro e indivíduos e entidades que estão associados a esses dirigentes ou controlados directa ou indirectamente por eles (v. n.os 89 a 91, supra) não permite considerar que esses indivíduos e entidades possam ainda ser visados quando o regime dirigente do país terceiro em causa tenha desaparecido. Nestas circunstâncias, com efeito, já não existe ligação suficiente entre esses indivíduos ou entidades e um país terceiro.

97      Daqui resulta que, de qualquer forma, os artigos 60.° CE e 301.° CE não constituem, por si só, uma base jurídica suficiente para servir de fundamento ao regulamento impugnado.

98      Por outro lado, contrariamente à posição expressa pela Comissão na proposta de regulamento do Conselho que está na origem do regulamento impugnado (v. n.° 93, supra), o Conselho considerou que o artigo 308.° CE também não constituía, por si só, uma base jurídica adequada para permitir a adopção do referido regulamento. Estas considerações devem igualmente ser aprovadas.

99      A este respeito, deve recordar‑se que, segundo a jurisprudência (acórdão do Tribunal de Justiça de 26 de Março de 1987, Comissão/Conselho, 45/86, Colect., p. 1493, n.° 13), resulta dos próprios termos do artigo 308.° CE que o recurso a este artigo como base jurídica de um acto só se justifica se nenhuma outra disposição do Tratado conferir às instituições comunitárias a competência necessária para adoptar esse acto. Nessa situação, o artigo 308.° CE permite às instituições agir com vista a realizar um dos objectivos da Comunidade, não obstante a falta de uma disposição que lhes confira a competência necessária para o fazer.

100    Quanto à primeira condição de aplicabilidade do artigo 308.° CE, é pacífico que nenhuma disposição do Tratado CE prevê a adopção de medidas, do tipo das previstas pelo regulamento impugnado, que visem a luta contra o terrorismo internacional e, mais particularmente, a imposição de sanções económicas e financeiras, como o congelamento de fundos, contra indivíduos e entidades suspeitos de contribuírem para o seu financiamento, sem estabelecer qualquer ligação com o território ou o regime dirigente de um país terceiro. Esta primeira condição está, portanto, preenchida no caso vertente.

101    Quanto à segunda condição de aplicabilidade do artigo 308.° CE, em conformidade com a jurisprudência referida no n.° 99, supra, é necessário, para que esteja preenchida no presente caso, que a luta contra o terrorismo internacional e, mais particularmente, a imposição de sanções económicas e financeiras, como o congelamento de fundos, contra indivíduos e entidades suspeitos de contribuírem para o seu financiamento, possam estar ligadas a um dos objectivos atribuídos pelo Tratado à Comunidade.

102    No caso vertente, o preâmbulo do regulamento impugnado é particularmente lacónico sobre esta questão. Quando muito, o Conselho, no considerando 4 deste regulamento, afirmou que as medidas necessárias nos termos da Resolução 1390 (2002) e da Posição Comum 2002/402 estavam «abrangidas pelo âmbito de aplicação do Tratado» e que era necessário adoptar legislação comunitária «especialmente para evitar distorções de concorrência».

103    Quanto à petição de princípio segundo a qual as medidas em causa estão «abrangidas pelo Tratado», impõe‑se, pelo contrário, concluir de imediato que nenhum dos objectivos do Tratado, tal como são explicitamente enunciados nos artigos 2.° CE e 3.° CE, parece susceptível de ser realizado pelas medidas em causa.

104    Em particular, diversamente das medidas previstas contra determinadas pessoas singulares ou colectivas estabelecidas na Comunidade pelo Regulamento n.° 3541/92, invocado pelo Conselho em apoio da sua tese (v. n.° 73, supra), as medidas previstas pelo regulamento impugnado não podiam basear‑se no objectivo que visa o estabelecimento de uma política comercial comum [artigo 3.°, n.° 1, alínea b), CE], no âmbito do qual foi declarado que a Comunidade podia adoptar medidas de embargo comercial ao abrigo do artigo 133.° CE, uma vez que as relações comerciais da Comunidade com um país terceiro não estão em causa no presente caso.

105    Quanto ao objectivo que visa o estabelecimento de um regime que assegure que a concorrência não seja falseada no mercado interno [artigo 3.° , n.° 1, alínea g), CE], a afirmação de um risco de distorção da concorrência, que o regulamento impugnado, segundo o seu preâmbulo, tinha por objectivo prevenir, não é convincente.

106    As regras de concorrência do Tratado CE destinam‑se às empresas e aos Estados‑Membros quando estes violem a igualdade concorrencial entre as empresas (v., quanto ao artigo 87.° CE, acórdão do Tribunal de Justiça de 2 de Julho de 1974, Itália/Comissão, 173/73, Colect., p. 357, n.° 26, e, quanto ao artigo 81.° CE, acórdão do Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 1984, Hydrotherm, 170/83, Recueil, p. 2999, n.° 11).

107    Ora, no presente caso, por um lado, não se pretende que os indivíduos ou as entidades visadas pelo regulamento impugnado o sejam enquanto empresas na acepção das regras da concorrência do Tratado CE.

108    Por outro lado, não é adiantada nenhuma explicação que permita compreender como é que a concorrência entre as empresas poderia ser afectada pela execução, a nível da Comunidade ou dos seus Estados‑Membros, de medidas restritivas específicas impostas contra determinadas pessoas e entidades pela Resolução 1390 (2002) do Conselho de Segurança.

109    As considerações que antecedem não são postas em causa pela ligação estabelecida, tanto pela Comissão, na sua resposta escrita às questões do Tribunal, como pelo Reino Unido, na audiência, entre o objectivo referido no artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE e o objectivo que visa o estabelecimento de um mercado interno caracterizado, designadamente, pela supressão, entre os Estados‑Membros, dos obstáculos à livre circulação de capitais [artigo 3.°, n.° 1, alínea c), CE] (v., designadamente, n.os 75 e 78 a 80, supra).

110    A este respeito, deve recordar‑se que a Comunidade não tem nenhuma competência explícita para impor restrições aos movimentos de capitais e aos pagamentos. Em contrapartida, o artigo 58.° CE admite que os Estados‑Membros tomem medidas que tenham esse efeito quando tal seja e continue a ser justificado para alcançar os objectivos previstos por esse artigo, designadamente por motivos ligados à ordem pública ou à segurança pública (v., por analogia com o artigo 30.° CE, acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 1991, Richardt, C‑367/89, Colect., p. I‑4621, n.° 19 e jurisprudência referida). Englobando o conceito de segurança pública tanto a segurança interna como a segurança externa do Estado, os Estados‑Membros podem, assim, em princípio, adoptar, ao abrigo do artigo 58.°, n.° 1, alínea b), CE, medidas do tipo das previstas no regulamento impugnado. Desde que essas medidas sejam conformes com o artigo 58.°, n.° 3, CE e que não ultrapassem o que é necessário para alcançar o objectivo referido, elas são compatíveis com o regime da livre circulação de capitais e de pagamentos e com o regime da livre concorrência instaurados pelo Tratado CE.

111    Deve acrescentar‑se que se a simples constatação de um risco de disparidades entre as regulamentações nacionais assim como do risco abstracto de entraves à livre circulação de capitais ou de distorções da concorrência susceptíveis de daí resultar fosse suficiente para justificar a escolha do artigo 308.° CE, conjugado com o artigo 3.°, n.° 1, alíneas c) e g), CE, como base jurídica de um regulamento, não só as disposições do capítulo 3 do título VI do Tratado CE, relativas à aproximação das legislações, ficariam privadas de efeito útil mas também a fiscalização jurisdicional do respeito da base jurídica poderia ficar privada de qualquer eficácia. O tribunal comunitário ficaria então impedido de exercer a função, que lhe incumbe por força do artigo 220.° CE, de garantir o respeito do direito na interpretação e na aplicação do Tratado (v., neste sentido, a propósito do artigo 100.°‑A do Tratado CE, que passou, após alteração, a artigo 95.° CE, acórdão Alemanha/Parlamento e Conselho, referido no n.° 85, supra, n.os 84, 85 e 106 a 108 e jurisprudência referida).

112    De qualquer forma, os elementos de apreciação submetidos ao Tribunal não permitem considerar que o regulamento impugnado contribui efectivamente para prevenir um risco de entraves à livre circulação de capitais ou de distorções sensíveis da concorrência.

113    O Tribunal considera, em particular, que, contrariamente ao que a Comissão e o Reino Unido sustentam, a execução, pelos Estados‑Membros, das resoluções em causa do Conselho de Segurança, em vez de pela Comunidade, não é susceptível de provocar um risco plausível e sério de divergências na aplicação do congelamento de fundos entre os Estados‑Membros. Por um lado, com efeito, essas resoluções contêm definições e prescrições claras, precisas e detalhadas, que não deixam praticamente espaço a interpretação. Por outro lado, a importância das medidas que reclamam, para a sua execução, não é de tal ordem que se deva recear esse risco.

114    Nestas circunstâncias, as medidas em causa no caso vertente não podem basear‑se no objectivo referido no artigo 3.°, n.° 1, alíneas c) e g), CE.

115    Além disso, os diversos exemplos de recurso à base jurídica complementar do artigo 308.° CE, invocados pelo Conselho (v. n.os 71 e 73, supra), não se revelam pertinentes no presente caso. Por um lado, com efeito, não resulta desses exemplos que as condições de aplicação do artigo 308.° CE, em particular a relativa à realização de um objectivo da Comunidade, não estavam preenchidas nos casos específicos em questão. Por outro lado, os actos jurídicos em causa nesses exemplos não foram objecto de contestação, a este respeito, no Tribunal de Justiça, designadamente, no processo que deu lugar ao acórdão Delbar, referido no n.° 72, supra. Em qualquer hipótese, segundo jurisprudência assente, uma simples prática do Conselho não é susceptível de derrogar normas do Tratado e não pode, portanto, criar um precedente que vincule as instituições da Comunidade quanto à escolha da base jurídica correcta (acórdão do Tribunal de Justiça de 23 de Fevereiro de 1988, Reino Unido/Conselho, 68/86, Colect., p. 855, n.° 24, e parecer 1/94 do Tribunal de Justiça, de 15 de Novembro de 1994, Colect., p. I‑5267, n.° 52).

116    Resulta do exposto que o combate ao terrorismo internacional, e, mais particularmente, a imposição de sanções económicas e financeiras, como o congelamento de fundos, contra indivíduos e entidades suspeitos de contribuírem para o seu financiamento, não pode estar ligada a nenhum dos objectivos explicitamente atribuídos à Comunidade pelos artigos 2.° CE e 3.° CE.

117    Além dos objectivos do Tratado explicitamente enunciados nos artigos 2.° CE e 3.° CE, a Comissão invocou igualmente, na sua resposta escrita às questões do Tribunal de Primeira Instância, um objectivo da Comunidade de ordem mais geral, que teria justificado, no presente caso, o recurso à base jurídica do artigo 308.° CE. Assim, a Comissão infere do preâmbulo do Tratado CE um «objectivo geral fixado à Comunidade de defender a paz e a segurança» internacionais (v. n.° 76, supra). Esta tese não pode ser acolhida.

118    Contrariamente ao que sustenta a Comissão, com efeito, não resulta de forma alguma do preâmbulo do Tratado CE que este prossiga um objectivo mais vasto de defesa da paz e da segurança internacionais. Se o referido Tratado tem incontestavelmente por finalidade primeira pôr fim aos conflitos do passado entre os povos europeus, através do estabelecimento de uma «união cada vez mais estreita» entre eles, é sem qualquer referência à execução de uma política externa de segurança comum. Esta faz exclusivamente parte dos objectivos do Tratado UE que, como o seu preâmbulo sublinha, visa transpor uma «nova fase no processo de integração europeia iniciado com a instituição das Comunidades Europeias».

119    Embora se possa afirmar que esse objectivo da União deve inspirar a acção da Comunidade no domínio das suas competências próprias, como a política comercial comum, ele não basta, pelo contrário, para servir de base à adopção de medidas ao abrigo do artigo 308.° CE, sobretudo nos domínios em que as competências comunitárias são marginais e taxativamente enumeradas pelo Tratado.

120    Por último, não se afigura possível interpretar o artigo 308.° CE no sentido de autorizar de forma geral as instituições a basearem‑se nesta disposição para realizar um dos objectivos do Tratado UE. Em particular, o Tribunal de Primeira Instância considera que a coexistência da União e da Comunidade, enquanto ordens jurídicas integradas mas distintas, bem como a arquitectura constitucional dos pilares, pretendidas pelos autores dos Tratados actualmente em vigor, não autorizam nem as instituições nem os Estados‑Membros a basearem‑se na «cláusula de flexibilidade» do artigo 308.° CE para obviarem à inexistência de uma competência da Comunidade necessária à realização de um objectivo da União. Decidir de outra forma equivaleria, em última instância, a possibilitar a aplicação dessa disposição a todas as medidas abrangidas pela PESC e pela cooperação policial e judiciária em matéria penal (JAI), pelo que a Comunidade poderia sempre agir para alcançar os objectivos dessas políticas. Esse resultado privaria numerosas disposições do Tratado UE do seu âmbito de aplicação e seria incoerente com a instituição de instrumentos próprios da PESC (estratégias comuns, acções comuns, posições comuns) e da JAI (posições comuns, decisões, decisões‑quadro).

