Language of document : ECLI:EU:C:2022:539

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

ANTHONY MICHAEL COLLINS

apresentadas em 7 de julho de 2022(1)

Processo C-348/21

HYA,

IP,

DD,

ZI,

SS

sendo interveniente:

Spetsializirana prokuratura

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva (UE) 2016/343 — Artigo 6.o, n.o 1, e artigo 8.o, n.o 1 — Ónus da prova — Direito de comparecer em julgamento — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 47.o, segundo parágrafo, e artigo 48.o, n.o 2 — Direito a um processo equitativo e direitos de defesa — Depoimento prestado por uma testemunha perante um juiz na fase pré‑contenciosa do processo penal na ausência dos arguidos ou dos seus representantes — Impossibilidade dos arguidos e dos seus representantes inquirirem testemunhas de acusação na fase de julgamento do processo penal»






I.      Introdução

1.        O direito do arguido de comparecer no seu julgamento engloba o direito de ser participante ou o direito de ser espetador? O Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária) pede ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre esta questão no segundo de cinco reenvios prejudiciais que apresentou no âmbito do mesmo processo penal (2).

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

2.        Em conformidade com o seu artigo 1.o, a Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (3), estabelece normas mínimas comuns relativas a certos aspetos da presunção de inocência e ao direito de comparecer em julgamento.

3.        Os considerandos 9 a 11, 22, 33 a 35, 47 e 48 da Diretiva 2016/343 têm a seguinte redação:

«(9)      A presente diretiva tem por objeto reforçar o direito a um processo equitativo em processo penal, estabelecendo normas mínimas comuns relativas a certos aspetos da presunção de inocência e ao direito de comparecer em julgamento.

(10)      Ao estabelecer normas mínimas comuns sobre a proteção dos direitos processuais dos suspeitos e arguidos, a presente diretiva visa reforçar a confiança nos sistemas de justiça penal entre os Estados‑Membros e, deste modo, facilitar o reconhecimento mútuo de decisões em matéria penal. Estas regras mínimas comuns podem também contribuir para a supressão dos obstáculos à livre circulação de cidadãos no território dos Estados‑Membros.

(11)       A presente diretiva deverá aplicar-se apenas aos processos penais nos termos da interpretação do Tribunal de Justiça da União Europeia […], sem prejuízo da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. […]

[…]

(22)      O ónus da prova da culpa dos suspeitos e dos arguidos recai sobre a acusação, e qualquer dúvida deverá ser interpretada em favor do suspeito ou do arguido. A presunção de inocência seria violada caso houvesse uma inversão do ónus da prova, sem prejuízo dos poderes ex officio do tribunal competente em matéria de apreciação dos factos e da independência dos órgãos judiciais na apreciação da culpa do suspeito ou do arguido, e da utilização de presunções de facto ou de direito em relação à responsabilidade penal de um suspeito ou de um arguido. […]

[…]

(33)      O direito a um processo equitativo constitui um dos princípios fundamentais de uma sociedade democrática. Este direito está na base do direito dos suspeitos ou dos arguidos de comparecerem em julgamento e deverá estar garantido em toda a União.

(34)      Se, por motivos alheios à sua vontade, o suspeito ou o arguido não puderem comparecer no julgamento, deverão poder requerer nova data para o mesmo no prazo previsto no direito nacional.

(35)      O direito do suspeito e do arguido de comparecerem no próprio julgamento não tem caráter absoluto. Em determinadas condições, o suspeito e o arguido deverão poder renunciar a esse direito, expressa ou tacitamente, mas de forma inequívoca. […]

(47)      A presente diretiva respeita os direitos e os princípios fundamentais reconhecidos pela Carta [dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir “Carta”)] e pela [Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir “CEDH”)], nomeadamente […] o direito de ação e o direito a um tribunal imparcial, o direito à presunção de inocência e os direitos de defesa. Deverá ter‑se especialmente em conta o artigo 6.o do Tratado da União Europeia (TUE), nos termos do qual a União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta e nos termos do qual os direitos fundamentais, tal como garantidos pela CEDH e como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, constituem princípios gerais do direito da União.

(48)      Uma vez que a presente diretiva estabelece normas mínimas, os Estados‑Membros deverão poder alargar os direitos nela previstos a fim de proporcionar um nível de proteção mais elevado. O nível de proteção concedido pelos Estados‑Membros não deverá nunca ser inferior às normas previstas pela Carta e pela CEDH, tal como interpretadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.»

4.        O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343, intitulado «Ónus da prova», estabelece que:

«Os Estados‑Membros asseguram que recai sobre a acusação o ónus da prova da culpa do suspeito ou do arguido, sem prejuízo da obrigação que incumbe ao juiz ou ao tribunal competente de procurarem elementos de prova, tanto incriminatórios como ilibatórios, e do direito da defesa de apresentar provas em conformidade com o direito nacional aplicável.»

5.        O artigo 8.o da Diretiva 2016/343, intitulado «Direito de comparecer em julgamento», prevê, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido tem o direito de comparecer no próprio julgamento.

2.      Os Estados‑Membros podem prever que um julgamento passível de resultar numa decisão sobre a culpa ou inocência de um suspeito ou de um arguido pode realizar‑se na sua ausência, desde que:

a)      o suspeito ou o arguido tenha atempadamente sido informado do julgamento e das consequências da não comparência; ou

b)      o suspeito ou o arguido, tendo sido informado do julgamento, se faça representar por um advogado mandatado, nomeado por si ou pelo Estado.»

6.        O artigo 13.o da Diretiva 2016/343, intitulado «Não regressão», tem a seguinte redação:

«Nenhuma disposição da presente diretiva pode ser interpretada como uma limitação ou derrogação dos direitos e garantias processuais garantidos pela Carta, pela CEDH e por outras disposições aplicáveis do direito internacional ou pela lei de qualquer Estado‑Membro que faculte um nível de proteção superior.»

