Language of document : ECLI:EU:C:2013:539

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 5 de setembro de 2013 (1)

Processo C‑279/12

Fish Legal

Emily Shirley

contra

The Information Commissioner

United Utilities, Yorkshire Water and Southern Water

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Upper Tribunal (Administrative Appeals Chamber) (Reino Unido)]

«Acesso à informação sobre ambiente — Obrigações das autoridades públicas — ‘Pessoa singular ou coletiva que exerça funções administrativas públicas nos termos da legislação nacional’ — Pessoa singular ou coletiva ‘sob o controlo’ do Estado ou de um organismo que exerça funções públicas — Conceito autónomo do direito da União»





1.        A presente questão prejudicial suscita novamente o problema das condições de acesso dos particulares à informação em matéria de ambiente que se encontre na posse das autoridades públicas, e cuja divulgação constitui o objetivo da Diretiva 2003/4 (2), colocando‑se neste caso especificamente a questão de saber se o organismo a quem é dirigido o pedido de informação é uma «autoridade pública» na aceção da diretiva. Esta é uma questão controversa porque estão em causa empresas privadas que gerem um serviço público relacionado com o ambiente, sendo discutindo se, nas circunstâncias do presente caso, as características dessa gestão devem levar a concluir que, não obstante a sua natureza privada, as empresas em causa devem ser consideradas uma «autoridade pública» na aceção da Diretiva 2003/4 e se, por conseguinte, deve ser analisado o pedido de informação apresentado por 2 particulares.

2.        Nestes termos, o Tribunal de Justiça é chamado a especificar a sua jurisprudência em dois contextos muito concretos. Por um lado, de forma evidente, na área específica do direito de acesso à informação propriamente dito. Além disso, por outro, no que respeita à definição do conceito de «autoridade pública», questão esta de relevância transversal para uma pluralidade de domínios do direito da União e para cuja resolução, no presente caso, será necessário reforçar os conceitos de «dependência» e de «controlo», comuns, por exemplo, na doutrina sobre as sociedades de fachada.

I —    Quadro legal

A —    Direito internacional

3.        A Convenção sobre o acesso à informação, participação do público no processo de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de ambiente, assinada em 25 de junho de 1998 e aprovada em nome da Comunidade Europeia pela Decisão 2005/370/CE do Conselho, de 17 de fevereiro de 2005 (3) (a seguir «Convenção de Aarhus») dispõe o seguinte no seu artigo 2.°, ponto 2:

«Para efeitos da presente Convenção, entende‑se por:

2.      Autoridade pública:

a)      Um governo a nível nacional, regional ou outro;

b)      Pessoas singulares ou coletivas que desempenhem funções da administração pública, nos termos das disposições do direito interno, incluindo o exercício de deveres específicos, a realização de atividades ou a prestação de serviços relacionados com o ambiente;

c)      Quaisquer outras pessoas singulares ou coletivas com responsabilidades públicas que desempenhem funções públicas ou que prestem serviços públicos relacionados com o ambiente, sob o controlo de um organismo ou de uma entidade referida nas alíneas a) ou b);

d)      As instituições das organizações de integração económica regional referidas no artigo 17.° que sejam parte na presente convenção.

Esta definição não inclui organismos ou instituições que atuem na qualidade de órgãos jurisdicionais ou legislativos;»

4.        De acordo com o artigo 4.°, n.° 1, da Convenção de Aarhus, com determinadas reservas e condições, as partes devem assegurar que as autoridades públicas coloquem à disposição do público, em conformidade com o disposto na legislação nacional, as informações sobre o ambiente que lhes sejam solicitadas.

B —    Direito da União

5.        São aqui relevantes os seguintes considerandos da Diretiva 2003/4:

Considerando 1: «Um maior acesso do público às informações sobre ambiente e a sua divulgação contribuem para uma maior sensibilização dos cidadãos em matéria de ambiente, para uma livre troca de opiniões, para uma participação mais efetiva do público no processo de decisão em matéria de ambiente e, eventualmente, para um ambiente melhor.»

Considerando 5: «[…] As disposições da legislação comunitária devem ser compatíveis com [a Convenção de Aarhus], tendo em vista a sua conclusão pela Comunidade Europeia.»

Considerando 8: «É necessário garantir que qualquer pessoa singular ou coletiva tenha direito de acesso à informação sobre ambiente na posse das autoridades públicas ou detida em seu nome, sem ter de justificar o seu interesse.»

Considerando 11: «Para ter em conta o princípio consagrado no artigo 6.° do Tratado, de que as exigências em matéria de proteção do ambiente devem ser integradas na definição e execução das políticas e ações da Comunidade, a definição de autoridades públicas deve ser tornada extensiva ao governo ou a outras entidades da administração pública, a nível nacional, regional ou local, com ou sem responsabilidades em matéria de ambiente. Essa definição deverá igualmente abranger outras pessoas ou organismos que desempenhem funções administrativas públicas relacionadas com o ambiente, nos termos da legislação nacional, bem como outras pessoas ou organismos que atuem sob o seu controlo e que tenham responsabilidades ou exerçam funções públicas relacionadas com o ambiente.»

6.        Os objetivos da Diretiva 2003/4 encontram‑se definidos no seu artigo 1.°:

«a)      Garantir o direito de acesso à informação sobre ambiente na posse das autoridades públicas ou detida em seu nome, e estabelecer as condições básicas do, e disposições práticas para o, seu exercício, e

b)      Garantir, por via de regra, que a informação sobre ambiente seja progressivamente disponibilizada e divulgada ao público, a fim de atingir a mais vasta disponibilização e divulgação sistemáticas junto do público de informação sobre o ambiente. Para o efeito, será conveniente promover, em especial, a utilização de tecnologias telemáticas e/ou eletrónicas, quando disponíveis.»

7.        Por seu lado, o artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4 define o conceito de «Autoridade pública» nos seguintes termos:

«a)      O governo ou outros órgãos da administração pública nacional, regional ou local, incluindo órgãos consultivos;

b)      Qualquer pessoa singular ou coletiva que exerça funções administrativas públicas nos termos da legislação nacional, incluindo deveres, atividades ou serviços específicos, relacionados com o ambiente;

c)      Qualquer pessoa singular ou coletiva que tenha responsabilidades ou exerça funções públicas ou que preste serviços públicos relacionados com o ambiente, sob o controlo de um organismo ou pessoa referidos nas alíneas a) ou b).