121    Há, portanto, que concluir que, tal como os artigos 60.° CE e 301.° CE, considerados isoladamente, o artigo 308.° CE não constitui, por si só, uma base jurídica suficiente para servir de fundamento ao regulamento impugnado.

122    Tanto nos considerandos do regulamento impugnado como na sua resposta escrita às questões do Tribunal de Primeira Instância, o Conselho alega, contudo, que o artigo 308.° CE, utilizado em conjugação com os artigos 60.° CE e 301.° CE, lhe confere o poder para adoptar um regulamento comunitário que visa a luta contra o financiamento do terrorismo internacional, empreendida pela União e pelos seus Estados‑Membros ao abrigo da PESC, e que impõe, para esse fim, sanções económicas e financeiras contra particulares, sem estabelecer qualquer ligação com o território ou com o regime dirigente de um país terceiro. Estas considerações merecem ser aprovadas.

123    Neste contexto, com efeito, há que ter em conta a ponte especificamente estabelecida, quando da revisão de Maastricht, entre as acções da Comunidade que estabeleçam sanções económicas ao abrigo dos artigos 60.° CE e 301.° CE e os objectivos do Tratado UE em matéria de relações externas.

124    Efectivamente, há que concluir que os artigos 60.° CE e 301.° CE são disposições inteiramente particulares do Tratado CE, na medida em que prevêem expressamente que uma acção da Comunidade possa ser necessária para realizar não um dos objectivos da Comunidade, tal como são fixados pelo Tratado CE, mas um dos objectivos especificamente atribuídos à União pelo artigo 2.° UE, isto é, a execução de uma política externa e de segurança comum.

125    No âmbito dos artigos 60.° CE e 301.° CE, a acção da Comunidade é, assim, na realidade, uma acção da União realizada com base no pilar comunitário, após adopção pelo Conselho de uma posição comum ou de uma acção comum ao abrigo da PESC.

126    Deve observar‑se, a esse respeito, que, nos termos do artigo 3.° UE, a União dispõe de um quadro institucional único que assegura a coerência e a continuidade das acções com vista a alcançar os seus objectivos, respeitando e desenvolvendo simultaneamente o acervo comunitário. A União assegura, em especial, a coerência global da sua acção externa no âmbito das políticas em matéria de relações externas, de segurança, de economia e de desenvolvimento. O Conselho e a Comissão têm a responsabilidade de assegurar essa coerência, cooperando para esse efeito. Asseguram, cada um de acordo com as suas competências, a execução dessas políticas.

127    Ora, da mesma maneira que os poderes de acção previstos pelo Tratado CE se podem revelar insuficientes para permitir às instituições agir para realizar, no funcionamento do mercado comum, um dos objectivos da Comunidade, também os poderes de sanções económicas e financeiras previstos pelos artigos 60.° CE e 301.° CE, isto é, a interrupção ou a redução das relações económicas com um ou vários países terceiros, designadamente no que diz respeito aos movimentos de capitais e aos pagamentos, se podem revelar insuficientes para permitir às instituições realizar o objectivo da PESC, incluído no Tratado UE, em vista do qual essas disposições foram especificamente inseridas no Tratado CE.

128    Há, assim, que admitir que, no contexto particular considerado pelos artigos 60.° CE e 301.° CE, o recurso à base jurídica complementar do artigo 308.° CE se justifica, em nome da exigência de coerência enunciada no artigo 3.° UE, quando essas disposições não conferem às instituições comunitárias a competência necessária, em matéria de sanções económicas e financeiras, para agir com vista a realizar o objectivo prosseguido pela União e pelos seus Estados‑Membros no âmbito da PESC.

129    Assim, pode acontecer que uma posição comum ou uma acção comum adoptadas ao abrigo da PESC requeiram da Comunidade medidas de sanções económicas e financeiras que vão além das explicitamente previstas pelos artigos 60.° CE e 301.° CE, que consistem na interrupção ou na redução das relações económicas com um ou vários países terceiros, designadamente no que diz respeito aos movimentos de capitais e aos pagamentos.

130    Em tal hipótese, o recurso à base jurídica cumulativa dos artigos 60.° CE, 301.° CE e 308.° CE permite realizar, em matéria de sanções económicas e financeiras, o objectivo prosseguido no âmbito da PESC pela União e pelos seus Estados‑Membros, tal como vem expresso numa posição comum ou numa acção comum, não obstante a falta de atribuição expressa à Comunidade dos poderes de sanções económicas e financeiras que visem indivíduos ou entidades que não apresentam uma ligação suficiente com um país terceiro determinado.

131    No caso vertente, a luta contra o terrorismo internacional e o seu financiamento faz incontestavelmente parte dos objectivos da União ao abrigo da PESC, tal como são definidos no artigo 11.° UE, mesmo quando ela não visa especificamente os países terceiros ou os seus dirigentes.

132    Além disso, é pacífico que a Posição Comum 2002/402 foi adoptada pelo Conselho, por unanimidade, no âmbito dessa luta e que ela prescreve a imposição, pela Comunidade, de sanções económicas e financeiras contra particulares sob suspeita de contribuírem para o financiamento do terrorismo internacional, sem estabelecer qualquer ligação com o território ou com o regime dirigente de um país terceiro.

133    Neste contexto, o recurso ao artigo 308.° CE, a fim de completar os poderes de sanções económicas e financeiras conferidos à Comunidade pelos artigos 60.° CE e 301.° CE, justifica‑se pela consideração de que, no mundo actual, os Estados já não podem ser considerados a única fonte de ameaça para a paz e para a segurança internacionais. Tal como a comunidade internacional, a União e o seu pilar comunitário não podem ser impedidos de se adaptarem a estas novas ameaças pela imposição de sanções económicas e financeiras não apenas contra países terceiros mas também contra pessoas, grupos, empresas ou entidades associadas que desenvolvam uma actividade terrorista internacional ou que atentem de outra forma contra a paz e a segurança internacionais.

134    Verifica‑se assim que, ao recorrer no presente caso à base jurídica complementar do artigo 308.° CE, o Conselho não alargou o domínio das competências da Comunidade para além do quadro geral resultante das disposições do Tratado e, em particular, das que definem as missões e as acções da Comunidade.

135    É, portanto, com razão que as instituições e o Reino Unido sustentam que o Conselho era competente para adoptar o regulamento impugnado, que aplica na Comunidade as sanções económicas e financeiras previstas pela Posição Comum 2002/402, com o fundamento resultante da conjugação dos artigos 60.° CE, 301.° CE e 308.° CE.

3.     Quanto aos três fundamentos relativos à violação dos direitos fundamentais do recorrente

 Argumentos das partes

136    Na parte da sua argumentação referente aos factos, o recorrente declara que é um homem de negócios internacional, nacional da Arábia Saudita, e que tem importantes interesses financeiros na União Europeia. Desde a entrada em vigor do Regulamento n.° 2062/2001, e depois do regulamento impugnado, os seus fundos e haveres na União Europeia foram congelados e viu‑se na incapacidade de gerir os seus negócios. A sua inclusão na lista do Anexo I do regulamento impugnado lesou, além disso, a sua reputação pessoal e profissional. O recorrente diz‑se vítima de um grave erro judiciário e afirma que nunca esteve envolvido em actividades terroristas nem em nenhuma forma de apoio financeiro a essas actividades, quer em ligação com Oussama ben Laden e com a Al‑Qaida quer de qualquer outro modo.

137    O recorrente acrescenta que foi igualmente alvo de medidas nacionais que ordenaram o congelamento dos seus fundos no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Suíça, medidas cuja legalidade contesta judicialmente. Em particular, interpôs um recurso de anulação (judicial review) contra a medida de congelamento dos seus fundos ordenada pelo Ministério das Finanças britânico. Numa audiência preliminar realizada no âmbito desse processo, o juiz da causa considerou que o argumento relativo à ilegalidade dessa medida não era manifestamente destituído de fundamento em direito nacional. Contudo, o Governo do Reino Unido sustentou que, devido ao efeito directo do direito comunitário, o processo intentado pelo recorrente a nível nacional só tinha interesse se ele obtivesse igualmente a anulação do regulamento impugnado. O recorrente supõe, por outro lado, que a informação com base na qual ele foi inscrito na lista do comité de sanções é a mesma que foi comunicada pelo Governo do Reino Unido no âmbito do processo nacional supramencionado.

138    Na parte da sua argumentação relativa ao direito, o recorrente salienta, a título preliminar, que, segundo a jurisprudência (acórdão do Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 1974, Nold/Comissão, 4/73, Colect., p. 283, n.° 13), os direitos fundamentais reconhecidos e garantidos pelas Constituições dos Estados‑Membros, e, em particular pela CEDH, são parte integrante da ordem jurídica comunitária.

139    Invoca, de seguida, em apoio dos seus pedidos, três fundamentos de anulação relativos, o primeiro, à violação do direito de ser ouvido, o segundo, à violação do direito fundamental ao respeito da propriedade e do princípio da proporcionalidade e, o terceiro, à violação do direito a uma fiscalização jurisdicional efectiva.

140    Segundo o recorrente, as resoluções do Conselho de Segurança invocadas pelo Conselho e pela Comissão não conferem a estas instituições o poder de violar estes direitos fundamentais sem justificarem essa violação perante o Tribunal de Primeira Instância, mediante a apresentação das provas necessárias. Enquanto ordem jurídica independente das Nações Unidas, regida por regras de direito que lhe são próprias, a União Europeia deve justificar as medidas que toma, reportando‑se aos seus próprios poderes e aos deveres que lhe incumbem em relação a indivíduos a que essa ordem se aplica.

141    No que respeita, mais particularmente, à violação alegada do direito de ser ouvido, o recorrente reconhece que, tendo em conta a sua própria natureza, a medida inicial de congelamento dos seus haveres não devia ser objecto de uma notificação prévia à sua execução.

142    Reivindica, contudo, o direito de ser ouvido pelo Conselho e pela Comissão, para obter a sua retirada da lista das pessoas e entidades visadas pelas sanções, ao abrigo do princípio geral do direito comunitário segundo o qual os destinatários de decisões das autoridades públicas que afectem de forma sensível os seus interesses devem poder apresentar utilmente o seu ponto de vista (acórdão do Tribunal de Justiça de 23 de Outubro de 1974, Transocean Marine Paint/Comissão, 17/74, Recueil, p. 1063, n.° 15; Colect., p. 463). O recorrente recorda que o respeito dos direitos de defesa, na qualidade de princípio de carácter fundamental, deve ser assegurado em todos os processos que possam afectar a pessoa em causa e ter para ela consequências desfavoráveis (acórdãos do Tribunal de Justiça de 17 de Outubro de 1989, Dow Benelux/Comissão, 85/87, Colect., p. 3137, e de 27 de Junho de 1991, Al‑Jubail Fertilizer e Saudi Arabian Fertilizer/Conselho, C‑49/88, Colect., p. I‑3187).

143    No presente caso, o regulamento impugnado viola claramente esses princípios fundamentais na medida em que permite ao Conselho congelar indefinidamente os fundos do recorrente sem lhe conceder qualquer possibilidade de ser ouvido sobre a realidade e a pertinência dos factos e circunstâncias alegados e sobre os elementos de prova acolhidos contra ele.

144    No que diz respeito, mais particularmente, à violação alegada do direito fundamental ao respeito da propriedade, tal como é garantido pelo artigo 1.° do Primeiro Protocolo adicional à CEDH e pelos princípios gerais do direito comunitário, bem como à violação alegada do princípio da proporcionalidade, o recorrente observa que o regulamento impugnado permite o congelamento dos seus fundos apenas com base na inclusão do seu nome na lista elaborada pelo comité de sanções, sem que as instituições comunitárias possam exercer o mínimo poder de apreciação das provas disponíveis e das considerações que podem justificar uma medida dessa natureza e sem que os interesses em causa tenham sido ponderados.

145    Na réplica, o recorrente salienta que, como as próprias instituições confessaram, elas não procederam a nenhuma ponderação dos interesses e não examinaram as provas de acusação. Além disso, não apresentaram ao Tribunal de Primeira Instância qualquer prova de acusação que demonstre que, se essa ponderação tivesse sido efectuada, ter‑se‑ia justificado congelar os haveres do recorrente. Nestas circunstâncias o Tribunal de Primeira Instância não tem qualquer fundamento para julgar se o regulamento impugnado justifica as medidas draconianas tomadas contra os bens do recorrente.