B.      Direito búlgaro

7.        Nos termos do artigo 12.o do Nakazatelno‑protsesualen kodeks (Código de Processo Penal, a seguir «NPK») (4), os processos judiciais são de natureza contraditória e a defesa tem os mesmos direitos que a acusação.

8.        Resulta do artigo 46.o, n.o 2, ponto 1, e do artigo 52.o do NPK que a fase pré‑contenciosa do processo penal é conduzida pelas autoridades de investigação sob a direção e supervisão do Ministério Público.

9.        Por força do artigo 117.o do NPK:

«Todos os factos que tenham sido presenciados por uma testemunha e possam contribuir para a descoberta da verdade podem ser provados mediante depoimento de testemunha.»

10.      O despacho de reenvio, ‑referindo‑se ao artigo 107.o, n.o 1, e aos artigos 139.o e 224.o do NPK, indica que a testemunha é inquirida na fase pré‑contenciosa do processo penal, com vista à recolha de provas, geralmente sem a presença da defesa. Referindo‑se ao artigo 280.o, n.o 2, do NPK, lido em conjugação com o seu artigo 253.o, indica também que a testemunha é novamente inquirida na audiência, na presença da defesa, que tem então a oportunidade de lhe colocar as suas próprias questões.

11.      O artigo 223.o do NPK, intitulado «Inquirição de testemunhas perante um juiz», prevê, nos seus n.os 1 e 2:

«(1)      Quando houver o risco de a testemunha não poder comparecer perante o tribunal devido a uma doença grave, um período prolongado de ausência do país ou por outras razões que impossibilitem a sua comparência na audiência de julgamento, bem como quando seja necessário perpetuar o depoimento de testemunha que seja de especial importância para a descoberta da verdade material, a inquirição será levada a cabo perante um juiz do tribunal de primeira instância competente ou do tribunal de primeira instância em cuja circunscrição a ação corre termos. Nessas circunstâncias, o processo não é submetido ao juiz.

(2)      A autoridade responsável pela fase pré‑contenciosa do processo deve assegurar a comparência da testemunha e a possibilidade de o arguido e, se for caso disso, o seu defensor, participarem na inquirição.»

12.      O artigo 281.o do NPK, intitulado «Leitura do depoimento das testemunhas», dispõe, nos seus n.os 1 e 3:

«(1)      Os depoimentos recolhidos no mesmo processo perante um juiz no âmbito da fase pré‑contenciosa do processo ou perante outra composição do tribunal serão lidos quando:

[…]

3.      a testemunha, devidamente notificada, não pode comparecer perante o tribunal por um período prolongado ou indefinido de tempo e não precisa ou não pode ser inquirida através de uma delegação de poderes;

4.      a testemunha não pode ser notificada ou tenha falecido;

[…]

(3)      Por força das condições previstas no artigo 281.o, n.os 1 a 6, o depoimento de uma testemunha prestado perante uma autoridade responsável pela fase pré‑contenciosa do processo será lido quando o arguido e o seu defensor, se este tiver sido autorizado ou nomeado, tiverem participado na inquirição. Se houver vários arguidos, a leitura dos depoimentos das testemunhas que versem sobre as acusações deduzidas contra eles carece do consentimento dos arguidos que não foram notificados para a inquirição ou que tenham apresentado razões devidamente justificadas para a sua não comparência.»

III. Litígio no processo principal e questão prejudicial

13.      A Spetsializirana prokuratura (Procuradoria com Competência Especializada, Bulgária) instaurou um processo penal contra várias pessoas por terem alegadamente participado num grupo de criminalidade organizada cujo objetivo era fazer passar clandestinamente nacionais de países terceiros através das fronteiras búlgaras, ajudá‑los a entrar ilegalmente no território da Bulgária e receber ou conceder subornos no âmbito dessas atividades.

14.      Na fase pré‑contenciosa do processo penal, as autoridades responsáveis pela mesma interrogaram cinco nacionais de países terceiros, a saber, MM, RB, KH, HN e PR (a seguir, em conjunto, «testemunhas»), cuja entrada ilegal na Bulgária tinha alegadamente sido facilitada por cinco pessoas, a saber, IP, DD, ZI, SS e HYA (a seguir, em conjunto, «arguidos»). Os três primeiros arguidos eram agentes da polícia de fronteiras do aeroporto de Sófia (Bulgária).

15.      Em conformidade com o artigo 223.o do NPK, as testemunhas foram inquiridas perante um juiz: MM, RB e PR compareceram em 30 de março e em 12 de abril de 2017, HN compareceu em 30 de março de 2017 e KH compareceu em 26 de maio de 2017 (5). Estas inquirições tiveram lugar antes de os arguidos terem sido formalmente acusados e de lhes ter sido concedido acesso a um advogado. IP, DD, SS e HYA foram detidos no final do dia de 25 de maio de 2017 e foram acusados no dia seguinte (6), ao passo que ZI foi detido e acusado em 31 de maio de 2017. Posteriormente, os arguidos foram colocados em prisão preventiva e foi‑lhes assegurada a assistência de um advogado.

16.      Após os arguidos terem sido acusados, o Ministério Público não considerou necessário inquirir as testemunhas na presença dos arguidos ou dos seus representantes, apesar de ter conhecimento de que tinham sido emitidas ordens de expulsão contra quatro delas, tornando assim improvável que essas testemunhas pudessem comparecer no julgamento dos arguidos.