Os Estados‑Membros podem prever que esta definição não inclua órgãos ou instituições no exercício da sua competência judicial ou legislativa. Os Estados‑Membros podem excluir órgãos ou instituições desta definição caso, na data de adoção da presente diretiva, a respetiva ordem constitucional não preveja um processo de recurso na aceção do artigo 6.°»

8.        De acordo com o artigo 3.°, n.°1, da Diretiva 2003/4, «[o]s Estados‑Membros asseguram que as autoridades públicas sejam, nos termos da presente Diretiva, obrigadas a disponibilizar a qualquer requerente informação sobre ambiente na sua posse ou detida em seu nome, sem que o requerente tenha de justificar o seu interesse».

C —    Direito nacional

9.        De acordo com a informação fornecida pelo órgão jurisdicional de reenvio, é relevante a seguinte a legislação nacional:

1.      Legislação relativa ao acesso às informações em matéria de ambiente

10.      A legislação nacional relevante encontra‑se nas Environmental Information Regulations 2004 (SI No. 3391) (Regulamento relativo às informações sobre ambiente de 2004; a seguir «EIR 2004»), que transpuseram a Diretiva 2003/4 e cuja Section 2(2), define o conceito de «autoridade pública» nos seguintes termos:

«Sem prejuízo do disposto no n.° 3, entende‑se por ‘autoridade pública’:

a)      os departamentos do governo;

b)      qualquer outra autoridade pública conforme definida na Section 3(1), do [Freedom of Information Act 2000 (Lei de 2000 sobre a liberdade de informação (a seguir ‘FIA 2000’)];

c)      qualquer outro organismo ou outra pessoa que exerça funções de administração pública, ou

d)      qualquer outro organismo ou outra pessoa que esteja sob o controlo de uma pessoa referida nas alíneas a), b) ou c) e que:

i)      tenha responsabilidades públicas relacionadas com o ambiente;

ii)      exerça funções de natureza pública relacionadas com o ambiente; ou

iii)      que preste serviços públicos relacionados com o ambiente.

[…]»

11.      De acordo com as Sections 5 e 7 das EIR 2004, caso tenham sido solicitadas, as informações sobre ambiente devem ser disponibilizadas num prazo de 20 dias úteis, podendo o organismo em causa prorrogar este prazo até 40 dias se estiverem reunidos determinados requisitos.

12.      Por força da Section 50(1) do FIA 2000, conforme alterada pela Section 18 das EIR 2004, uma pessoa que tenha pedido informações pode requerer que o Information Commissioner se pronuncie sobre a questão de saber se a autoridade pública em causa processou o seu pedido de informação de acordo com as exigências constantes das EIR 2004.

2.      Legislação relativa ao regime do setor da indústria da água em Inglaterra e no País de Gales

a)      Antecedentes

13.      Em meados do século XX, a maioria dos serviços de água e de tratamento de esgotos eram públicos e eram prestados pelas autoridades de governo locais nos termos do Public Health Act 1936 (Lei relativa à saúde pública de 1936).

14.      O Water Act 1973 (Lei das águas de 1973, a seguir «WA 1973») transferiu, em geral, a responsabilidade pela prestação desses serviços para as autoridades responsáveis por questões hídricas regionais. Alguns desses serviços eram prestados por sociedades privadas que atuavam em nome e por conta dessas autoridades.

15.      O Water Act 1989 (a seguir «WA 1989») privatizou a indústria das águas em Inglaterra e no País de Gales, introduzindo, em grande parte, a estrutura atualmente existente. As funções, os poderes, as propriedades e os outros ativos das autoridades responsáveis por questões hídricas regionais foram divididos entre a National Rivers Authority [que passou a ser, após a entrada em vigor do Environment Act 1995 (Lei do ambiente de 1995), «Environment Agency»] e as novas empresas privatizadas, que passaram a prestar serviços de abastecimento de água e de tratamento de esgotos em Inglaterra e no País de Gales.

16.      A legislação que regula a gestão das águas em Inglaterra e no País de Gales foi consolidada e alterada em 1991. Uma das principais leis que faz parte do atual regime jurídico da indústria da água é o Water Industry Act 1991 (Lei do setor da indústria das águas de 1991; a seguir «WIA 1991»).

b)      Estrutura e gestão das empresas concessionárias

17.      Nos termos da Section 6 do WIA 1991, só as empresas nomeadas pelo Secretary of State ou (atualmente) pela OFWAT (Autoridade reguladora dos serviços de águas) concessionárias do abastecimento de água e/ou do tratamento de esgotos numa determinada zona de Inglaterra e do País de Gales poderão prestar esses serviços.

18.      Apenas uma sociedade de responsabilidade limitada pode ser nomeada como concessionária da prestação de serviços de água e de tratamento de esgotos [Section 6(5)]. Cada empresa é gerida por um conselho de administração, responsável perante os acionistas. A gestão das empresas obedece a princípios comerciais normais, conforme definido nas respetivas escrituras de constituição de sociedade e nos estatutos, e têm por fim obter lucros que serão distribuídos pelos acionistas sob a forma de dividendos e reinvestidos nas atividades das empresas.

19.      Estas empresas estão sujeitas às mesmas regras que vinculam todas as outras sociedades de responsabilidade limitada. Não recebem subvenções públicas. Nem o governo nem outro organismo público impõem decisões de contrair empréstimos ou de fazer investimentos. De igual modo, nenhum dos empréstimos contraídos pelas empresas é garantido pelo Estado. Por conseguinte, o financiamento destas empresas provém da faturação aos clientes, da venda de ações e da emissão de outros direitos, do financiamento obtido junto dos mercados de capitais às taxas comerciais normais e de outras atividades comerciais, como a venda de terrenos e de outros ativos.