146    No que respeita, mais particularmente, à violação alegada do direito a uma fiscalização jurisdicional efectiva, o recorrente recorda que, no acórdão de 15 de Maio de 1986, Johnston (222/84, Colect., p. 1651, n.° 18), o Tribunal de Justiça reconheceu que este direito constitui um princípio geral de direito comunitário.

147    No presente caso, o regulamento impugnado não prevê qualquer possibilidade de uma fiscalização desse tipo, designadamente de uma fiscalização das provas acolhidas contra o recorrente, em violação desse princípio geral.

148    O recorrente acrescenta que se houvesse essa fiscalização, ele poderia demonstrar que as acusações de que foi alvo não têm fundamento.

149    Replicando, por outro lado, ao argumento do Conselho segundo o qual ele foi submetido a simples medidas administrativas e não a uma qualquer sanção penal ou confiscação dos seus bens susceptíveis de lhe valer a protecção do artigo 6.° da CEDH, o recorrente sublinha que foi acusado da forma mais séria de criminalidade, ou seja, estar envolvido numa organização terrorista responsável pelos atentados de 11 de Setembro de 2001, que a sua reputação foi arruinada e que os seus bens foram congelados sem limite de tempo nem de montante, e isso em circunstâncias nas quais, em primeiro lugar, o Conselho não examinou as provas fornecidas contra ele, em segundo lugar, o Conselho não tem a intenção de lhe dar a possibilidade de contestar o congelamento dos seus bens e não o pode fazer e, em terceiro lugar, o Conselho alega que o Tribunal de Primeira Instância não pode tomar medidas para averiguar se a decisão de congelar os seus haveres era correcta.

150    Segundo o recorrente, as instituições da Comunidade não se podem liberar da sua responsabilidade de respeitar os seus direitos fundamentais, refugiando‑se atrás de decisões do Conselho de Segurança, especialmente quando são as próprias decisões que não respeitam os direitos de defesa. Tratando‑se de um regulamento comunitário, o recorrente sustenta que tem o direito de beneficiar de uma fiscalização jurisdicional no âmbito da Comunidade. O facto de o Conselho sustentar que não tem qualquer poder de apreciação na matéria e que está obrigado a agir segundo as instruções da ONU demonstra precisamente o vício de que enferma o regulamento impugnado.

151    Na réplica, o recorrente acrescenta que procurou estabelecer directamente contacto com o comité de sanções, para o seu nome ser riscado da lista em causa. Foi‑lhe respondido que não eram aceites observações por parte de particulares e que as queixas relativas a sanções adoptadas a nível nacional deviam ser dirigidas ao órgão jurisdicional competente. Foi então que pediu ao Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita que o ajudasse a fazer valer os seus direitos no comité de sanções. Além disso, o recorrente efectuou diligências nos Estados Unidos, a fim de fazer valer os seus interesses no Office of Foreign Assets Control (OFAC). As instituições não podem, por isso, criticá‑lo por não ter tomado todas as medidas possíveis para conseguir o desbloqueio dos seus haveres.

152    Por último, o argumento segundo o qual o recorrente pôde intentar o presente processo não é válido, se o Tribunal não tiver a possibilidade de apreciar a justeza do recurso. Para responder às exigências de uma fiscalização jurisdicional efectiva, o Tribunal deve apreciar a justeza das provas que lhe foram apresentadas, ou afastar o regulamento impugnado, pelo facto de que ele não fornece uma base jurídica para um exame desse tipo.

153    A título principal, o Conselho e a Comissão, que remetem, designadamente, para o artigo 24.°, n.° 1, e para os artigos 25.°, 41.°, 48.°, n.° 2, e 103.° da Carta das Nações Unidas, alegam, em primeiro lugar, que, à semelhança dos Estados membros da ONU, a Comunidade é obrigada, por força do direito internacional, a dar execução, nos seus domínios de competência, às resoluções do Conselho de Segurança, em particular as adoptadas no âmbito do capítulo VII da Carta das Nações Unidas; em segundo lugar, alegam que a competência das instituições comunitárias na matéria é vinculada e que essas instituições não dispõem de nenhum poder discricionário autónomo nem de nenhuma margem de apreciação; em terceiro lugar, alegam que não podem, consequentemente, modificar o conteúdo dessas resoluções nem instituir mecanismos susceptíveis de dar lugar à modificação do seu conteúdo; e, em quarto lugar, que qualquer outro acordo internacional ou regra de direito interna susceptível de criar obstáculos a essa execução deve ser afastada.

154    A este respeito, o Conselho e a Comissão observam que o regulamento impugnado transpôs, para a ordem jurídica comunitária, as resoluções 1267 (1999), 1333 (2000) e 1390 (2002) do Conselho de Segurança, adoptadas ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, num primeiro momento, contra o regime dos talibãs do Afeganistão e, num segundo momento, em resposta às actividades terroristas ligadas aos atentados de 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque e em Washington, D. C. (Estados Unidos). Mais precisamente, tendo o nome do recorrente sido acrescentado, em 17 de Outubro de 2001, à lista elaborada pelo comité de sanções, o Regulamento n.° 2062/2001 foi modificado, para nele incluir, por sua vez, em conformidade com o artigo 10.° do Regulamento n.° 467/2001, a lista de pessoas cujos fundos foram congelados devido às suas ligações com os talibãs, com Oussama ben Laden e com a rede Al‑Qaida.

155    As instituições comunitárias tiveram assim por objectivo executar as obrigações que incumbem aos Estados‑Membros da Comunidade, nos termos do artigo 25.° da Carta das Nações Unidas, através da transposição automática, para a ordem jurídica comunitária, das listas de indivíduos ou de entidades elaboradas pelo Conselho de Segurança ou pelo comité de sanções, em conformidade com os procedimentos aplicáveis.

156    A este respeito, o Conselho e a Comissão salientam que, na sua qualidade de membros das Nações Unidas, os Estados‑Membros da Comunidade aceitaram aplicar sem reserva as decisões adoptadas em seu nome pelo Conselho de Segurança, no interesse superior da manutenção da paz e da segurança internacionais (v. artigo 24.°, n.° 1, e artigo 25.° da Carta das Nações Unidas). As obrigações que incumbem a um membro da ONU por força do capítulo VII da Carta das Nações Unidas prevalecem sobre todas as outras obrigações internacionais a que ele possa estar sujeito. O artigo 103.° da Carta permite assim afastar qualquer outra disposição do direito internacional convencional ou consuetudinário para aplicar as resoluções do Conselho de Segurança, criando dessa forma um «efeito de licitude».

157    Segundo as instituições, os direitos nacionais também não podem criar obstáculos às medidas de execução adoptadas em aplicação da Carta das Nações Unidas. Se um membro da ONU tivesse a possibilidade de modificar o conteúdo das resoluções do Conselho de Segurança, a uniformidade da aplicação destas, que é indispensável para garantir a sua eficácia, não poderia ser mantida.

158    Se bem que a própria Comunidade não seja membro da ONU, está obrigada a agir, nos seus domínios de competência, de forma a cumprir as obrigações que incumbem aos seus Estados‑Membros pelo facto de pertencerem às Nações Unidas. A este respeito, a Comissão observa que as competências da Comunidade devem ser exercidas no respeito do direito internacional (acórdãos do Tribunal de Justiça de 24 de Novembro de 1992, Poulsen e Diva Navigation, C‑286/90, Colect., p. I‑6019, n.° 9, e de 16 de Junho de 1998, Racke, C‑162/96, Colect., p. I‑3655, n.° 45). O Conselho e a Comissão invocam igualmente o acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 28 de Abril de 1998, Dorsch Consult/Conselho e Comissão (T‑184/95, Colect., p. II‑667). Se bem que esse acórdão dissesse respeito à instituição de um embargo comercial, medida de política comercial comum que faz parte, por força do artigo 133.° CE, da competência exclusiva da Comunidade, o Conselho e a Comissão consideram que o princípio que ele estabelece é igualmente válido no que diz respeito às restrições aos movimentos de capitais e aos pagamentos, adoptadas, como no presente caso, nos termos dos artigos 60.° CE e 301.° CE.

159    O Conselho generaliza esta tese, alegando que, quando a Comunidade age para executar obrigações que incumbem aos seus Estados‑Membros pelo facto de pertencerem à ONU, quer porque estes transferiram para ela as competências necessárias quer porque consideram que a sua intervenção é oportuna no plano político, deve considerar‑se, para todos os efeitos práticos, que esta se encontra na mesma posição que os membros da ONU, tendo em conta o artigo 48.°, n.° 2, da Carta das Nações Unidas.

160    Sob pena de violar as suas obrigações internacionais e as dos seus Estados‑Membros, a Comunidade não podia, consequentemente, segundo o Conselho e a Comissão, excluir determinados indivíduos da lista elaborada pelo comité de sanções, informá‑los previamente ou, de outro modo, autorizar um mecanismo de revisão no termo do qual determinadas pessoas podiam ser excluídas dessa lista. Na opinião do Conselho, isso teria, além disso, sido contrário ao dever de cooperação leal entre os Estados‑Membros e a Comunidade, enunciado no artigo 10.° CE.

161    O Conselho acrescenta que, mesmo que se devesse considerar que o regulamento impugnado viola os direitos fundamentais do recorrente, as circunstâncias em que foi adoptado excluem qualquer comportamento ilícito da sua parte, à luz do artigo 48.°, n.° 2, da Carta das Nações Unidas. Segundo essa instituição, quando a Comunidade adopta medidas para fins que correspondem ao desejo de os seus Estados‑Membros executarem as suas obrigações por força da Carta das Nações Unidas, ela beneficia forçosamente da protecção concedida pela Carta e, em particular, do «efeito de licitude». O Conselho considera que esse efeito se verifica relativamente aos direitos fundamentais que, como prevêem os instrumentos jurídicos internacionais adequados, podem ser suspensos temporariamente em caso de urgência.

162    De qualquer forma, o Conselho considera que a competência do Tribunal de Primeira Instância, no presente caso, deve ser limitada ao exame da questão de saber se as instituições cometeram um erro manifesto ao executar as obrigações enunciadas na Resolução 1390 (2002) do Conselho de Segurança. Qualquer exercício de competência para além desse limite, que equivale a uma fiscalização jurisdicional indirecta e selectiva das medidas vinculativas adoptadas pelo Conselho de Segurança no âmbito do seu papel de manutenção da paz e da segurança internacionais, causaria perturbações importantes nas relações internacionais da Comunidade e dos seus Estados‑Membros, seria contestável à luz do artigo 10.° CE e criaria o risco de minar um dos fundamentos da ordem internacional que os Estados instauraram depois de 1945. O Conselho considera que medidas dessa natureza não podem ser contestadas a nível nacional ou regional, mas unicamente no próprio Conselho de Segurança.

163    A Comissão considera, também ela, que qualquer decisão de suprimir ou de modificar a lista tal como foi adoptada pelo Conselho de Segurança poderia perturbar gravemente as relações internacionais da Comunidade e dos seus Estados‑Membros. Essa situação levaria a Comunidade a não cumprir a sua obrigação geral de respeito do direito internacional e os Estados‑Membros a não cumprir as suas obrigações específicas por força da Carta das Nações Unidas. Tal situação prejudicaria igualmente a aplicação uniforme das decisões do Conselho de Segurança, condição sine qua non da sua eficácia. A Comissão observa ainda que o princípio da cortesia internacional exige que a Comunidade execute essas medidas, quando estas se destinam a proteger todos os Estados contra ataques terroristas.

164    Isso exclui um exame, por parte do Tribunal de Primeira Instância, da compatibilidade do regulamento impugnado com os direitos invocados pelo recorrente. Mesmo na hipótese de esses direitos terem sido violados – quod non –, a Comunidade continuaria obrigada a executar as resoluções do Conselho de Segurança e, se ela deixasse de agir, os Estados‑Membros teriam a obrigação de o fazer.

165    A título subsidiário, caso o Tribunal decida proceder a um exame completo da procedência dos três fundamentos de anulação invocados pelo recorrente, o Conselho e a Comissão alegam que o regulamento impugnado não viola os direitos e as liberdades fundamentais conforme é alegado.

166    Em primeiro lugar, o regulamento impugnado não viola o direito de o recorrente ser ouvido.

167    No presente caso, com efeito, as instituições comunitárias não têm qualquer poder de investigação, qualquer margem de apreciação quanto aos factos e qualquer liberdade de apreciação política. Estão simplesmente obrigadas a executar as medidas adoptadas pelo Conselho de Segurança, a fim de garantir a paz e a segurança internacionais, sem estarem habilitadas a incluir um mecanismo de exame dessas medidas. O Conselho e a Comissão consideram, assim, que o direito de ser ouvido, que se impõe claramente no âmbito de procedimentos administrativos, não é aplicável em circunstâncias como as do presente caso.