17.      Em 21 de julho de 2017, o Ministério Público inquiriu as testemunhas MM e RB pela segunda vez. MM voltou a ser inquirida em 22 de novembro de 2017. Estas inquirições não foram conduzidas perante um juiz e os arguidos e os seus representantes estavam ausentes.

18.      Em 18 de janeiro de 2018, SS e, em 30 de abril de 2018, DD, pediram expressamente autorização para inquirir MM. O Ministério Público não respondeu a esses pedidos (7).

19.      Devido à sua presença ilegal na Bulgária e paralelamente ao processo penal, as testemunhas MM, RB, HN e PR foram objeto de um procedimento administrativo e foram detidas num abrigo para migrantes. Antes de serem postas em liberdade, as ordens de expulsão foram‑lhes notificadas. KH, que tinha entrado no país em 25 de maio de 2017, abandonou‑o em 29 de maio de 2017 sem que lhe tivesse sido instaurado um procedimento administrativo.

20.      Em 19 de junho de 2020, a Procuradoria com competência especializada apresentou no órgão jurisdicional de reenvio uma acusação contra os arguidos. As tentativas do órgão jurisdicional de reenvio de localizar e notificar as testemunhas com vista à sua inquirição na presença dos arguidos ou dos seus representantes revelaram‑se infrutíferas, quer porque o seu lugar de residência era desconhecido (no caso de RB, HN e PR), quer porque tinham sido expulsos da Bulgária (no caso de MM), quer porque tinham abandonado voluntariamente o país (no caso de KH). O órgão jurisdicional de reenvio concluiu, assim, que não era possível inquirir pessoalmente as testemunhas, na presença dos arguidos ou dos seus representantes, e que estes últimos colocassem questões a essas testemunhas.

21.      Na audiência de 9 de abril de 2021, o Ministério Público pediu, nos termos do artigo 281.o, n.o 1, do NPK, que fossem lidas no julgamento dos arguidos as declarações que as testemunhas tinham prestado perante o juiz, na fase pré‑contenciosa do processo penal (8). Deste modo, as declarações passariam a fazer parte dos elementos de prova com base nos quais o tribunal se pronunciaria sobre as acusações feitas contra os arguidos. Os arguidos opuseram‑se a esse pedido com o fundamento de que isso os privaria do seu direito a um processo equitativo, na aceção do artigo 6.o da CEDH.

22.      O órgão jurisdicional de reenvio explica que os depoimentos dessas testemunhas constituem o fundamento da acusação e são cruciais para a apreciação da culpa dos arguidos. Todavia, tem dúvidas quanto à compatibilidade com o direito da União do procedimento previsto no artigo 281.o, n.o 1, do NPK, lido em conjugação com o seu artigo 223.o, segundo o qual, na ausência de uma testemunha na audiência de julgamento de um arguido, o depoimento que a mesma testemunha prestou perante um juiz na fase pré‑contenciosa do processo penal sem a presença do arguido ou dos seus representantes pode ser lido na audiência sem que este último tenha tido a possibilidade de interrogar essa testemunha.

23.      O órgão jurisdicional de reenvio observa que, no julgamento de uma infração penal, um tribunal penal pode basear‑se nas declarações feitas na presença de um arguido ou dos seus representantes. Nos termos do artigo 281.o, n.os 1 e 3, do NPK, quando o tribunal do julgamento lê as declarações prestadas por uma testemunha na fase pré‑contenciosa, essas declarações tornam‑se parte dos elementos de prova nos autos e têm o mesmo valor probatório que teriam se a testemunha tivesse comparecido em julgamento e tivesse respondido a perguntas das partes. O órgão jurisdicional de reenvio explica que, quando existe o risco de uma testemunha não poder comparecer perante o tribunal do julgamento, pode ser ouvida na fase pré‑contenciosa perante um juiz, cujo papel é conduzir a inquirição assegurando a sua legalidade formal. A partir do momento em que um suspeito tenha sido formalmente acusado, deve ser informado dessa inquirição e ter a oportunidade de participar na mesma. No entanto, para contornar essa obrigação legal, as autoridades responsáveis pela investigação inquirem frequentemente as testemunhas no período de 24 horas entre a detenção do suspeito e a sua acusação formal (9). Foi o que sucedeu no presente caso (10).

24.      Na opinião do órgão jurisdicional de reenvio, o direito de o arguido comparecer no seu julgamento que figura no artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 implica o exercício de todos os seus direitos jurídicos no contexto desse julgamento para efeitos da sua defesa, incluindo o direito de interrogar as testemunhas de acusação. O juiz do julgamento só pode, assim, basear‑se nas provas recolhidas na presença dos arguidos ou dos seus representantes. No caso em apreço, embora os arguidos tivessem comparecido no seu julgamento, na realidade assistem à leitura das declarações prestadas pelas testemunhas para efeitos da acusação, sem terem a possibilidade de interrogar essas testemunhas. Referindo‑se ao artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, o órgão jurisdicional de reenvio considera que os arguidos se encontram na mesma situação em que estariam se o Ministério Público tivesse ouvido essas testemunhas na audiência sem a presença dos arguidos ou dos seus representantes.

25.      O órgão jurisdicional de reenvio observa ainda que, quando o Ministério Público recolhe elementos de prova no âmbito de um procedimento interlocutório, como o previsto no artigo 223.o do NPK, sem a participação da defesa, e utiliza esses elementos de prova para determinar a culpa dos arguidos no respetivo julgamento, demonstra os factos em causa no processo de uma forma que exclui qualquer possibilidade de os arguidos ou os seus representantes colocarem questões a essas testemunhas. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a obrigação imposta ao Ministério Público pelo artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 de provar a culpa do arguido é corretamente cumprida em tais circunstâncias. Pergunta também se o direito a um julgamento equitativo garantido pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta exige que os arguidos disponham de meios jurídicos eficazes para se defenderem dos elementos incriminatórios apresentados pela acusação, em especial a possibilidade de interrogarem as testemunhas de acusação. Assim, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 deve ser interpretado em conjugação com o seu artigo 8.o, n.o 1.