20.      Cada empresa dispõe de um Instrument of Apointment (título de nomeação, a seguir «licença») do qual constam os termos da respetiva concessão dos serviços de abastecimento de água e/ou de tratamento de esgotos. Para além de a licença impor a cada empresa as suas obrigações legais gerais e de lhes atribuir poderes gerais, a licença inclui igualmente outras condições (Section 11). De entre estas condições pode constar o pagamento de determinadas quantias em dinheiro ao Secretary of State.

21.      A resolução da licença tem de respeitar um aviso prévio de 25 anos e tem de ser devidamente fundamentada [Section 195A(I)1, alínea c)]. À licença apenas poderão ser introduzidas alterações pela OFWAT: 1) com o consentimento da empresa em causa, ou 2) sem o seu consentimento, após parecer da Competition Commission (Autoridade para a Concorrência).

22.      O Secretary of State ou a OFWAT velam pelo cumprimento das condições constantes da licença, e podem exigir que o prestador de serviços leve a cabo medidas ou implemente ações específicas. O WIA 1991 também prevê a possibilidade de aplicar sanções pecuniárias e restrições à aplicação das disposições comuns sobre a dissolução de empresas.

c)      Funções da OFWAT

23.      Para a maioria dos utilizadores dos seus serviços, estas empresas são, de facto, prestadores em regime de monopólio nas áreas da respetiva concessão. Por conseguinte, o seu sistema de regulação procura controlar os preços monopolísticos cobrados por essas empresas através da designada «concorrência comparativa», sistema com base no qual os preços praticados pelas empresas são aferidos entre si, com vista a comparar o desempenho de cada empresa e o das empresas mais eficientes. Com base nessa avaliação, a OFWAT define por períodos de cinco anos o limite máximo que pode ser cobrado por cada empresa aos seus clientes e o modo de proceder à cobrança desses preços.

24.      A OFWAT deve exercer as suas funções reguladoras para assegurar que as empresas têm capacidade para financiar o desempenho adequado das suas funções de concessionários do abastecimento de água e do tratamento de esgotos, garantindo designadamente que obtêm uma rentabilidade razoável do seu capital.

d)      Direitos e deveres das concessionárias de abastecimento de água e de tratamento de esgotos

25.      As concessionárias de abastecimento de água têm o dever de desenvolver e manter, na respetiva zona, um sistema eficiente e económico de abastecimento de água. A possibilidade de as concessionárias cortarem o abastecimento de água aos clientes é limitada e está sujeita a requisitos procedimentos estritos, cuja violação constitui ilícito criminal.

26.      Nos termos do WIA 1991, as concessionárias de tratamento de esgotos têm as seguintes obrigações: a) fornecer, melhorar e alargar a rede pública de esgotos (dentro ou fora da sua zona) e assegurar a limpeza e a manutenção dos referidos coletores por forma a garantir que as exigências específicas da drenagem de águas residuais são satisfeitas; b) atingir certos níveis de desempenho em conformidade com a regulamentação; c) colocar coletores em certos locais onde a sua inexistência tem ou pode ter efeitos adversos sobre a qualidade do ambiente, ou prestar o serviço no caso de não poder fornecer uma rede pública de esgotos; d) aceitar a ligação dos sistemas privados de drenagem de águas residuais aos seus coletores públicos.

27.      Serão atribuídos às concessionárias de abastecimento de água e de tratamento de esgotos poderes que excedem aqueles que normalmente são concedidos às empresas privadas, sendo alguns desses poderes partilhados com terceiros.

28.      As concessionárias de abastecimento de água e de tratamento de esgotos não podem dispor de nenhum dos terrenos que exploram sem o consentimento prévio do Secretary of State.

29.      O Water Act 2003 (Lei das águas de 2003, a seguir «WA 2003») impôs às concessionárias de abastecimento de água a obrigação de elaborarem planos de gestão dos recursos hídricos e planos de seca.

e)      Obrigação de prestar outras informações para além daquelas que estão em causa no presente processo

30.      Para além das informações que as empresas fornecem de forma voluntária, devem também fornecer algumas informações ao abrigo de outra legislação, nomeadamente para dar cumprimento às obrigações de proteção de dados e de comunicação da situação financeira das empresas.

31.      As empresas, na qualidade de concessionárias do tratamento de esgotos, devem manter um registo público do qual constem dados sobre as autorizações e os acordos relativos a descargas de efluentes industriais.

32.      A OFWAT deve manter um registo de todas as empresas concessionadas e das condições a que essas concessões estão sujeitas.

33.      O Secretary of State pode publicar a informação que julgue oportuna sobre a atividade das concessionárias de abastecimento de água. A OFWAT tem competência para divulgar essa informação junto dos consumidores.

34.      Em geral, está prevista a aplicação de uma pena de prisão até 2 anos em caso de divulgação de informações obtidas ao abrigo da WIA 1991, relativas às atividades de determinadas concessionárias sem o consentimento destas.

35.      A Environment Agency deve manter registos públicos de todos os pedidos de licenças para descargas, das licenças concedidas e das respetivas condições. Os detalhes das amostras recolhidas e das respetivas análises às descargas e às águas recetoras feitas pela Environment Agency deverão ser igualmente incluídos nesses registos, bem como qualquer informação efetivamente fornecida a este respeito pelas empresas à Environment Agency. As informações relativas a amostras recolhidas deverão ser inscritas no registo no prazo de dois meses. As informações consideradas confidenciais do ponto de vista comercial não poderão, no entanto, ser inscritas sem o consentimento das empresas.

36.      O Freedom of Information Act 2000 (Lei sobre a liberdade de informação de 2000, a seguir «FIA 2000») exige que muita da informação que se encontre na posse de organismos públicos, como a Environment Agency, a OFWAT e o Secretary of State, seja disponibilizada mediante requerimento. Esta lei não pretende transpor a Diretiva 2003/4. Aliás, em alguns aspetos, tem um âmbito de aplicação mais restrito. A informação poderá ser recusada com base em razões de confidencialidade comercial. Não existe um direito de acesso à informação que tenha sido disponibilizada de forma voluntária a um organismo público.