168    Em segundo lugar, as medidas executadas pelo regulamento impugnado não violam nem o princípio da proporcionalidade nem o direito fundamental do recorrente ao respeito da sua propriedade, uma vez que esse direito não goza de uma protecção absoluta e que o seu exercício pode ser objecto de restrições justificadas por objectivos de interesse geral.

169    No presente caso, o interesse geral que reveste para a Comunidade e para os seus Estados‑Membros o respeito das obrigações impostas pelo Conselho de Segurança, de forma a que os haveres dos particulares não possam ser utilizados para promover o terrorismo, não pode ser mais claro. As medidas adoptadas pela Comunidade, que se limitam a executar as decisões vinculativas do Conselho de Segurança, foram ditadas pela importância desse objectivo e não instauraram um equilíbrio injusto entre as exigências que decorrem do interesse geral e as ligadas à protecção dos direitos fundamentais dos particulares. Nestas condições, o Conselho considera que as medidas em causa não podem ser consideradas inadequadas ou desproporcionadas, mesmo que sejam severas para o recorrente.

170    Na medida em que o recorrente parece, com efeito, criticar as instituições comunitárias por não terem previsto qualquer mecanismo de exame, a Comissão recorda que estas instituições não fizeram mais do que assegurar a execução das decisões do Conselho de Segurança, sem as poder modificar.

171    Na medida em que o recorrente sustenta que os meios utilizados para alcançar os objectivos são desproporcionados, a Comissão observa que essa acusação só pode ser alegada em relação às decisões do Conselho de Segurança.

172    Em terceiro lugar, quanto ao direito a uma fiscalização jurisdicional efectiva, o Conselho e a Comissão alegam designadamente que o recorrente pôde interpor no Tribunal de Primeira Instância o presente recurso ao abrigo do artigo 230.° CE.

173    Segundo o Conselho, a questão de saber qual é o alcance da fiscalização jurisdicional que é justificada ou apropriada no presente caso é uma questão distinta, que deve ser resolvida pelo Tribunal.

174    A este respeito, o Conselho alega que quando a Comunidade age sem exercer qualquer poder discricionário, com base numa decisão adoptada por um órgão ao qual a comunidade internacional conferiu poderes consideráveis com vista a preservar a paz e a segurança internacionais, uma fiscalização jurisdicional completa criaria o risco de minar o sistema da ONU tal como foi estabelecido em 1945, poderia lesar gravemente as relações internacionais da Comunidade e dos Estados‑Membros e entraria em contradição com a obrigação que a Comunidade tem de respeitar o direito internacional.

175    O Conselho e a Comissão observam igualmente que o recorrente, representado, se necessário, pela Arábia Saudita, pode dirigir‑se ao Conselho de Segurança ou ao comité de sanções, quer directamente quer por intermédio dos serviços do Tesouro do Reino Unido, a fim de dar a conhecer a sua opinião. É certo que, enquanto organização intergovernamental, a ONU não examina as considerações do recorrente enquanto indivíduo. Contudo, a ONU não pode ignorar a opinião dos seus membros. Assim, se as autoridades sauditas estivessem convencidas da inocência do recorrente, não haveria razão alguma para que não se pudessem efectuar diligências no sentido de reexaminar a sua inscrição na lista do comité de sanções. O recorrente não fornece informações sobre o resultado das suas diligências junto desse órgão nem sobre a opinião que ele pôde exprimir, quando determinadas pessoas referidas na lista do comité de sanções o puderam fazer.

 Apreciação do Tribunal de Primeira Instância

 Observações preliminares

176    O Tribunal só se pode pronunciar utilmente sobre os fundamentos relativos à violação dos direitos fundamentais do recorrente se estes forem abrangidos pela sua fiscalização jurisdicional e se forem susceptíveis, supondo que são procedentes, de conduzir à anulação do regulamento impugnado.

177    Ora, no presente caso, as instituições do Reino Unido sustentam, no essencial, que nenhuma destas duas condições está preenchida, devido ao primado das obrigações da Comunidade e dos seus Estados‑Membros, por força da Carta das Nações Unidas, sobre qualquer outra obrigação de direito internacional, comunitário ou nacional. O exame dos argumentos destas partes é, assim, prévio a qualquer discussão dos argumentos do recorrente.

178    A este respeito, o Tribunal considera oportuno examinar, em primeiro lugar, a articulação entre a ordem jurídica internacional emanada das Nações Unidas e a ordem jurídica nacional ou comunitária, bem como em que medida as competências da Comunidade e dos seus Estados‑Membros estão vinculadas por resoluções do Conselho de Segurança adoptadas ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas.

179    Esse exame determina, com efeito, o do alcance da fiscalização da legalidade, designadamente, no que respeita aos direitos fundamentais, que incumbe ao Tribunal de Primeira Instância exercer sobre os actos comunitários que põem em prática essas resoluções, que será realizado em segundo lugar.

180    Em terceiro lugar, por fim, se se concluir que elas estão abrangidas pela sua fiscalização jurisdicional e que podem conduzir à anulação do regulamento impugnado, o Tribunal pronunciar‑se‑á sobre as violações alegadas dos direitos fundamentais do recorrente.

 Quanto à articulação entre a ordem jurídica internacional emanada das Nações Unidas e a ordem jurídica nacional ou comunitária

181    Há que declarar que, do ponto de vista do direito internacional, as obrigações dos Estados membros da ONU decorrentes da Carta das Nações Unidas prevalecem incontestavelmente sobre qualquer outra obrigação de direito interno ou de direito internacional convencional, incluindo, para os Estados que são membros do Conselho da Europa, sobre as suas obrigações por força da CEDH e, para os que são igualmente membros da Comunidade, sobre as suas obrigações decorrentes do Tratado CE.

182    No que diz respeito, em primeiro lugar, às relações entre a Carta das Nações Unidas e o direito interno dos Estados membros da ONU, esta regra do primado decorre dos princípios do direito internacional consuetudinário. Nos termos do artigo 27.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, celebrada em Viena em 23 de Maio de 1969, que codifica esses princípios (e cujo artigo 5.° dispõe que esta se aplica «a qualquer Tratado que seja acto constitutivo de uma organização internacional e a qualquer Tratado adoptado no âmbito de uma organização internacional»), uma parte não pode invocar as disposições do seu direito interno para justificar a não execução de um Tratado.

183    No que respeita, em segundo lugar, às relações entre a Carta das Nações Unidas e o direito internacional convencional, esta regra do primado está expressamente consagrada no artigo 103.° da referida Carta, nos termos do qual, «[n]o caso de conflito entre as obrigações dos membros das Nações Unidas em virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta». Em conformidade com o artigo 30.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, e contrariamente às regras normalmente aplicáveis em caso de tratados sucessivos, essa regra vale tanto relativamente a tratados anteriores como relativamente a tratados posteriores à Carta das Nações Unidas. Segundo o Tribunal Internacional de Justiça, todos os acordos regionais, bilaterais e mesmo multilaterais, que as partes possam ter celebrado, estão sempre subordinados às disposições do artigo 103.° da Carta das Nações Unidas [acórdão de 26 de Novembro de 1984, Actividades militares e paramilitares na Nicarágua e contra esta (Nicarágua c. Estados Unidos da América), Recueil 1984, p. 392, n.° 107].

184    Esse primado é extensivo às decisões contidas numa resolução do Conselho de Segurança, em conformidade com o artigo 25.° da Carta das Nações Unidas, nos termos do qual os membros da ONU são obrigados a aceitar e a aplicar as decisões do Conselho de Segurança. Segundo o Tribunal Internacional de Justiça, em conformidade com o artigo 103.° da Carta, as obrigações das partes a esse respeito prevalecem sobre as suas obrigações por força de qualquer outro acordo internacional [despacho de 14 de Abril de 1992 (medidas provisórias), Questões de interpretação e de aplicação da Convenção de Montreal de 1971, que resultam do incidente aéreo de Lockerbie (Jamahirija Árabe Líbia c. Estados Unidos da América), Recueil 1992, p. 16, n.° 42, e despacho de 14 de Abril de 1992 (medidas provisórias), Questões de interpretação e de aplicação da Convenção de Montreal de 1971, que resultam do incidente aéreo de Lockerbie (Jamahirija Árabe Líbia c. Reino Unido), Recueil 1992, p. 113, n.° 39].

185    No que diz mais particularmente respeito às relações entre as obrigações dos Estados‑Membros da Comunidade por força da Carta das Nações Unidas e as suas obrigações por força do direito comunitário, deve acrescentar‑se que, nos termos do primeiro parágrafo do artigo 307.° CE, «[a]s disposições do presente Tratado não prejudicam os direitos e obrigações decorrentes de convenções concluídas antes de 1 de Janeiro de 1958 ou, em relação aos Estados que aderem à Comunidade, anteriormente à data da respectiva adesão, entre um ou mais Estados‑Membros, por um lado, e um ou mais Estados terceiros, por outro».

186    Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, esta disposição destina‑se a precisar, em conformidade com os princípios do direito internacional, que a aplicação do Tratado CE não prejudica o compromisso do Estado‑Membro em causa de respeitar os direitos dos Estados terceiros que resultam de uma convenção anterior, e de cumprir as respectivas obrigações (acórdão do Tribunal de Justiça de 28 de Março de 1995, Evans Medical e Macfarlan Smith, C‑324/93, Colect., p. I‑563, n.° 27; v. também acórdãos do Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 1962, Comissão/Itália, 10/61, Recueil, p. 1, Colect. 1962‑1964, p. 1, de 2 de Agosto de 1993, Levy, C‑158/91, Colect., p. I‑4287, e de 14 de Janeiro de 1997, Centro‑Com, C‑124/95, Colect., p. I‑81, n.° 56).

187    Ora, cinco dos seis Estados signatários do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, assinado em Roma em 25 de Março de 1957, já eram membros da ONU em 1 de Janeiro de 1958. Quanto à República Federal da Alemanha, embora seja verdade que só foi formalmente admitida como membro da ONU em 18 de Setembro de 1973, o seu compromisso de respeitar as obrigações decorrentes da Carta das Nações Unidas é, também ele, anterior a 1 de Janeiro de 1958, conforme resulta designadamente da acta final da conferência que se realizou em Londres de 28 de Setembro a 3 de Outubro de 1954 (conferência dita «das nove potências») e dos Acordos de Paris de 23 de Outubro de 1954. Por outro lado, todos os Estados que aderiram posteriormente à Comunidade eram membros da ONU anteriormente à sua adesão.

188    Além disso, o artigo 224.° do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia (actual artigo 297.° CE) foi especificamente inserido nesse Tratado para respeitar a regra do primado acima definida. Nos termos dessa disposição, «[o]s Estados‑Membros procederão a consultas recíprocas tendo em vista estabelecer de comum acordo as providências necessárias para evitar que o funcionamento do mercado comum seja afectado pelas medidas que qualquer Estado‑Membro possa ser levado a tomar […] para fazer face a compromissos assumidos por esse Estado para a manutenção da paz e da segurança internacional».

189    As resoluções adoptadas pelo Conselho de Segurança ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas têm assim efeito obrigatório para todos os Estados‑Membros da Comunidade, que devem, por isso, nessa qualidade, adoptar quaisquer medidas necessárias para assegurar a sua execução (conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo Bosphorus, acórdão do Tribunal de Justiça de 30 de Julho de 1996, C‑84/95, Colect., pp. I‑3953, I‑3956, n.° 2, e no processo Ebony Maritime e Loten Navigation, acórdão do Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 1997, C‑177/95, Colect., pp. I‑1111, I‑1115, n.° 27).

190    Resulta igualmente do que antecede que, tanto em aplicação das regras do direito internacional geral como em aplicação das disposições específicas do Tratado, os Estados‑Membros têm a faculdade, e mesmo a obrigação, de não aplicar qualquer disposição de direito comunitário, ainda que seja uma disposição de direito primário ou um princípio geral desse direito, que constitua um obstáculo à boa execução das suas obrigações por força da Carta das Nações Unidas.

191    Assim, no acórdão Centro‑Com, referido no n.° 186, supra, o Tribunal de Justiça decidiu especificamente que medidas nacionais contrárias ao artigo 113.° do Tratado CE podiam ser justificadas à luz do artigo 234.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 307.° CE), se se revelassem necessárias para assegurar a execução, pelo Estado‑Membro em causa, das suas obrigações por força da Carta das Nações Unidas e de uma resolução do Conselho de Segurança.