26.      O órgão jurisdicional de reenvio não considera que a leitura, no julgamento dos arguidos, do depoimento prestado por uma testemunha na fase pré‑contenciosa do processo sem que os arguidos tenham tido a possibilidade de colocar as suas próprias questões a essa testemunha seja incompatível com o direito da União em todas as circunstâncias. Embora este procedimento viole o direito do arguido de comparecer em julgamento, pode ser necessário quando for objetivamente impossível assegurar a presença de uma testemunha no julgamento, o Ministério Público atuar de boa‑fé e existirem medidas compensatórias em vigor.

27.      No presente processo, a acusação sabia que as testemunhas seriam deslocadas para fora do território da Bulgária e que, por conseguinte, seria difícil, se não impossível, comparecerem no julgamento. Sabia, assim, que os depoimentos prestados pelas testemunhas perante um juiz na fase pré‑contenciosa, em resposta às questões do Ministério Público e na ausência dos arguidos e dos seus representantes, seriam lidos na audiência de julgamento e que teriam o mesmo valor probatório que teriam se os arguidos ou os seus representantes tivessem comparecido nessa audição da fase pré‑contenciosa (11). Além disso, o direito nacional não prevê vias de recurso contra a inação ou uma recusa do Ministério Público de dar aos arguidos a oportunidade de interrogarem as testemunhas cujos depoimentos pretende invocar.

28.      Nestas circunstâncias, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«É compatível com o artigo 8.o, n.o 1, e com o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343, [lido] em conjugação com os seus considerandos 33 e 34, bem como com o artigo 47.o, n.o 2, da Carta, uma lei nacional que prevê que o direito do arguido de [comparecer em] julgamento é respeitado e o Ministério Público cumpre devidamente a sua obrigação de provar a culpa do arguido quando, durante a fase de julgamento do processo penal, são introduzidos os depoimentos de testemunhas obtidos na fase pré‑contenciosa do processo, que não podem ser inquiridas por razões objetivas e que só o foram pela acusação, perante um juiz, mas sem a participação da defesa, e a acusação já poderia ter permitido a participação da defesa nessa inquirição na fase pré‑contenciosa, mas não o fez?»

29.      DD, IP e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

IV.    Apreciação jurídica

A.      Pertinência do artigo 6.o da CEDH e dos artigos 47.o e 48.o da Carta

30.      O órgão jurisdicional de reenvio considera que a situação que suscita dúvidas no presente processo pode ser compatível com o direito da União se estiverem cumpridos alguns dos requisitos estabelecidos na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (a seguir «TEDH») (12). Em especial, faz referência ao Acórdão do TEDH no processo Gani/Espanha (13), no qual esse órgão jurisdicional examinou, à luz do artigo 6.o, n.o 1, e n.o 3, alínea d), da CEDH, a possibilidade de um órgão jurisdicional admitir a prova dos depoimentos da única testemunha de acusação durante a fase pré‑contenciosa do processo quando o arguido e o seu advogado de defesa não a puderam ouvir na audiência de julgamento devido ao seu stresse pós‑traumático.

31.      Tenho duas observações a fazer a esse respeito.

32.      Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio está certo ao recorrer à jurisprudência do TEDH para interpretar a Diretiva 2016/343 (14).

33.      O considerando 47 da Diretiva 2016/343 declara que esta respeita os direitos e os princípios fundamentais reconhecidos pela Carta e pela CEDH, nomeadamente o direito a um tribunal imparcial, o direito à presunção de inocência e os direitos de defesa. Resulta do considerando 48 da Diretiva 2016/343 que o nível de proteção concedido pelos Estados‑Membros não deverá nunca ser inferior às normas previstas pela Carta e pela CEDH, tal como interpretadas pelo Tribunal de Justiça e pelo TEDH. A exigência de respeito pelas normas mínimas está estreitamente ligada aos objetivos de reforço da confiança nos sistemas de justiça penal entre os Estados‑Membros e de facilitar o reconhecimento mútuo de decisões em matéria penal (15).

34.      O considerando 33 da Diretiva 2016/343 declara que o direito dos arguidos de comparecerem no seu julgamento é baseado no direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6.o da CEDH e no artigo 47.o, segundo e terceiro parágrafos, e no artigo 48.o da Carta. Segundo as Anotações relativas à Carta (16), o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta corresponde ao artigo 6.o, n.o 1, da CEDH e o artigo 48.o da Carta é idêntico ao artigo 6.o, n.os 2 e 3, da CEDH (17). Daqui decorre que o direito de qualquer pessoa acusada de uma infração penal de interrogar ou fazer interrogar, em seu nome, as testemunhas chamadas a depor contra ela, consagrado no artigo 6.o, n.o 3, alínea d), da CEDH, faz parte dos direitos de defesa garantidos pelo artigo 48.o, n.o 2, da Carta. Estes exigem que seja dada ao indivíduo em causa a oportunidade de dar efetivamente a conhecer a sua opinião sobre as acusações que são deduzidas contra o mesmo (18), e constituem, mais genericamente, um aspeto específico do direito a um processo equitativo garantido pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta (19).

35.      Em segundo lugar, estas observações levam‑me a concluir que, além do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, ao qual o órgão jurisdicional de reenvio se refere diretamente, importa igualmente ter em conta o artigo 48.o, n.o 2, da Carta para dar uma resposta útil à questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio (20).