II — Factos

37.      No caso do processo principal, uma associação sem fins lucrativos e uma pessoa singular pretendiam aceder a informação detida por empresas que a autoridade nacional não considerou constituírem uma «autoridade pública» para efeitos da Diretiva 2003/4 (4).

38.      Foram iniciados os correspondentes processos e a decisão administrativa foi confirmada em primeira instância. Na pendência do recurso interposto no Upper Tribunal, as empresas em causa, embora tenham considerado que não tinham obrigação de o fazer, acabaram por aceitar disponibilizar a informação solicitada.

39.      Independentemente do acima exposto, o Upper Tribunal submeteu a presente questão prejudicial.

III — Questão submetida

40.      O teor literal da questão prejudicial é o seguinte:

«Artigo 2.°, [ponto] 2, alínea b), da Diretiva 2003/4/CE

1)      Ao determinar se uma pessoa singular ou coletiva ‘exerce, nos termos da legislação nacional, funções administrativas públicas’, a lei e a interpretação aplicáveis devem ser puramente nacionais?

2)      Na negativa, que critérios de direito da União deverão ser utilizados para determinar se:

i)      a função em causa é, em substância, uma ‘função administrativa pública’; e

ii)      a legislação nacional investiu efetivamente aquela pessoa nessa função?

Artigo 2.°, [ponto] 2, alínea c), da Diretiva 2003/4/CE.

3)      O que significa que uma pessoa se encontra ‘sob o controlo de um organismo ou pessoa referidos no artigo 2.°, [ponto] 2, alíneas a) ou b)’? Em particular, qual a natureza, a forma e o grau de controlo exigidos e que critérios deverão presidir à identificação desse controlo?

4)      Uma ‘emanação do Estado’ [na aceção do n.° 20 da decisão proferida no processo Foster e o./British Gas plc (Processo C‑188/89)] é necessariamente uma pessoa abrangida pelo artigo 2.°, [ponto] 2, alínea c)?

Artigo 2.°, [ponto] 2, alíneas b) e c)

5)      Caso uma pessoa se encontre abrangida por qualquer uma das disposições referidas relativamente a alguma das suas funções, responsabilidades ou serviços, está a sua obrigação de prestar informações sobre ambiente circunscrita às que são relevantes para essas funções, responsabilidades ou serviços, ou estende‑se a todas as informações sobre ambiente em seu poder, independentemente do fim a que se destinam?»

41.      Nas palavras do juiz do órgão jurisdicional de reenvio, «[a] questão que nos cumpre decidir consiste em determinar se, nos termos da lei inglesa, as concessionárias de abastecimento das águas são autoridades públicas para efeitos de divulgação de informações sobre ambiente. Em particular, cabe‑nos identificar os critérios a esse respeito. Embora a questão se levante a propósito de concessionárias de abastecimento das águas, é igualmente relevante a respeito de outras indústrias privatizadas e reguladas, que prestam serviços outrora públicos: eletricidade, gás, caminhos de ferro e telecomunicações» (5).

IV — Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

42.      A questão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 4 de junho de 2012.

43.      Apresentaram observações escritas as partes no processo principal, os Governos do Reino Unido e italiano e a Comissão.

44.      Na audiência realizada em 16 de abril de 2013, compareceram as partes no processo a quo, os Governos do Reino Unido e dinamarquês, bem como a Comissão.

V —    Alegações

45.      As empresas em causa alegam que, uma vez que forneceram a informação solicitada, a questão prejudicial é puramente hipotética sendo, por conseguinte, inadmissível.

46.      Relativamente às duas primeiras perguntas, a Fish Legal, E. Shirley, o Governo italiano e a Comissão alegam que lhes deve ser dada uma resposta afirmativa. Em defesa da sua posição, depois de salientarem que, de acordo com a jurisprudência, os conceitos definidos nas alíneas b) e c) do segundo parágrafo do n.° 2 do artigo 2.° da Diretiva 2003/4 devem ser objeto de uma interpretação autónoma e uniforme, alegam que o conceito de «funções administrativas públicas» deve ser interpretado de forma ampla, pois só assim pode ser alcançado o objetivo da Diretiva 2003/4, que não é outro que não a ampla divulgação sistemática das informações sobre ambiente. Essa interpretação ampla abrangeria claramente as funções desempenhadas pelas empresas de abastecimento de água em causa, cuja natureza pública seria demonstrada tanto pelas obrigações decorrentes da concessão do serviço como pelas prerrogativas de autoridade pública que o Estado lhe confere para o seu desempenho.

47.      Pelo contrário, o Information Commissioner, as empresas em causa e o Governo do Reino Unido defendem que à questão de saber se uma pessoa «desempenha nos termos da legislação nacional funções administrativas públicas» deve responder‑se nos termos da legislação nacional, pelo que não é necessário responder à segunda questão submetida. Na opinião daqueles, é evidente que a expressão «nos termos da legislação nacional» deve ser entendida como uma remissão expressa para a legislação dos Estados‑Membros, em cujo contexto deve ser interpretado o sentido e o alcance do conceito «funções administrativas públicas».

48.      Contudo, e no caso de o Tribunal de Justiça considerar que é necessária a utilização de um conceito uniforme, as empresas em causa e o Governo do Reino Unido defendem que, atendendo ao objetivo da Diretiva 2003/4, deve ter‑se em consideração que as obrigações nesta estabelecidas dizem respeito ao poder executivo e à administração pública nacional, que são quem normalmente detém a informação sobre ambiente como consequência do exercício das suas funções de natureza pública. As empresas de abastecimento de águas, por seu lado, não desempenham funções de natureza pública. Seja como for, cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar se, em determinadas circunstâncias, um organismo exerce funções que o possam equiparar a uma «autoridade pública». No caso sub judice seriam vários os elementos que apontariam no sentido de uma resposta negativa, designadamente a natureza privada e os fins lucrativos das empresas de abastecimento de águas, que nem mesmo antes da sua privatização dispunham de poderes executivos ou governamentais, sendo irrelevante que historicamente o serviço de abastecimento de água tenha sido prestado total ou parcialmente pelo governo ou que esse serviço beneficiasse a comunidade e satisfizesse um interesse geral, pois tal, por si só, não implica que a prestação do serviço por uma empresa com fins lucrativos se converta numa «função administrativa pública». No âmbito do serviço de abastecimento de água, apenas as autoridades reguladoras (OFWAT e Environment Agency) exercem «funções administrativas públicas» e estão, por isso, sujeitas às obrigações da Diretiva 2003/4.