192    Pelo contrário, resulta da jurisprudência (v. acórdão Dorsch Consult/Conselho e Comissão, referido no n.° 158, supra, n.° 74) que, diferentemente dos seus Estados‑Membros, a Comunidade, enquanto tal, não está directamente vinculada pela Carta das Nações Unidas e, por isso, não está obrigada, por força de uma obrigação do direito internacional público geral, a aceitar e a aplicar as resoluções do Conselho de Segurança, em conformidade com o artigo 25.° da referida Carta. A razão é que a Comunidade não é nem membro da ONU, nem destinatária das resoluções do Conselho de Segurança, nem a sucessora nos direitos e obrigações dos seus Estados‑Membros na acepção do direito internacional público.

193    Assim sendo, deve considerar‑se que a Comunidade está vinculada pelas obrigações resultantes da Carta das Nações Unidas, da mesma forma que estão os seus Estados‑Membros, por força do próprio Tratado que a institui.

194    A este respeito, é pacífico que, no momento de celebrar o Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, os Estados‑Membros estavam vinculados pelos seus compromissos nos termos da Carta das Nações Unidas.

195    Não puderam, por efeito de um acto celebrado entre eles, transferir para a Comunidade mais poderes do que aqueles de que dispunham, nem desvincular‑se dessa forma das obrigações existentes em relação a países terceiros, nos termos da referida Carta (v., por analogia, acórdão do Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 1972, International Fruit Company e o., 21/72 a 24/72, Colect., p. 407, n.° 11, a seguir «acórdão International Fruit»).

196    Pelo contrário, a sua vontade de respeitar os seus compromissos decorrentes dessa Carta resulta das disposições do próprio Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia e foi manifestada, designadamente, nos seus artigos 224.° e 234.°, primeiro parágrafo (v., por analogia, acórdão International Fruit, n.os 12 e 13, e conclusões do advogado‑geral M. Mayras nesse processo, Colect. 1972, pp. 416 a 428).

197    Se bem que esta última disposição refira apenas as obrigações dos Estados‑Membros, ela implica a obrigação de as instituições da Comunidade não colocarem entraves à execução dos compromissos dos Estados‑Membros decorrentes da referida Carta (acórdão do Tribunal de Justiça de 14 de Outubro de 1980, Burgoa, 812/79, Recueil, p. 2787, n.° 9).

198    Deve igualmente salientar‑se que, na medida em que as competências necessárias à execução dos compromissos dos Estados‑Membros decorrentes da Carta das Nações Unidas foram transferidas para a Comunidade, os Estados‑Membros obrigaram‑se, em direito internacional público, a que a própria Comunidade os exerça para esse fim.

199    Neste contexto, deve recordar‑se, por um lado, que, nos termos do artigo 48.°, n.° 2, da Carta das Nações Unidas, as decisões do Conselho de Segurança são executadas pelos membros das Nações Unidas, «directamente e mediante a sua acção nos organismos internacionais apropriados de que façam parte», e, por outro, que, segundo a jurisprudência (acórdãos Poulsen e Diva Navigation, referido no n.° 158, supra, n.° 9, e Racke, referido no n.° 158, supra, n.° 45; v., igualmente, acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 1974, Van Duyn, 41/74, Colect., p. 567, n.° 22), as competências da Comunidade devem ser exercidas no respeito do direito internacional e, consequentemente, o direito comunitário deve ser interpretado, e o seu âmbito de aplicação circunscrito, à luz das regras pertinentes do direito internacional.

200    Os Estados‑Membros, ao conferirem essas competências à Comunidade, manifestaram assim a sua vontade de a vincular pelas obrigações que eles contraíram por força da Carta das Nações Unidas (v., por analogia, acórdão International Fruit, n.° 15).

201    A partir da entrada em vigor do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, a transferência de competências, que ocorreu nas relações entre os Estados‑Membros e a Comunidade, foi concretizada de diferentes modos no âmbito da execução dos seus compromissos decorrentes da Carta das Nações Unidas (v., por analogia, acórdão International Fruit, n.° 16).

202    É assim, designadamente, que o artigo 228.°‑A do Tratado CE (actual artigo 301.° CE) foi inserido no Tratado, pelo Tratado da União Europeia, a fim de dar um fundamento específico às sanções económicas que a Comunidade, única competente em matéria de política comercial comum, pode ser levada a adoptar contra países terceiros por razões políticas definidas pelos seus Estados‑Membros no âmbito da PESC, frequentemente, em aplicação de uma resolução do Conselho de Segurança que lhes impõe a adopção desse tipo de sanções.

203    Verifica‑se assim que, na medida em que, por força do Tratado CE, a Comunidade assumiu competências anteriormente exercidas pelos Estados‑Membros no domínio de aplicação da Carta das Nações Unidas, as disposições desta Carta têm por efeito vincular a Comunidade [v., por analogia, no que diz respeito à questão de saber se a Comunidade está vinculada pelo Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio (GATT) de 1947, acórdão International Fruit, n.° 18; v., igualmente, na medida em que reconhece que a Comunidade exerce uma competência vinculada quando executa uma medida de embargo comercial decretada por uma resolução do Conselho de Segurança, acórdão Dorsch Consult/Conselho e Comissão, n.° 158, supra, n.° 74].

204    No termo deste raciocínio, deve considerar‑se, por um lado, que a Comunidade não pode violar as obrigações que incumbem aos seus Estados‑Membros por força da Carta das Nações Unidas, nem obstar à sua execução, e, por outro, que está obrigada, nos termos do próprio Tratado através do qual foi instituída, a adoptar, no exercício das suas competências, todas as disposições necessárias para permitir que os Estados‑Membros cumpram essas obrigações.

205    Ora, no presente caso, o Conselho declarou, na Posição Comum 2002/402, adoptada em aplicação das disposições do título V do Tratado UE, que era necessária uma acção da Comunidade, dentro dos limites dos poderes que o Tratado CE lhe confere, para executar determinadas medidas restritivas contra Oussama ben Laden, os membros da organização Al‑Qaida e contra os talibãs e outras pessoas, grupos, empresas e entidades associados, em conformidade com as Resoluções 1267 (1999), 1333 (2000) e 1390 (2002) do Conselho de Segurança.

206    A Comunidade deu execução a essas medidas através da adopção do regulamento impugnado. Tal como já foi declarado no n.° 135, supra, ela era competente para adoptar esse acto com base nos artigos 60.° CE, 301.° CE e 308.° CE.

207    Deve, por isso, reconhecer‑se a justeza dos argumentos adiantados pelas instituições, conforme estão resumidos no n.° 153, supra, com a ressalva de que não é por força do direito internacional geral, como as partes sustentam, mas por força do próprio Tratado CE, que a Comunidade estava obrigada a dar execução às resoluções do Conselho de Segurança, no domínio das suas competências.

208    Pelo contrário, devem ser afastados os argumentos do recorrente baseados na consideração de que a ordem jurídica comunitária é uma ordem jurídica independente das Nações Unidas, regida por regras de direito que lhe são próprias.

 Quanto ao alcance da fiscalização da legalidade que incumbe ao Tribunal de Primeira Instância exercer

209    Deve recordar‑se, a título preliminar, que a Comunidade Europeia é uma comunidade de direito, no sentido de que nem os seus Estados‑Membros nem as suas instituições escapam ao controlo da conformidade dos seus actos com a carta constitucional de base que é o Tratado e que este estabelece um sistema completo de vias de recurso e de procedimentos destinado a confiar ao Tribunal de Justiça a fiscalização da legalidade dos actos das instituições (acórdãos do Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1986, Os Verdes/Parlamento, 294/83, Colect., p. 1339, n.° 23, de 22 de Outubro de 1987, Foto‑Frost, 314/85, Colect., p. 4199, n.° 16, e de 23 de Março de 1993, Weber/Parlamento, C‑314/91, Colect., p. I‑1093, n.° 8; acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 2 de Outubro de 2001, Martinez e o./Parlamento, T‑222/99, T‑327/99 e T‑329/99, Colect., p. II‑2823, n.° 48; v., igualmente, parecer 1/91 do Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 1991, Colect., p. I‑6079, n.° 21).

210    Como o Tribunal de Justiça decidiu reiteradamente (acórdão Johnston, referido no n.° 146, supra, n.° 18; v., igualmente, acórdãos do Tribunal de Justiça de 3 de Dezembro de 1992, Oleifici Borelli/Comissão, C‑97/91, Colect., p. I‑6313, n.° 14; de 11 de Janeiro de 2001, Kofisa Italia, C‑1/99, Colect., p. I‑207, n.° 46; de 27 de Novembro de 2001, Comissão/Áustria, C‑424/99, Colect., p. I‑9285, n.° 45; e de 25 de Julho de 2002, Unión de Pequeños Agricultores/Conselho, C‑50/00 P, Colect., p. I‑6677, n.° 39), «[a] fiscalização jurisdicional […] é a expressão de um princípio geral de direito que está na base das tradições constitucionais comuns dos Estados‑Membros [… e que] foi igualmente consagrado nos artigos 6.° e 13.° da [CEDH]».

211    No presente caso, esse princípio encontra a sua expressão no direito que o artigo 230.°, quarto parágrafo, CE confere ao recorrente, de submeter à fiscalização do Tribunal de Primeira Instância a legalidade do regulamento impugnado, na medida em que este lhe diga directa e individualmente respeito, e de invocar em apoio do seu recurso qualquer fundamento relativo à incompetência, à violação de formalidades essenciais, à violação do Tratado CE ou de qualquer regra de direito relativa à sua aplicação, ou a um desvio de poder.

212    A questão que se coloca no presente caso é, contudo, a de saber se existem limites estruturais, impostos pelo direito internacional geral ou pelo próprio Tratado CE, à fiscalização jurisdicional que compete ao Tribunal de Primeira Instância exercer relativamente a esse regulamento.

213    De facto, deve recordar‑se que o regulamento impugnado, adoptado à luz da Posição Comum 2002/402, dá cumprimento, a nível da Comunidade, à obrigação que cabe aos seus Estados‑Membros, enquanto membros da ONU, de dar execução, eventualmente através de um acto comunitário, às sanções contra Oussama ben Laden, a rede Al‑Qaida, bem como contra os talibãs e outras pessoas, grupos, empresas e entidades associados, que foram decididas e depois reforçadas por várias resoluções do Conselho de Segurança adoptadas ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas. Os considerandos desse regulamento fazem expressamente referência às Resoluções 1267 (1999), 1333 (2000) e 1390 (2002).

214    Neste contexto, como as instituições alegaram com razão, elas agiram ao abrigo de uma competência vinculada, pelo que não dispunham de nenhuma margem de apreciação autónoma. Em particular, não podiam modificar directamente o conteúdo das resoluções em questão, nem instituir um mecanismo susceptível de dar lugar a essa modificação.

215    Qualquer fiscalização da legalidade interna do regulamento impugnado, designadamente à luz das disposições ou dos princípios gerais do direito comunitário relativos à protecção dos direitos fundamentais, implicaria, assim, que o Tribunal de Primeira Instância examinasse, de forma incidental, a legalidade das referidas resoluções. Na hipótese em exame, com efeito, a fonte da ilegalidade invocada pelo recorrente deve ser procurada não na adopção do regulamento impugnado mas nas resoluções do Conselho de Segurança que decretaram as sanções (v., por analogia, acórdão Dorsch Consult/Conselho e Comissão, referido no n.° 158, supra, n.° 74).

216    Em particular, se o Tribunal de Primeira Instância devesse anular o regulamento impugnado, em conformidade com o pedido do recorrente, se bem que isso pareça imposto pelo direito internacional, pelo facto de esse acto violar os direitos fundamentais do recorrente tal como são protegidos pela ordem jurídica comunitária, essa anulação implicaria, indirectamente, que as resoluções em causa do Conselho de Segurança violassem elas próprias os referidos direitos fundamentais. Noutros termos, o recorrente pede ao Tribunal de Primeira Instância que declare implicitamente que a norma do direito internacional em causa viola os direitos fundamentais do indivíduo, tal como são protegidos pela ordem jurídica comunitária.

217    As instituições e o Reino Unido convidam o Tribunal de Primeira Instância a declinar por princípio qualquer competência para proceder a essa fiscalização indirecta da legalidade dessas resoluções que, enquanto regras de direito internacional que vinculam os Estados‑Membros da Comunidade, se impõem a ele e a todas as instituições da Comunidade. Estas partes consideram, no essencial, que a fiscalização do Tribunal se deve limitar, por um lado, à verificação do respeito das regras de forma, processuais e de competência que se impunham, no presente caso, às instituições comunitárias e, por outro, à verificação da adequação e da proporcionalidade das medidas comunitárias em causa relativamente às resoluções do Conselho de Segurança a que dão execução.

218    Há que reconhecer que essa limitação de competência se impõe enquanto corolário dos princípios supra‑enunciados, no âmbito do exame da articulação das relações entre a ordem jurídica internacional emanada das Nações Unidas e a ordem jurídica comunitária.