B.      Quanto à questão prejudicial

36.      O processo principal está abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2016/343, uma vez que, como resulta claramente do despacho de reenvio, diz respeito aos arguidos que são acusados no âmbito de um processo penal por terem alegadamente cometido infrações penais quando ainda não se chegou a uma decisão final quanto à sua culpa (21).

37.      Nas suas observações escritas, a Comissão procura redefinir o âmbito do reenvio prejudicial alegando que a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio suscita, no essencial, uma questão sobre a admissibilidade da prova. Os Estados‑Membros têm a obrigação de assegurar que, na apreciação das declarações feitas por um suspeito ou por um acusado ou das provas obtidas em violação do direito de guardar silêncio e do direito de não se autoincriminar, sejam respeitados os direitos de defesa e a equidade do processo. Esta obrigação considera‑se, no entanto, «[s]em prejuízo das normas e dos sistemas nacionais em matéria de admissibilidade de provas» (22).

38.      O presente pedido de decisão prejudicial, pelo menos na parte em que visa a interpretação do artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343, lido em conjugação com o artigo 47.o, segundo parágrafo, e o artigo 48.o, n.o 2, da Carta, não levanta uma questão relativamente à admissibilidade das provas. Pelo contrário, invoca expressamente o direito de os arguidos comparecerem no seu julgamento, num contexto em que o órgão jurisdicional de reenvio pretende conhecer o alcance e o conteúdo preciso desse direito, bem como as consequências daí decorrentes para a condução do julgamento dos arguidos. Em especial, pretende saber se esse direito tem plena eficácia em circunstâncias em que os arguidos podem comparecer no seu julgamento para ouvir depoimentos, feitos por testemunhas de acusação na fase pré‑contenciosa do processo na sua ausência e dos seus representantes, registados no processo, sem estarem autorizados a colocar questões a essas testemunhas devido à ausência destas. Por outras palavras, o direito de comparecer em julgamento, tal como garantido pelas referidas disposições, abrange necessariamente o direito do arguido ou dos seus representantes de participar nessa audiência de julgamento através da inquirição de testemunhas de acusação?

39.      A título subsidiário, a Comissão defende que o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 não se aplica numa situação como a que é apresentada no despacho de reenvio.

40.      A Comissão alega, em primeiro lugar, que o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 se aplica apenas à fase de julgamento do processo penal. Não regula, portanto, a produção da prova na fase pré‑contenciosa, incluindo a questão de saber se os arguidos e/ou os seus representantes têm o direito de estar presentes nessa fase durante a inquirição de uma testemunha.

41.      Esta argumentação não me convence. Como o despacho de reenvio sublinha, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a legalidade da aplicação do artigo 281.o, n.o 1, do NPK à audiência de julgamento dos arguidos e não sobre a tramitação do processo penal na fase pré‑contenciosa.

42.      Em segundo lugar, a Comissão argumenta que o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 consiste no direito de um arguido comparecer na sua audiência de julgamento. Não abrange o direito de os arguidos ou os seus representantes colocarem questões a testemunhas.

43.      Embora nem o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 nem qualquer outra disposição desta diretiva mencionem o direito do arguido de inquirir as testemunhas de acusação, a interpretação dada pela Comissão ao direito dos arguidos de comparecerem na sua audiência de julgamento consiste em reduzir o seu papel ao de meros espetadores. Esta interpretação priva o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 de qualquer substância e torna ineficaz, ou mesmo inútil, o direito dos arguidos de assistirem à sua audiência de julgamento. O órgão jurisdicional de reenvio considera, com razão, que, se essa interpretação prevalecer, os arguidos ficam na mesma situação em que estariam se o Ministério Público tivesse procedido à inquirição das referidas testemunhas na audiência de julgamento perante a ausência dos arguidos ou dos seus representantes.

44.      Em todo o caso, resulta claramente da jurisprudência tanto do Tribunal de Justiça como do TEDH que o direito dos arguidos de interrogarem as testemunhas convocadas pela acusação numa audiência de julgamento em processo penal faz parte do núcleo essencial do direito de uma pessoa comparecer no seu julgamento.

45.      Referindo‑se à jurisprudência do TEDH num acórdão em que interpretou o artigo 8.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2016/343, o Tribunal de Justiça declarou que «a realização de uma audiência pública constitui um princípio fundamental consagrado no artigo 6.o da CEDH [que] reveste uma importância particular em matéria penal, […] em que um particular pode legitimamente exigir ser “ouvido” e beneficiar, nomeadamente, da possibilidade de expor oralmente os seus fundamentos de defesa, de ouvir os depoimentos de acusação, de interrogar e contra interrogar as testemunhas» (23).

46.      Do mesmo modo, num processo que envolveu a aplicação do princípio da imediação do processo penal, segundo o qual um juiz deve ter um conhecimento direto e imediato do processo que lhe foi submetido (24), o Tribunal de Justiça declarou que as pessoas que têm a responsabilidade de decidir da culpa ou inocência de um arguido devem, em princípio, ouvir pessoalmente as testemunhas e avaliar a sua credibilidade, que a avaliação da credibilidade de uma testemunha é uma tarefa complexa que, normalmente, não pode ser cumprida através de uma simples leitura do conteúdo das suas declarações, e que «um dos elementos importantes de um processo penal equitativo é a possibilidade de o acusado ser confrontado com as testemunhas na presença do juiz que profere a decisão final» (25).

47.      Em várias ocasiões, o TEDH teve a oportunidade de interpretar o direito dos acusados de uma infração penal a interrogar, ou fazer interrogar em seu nome, as testemunhas chamadas a depor contra eles, tal como consagrado no artigo 6.o, n.o 3, alínea d), da CEDH, o que constitui um aspeto específico do direito a um processo equitativo reconhecido no artigo 6.o, n.o 1, da CEDH (26). À luz destas disposições, o TEDH avalia se os processos penais, de uma forma global, incluindo a produção da prova, são equitativos (27).