49.      Relativamente à terceira questão, a Fish Legal e E. Shirley alegam que, em face dos poderes conferidos às empresas de abastecimento de água pela legislação nacional e do grau de regulação a que estão sujeitas, não pode se pode considerar que estão em causa sociedades privadas que exercem a sua atividade com independência, mas que, pelo contrário, atuam investidas de autoridade pública. Por tal motivo, o Information Commissioner, as empresas em causa e o Governo do Reino Unido defendem que, na linha de alguma jurisprudência nacional (6), para avaliar se uma pessoa está «sob o controlo» de uma autoridade pública na aceção do artigo 2.°, ponto 2, alínea c), da Diretiva 2003/4 é necessário que a natureza, a forma e o grau do controlo sobre ela exercido exceda o que é próprio das funções associadas à regulação. Não existe uma relação de controlo se a entidade em causa mantém a independência no que respeita à forma de assumir as respetivas responsabilidades e funções e de prestar o serviço. Pelo contrário, essa relação existe se for a autoridade pública a fixar os seus objetivos e os meios que deve utilizar para os atingir.

50.      O Governo italiano, por seu lado, alega que existe «controlo», na aceção do artigo 2.°, ponto 2, alínea c), da Diretiva 2003/4, se alguns aspetos importantes da atividade relacionada com o ambiente dependerem de decisões de uma autoridade pública, pelo que a autonomia de gestão da entidade é significativamente reduzida em comparação com a que teria se operasse em condições normais. O Governo dinamarquês entende que a expressão «sob o controlo» implica a sujeição à influência decisiva das autoridades públicas, independentemente de a entidade se encontrar juridicamente regulada e de fatores a ter em conta para apreciar essa sujeição serem critérios como a propriedade, o direito de voto, o estatuto ou a composição de uma comissão de fiscalização.

51.      A Comissão afirma que, como refere o Guia de aplicação da Convenção de Aarhus, o artigo 2.°, ponto 2, alínea c), da Diretiva 2003/4 é aplicável quando uma entidade é controlada pelo próprio governo ou por um organismo que exerça funções administrativas públicas nos termos da legislação nacional, e quando as «responsabilidades ou […] funções públicas» lhe sejam conferidas de facto e não decorram da execução de um ato legal ou regulamentar. Por isso não é necessário, em sua opinião, responder à questão no que se refere aos critérios que devem ser tomados em consideração para apreciar se, no litígio no processo principal, as entidades em causa estão «sob controlo» na aceção do referido preceito.

52.      No que respeita à quarta questão, E. Shirley alega que seria incompatível com o objetivo e o âmbito de aplicação da Diretiva 2003/4 excluir empresas que o órgão jurisdicional nacional (7) já considerou serem «emanações do Estado» na aceção do acórdão de 12 de julho de 1990, Foster e o. (8). Por seu lado, o Information Commissioner, as empresas em causa e o Governo do Reino Unido entendem que a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o conceito de «emanações do Estado» não é relevante para a interpretação do artigo 2.°, ponto 2, alínea c), da Diretiva 2003/4. Em sua opinião, este preceito utiliza um conceito mais restrito, constituindo uma espécie de lex specialis que especifica as entidades «controladas» que devem ser consideradas como fazendo parte do Estado. Tanto a natureza complexa do conceito de autoridade pública utilizado na Diretiva 2003/4 como a referência contida no seu artigo 2.°, ponto 2, alínea b), à legislação nacional demonstram que o legislador da União evitou intencionalmente o conceito de «emanação do Estado», conceito este, aliás, autónomo e que não consta da Convenção de Aarhus, da qual são Parte numerosos Estados terceiros. Por último, a Comissão afirma que, das suas propostas de respostas às questões segunda e terceira resulta que quando os poderes especiais a que se refere o acórdão Foster e o., n.° 20, têm uma base jurídica formal, aplica‑se o artigo 2.°, ponto 2, alínea b), da Diretiva 2003/4, ao passo que, quando estejam em causa poderes conferidos de facto, passa a aplicar‑se o artigo 2.°, ponto 2, alínea c), da mesma diretiva.

53.      Relativamente à quinta questão, que é a última das questões submetidas, a Fish Legal, E. Shirley, as empresas em causa e o Governo italiano não são defensores de uma solução «híbrida», no sentido de que se uma entidade corresponde à definição do artigo 2.°, ponto 2, alíneas a) ou b), da Diretiva 2003/4 e as informações solicitadas se integram no conceito de «informação sobre ambiente», deve ser disponibilizada toda a informação em causa, independentemente do fim a que se destine. Qualquer outra solução dificultaria bastante a aplicação da diretiva, que, por outro lado, apenas prevê a possibilidade de excluir as autoridades judiciais ou legislativas. O Information Commissioner e o Governo do Reino Unido alegam que a solução descrita com a quinta questão deve ser adotada caso o Tribunal de Justiça conclua que um organismo de natureza essencialmente privada pode ser uma autoridade pública na aceção da Diretiva 2003/4. Por último, a Comissão entende que se um organismo só for considerado autoridade pública por causa das funções excecionais que lhe tenham sido confiadas, nada justifica que seja tratado como autoridade quando não atua no exercício dessas funções.

VI — Apreciação

A —    Quanto à admissibilidade da questão prejudicial

54.      Como já se referiu, as empresas em causa acabaram por disponibilizar a informação que lhes tinha sido requerida. Por conseguinte, em princípio, poderia alegar‑se que o pedido material em causa no processo a quo foi satisfeito de forma extrajudicial. É o entendimento das empresas em causa, que consideraram que a questão prejudicial é agora meramente hipotética e que, consequentemente, não lhe deve ser dada resposta.