219    Como já foi exposto, as resoluções em causa do Conselho de Segurança foram adoptadas ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas. Nesse contexto, a determinação do que constitui uma ameaça para a paz e a segurança internacionais, bem como das medidas necessárias para as manter ou restabelecer, é da responsabilidade exclusiva do Conselho de Segurança e escapa, como tal, à competência das autoridades e dos órgãos jurisdicionais nacionais ou comunitários, com a única ressalva do direito natural de legítima defesa, individual ou colectiva, referido no artigo 51.° da referida Carta.

220    Quando o Conselho de Segurança, agindo ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, por intermédio do seu comité de sanções, decide que os fundos de determinados indivíduos ou entidades devem ser congelados, a sua decisão impõe‑se a todos os membros das Nações Unidas, em conformidade com o artigo 48.° da Carta.

221    À luz das considerações enunciadas nos n.os 193 a 204, supra, a afirmação de uma competência do Tribunal de Primeira Instância para fiscalizar de maneira incidental a legalidade dessa decisão à luz do modelo de protecção dos direitos fundamentais, tal como são reconhecidos na ordem jurídica comunitária, não pode consequentemente ser justificada com base no direito internacional nem com base no direito comunitário.

222    Por um lado, essa competência seria incompatível com os compromissos dos Estados‑Membros decorrentes da Carta das Nações Unidas, em particular, os seus artigos 25.°, 48.° e 103.°, bem como com o artigo 27.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.

223    Por outro lado, essa competência seria contrária tanto às disposições do Tratado CE, em particular, os artigos 5.° CE, 10.° CE, 297.° CE e 307.°, primeiro parágrafo, CE, como às do Tratado UE, em particular, o artigo 5.° UE, nos termos do qual o tribunal comunitário exerce as suas competências nas condições e de acordo com os objectivos previstos nas disposições dos Tratados CE e UE. Essa competência seria, além disso, incompatível como o princípio segundo o qual as competências da Comunidade, e, portanto, as do Tribunal de Primeira Instância, devem ser exercidas no respeito do direito internacional (acórdãos Poulsen e Diva Navigation, referido no n.° 158, supra, n.° 9, e Racke, referido no n.° 158, supra, n.° 45).

224    Deve acrescentar‑se que, atendendo designadamente ao artigo 307.° CE e ao artigo 103.° da Carta das Nações Unidas, a invocação de violações quer aos direitos fundamentais, tal como são protegidos pela ordem jurídica comunitária, quer aos princípios dessa ordem jurídica não pode afectar a validade de uma resolução do Conselho de Segurança ou o seu efeito no território da Comunidade (v., por analogia, acórdãos do Tribunal de Justiça de 17 de Dezembro de 1970, Internationale Handelsgesellschaft, 11/70, Colect. 1969‑1970, p. 625, n.° 3; de 8 de Outubro de 1986, Keller, 234/85, Colect., p. 2897, n.° 7; e de 17 de Outubro de 1989, Dow Chemical Ibérica e o./Comissão, 97/87 a 99/87, Colect., p. 3165, n.° 38).

225    Por conseguinte, há que considerar que as resoluções em causa do Conselho de Segurança escapam, em princípio, à fiscalização jurisdicional do Tribunal de Primeira Instância e que este não está autorizado a pôr em causa, ainda que de forma incidental, a sua legalidade à luz do direito comunitário. Pelo contrário, o Tribunal deve, na medida do possível, interpretar e aplicar esse direito de maneira compatível com as obrigações dos Estados‑Membros por força da Carta das Nações Unidas.

226    No entanto, o Tribunal pode fiscalizar, de forma incidental, a legalidade das resoluções em causa do Conselho de Segurança, à luz do jus cogens, entendido como uma ordem pública internacional que se impõe a todos os sujeitos do direito internacional, incluindo as instâncias da ONU, o qual não é possível derrogar.

227    Deve observar‑se, a esse respeito, que a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que codifica o direito internacional consuetudinário (e cujo artigo 5.° dispõe que ela se aplica «a qualquer Tratado que seja acto constitutivo de uma organização internacional e a qualquer Tratado adoptado no âmbito de uma organização internacional»), prevê, no seu artigo 53.°, a nulidade dos Tratados incompatíveis com uma norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens), definida como «uma norma aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu todo como norma cuja derrogação não é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma natureza». Da mesma forma, o artigo 64.° da Convenção de Viena dispõe que «[s]e sobrevier uma nova norma imperativa de direito internacional, geral, qualquer Tratado existente que seja incompatível com essa norma torna‑se nulo e cessa a sua vigência».

228    De resto, a própria Carta das Nações Unidas pressupõe a existência de princípios imperativos de direito internacional e, designadamente, a protecção dos direitos fundamentais da pessoa humana. No preâmbulo da Carta, os povos das Nações Unidas declararam‑se assim decididos a «reafirmar a [sua] fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana». Resulta, além disso, do primeiro capítulo da Carta, intitulado «Objectivos e princípios», que as Nações Unidas têm designadamente por fim encorajar o respeito dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais.

229    Esses princípios impõem‑se tanto aos membros da ONU como aos seus órgãos. Assim, nos termos do artigo 24.°, n.° 2, da Carta das Nações Unidas, o Conselho de Segurança deve, no cumprimento dos deveres que a responsabilidade principal da manutenção da paz e da segurança internacionais lhe impõe, agir «de acordo com os objectivos e os princípios das Nações Unidas». Os poderes de sanção que o Conselho de Segurança possui no exercício dessa responsabilidade devem, assim, ser utilizados no respeito do direito internacional e, em particular, dos objectivos e princípios das Nações Unidas.

230    O direito internacional permite assim considerar que existe um limite ao princípio do efeito obrigatório das resoluções do Conselho de Segurança: devem respeitar as disposições peremptórias fundamentais do jus cogens. Caso contrário, por muito improvável que isso seja, elas não vinculariam os Estados membros da ONU nem, consequentemente, a Comunidade.

231    A fiscalização jurisdicional incidental exercida pelo Tribunal de Primeira Instância, no âmbito de um recurso de anulação de um acto comunitário adoptado, sem exercício de uma qualquer margem de apreciação, a fim de dar execução a uma resolução do Conselho de Segurança, pode, portanto, muito excepcionalmente, ser extensiva à verificação do respeito das regras superiores do direito internacional abrangido pelo jus cogens e, designadamente, das normas imperativas que visam a protecção universal dos direitos do homem, as quais não podem ser derrogadas nem pelos Estados‑Membros nem pelas instâncias da ONU, pois constituem «princípios do direito internacional consuetudinário que não podem ser transgredidos» (parecer consultivo do Tribunal Internacional de Justiça de 8 de Julho de 1996, Licitude da ameaça ou do emprego de armas nucleares, Recueil 1996, p. 226, n.° 79; v., igualmente, neste sentido, conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo Bosphorus, referido no n.° 189, supra, n.° 65).

232    É à luz destas considerações gerais que devem ser examinados os fundamentos relativos à violação dos direitos fundamentais do recorrente.

 Quanto às violações alegadas dos direitos fundamentais do recorrente

233    O Tribunal decide examinar, em primeiro lugar, a violação alegada do direito fundamental ao respeito da propriedade e do princípio da proporcionalidade, seguidamente, a violação alegada do direito de ser ouvido e, por último, a violação alegada do direito a uma fiscalização jurisdicional efectiva.

–       Quanto à violação alegada do direito ao respeito da propriedade e do princípio da proporcionalidade

234    O recorrente invoca uma violação do direito ao respeito da sua propriedade, tal como é garantido pelo artigo 1.° do Primeiro Protocolo adicional à CEDH, bem como uma violação do princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral do direito comunitário.

235    Contudo, na medida em que as violações alegadas procedem exclusivamente do congelamento de fundos do recorrente, tal como foi decidido pelo Conselho de Segurança, por intermédio do seu comité de sanções, e executado na Comunidade pelo regulamento impugnado, sem exercício de um qualquer poder de apreciação, é, em princípio, apenas à luz do modelo de protecção universal dos direitos fundamentais da pessoa humana, abrangidos pelo jus cogens, que devem ser examinadas as acusações do recorrente, em conformidade com os princípios acima definidos.

236    Tendo o alcance e a intensidade do congelamento dos fundos do recorrente variado ao longo do tempo (v., sucessivamente, artigo 2.° do Regulamento n.° 467/2001, artigo 2.° do Regulamento n.° 881/2002, na sua redacção inicial, e, por fim, artigo 2.°‑A do regulamento impugnado, conforme inserido pelo artigo 1.° do Regulamento n.° 561/2003), deve, por outro lado, precisar‑se que, no âmbito do presente recurso de anulação, a fiscalização jurisdicional do Tribunal deve incidir unicamente sobre o estado da regulamentação actualmente em vigor. Com efeito, no contencioso de anulação, o tribunal comunitário tem normalmente em conta acontecimentos que afectam, no decorrer da instância, o próprio objecto do litígio, como a revogação, a prorrogação, a substituição ou a modificação do acto impugnado (v., além dos acórdãos Alpha Steel/Comissão, Fabrique de fer de Charleroi e Dillinger Hüttenwerke/Comissão e CCRE/Comissão, referidos no n.° 53, supra, o despacho do Tribunal de Justiça de 8 de Março de 1993, Lezzi Pietro/Comissão, C‑123/92, Colect., p. I‑809, n.os 8 a 11). Todas as partes manifestaram o seu acordo sobre este aspecto na audiência.

237    Deve, por isso, apreciar‑se se o congelamento de fundos previsto no regulamento impugnado, conforme alterado pelo Regulamento n.° 561/2003 e, indirectamente, nas resoluções do Conselho de Segurança a que estes regulamentos dão execução, viola os direitos fundamentais do recorrente.

238    O Tribunal de Primeira Instância considera que não é esse o caso, à luz do modelo de protecção universal dos direitos fundamentais da pessoa humana abrangidos pelo jus cogens.

239    A este respeito, deve salientar‑se desde já que o regulamento impugnado, na sua versão alterada pelo Regulamento n.° 561/2003, adoptado na sequência da Resolução 1452 (2002) do Conselho de Segurança, prevê, entre outras derrogações e isenções, que, a pedido dos interessados, e salvo oposição expressa do comité de sanções, as autoridades nacionais competentes declarem que o congelamento de fundos não se aplica aos fundos necessários a despesas de base, designadamente as que se destinam a víveres, rendas, despesas médicas, impostos e serviços colectivos (v. n.° 36, supra). Além disso, os fundos necessários a qualquer outra «despesa extraordinária» podem, de ora em diante, ser descongelados mediante autorização expressa do comité de sanções.

240    As possibilidades explícitas de aplicar isenções e derrogações ao congelamento de fundos das pessoas inscritas na lista do comité de sanções mostram claramente que esta medida não tem por objecto nem por efeito sujeitar estas pessoas a um tratamento desumano ou degradante.

241    Além disso, deve observar‑se que, embora o artigo 17.°, n.° 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948, disponha que «[t]oda a pessoa, individual ou colectivamente, tem direito à propriedade», o artigo 17.°, n.° 2, da referida declaração universal precisa que «[n]inguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade».

242    Assim, na medida em que se deva considerar que o respeito do direito à propriedade faz parte das normas imperativas do direito internacional geral, só uma privação arbitrária desse direito poderia, de qualquer forma, ser considerada contrária ao jus cogens.

243    Ora, impõe‑se concluir que o recorrente não foi arbitrariamente privado desse direito.

244    Com efeito, em primeiro lugar, o congelamento dos seus fundos constitui um aspecto das sanções decididas pelo Conselho de Segurança contra Oussama ben Laden, a rede Al‑Qaida, bem como contra os talibãs e outras pessoas, grupos, empresas e entidades associados.

245    A este respeito, deve sublinhar‑se a importância do combate ao terrorismo internacional e a legitimidade de uma protecção das Nações Unidas contra as actuações de organizações terroristas.

246    No preâmbulo da Resolução 1390 (2002), o Conselho de Segurança condenou categoricamente, designadamente, os ataques terroristas cometidos em 11 de Setembro de 2001, declarando‑se determinado a prevenir quaisquer actos desse tipo; observou que Oussama ben Laden e a rede Al‑Qaida prosseguiam as suas actividades de apoio ao terrorismo internacional; condenou a rede Al‑Qaida e os grupos terroristas associados pelos numerosos actos terroristas criminosos que tinham cometido e que tinham por objectivo matar numerosos civis inocentes e destruir bens, e reafirmou de novo que os actos de terrorismo internacional constituíam uma ameaça para a paz e a segurança internacionais.

247    É à luz destas circunstâncias que o objectivo prosseguido pelas sanções reveste uma importância significativa, que é, designadamente, nos termos da Resolução 1373 (2001) do Conselho de Segurança, de 28 de Setembro de 2001, para a qual remete o considerando 3 do regulamento impugnado, lutar recorrendo a todos os meios, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, contra as ameaças que os actos de terrorismo representam para a paz e a segurança internacionais. As medidas em causa prosseguem assim um objectivo de interesse geral fundamental para a comunidade internacional.