48.      Segundo o TEDH, o artigo 6.o, n.os 1 e 3, alínea d), da CEDH em princípio exige que, antes de as pessoas acusadas de uma infração penal poderem ser condenadas, todas as provas contra elas devem ser apresentadas na sua presença numa audiência pública, com o objetivo de facilitar a argumentação contraditória. A utilização como meio de prova dos depoimentos recolhidos na fase de instrução não é, por si só, incompatível com essas disposições, desde que sejam sempre respeitados os direitos de defesa, que, em regra, exigem que seja dada a um arguido uma oportunidade adequada e suficiente para contestar e interrogar uma testemunha de acusação (28).

49.      O TEDH avalia a compatibilidade com o artigo 6.o, n.os 1 e 3, alínea d), da CEDH dos processos penais no decurso dos quais as declarações feitas por uma testemunha que não tenha comparecido nem sido interrogada na audiência de julgamento são utilizadas como prova por referência a um critério de três etapas (29).

50.      Em primeiro lugar, deve haver uma boa razão para a não comparência da testemunha de acusação na audiência de julgamento, tal como a morte, estado de saúde, medo de testemunhar ou impossibilidade de a localizar (30).

51.      Em segundo lugar, uma condenação exclusivamente, ou de forma determinante, baseada em declarações feitas por uma pessoa que o arguido não teve oportunidade de inquirir ou de ter inquirido em seu nome, quer no decurso da investigação quer no julgamento, restringe os direitos de defesa de tal modo que torna o julgamento incompatível com as garantias previstas no artigo 6.o da CEDH (31).

52.      Em terceiro lugar, o TEDH verifica se existiam fatores compensatórios suficientes, incluindo fortes garantias processuais, para compensar as desvantagens causadas à defesa em resultado da admissão das declarações não testadas de uma testemunha ausente e para garantir o caráter equitativo do processo, apreciado no seu conjunto (32). O TEDH aprecia os seguintes elementos nesse contexto: a abordagem do tribunal do julgamento à prova não testada da testemunha ausente (33), a disponibilidade e a força da prova corroborativa no julgamento (34), e as medidas processuais adotadas para compensar a falta de uma oportunidade de contra interrogar a testemunha diretamente na audiência de julgamento (35).

53.      É à luz destas considerações que a questão submetida deve ser respondida no que diz respeito à interpretação do artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343.

54.      Como explica o órgão jurisdicional de reenvio, o artigo 281.o, n.o 1, do NPK, lido em conjugação com o seu artigo 223.o, permite ao órgão jurisdicional que aprecie acusações penais, quando uma testemunha está, por motivos justificados, impossibilitada de comparecer no julgamento, ter em conta, para determinar a culpa ou a inocência de um arguido, as declarações dessa testemunha inquirida pela acusação perante um juiz na fase pré‑contenciosa do processo, sob o pressuposto de que, se o arguido não tiver sido formalmente acusado no momento em que a inquirição teve lugar, não pode participar na mesma.

55.      Na medida em que, na prática, estas disposições impedem os arguidos ou o seu defensor de inquirir a testemunha de acusação na audiência de julgamento, podem infringir o direito dessas pessoas de estarem presentes no seu julgamento, tal como garantido pelo artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343, bem como o direito a um processo equitativo e os direitos de defesa consagrados, respetivamente, no artigo 47.o, segundo parágrafo, e no artigo 48.o, n.o 2, da Carta.

56.      Embora o Tribunal de Justiça não esteja obrigado a seguir o critério de três etapas concebido pelo TEDH, o referido critério fornece um quadro conceptual útil relativamente ao qual a compatibilidade dos procedimentos, como os descritos no despacho de reenvio, pode ser apreciada à luz do artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 e dos direitos consagrados no artigo 47.o, segundo parágrafo, e no artigo 48.o, n.o 2, da Carta.

57.      A legislação nacional a que o órgão jurisdicional de reenvio se refere parece cumprir o requisito da primeira etapa desse critério, uma vez que a prova da testemunha de acusação só deve ser admitida quando houver motivos justificados para a sua ausência na audiência de julgamento. A questão de saber se a acusação pode apresentar motivos justificados para a ausência das testemunhas nas circunstâncias do processo pendente no órgão jurisdicional de reenvio é da competência deste último.

58.      A aplicação da segunda parte do critério estabelecido pelo TEDH é também uma questão a decidir pelo órgão jurisdicional de reenvio à luz dos factos que lhe foram submetidos. Se considerar que a prova das testemunhas ausentes é decisiva para determinar a culpa dos arguidos, a legislação nacional a que se refere restringe o direito dessas pessoas se defenderem numa medida incompatível com as garantias previstas no artigo 6.o da CEDH.

59.      Quanto à terceira parte do referido critério, os elementos de que o Tribunal de Justiça dispõe tendem a revelar a insuficiência dos fatores compensatórios estabelecidos para compensar as desvantagens causadas aos arguidos devido à admissão da prova testemunhal não testada, de modo a garantir que o julgamento, avaliado como um todo, seja equitativo. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, os depoimentos das testemunhas prestados perante um juiz ao abrigo do artigo 223.o do NPK, lido em conformidade com o artigo 281.o, n.o 1, do NPK, têm o mesmo valor probatório que teriam se as testemunhas comparecessem em julgamento e tivessem respondido às questões tanto da acusação como da defesa. Em especial, não existe nenhuma obrigação da acusação, após ter inquirido uma testemunha perante um juiz nos termos do artigo 223.o do NPK, sem a participação da defesa, ouvir novamente essa testemunha, na presença da defesa, na fase pré‑contenciosa (36). A defesa também não tem possibilidade de contestar uma recusa da acusação a um pedido de inquirição de testemunhas na fase pré‑contenciosa ou de lhe exigir que responda a um pedido para esse efeito.