55.      Em nossa opinião, a questão não ficou desprovida de objeto.

56.      É certo que não se encontra pendente nenhuma ação de indemnização que tenha por base o prejuízo causado pela recusa inicial das empresas em causa, pelo que não subsiste assim, indiretamente, um interesse autónomo na decisão da questão prejudicial. Por outro lado, a mera afirmação do Upper Tribunal no sentido de que a resposta do Tribunal de Justiça lhe seria útil para a decisão de outros processos semelhantes (9) não parece ser por si só suficiente para considerar que efetivamente existe um litígio que se encontra pendente no órgão jurisdicional de reenvio.

57.      Nestas circunstâncias, importa recordar que «a justificação do reenvio prejudicial não é a formulação de opiniões de natureza consultiva sobre questões gerais ou hipotéticas, mas sim a necessidade inerente à resolução efetiva de um litígio» (10).

58.      Ora, como refere o órgão jurisdicional de reenvio no n.° 3 do seu despacho de reenvio, embora a informação solicitada tenha acabado por ser voluntariamente disponibilizada, falta ainda determinar se as empresas em causa estavam, efetivamente, obrigadas a fazê‑lo e, além disso, se o deviam fazer no prazo fixado na legislação nacional, que já havia expirado quando decidiram disponibilizá‑la.

59.      Com efeito, é preciso ter em conta que o verdadeiro objeto do processo a quo é a recusa da Administração em considerar que as empresas em causa são uma «autoridade pública» e que, enquanto tal, estão obrigadas a disponibilizar a informação solicitada dentro de um determinado prazo. A entrega voluntária da informação não resolve esta questão, uma vez que no processo principal o que efetivamente se pretende saber é se essa entrega constitui realmente o objeto de uma obrigação exigível às empresas em causa ou se, pelo contrário, é um ato que depende apenas da sua vontade.

60.      Só depois de esclarecida esta questão será possível qualificar juridicamente a atuação das empresas em causa e concluir, desse modo, se exerceram uma liberdade ou se, pelo contrário, violaram a obrigação de disponibilizar uma informação num determinado prazo.

61.      Contudo, o facto de a controvérsia não ter ficado desprovida de objeto não decorre apenas de a referida questão da qualificação jurídica continuar pendente. Na realidade, certo é que também não se pode afirmar que existiu um cumprimento extrajudicial dos pedidos da Fish Legal e de E. Shirley. Isto sucede porque o que estas pretendiam não era apenas o acesso a determinada informação, mas sim o acesso à mesma num determinado prazo, a saber, o prazo dentro do qual as empresas em causa na qualidade de «autoridade pública» na aceção da Diretiva 2003/4 a deviam ter entregue. Estando provado que a entrega que se veio a realizar não se efetuou nesse prazo, é evidente que, neste ponto, o pedido da Fish Legal e de E. Shirley não foi cumprido à margem do processo. Para saber se se trata de uma pretensão legítima é necessário determinar antes de mais se está preenchida a condição necessária à sua fundamentação, isto é, se as empresas em causa estavam obrigadas a entregar a documentação num determinado prazo e não determinar o momento quando em que efetivamente o fizeram. Para tal, é indispensável saber, em suma, se devem ser consideradas «autoridade pública» na aceção da Diretiva 2003/4.

62.      Em caso de uma resposta afirmativa, a entrega efetuada não terá evitado um comportamento ilícito, do qual resultaram consequências cuja natureza e alcance caberá, sendo esse o caso, ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, o qual, todavia, nada pode decidir sem obter previamente do Tribunal de Justiça a resposta que solicita, na medida em que a existência de um eventual comportamento ilícito por parte das empresas em causa depende de serem ou não consideradas uma «autoridade pública» para efeitos da Diretiva 2003/4, questão esta a que só o Tribunal de Justiça pode responder.

63.      Em suma, entendo que, relativamente à questão prejudicial, não se verifica qualquer fundamento para não lhe ser apresentada resposta.

B —    Primeira questão

64.      A primeira questão submetida refere‑se à interpretação do artigo 2.°, ponto 2, alínea b), da Diretiva 2003/4, e pergunta se o conceito de pessoa singular ou coletiva que «exerça funções administrativas públicas nos termos da legislação nacional» deve ser definido em função exclusivamente do direito interno ou a partir do direito da União.

65.      Em nossa opinião, a resposta a esta primeira questão exige que se tenham em conta as duas vertentes nas quais, em meu entender, se analisa o artigo 2.°, ponto 2, alínea b), da Diretiva 2003/4. Por um lado, a vertente do conceito propriamente dito de «funções administrativas públicas». Por outro, a vertente que se refere à identificação das pessoas legitimadas para o «exercício» dessas funções.

66.      No que respeita ao conceito, basta indicar que, nos termos do acórdão de 14 de fevereiro de 2012, Flachglas Torgau (11), que se refere também à Diretiva 2003/4, «decorre das exigências tanto da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance devem normalmente ser objeto, em toda a União, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa».

67.      Assim sendo, parece evidente a necessidade de configurar um conceito autónomo da categoria «funções administrativas públicas». Como é comum no direito da União, a utilização de categorias destinadas a aplicarem‑se em já vinte e oito ordens jurídicas nacionais só é possível na medida em que sejam reduzidas a um conceito unitário e uniforme para todos os Estados‑Membros.

68.      Por certo, o conceito em questão não é apenas relevante no contexto do direito da União, mas enquadra‑se também no âmbito de uma convenção internacional, a Convenção de Aarhus, vinculativa para a União e ao abrigo da qual deve ser interpretado o sentido da Diretiva 2003/4. Obviamente, esta diretiva não é determinante para a interpretação do sentido da Convenção de Aarhus, sendo‑o para assegurar o cumprimento, por parte da União, das suas obrigações relacionadas com a referida Convenção, pois só poderá honrá‑las se for capaz de garantir que, no âmbito da União Europeia, o conceito de «pessoa singular ou coletiva que exerça funções administrativas públicas nos termos da legislação nacional» definido no artigo 2.°, ponto 2, alínea b), da Convenção de Aarhus é interpretado de forma uniforme em todos os Estados‑Membros.