248    Em segundo lugar, o congelamento de fundos é uma medida cautelar que, ao contrário de uma confiscação, não lesa a própria essência do direito de propriedade dos interessados sobre os seus activos financeiros, mas unicamente a sua utilização.

249    Em terceiro lugar, as resoluções em causa do Conselho de Segurança prevêem um mecanismo de reexame periódico do regime geral das sanções (v. n.os 16, 25 e 33, supra, e n.° 266, infra).

250    Em quarto lugar, tal como será exposto a seguir, a regulamentação em causa institui um processo que permite aos interessados submeter, em qualquer momento, o seu caso ao comité de sanções, para reexame, por intermédio do Estado‑Membro da sua nacionalidade ou da sua residência.

251    Atendendo a estas circunstâncias, o congelamento de fundos das pessoas e entidades sobre as quais recaem suspeitas, com base em informações comunicadas pelos Estados membros das Nações Unidas e controladas pelo Conselho de Segurança, de estarem ligadas a Oussama ben Laden, à rede Al‑Qaida e aos talibãs e de terem participado no financiamento, na planificação, na preparação ou na perpetração de actos terroristas não pode ser considerado constitutivo de uma ofensa arbitrária, inadequada ou desproporcionada aos direitos fundamentais dos interessados.

252    Resulta do que antecede que os argumentos do recorrente relativos à violação alegada do direito ao respeito da sua propriedade e do princípio geral da proporcionalidade devem ser rejeitados.

–       Quanto à violação alegada do direito de ser ouvido

253    Embora reconheça que a medida inicial do congelamento dos seus fundos não devia ser objecto de notificação prévia à sua execução, o recorrente acusa o Conselho de não lhe ter dado nenhuma possibilidade de ser ouvido sobre os factos, circunstâncias e elementos de prova invocados contra ele (v. n.os 141 a 143, supra). O recorrente parece, por outro lado, criticar as próprias decisões em causa do Conselho de Segurança, por não respeitarem os direitos de defesa (v. n.° 150, supra).

254    A este respeito, deve distinguir‑se o pretenso direito de o recorrente ser ouvido pelo Conselho, no contexto da adopção do regulamento impugnado, do seu pretenso direito de ser ouvido pelo comité de sanções, no contexto da sua inscrição na lista de pessoas cujos fundos devem ser congelados em aplicação das resoluções em causa do Conselho de Segurança.

255    No que respeita, em primeiro lugar, ao pretenso direito de o recorrente ser ouvido pelo Conselho, no contexto da adopção do regulamento impugnado, deve recordar‑se que, segundo jurisprudência assente, o respeito dos direitos de defesa, em qualquer processo iniciado contra uma pessoa e susceptível de culminar num acto que lese os interesses desta, constitui um princípio fundamental de direito comunitário e deve ser garantido, mesmo na falta de regulamentação relativa à tramitação processual. Este princípio exige que a qualquer pessoa a quem possa ser aplicada uma sanção seja dada a possibilidade de fazer conhecer utilmente o seu ponto de vista a propósito dos elementos contra ela invocados para fundamentar a sanção (acórdãos do Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1994, Fiskano/Comissão, C‑135/92, Colect., p. I‑2885, n.os 39 e 40; de 24 de Outubro de 1996, Comissão/Lisrestal e o., C‑32/95 P, Colect., p. I‑5373, n.° 21; e de 21 de Setembro de 2000, Mediocurso/Comissão, C‑462/98 P, Colect., p. I‑7183, n.° 36).

256    É com razão, contudo, que o Conselho e a Comissão observam que esta jurisprudência foi desenvolvida em domínios, como o direito da concorrência, a luta antidumping e os auxílios de Estado, mas também o direito disciplinar ou a redução das contribuições financeiras, nos quais as instituições comunitárias dispõem de poderes de inquérito e de instrução alargados, bem como de uma ampla margem discricionária de apreciação.

257    De facto, segundo a jurisprudência, o respeito das garantias conferidas pela ordem jurídica comunitária, e designadamente o direito de o interessado dar a conhecer o seu ponto de vista, é correlativo ao exercício de um poder de apreciação pela autoridade autora do acto em causa (acórdão do Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 1991, Technische Universität München, C‑269/90, Colect., p. I‑5469, n.° 14).

258    Ora, no presente caso, tal como resulta das observações preliminares sobre a articulação entre a ordem jurídica internacional emanada das Nações Unidas e a ordem jurídica comunitária supraformuladas, as instituições comunitárias eram obrigadas a transpor para a ordem jurídica comunitária resoluções do Conselho de Segurança e decisões do comité de sanções que não as habilitavam de modo nenhum, na fase da sua execução concreta, a prever um qualquer mecanismo comunitário de exame ou de reexame das situações individuais, uma vez que tanto a substância das medidas em causa como os mecanismos de reexame (v. n.os 262 e segs., infra) eram inteiramente da competência do Conselho de Segurança e do seu comité de sanções. Consequentemente, as instituições comunitárias não dispunham de nenhum poder de inquérito, de nenhuma possibilidade de controlo dos factos considerados pelo Conselho de Segurança e pelo comité de sanções, de nenhuma margem de apreciação quanto a esses factos e de nenhuma liberdade de apreciação quanto à oportunidade da adopção de sanções contra o recorrente. O princípio de direito comunitário relativo ao direito de ser ouvido não se pode aplicar nessas circunstâncias, em que uma audição do interessado não podia, de forma alguma, levar a instituição a rever a sua posição.

259    Daqui resulta que o Conselho não era obrigado a ouvir o recorrente a respeito da manutenção do seu nome na lista de pessoas e entidades visadas pelas sanções, no contexto da adopção e da execução do regulamento impugnado.

260    Consequentemente, os argumentos do recorrente relativos à violação alegada do seu direito de ser ouvido pelo Conselho no contexto da adopção do regulamento impugnado devem ser rejeitados.

261    No que respeita, em segundo lugar, ao pretenso direito de o recorrente ser ouvido pelo comité de sanções, no contexto da sua inscrição na lista das pessoas cujos fundos devem ser congelados em aplicação das resoluções em causa do Conselho de Segurança, há que declarar que esse direito não está previsto nas resoluções em questão.

262    Deve, contudo, observar‑se que, embora não prevejam um direito de audição pessoal, as resoluções em causa do Conselho de Segurança, e os regulamentos sucessivos que lhes deram execução na Comunidade, instauram um mecanismo de reexame das situações individuais, ao preverem que os interessados se podem dirigir ao comité de sanções, por intermédio das suas autoridades nacionais, a fim de obter quer a sua retirada da lista de pessoas visadas pelas sanções quer uma derrogação ao congelamento dos fundos (v., designadamente, n.os 20, 32 e 34 a 36, supra).

263    O comité de sanções é um órgão subsidiário do Conselho de Segurança, composto por representantes dos Estados que são membros do Conselho de Segurança. Tornou‑se um importante órgão permanente responsável pela vigilância diária da aplicação das sanções e pode velar por que a comunidade internacional interprete e aplique as resoluções de modo uniforme (conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo Bosphorus, referido no n.° 189, supra, n.° 46).

264    No que respeita, em particular, a um pedido de reexame de um caso individual, a fim de obter a exclusão do interessado da lista de pessoas visadas pelas sanções, as «directrizes que regulam a condução dos trabalhos do [comité de sanções]», adoptadas em 7 de Novembro de 2002 e rectificadas em 10 de Abril de 2003 (v. n.° 50, supra), prevêem o seguinte, no seu n.° 7:

«a)      Sem prejuízo dos procedimentos em vigor, um requerente (pessoa[s], grupos, empresas e/ou entidades que figuram na lista recapitulativa do comité) pode apresentar ao governo do país em que reside e/ou de que é cidadão um pedido para que o seu caso seja reexaminado. Para esse efeito, o requerente deve justificar o seu pedido de exclusão da lista, fornecer as informações pertinentes e pedir apoio para esse pedido.

b)      O governo a que foi feito o pedido (o ‘governo requerido’) deve examinar todos os elementos de informação pertinentes e, depois, contactar bilateralmente o(s) governo(s) que propôs(propuseram) a inscrição na lista [o(s) ‘governo(s) identificador(es)’] para pedir informações complementares e proceder a consultas sobre o pedido de exclusão da lista.

c)      O(s) governo(s) que inicialmente pediu(pediram) a inscrição pode(m) igualmente pedir informações complementares ao país da residência ou da nacionalidade do requerente. O governo requerido e o(s) governo(s) identificador(es) podem, se necessário, consultar o presidente do comité durante essas consultas bilaterais.

d)      Se, depois de ter examinado as informações complementares, o governo requerido quiser dar seguimento a um pedido de exclusão da lista, deve tentar convencer o(s) governo(s) identificador(es) a apresentarem ao comité, conjunta ou separadamente, um pedido de exclusão. O governo requerido pode apresentar ao comité um pedido de exclusão, sem que esse pedido seja acompanhado de um pedido do(s) governo(s) identificador(es), no âmbito do procedimento de aprovação tácita.

e)      O comité decide por consenso. Se o comité não chegar a um consenso sobre uma questão particular, o presidente procede às consultas suplementares que, em seu entender, possam facilitar o acordo. Se, após essas consultas, também não se chegar a um consenso, a questão pode ser submetida ao Conselho de Segurança. Dada a natureza específica da informação, o presidente pode encorajar intercâmbios bilaterais entre Estados‑Membros interessados, a fim de clarificar a questão antes de tomar uma decisão.»

265    O Tribunal constata que, com a adopção destas directrizes, o Conselho de Segurança quis ter em conta, na medida do possível, os direitos fundamentais das pessoas inscritas na lista do comité de sanções, designadamente os direitos de defesa.

266    A importância que o Conselho de Segurança atribui ao respeito desses direitos resulta, de resto, claramente da sua Resolução 1526 (2004), de 30 de Janeiro de 2004, que visa, por um lado, melhorar a execução das medidas impostas no n.° 4, alínea b), da Resolução 1267 (1999), no n.° 8, alínea c), da Resolução 1333 (2000) e nos n.os 1 e 2 da Resolução 1390 (2002), e, por outro, reforçar o mandato do comité de sanções. Nos termos do n.° 18 da Resolução 1526 (2004), o Conselho de Segurança «encoraja vigorosamente todos os Estados a informar, na medida do possível, as pessoas e entidades inscritas na lista do [comité de sanções] das medidas [contra elas] tomadas, das directrizes do [comité de sanções] e da Resolução 1452 (2002)». Em conformidade com o n.° 3 da Resolução 1526 (2004), estas medidas ainda serão melhoradas dentro de 18 meses, ou antes se necessário.

267    É verdade que o processo descrito supra não confere directamente aos próprios interessados o direito de serem ouvidos pelo comité de sanções, única autoridade competente para se pronunciar, a pedido de um Estado, sobre o reexame dos seus casos. Assim, estes dependem, no essencial, da protecção diplomática que os Estados concedem aos seus cidadãos.

268    Essa restrição ao direito de ser directa e pessoalmente ouvido pela autoridade competente não pode, contudo, considerar‑se inadmissível à luz das normas imperativas abrangidas pela ordem pública internacional. Pelo contrário, tratando‑se de pôr em causa a justeza de decisões que ordenam o congelamento de fundos de indivíduos ou de entidades suspeitos de contribuírem para o financiamento do terrorismo internacional, adoptadas pelo Conselho de Segurança, por intermédio do seu comité de sanções, ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, com base em informações comunicadas pelos Estados e pelas organizações regionais, é normal que o direito de os interessados serem ouvidos seja regulado no âmbito de um procedimento administrativo de vários níveis, no qual as autoridades nacionais referidas no Anexo II do regulamento impugnado desempenham um papel essencial.

269    O próprio direito comunitário reconhece, de resto, a legalidade dessa regulação processual, num contexto de sanções económicas que visam particulares (v., por analogia, despacho do presidente da Segunda Secção do Tribunal de Primeira Instância de 2 de Agosto de 2000, «Invest» Import und Export e Invest Commerce/Comissão, T‑189/00 R, Colect., p. II‑2993).

270    Deve acrescentar‑se que, como o Reino Unido observou com razão na audiência, os interessados têm a possibilidade de interpor um recurso jurisdicional com base no direito interno, ou mesmo directamente com base no regulamento impugnado, bem como nas resoluções pertinentes do Conselho de Segurança a que aquele dá execução, contra uma eventual recusa abusiva da autoridade nacional competente em submeter os seus casos, para reexame, ao comité de sanções (v., por analogia, despacho do presidente do Tribunal de Primeira Instância de 15 de Maio de 2003, Sison/Conselho, T‑47/03 R, Colect., p. II‑2047, n.° 39).