60.      Quanto à interpretação do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343, a que a questão prejudicial também se refere, esta disposição é um dos cinco artigos contidos no capítulo 2 da mesma diretiva, que aborda a presunção de inocência. Como decorre do considerando 22 da diretiva, a referida disposição impõe aos Estados‑Membros que garantam que o ónus da prova da culpa dos suspeitos e dos arguidos recaia sobre a acusação.

61.      O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 destina‑se, assim, a atribuir o ónus da prova em processos penais. Contrariamente ao que sugere o órgão jurisdicional de reenvio, esta disposição não contém a exigência de que, para determinar a culpa dos arguidos, a acusação só pode apresentar as provas que tenha obtido em conformidade com a lei, incluindo o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343. O objeto da Diretiva 2016/343, tal como definido no seu artigo 1.o, não pretende de modo nenhum reger este tipo de questões.

62.      Por conseguinte, considero que a interpretação do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 não é pertinente para os factos do presente processo e que, deste modo, não há necessidade de responder ao pedido do órgão jurisdicional de reenvio para interpretar esta disposição.

V.      Conclusão

63.      À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pelo Spetsializiran nakazatele sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária) do seguinte modo:

Uma legislação nacional que prevê que é garantido o direito do arguido de comparecer em julgamento é incompatível com o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal, lido em conjugação com o artigo 47.o, segundo parágrafo, e o artigo 48.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, quando os depoimentos prestados na fase pré‑contenciosa do processo, por testemunhas que não podem ser inquiridas por razões objetivas, são introduzidos na fase de julgamento do processo penal, numa situação em que essas testemunhas foram inquiridas apenas pela acusação e sem a participação da defesa, mas perante um juiz, e a acusação poderia ter permitido a participação da defesa nessa inquirição na fase pré‑contenciosa do processo, mas não o fez.


1      Língua original: inglês.


2      V. Despacho de 25 de março de 2022, Spetsializirana prokuratura (Determinação da precisão dos factos no processo) (C‑609/21, não publicado, EU:C:2022:232); Processo C‑347/21, DD (Nova inquirição da testemunha) (JO 2021, C 338, p. 12), Processo C‑349/21, HYA e o. (Fundamentação das autorizações para grampear telefones) (JO 2021, C 338, p. 13) e Processo C‑269/22, I.P. e o.


3      JO 2016, L 65, p. 1.


4      DV n.o 86, de 28 de outubro de 2005.


5      Das 15h05m às 15h50m.


6      Entre as 17h40m e as 20h20m.


7      Nas suas observações, DD alega que pediu ao Ministério Público que autorizasse a inquirição de MM e RB e que esses pedidos foram expressamente indeferidos.


8      V. n.o 15 das presentes conclusões.


9      Nos termos do artigo 72.o, n.o 1, da Zakon za Ministerstvoto na vatreshnite raboti (Lei Relativa ao Ministério da Administração Interna) (DV n.o 53 de 27 de junho de 2014), lido em conjugação com o seu artigo 73.o, uma pessoa suspeita de ter cometido uma infração penal pode ser detida por um período máximo de 24 horas. É geralmente no termo desse período de tempo que um suspeito é formalmente acusado.


10      Refere‑se ao caso de KH no n.o 15 das presentes conclusões.


11      O órgão jurisdicional de reenvio observa que, ao abrigo do direito nacional, o depoimento de uma testemunha que foi ouvida — seja ou não perante um juiz — com a participação da acusação e da defesa, e o depoimento de uma testemunha que foi ouvida apenas com a participação da acusação, mas perante um juiz, têm o mesmo valor probatório.


12      V. n.o 26 das presentes conclusões.


13      TEDH, 19 de fevereiro de 2013 (CE:ECHR:2013:0219JUD006180008, §§ 39 e 41). O despacho de reenvio refere expressamente o artigo 6.o, n.o 3, alínea d), da CEDH e os acórdãos do TEDH que interpretam esta disposição.


14      V., no mesmo sentido, Conclusões do advogado‑geral J. Richard de la Tour no processo Sofiyska rayonna prokuratura e o. (Julgamento de um arguido afastado do território) (C‑420/20, EU:C:2022:157, n.o 51). Do mesmo modo, nas conclusões que apresentou no processo Prokuratura Rejonowa Łódź‑Bałuty (C‑338/20, EU:C:2021:683, n.o 82), o advogado‑geral M. Bobek observou que «o Tribunal de Justiça ainda não teve oportunidade de produzir um conjunto de jurisprudência relativa ao direito a um processo equitativo tão amplo e tão detalhado como o desenvolvido pelo TEDH» e que, «[c]ontudo, nas decisões que proferiu até à data, o Tribunal de Justiça citou frequente e expressamente os acórdãos do TEDH relativos ao artigo 6.o, n.o 3, CEDH e “integrou” na ordem jurídica da União os princípios que deles decorrem».


15      Considerando 10 da Diretiva 2016/343.


16      JO 2007, C 303, p. 17.


17      Além disso, o artigo 52.o, n.o 3, da Carta dispõe que, na medida em que a Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela CEDH, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa convenção. As anotações relativas a esta disposição indicam que o sentido e o âmbito dos direitos assim garantidos são determinados pela CEDH e pela jurisprudência do TEDH que interpreta a mesma disposição (v. também Acórdão de 30 de junho de 2016, Toma e Biroul Executorului Judecătoresc Horațiu‑Vasile Cruduleci, C‑205/15, EU:C:2016:499, n.o 41).