69.      O facto de o artigo 2.°, ponto 2, alínea b), da Diretiva 2003/4 aludir à legislação nacional como fundamento do exercício das «funções administrativas públicas» poderia levar a pensar, como defendem o Information Commissioner, as empresas em causa e o Governo do Reino Unido, que o conceito em questão deve ser definido a partir de cada um dos sistemas de direito nacional.

70.      Todavia, não é essa a nossa opinião. E isto em resultado da segunda das vertentes acima referidas no n.° 65. Com efeito, o mencionado preceito assenta num conceito de «funções administrativas públicas» que, em face do anteriormente exposto, só pode ser um conceito comum e partilhado e, por conseguinte, um conceito da União. No entanto, ao abrigo do princípio da autonomia institucional, o direito da União não pode determinar quais as pessoas ou instituições que exercem concretamente essas funções em cada um dos Estados‑Membros. É por esta razão e não por outra que o artigo 2.°, ponto 2, alínea b), da Diretiva 2003/4 dispõe que é a legislação nacional que deve definir, se necessário, quem exerce «funções administrativas públicas» à margem da autoridade pública formal e propriamente dita [isto é, fora da previsão da alínea a) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva], embora sempre no pressuposto de que a definição de quais são e em que consistem essas «funções» é algo que compete exclusivamente ao direito da União. Deste modo, definindo‑se, nos termos do direito da União, determinadas funções como sendo «administrativas públicas», há que definir em seguida, nos termos da legislação nacional, que entidades, além da autoridade estatal propriamente dita, exercem eventualmente essas funções e são, por isso, abrangidas pelo artigo 2.°, ponto 2, alínea b) da Diretiva 2003/4.

71.      Por conseguinte, como primeira conclusão intermédia, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à primeira questão no sentido de que o conceito de pessoa singular ou coletiva que «exer[ce] funções administrativas públicas nos termos da legislação nacional» deve ser definido exclusivamente em função do direito da União no que respeita à definição do conceito de «funções administrativas públicas», cabendo à legislação dos Estados‑Membros determinar quais as pessoas singulares ou coletivas, caso tal venha a ser previsto, autorizadas a exercer essas funções.

C —    Segunda questão

72.      Considerado o anteriormente exposto, é necessário responder à segunda questão submetida e esclarecer, por conseguinte, nos termos requeridos pelo Upper Tribunal, que critérios do direito da União são relevantes para (A) definir uma função como sendo «administrativa pública» e (B) determinar se a legislação nacional efetivamente atribuiu essa função a uma determinada pessoa singular ou coletiva.

73.      Dito de outro modo, trata‑se agora de precisar, ao abrigo do direito da União, o conceito de «funções administrativas públicas» para, em seguida, determinar quais as condições necessárias para se considerar que o exercício dessas funções foi atribuído a uma determinada pessoa singular ou coletiva nos termos da legislação nacional.

1.      Critérios para a definição do conceito de «função administrativa pública»

74.      No âmbito do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4, o conceito de «função administrativa pública» equivale precisamente ao de «autoridade pública». Em nossa opinião, tal decorre de duas circunstâncias. Em primeiro lugar, decorre do facto de a ideia de «função administrativa pública» ser usada no preceito como elemento principal para a definição do conceito genérico de «autoridade pública». Em segundo lugar decorre, sobretudo, da derrogação contida no parágrafo seguinte à alínea c) do referido artigo 2.°, ponto 2, nos termos do qual os Estados‑Membros podem excluir da definição do conceito de «autoridade pública» «órgãos ou instituições no exercício da sua competência judicial ou legislativa».

75.      Em nosso entender, esta eventual exclusão significa que a ideia de «função administrativa pública» não remete especificamente para as instituições administrativas ou executivas propriamente ditas, mas sim, de forma geral, para a autoridade pública nacional no seu conjunto. Com efeito, só assim faz sentido que as instituições que exercem funções jurisdicionais ou legislativas possam ser excluídas do âmbito da autoridade pública, ou seja, funções de autoridade pública diferentes das que são próprias da Administração Pública stricto sensu (12).

76.      O anteriormente exposto coloca a questão a que há que responder numa dimensão muito concreta, pois, contrariamente, por exemplo, às situações referidas no acórdão de 16 de fevereiro de 2012, Solvay e outros (13), e na resposta dada no processo Flachglas Torgau, já referido, aquilo que o Tribunal de Justiça deve agora esclarecer não é se um ato da autoridade pública se pode enquadrar na categoria da legislação e, por conseguinte, ser abrangido pela exceção prevista na Diretiva 2003/4, mas sim definir apenas aquilo em que consiste o exercício da autoridade público tout court, sem se referir, assim, a eventuais exceções (14).

77.      Tal não torna a questão menos complexa, pois, como sucede com outras categorias básicas, a definição de «autoridade pública» é, no mínimo, difícil e controversa. No entanto, para efeitos da presente questão prejudicial, trata‑se de obter uma noção de «função administrativa pública» adequada ao contexto da Diretiva 2003/4.

78.      Em nossa opinião, esta abordagem reconduz‑nos àquilo que o Tribunal de Justiça tem vindo a declarar desde o acórdão Foster e o. e, assim, a uma noção das funções menos restrita do que a utilizada, por exemplo, na jurisprudência sobre o exercício da autoridade pública como derrogação à livre prestação de serviços (artigo 51.° TFUE) (15).

79.      Neste contexto específico, o Tribunal de Justiça tem vindo a utilizar um conceito instituído a partir de uma divisão entre a «autoridade pública» e a «autoridade privada» baseada especificamente na diferença existente entre o valor das vontades cuja realização é prosseguida por cada uma.

80.      Esta abordagem está presente, como referia, no acórdão Foster e o. quando afirma que, «faz, em todo o caso, parte do número dos organismos contra os quais se podem invocar as disposições de uma diretiva que sejam suscetíveis de produzir efeitos diretos um organismo que, seja qual for a sua natureza jurídica, foi encarregado, por um ato de uma autoridade pública, de prestar, sob controlo desta, um serviço de interesse público e que disponha, para esse efeito, de poderes especiais que exorbitem das normas aplicáveis às relações entre particulares» (16).