271    No presente caso, resulta dos autos que o recorrente se dirigiu, por carta dos seus advogados de 1 de Março de 2002, ao Representante Permanente do Reino da Arábia Saudita junto das Nações Unidas, a fim de fazer valer os seus direitos no comité de sanções. Segundo as explicações complementares dadas na audiência, o recorrente nunca obteve resposta a essa carta.

272    Contudo, essas circunstâncias não apresentam qualquer ligação com a Comunidade e são, por isso, alheias ao presente litígio, que tem por único objecto a fiscalização da legalidade do regulamento impugnado.

273    Por último, seja como for, a possibilidade de o recorrente se pronunciar utilmente sobre a realidade e a pertinência dos factos que determinaram o congelamento dos seus fundos e, mais ainda, sobre os elementos de prova contra ele acolhidos parece categoricamente excluída. Esses factos e elementos de prova, uma vez que são classificados confidenciais ou secretos pelo Estado que os levou ao conhecimento do comité de sanções, não lhe são, evidentemente, comunicados, como, de resto, também não o são aos Estados membros da ONU, destinatários das resoluções em causa do Conselho de Segurança.

274    Em circunstâncias como as do presente caso, em que está em causa uma medida cautelar que limita a disponibilidade dos bens do recorrente, o Tribunal de Primeira Instância considera contudo que o respeito dos direitos fundamentais do interessado não impõe que os factos e elementos de prova contra ele acolhidos lhe sejam comunicados, quando o Conselho de Segurança ou o seu comité de sanções consideram que razões atinentes à segurança da comunidade internacional a tal se opõem.

275    Daqui resulta que devem ser julgados improcedentes os argumentos do recorrente relativos à violação alegada do seu direito de ser ouvido pelo comité de sanções no contexto da sua inscrição na lista de pessoas cujos fundos devem ser congelados em aplicação das resoluções em causa do Conselho de Segurança.

276    Resulta do exposto que devem ser julgados improcedentes os argumentos do recorrente relativos à violação alegada do direito de ser ouvido.

–       Quanto à violação alegada do direito a uma fiscalização jurisdicional efectiva

277    O exame dos argumentos do recorrente relacionados com a violação alegada do seu direito a uma fiscalização jurisdicional efectiva deve ter em conta considerações de ordem geral já formuladas a este respeito no âmbito do exame prévio do alcance da fiscalização da legalidade, designadamente à luz dos direitos fundamentais, que incumbe ao Tribunal de Primeira Instância exercer sobre os actos comunitários que dão execução a resoluções do Conselho de Segurança adoptadas ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas.

278    No presente caso, o recorrente pôde interpor recurso de anulação no Tribunal de Primeira Instância, ao abrigo do artigo 230.° CE.

279    No âmbito deste recurso, o Tribunal exerce uma fiscalização completa da legalidade do regulamento impugnado quanto ao respeito, pelas instituições comunitárias, das regras de competência assim como das regras de legalidade externa e das formalidades essenciais que se impõem à sua acção.

280    O Tribunal fiscaliza igualmente a legalidade do regulamento impugnado à luz das resoluções do Conselho de Segurança que este regulamento é suposto executar, designadamente, sob o ângulo da adequação formal e material, da coerência interna e da proporcionalidade do primeiro em relação às segundas.

281    Pronunciando‑se no âmbito dessa fiscalização, o Tribunal declara que não se contesta que o recorrente é efectivamente uma das pessoas singulares inscritas em 19 de Outubro de 2001 na lista do comité de sanções (v. n.° 23, supra).

282    No âmbito do presente recurso de anulação, o Tribunal reconheceu‑se, além disso, competente para fiscalizar a legalidade do regulamento impugnado e, indirectamente, a legalidade das resoluções em causa do Conselho de Segurança, à luz das normas superiores do direito internacional abrangidas pelo jus cogens, designadamente as normas imperativas relativas à protecção universal dos direitos da pessoa humana.

283    Em contrapartida, como já foi indicado no n.° 225, supra, não incumbe ao Tribunal de Primeira Instância fiscalizar indirectamente a conformidade das próprias resoluções em causa do Conselho de Segurança com os direitos fundamentais tal como são protegidos pela ordem jurídica comunitária.

284    Também não compete ao Tribunal de Primeira Instância verificar a inexistência de erro na apreciação dos factos e dos elementos de prova a que o Conselho de Segurança atendeu para tomar as referidas medidas, nem, salvo no âmbito limitado definido no n.° 282, supra, fiscalizar indirectamente a oportunidade e a proporcionalidade dessas medidas. Essa fiscalização não poderia ser exercida sem invadir as prerrogativas do Conselho de Segurança decorrentes do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, em matéria de determinação, em primeiro lugar, de uma ameaça para a paz e a segurança internacionais e, em segundo lugar, das medidas adequadas para lhe fazer face ou para a eliminar. De qualquer forma, a questão de saber se um indivíduo ou uma organização representa uma ameaça para a paz e a segurança internacionais, assim como a questão de saber que medidas devem ser tomadas em relação aos interessados para contrariar essa ameaça, implica uma apreciação política e juízos de valor que são, em princípio, apenas da competência da autoridade à qual a comunidade internacional confiou a responsabilidade principal da manutenção da paz e da segurança internacionais.

285    Assim, há que concluir que, dentro dos limites expostos no n.° 284, supra, o recorrente não dispõe de nenhuma via de recurso jurisdicional, uma vez que o Conselho de Segurança não considerou oportuno criar uma jurisdição internacional independente encarregada de se pronunciar, tanto em matéria de direito como em matéria de facto, sobre os recursos interpostos contra as decisões individuais adoptadas pelo comité de sanções.

286    No entanto, há que reconhecer igualmente que uma lacuna desta natureza na protecção jurisdicional do recorrente não é, em si, contrária ao jus cogens.

287    A este respeito, o Tribunal observa que o direito de acesso aos tribunais, cujo princípio é reconhecido tanto pelo artigo 8.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem como pelo artigo 14.° do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, adoptado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de Dezembro de 1966, não é absoluto. Por um lado, esse direito pode ser objecto de derrogações em caso de perigo público excepcional que ameace a existência da nação, tal como prevê, em determinadas circunstâncias, o artigo 4.°, n.° 1, do referido Pacto. Por outro lado, mesmo independentemente dessas circunstâncias excepcionais, determinadas restrições devem ser consideradas inerentes a esse direito, como as limitações geralmente admitidas pela comunidade das nações como estando abrangidas pela doutrina da imunidade dos Estados (v., a este respeito, TEDH, acórdãos Príncipe Hans‑Adam II do Liechtenstein c. Alemanha de 12 de Julho de 2001, Colectânea dos acórdãos e decisões, 2001‑VIII, n.os 52, 55, 59 e 68, e McElhinney c. Irlanda de 21 de Novembro de 2001, Colectânea dos acórdãos e decisões, 2001‑XI, em particular n.os 34 a 37) e das organizações internacionais (v., a este respeito, TEDH, acórdão Waite e Kennedy c. Alemanha de 18 de Fevereiro de 1999, Colectânea dos acórdãos e decisões, 1999‑I, n.os 63 e 68 a 73).

288    No presente caso, o Tribunal de Primeira Instância considera que a limitação do direito de acesso do recorrente a um tribunal, uma vez que resulta da imunidade de jurisdição de que beneficiam, em princípio, na ordem jurídica interna dos Estados membros das Nações Unidas, as resoluções do Conselho de Segurança adoptadas ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, em conformidade com os princípios pertinentes do direito internacional (designadamente, os artigos 25.° e 103.° da Carta), é inerente a esse direito, tal como é garantido pelo jus cogens.

289    Essa limitação é justificada tanto pela natureza das decisões que o Conselho de Segurança é levado a tomar ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas como pela finalidade legítima prosseguida. Nas circunstâncias do caso em apreço, o interesse do recorrente em ver a sua causa apreciada quanto ao mérito por um tribunal não é suficiente para se sobrepor ao interesse geral essencial que há em que a paz e a segurança internacionais sejam mantidas face a uma ameaça claramente identificada pelo Conselho de Segurança, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas. A este respeito, deve atribuir‑se uma importância significativa à circunstância de que as resoluções sucessivamente adoptadas pelo Conselho de Segurança, longe de preverem medidas com uma duração de aplicação ilimitada ou indeterminada, previram sempre um mecanismo de reexame da oportunidade da manutenção dessas medidas após um lapso de tempo de 12 ou 18 meses no máximo (v. n.os 16, 25, 33 e 266, supra).

290    Por último, o Tribunal de Primeira Instância considera que, não havendo uma jurisdição internacional competente para fiscalizar a legalidade dos actos do Conselho de Segurança, a criação de um órgão como o comité de sanções e a possibilidade, prevista pelos textos, de se lhe dirigir em qualquer momento a fim de obter o reexame de cada caso individual, através de um mecanismo formalizado que envolva tanto o «governo requerido» como o «governo identificador» (v. n.os 263 e 264, supra), constituem uma outra via razoável para proteger adequadamente os direitos fundamentais do recorrente tal como são reconhecidos pelo jus cogens.

291    Resulta do que antecede que os argumentos do recorrente relativos à violação alegada do seu direito a uma fiscalização jurisdicional efectiva devem ser julgados improcedentes.

292    Não tendo procedido nenhum dos fundamentos e argumentos do recorrente, deve negar‑se provimento ao recurso.

 Quanto às despesas

293    Nos termos do artigo 87.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Nos termos do artigo 87.°, n.° 4, primeiro parágrafo, os Estados‑Membros e as instituições que intervieram no processo devem suportar as respectivas despesas. Nos termos do artigo 87.°, n.° 6, se não houver lugar a decisão de mérito, o Tribunal decide livremente quanto às despesas.

294    Atentas as circunstâncias do presente caso e os pedidos das partes, o Tribunal de Primeira Instância considera justo que, em aplicação das disposições referidas, os recorrentes suportem, além das suas próprias despesas, as despesas do Conselho, bem como as despesas efectuadas pela Comissão até à data de 1 de Julho de 2002. O Reino Unido e a Comissão, esta no que diz respeito ao período posterior a 1 de Julho de 2002, suportarão as suas despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Segunda Secção alargada)

decide:

1)      Não há que conhecer do mérito do pedido de anulação parcial do Regulamento (CE) n.° 467/2001 do Conselho, de 6 de Março de 2001, que proíbe a exportação de certas mercadorias e de certos serviços para o Afeganistão, reforça a proibição de voos, prorroga o congelamento de fundos e de outros recursos financeiros aplicável aos Taliban do Afeganistão e revoga o Regulamento (CE) n.° 337/2000, e do Regulamento (CE) n.° 2062/2001 da Comissão, de 19 de Outubro de 2001, que altera, pela terceira vez, o Regulamento (CE) n.° 467/2001.

2)      É negado provimento ao recurso, na parte que visa o Regulamento (CE) n.° 881/2002 do Conselho, de 27 de Maio de 2002, que institui certas medidas restritivas específicas contra determinadas pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al‑Qaida e aos talibã, e que revoga o Regulamento (CE) n.° 467/2001.

3)      O recorrente é condenado a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas do Conselho, bem como as despesas efectuadas pela Comissão até à data de 1 de Julho de 2002.

4)      O Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte e a Comissão, esta no que diz respeito ao período posterior a 1 de Julho de 2002, suportarão as suas próprias despesas.

Forwood

Pirrung

Mengozzi

Meij

 

      Vilaras

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 21 de Setembro de 2005.

O secretário

 

      O presidente

H. Jung

 

      J. Pirrung

Índice


Quadro jurídico

Antecedentes do litígio

Tramitação processual e pedidos das partes

Quanto às consequências processuais decorrentes da adopção do regulamento impugnado

Quanto ao mérito

1.  Considerações preliminares

2.  Quanto ao fundamento relativo à incompetência do Conselho para adoptar o regulamento impugnado

Questões do Tribunal e respostas das partes

Apreciação do Tribunal de Primeira Instância

3.  Quanto aos três fundamentos relativos à violação dos direitos fundamentais do recorrente

Argumentos das partes

Apreciação do Tribunal de Primeira Instância

Observações preliminares

Quanto à articulação entre a ordem jurídica internacional emanada das Nações Unidas e a ordem jurídica nacional ou comunitária

Quanto ao alcance da fiscalização da legalidade que incumbe ao Tribunal de Primeira Instância exercer

Quanto às violações alegadas dos direitos fundamentais do recorrente

–  Quanto à violação alegada do direito ao respeito da propriedade e do princípio da proporcionalidade

–  Quanto à violação alegada do direito de ser ouvido

–  Quanto à violação alegada do direito a uma fiscalização jurisdicional efectiva

Quanto às despesas



* Língua do processo: inglês.