18      Conclusões do advogado‑geral J. Richard de la Tour no processo Sofiyska rayonna prokuratura e o. (Julgamento de um arguido afastado do território) (C‑420/20, EU:C:2022:157, n.o 54).


19      Assim, no seu Acórdão de 19 de fevereiro de 2013, Gani/Espanha, o TEDH declarou que «o artigo 6.o, n.o 3, alínea d), da [CEDH] é um aspeto específico do direito a um processo equitativo garantido pelo artigo 6.o, n.o 1, que deve ser tido em conta em qualquer avaliação da equidade do processo» (CE:ECHR:2013:0219JUD006180008, § 36). V. também Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Gambino e Hyka (C‑38/18, EU:C:2019:208, n.o 92).


20      Segundo jurisprudência constante, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Além disso, o Tribunal de Justiça pode entender que é necessário levar em consideração normas de direito da União às quais o juiz nacional não fez referência (Acórdão de 29 de abril de 2021, Banco de Portugal  e o., C‑504/19, EU:C:2021:335, n.o 30). As observações escritas da Comissão alegam que o direito do arguido de participar na audição de uma testemunha está, em princípio, protegido pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, e pelo artigo 48.o, n.o 2, da Carta.


21      O artigo 2.o da Diretiva 2016/343 prevê que esta é aplicável às pessoas singulares que são suspeitas da prática de um ilícito penal ou que foram constituídas arguidas em processo penal e a todas as fases do processo penal, isto é, a partir do momento em que uma pessoa é suspeita da prática de um ilícito penal ou é constituída arguida ou é suspeita ou acusada de ter cometido um alegado ilícito penal, até ser proferida uma decisão final sobre a prática do ilícito penal e essa decisão ter transitado em julgado.


22      Artigo 10.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343.


23      Acórdão de 13 de fevereiro de 2020, Spetsializirana prokuratura (Audiência na ausência do arguido) (C‑688/18, EU:C:2020:94, n.o 36).


24      Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Gambino e Hyka (C‑38/18, EU:C:2019:208, n.o 44).


25      Acórdão de 29 de julho de 2019, Gambino e Hyka (C‑38/18, EU:C:2019:628, n.os 42 e 43).


26      V. nota n.o 19 das presentes conclusões.


27      TEDH, 19 de fevereiro de 2013, Gani c. Espanha (CE:ECHR:2013:0219JUD006180008, § 37 e jurisprudência referida), e de 15 de dezembro de 2015, Schatschaschwili c. Alemanha (CE:ECHR:2015:1215JUD000915410, §§ 100 e 101 e jurisprudência referida).


28      TEDH, 19 de fevereiro de 2013, Gani c. Espanha (CE:ECHR:2013:0219JUD006180008, § 38 e jurisprudência referida), e de 15 de dezembro de 2015, Schatschaschwili c. Alemanha (CE:ECHR:2015:1215JUD000915410, § 105 e jurisprudência referida).


29      TEDH, 15 de dezembro de 2015, Schatschaschwili c. Alemanha (CE:ECHR:2015:1215JUD000915410, § 107). No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça, no seu Acórdão Gambino e Hyka, declarou que «para determinar se a utilização como prova da ata do depoimento de uma vítima é possível, os Estados‑Membros devem examinar se a audição desta é suscetível de revestir um caráter importante para efeitos do julgamento do arguido e assegurar, através de garantias processuais suficientes, que a administração das provas no âmbito do processo penal não põe em causa a equidade desse processo, na aceção do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, nem os direitos de defesa, na aceção do seu artigo 48.o, n.o 2» (Acórdão de 29 de julho de 2019, C‑38/18, EU:C:2019:628, n.o 55).


30      TEDH, 15 de dezembro de 2011, Al‑Khawaja e Tahery c. Reino Unido (CE:ECHR:2011:1215JUD002676605, §§ 119 e 120), e 15 de dezembro de 2015, Schatschaschwili c. Alemanha (CE:ECHR:2015:1215JUD000915410, § 119 e jurisprudência referida).


31      TEDH, 19 de fevereiro de 2013, Gani c. Espanha (CE:ECHR:2013:0219JUD006180008, § 38 e jurisprudência referida).


32      Ibidem, §§ 41 e 42, e jurisprudência referida.


33      O TEDH aprecia, nomeadamente, se o tribunal do julgamento abordou com prudência as provas não testadas da testemunha ausente, se mostrou consciência de que o depoimento da testemunha ausente tinha menor pertinência, e se forneceu um raciocínio pormenorizado sobre a razão pela qual considerou essas provas credíveis, tendo em conta as outras provas disponíveis (TEDH, 15 de dezembro de 2015, Schatschaschwili c. Alemanha, CE:ECHR:2015:1215JUD000915410, § 126).


34      Ibidem, § 128.


35      Segundo o TEDH, uma garantia importante é ter dado aos arguidos ou ao seu defensor a oportunidade de interrogarem a testemunha durante a fase de instrução. A este respeito, declarou que, «[n]os casos em que as autoridades responsáveis pela investigação já [tenham] considerado, na fase de instrução, que uma testemunha não será ouvida no decurso do processo, [é] essencial dar à defesa a oportunidade de colocar perguntas à vítima durante a investigação preliminar» (TEDH, 15 de dezembro de 2015, Schatschaschwili c. Alemanha, CE:ECHR:2015:1215JUD000915410, § 130).


36      Exceto se a reapreciação tiver lugar perante um juiz por força do artigo 223.o do NPK, num momento em que o suspeito tenha sido formalmente acusado. Não se afigura que exista a obrigação de proceder a essa reapreciação.