81.      Efetivamente, o que caracteriza a «autoridade pública» é a capacidade de imposição unilateral da vontade de quem a detém. Enquanto a autoridade pública pode impor unilateralmente a sua vontade, isto é, sem necessidade do consentimento do obrigado, o particular, pelo contrário, só se pode impor quando esse consentimento tiver sido concedido.

82.      É evidente que esta consideração tem sempre de ser analisada no contexto de um Estado de direito, regido pelo princípio democrático e pela sujeição aos tribunais. Mas, para efeitos do caso sub iudice, o que interessa é que se trata de uma autoridade cujos atos, embora sujeitos a recurso, gozam de per se de uma força executiva imediata e própria, contrariamente ao que sucede com os atos dos particulares, que necessitam sempre da intervenção da autoridade pública para produzirem efeitos quando não exista consentimento de quem por eles venha a ser afetado (17).

83.      Pensamos que, com base nestas premissas e para os efeitos que interessam neste processo, se pode concluir que, sempre no contexto da Diretiva 2003/4, «função administrativa pública», enquanto equivalente a «autoridade pública» e salvaguardadas eventuais derrogações «legislativas» ou «judiciais», que não estão aqui em causa, é aquela em virtude da qual se impõe aos particulares uma vontade cuja eficácia imediata, ainda que sujeita a recurso, não exige o consentimento destes últimos.

84.      Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se as empresas em causa exercem esse tipo de autoridade. Ou seja, se na gestão do serviço de abastecimento de águas e de tratamento de esgotos podem impor obrigações aos particulares que não dependem do consentimento destes, independentemente de os afetados poderem impugnar judicialmente tais obrigações. Por outras palavras, se gozam de uma posição substancialmente equivalente à dos órgãos da administração pública.

85.      Contudo, e a fim de oferecer ao órgão jurisdicional de reenvio alguma orientação que lhe possa ser útil, deve salientar‑se que há que verificar, em especial, se as empresas em causa gozam de alguma forma de poderes de expropriação, de prerrogativas de acesso à propriedade privada, de poderes sancionatórios ou, em geral, de poderes de coerção sobre os particulares, independentemente de, no exercício desses poderes, também estarem sujeitas, como o está sempre a autoridade pública stricto sensu, a controlo jurisdicional.

2.      Critérios para a apreciação da atribuição a particulares do exercício de uma «função administrativa pública»

86.      Na segunda parte da segunda questão, e sempre no contexto da Diretiva 2003/4, pergunta‑se quais são os critérios que podem ser aplicados para determinar se a legislação nacional atribui a uma pessoa singular ou coletiva o exercício da autoridade pública.

87.      Em nosso entender, a resposta a esta segunda parte da questão resulta da própria estrutura do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4. O preceito refere‑se sucessivamente, na sua alínea a), ao «governo ou outro órgãos da administração pública nacional, regional ou local, incluindo órgãos consultivos»; ou seja, à autoridade pública em sentido formal e próprio, incluindo, pelas razões já expostas no n.° 75, o poder judicial e o poder legislativo. Por seu lado, a alínea b) alude a «qualquer pessoa singular ou coletiva que exerça funções administrativas públicas nos termos da legislação nacional». Em nossa opinião, trata‑se aqui das pessoas ou entidades às quais a legislação nacional tenha, eventualmente, atribuído de forma explícita e formal o exercício da autoridade pública (18). Assim, está em contraposição com a hipótese da alínea c), que se refere a qualquer pessoa que tenha responsabilidades ou exerça funções públicas ou que preste serviços públicos «sob o controlo» quer de uma autoridade pública stricto sensu mencionada na alínea a), quer de uma pessoa singular investida de autoridade pública na aceção da alínea b). Como veremos, esta terceira e última possibilidade constante da alínea c) conduz‑nos aos mandatos informais, implícitos ou indiretos.

88.      Assim, entendemos que, para verificar se a legislação de um Estado‑Membro atribuiu a um particular o exercício de uma «função administrativa pública», na aceção da alínea b) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4, é necessário atender à existência de um ato jurídico formal e explícito de atribuição de poderes específicos de autoridade pública. Não existindo um ato de atribuição com essas características e ficando assim excluída a hipótese de estarmos perante as situações previstas nas alíneas a) e b) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva, há que analisar se podemos estar perante a hipótese da alínea c), o que nos conduz à terceira questão submetida pelo Upper Tribunal.

89.      Por conseguinte, como conclusão intermédia, propomos ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão no sentido de que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se as empresas em causa podem nos termos de um ato jurídico formal e explícito de investidura nos poderes específicos da autoridade pública, impor obrigações para as quais não é necessário o consentimento daqueles particulares, gozando assim de uma posição substancialmente equivalente à dos órgãos da administração do Estado.

D —    Terceira e quarta questões

90.      Cabe neste momento determinar quais são as situações nas quais se deve considerar que uma pessoa singular ou coletiva, que não seja uma autoridade pública em sentido estrito [alínea a) do n.° 2 do artigo 2.°] nem exerça «funções administrativas públicas» nos termos de um ato formal e explícito de atribuição de poderes específicos da autoridade pública [alínea b) do n.° 2, do artigo 2.°] tem «responsabilidades ou exer[ce] funções públicas ou [presta] serviços públicos relacionados com o ambiente, sob o controlo» de uma autoridade pública stricto sensu ou de uma pessoa singular ou coletiva que exerce «funções administrativas públicas». Esta é, em suma, a pergunta objeto das questões terceira e quarta, nas quais se pretende saber em que situações uma pessoa está «sob o controlo» de qualquer uma das entidades mencionadas nas alíneas a) e b) do artigo 2.°, ponto 2 (terceira questão) e se uma pessoa nessas condições pode ser considerada uma «emanação do Estado» na aceção do acórdão Foster e o. (quarta questão).

91.      Em nossa opinião, por meio desta previsão, a Diretiva 2003/4 pretende esgotar todas as possibilidades de identificação de titulares — originários, derivados ou circunstanciais — da autoridade pública com o objetivo de permitir a prossecução dos objetivos prosseguidos pelo legislador da União, a saber, entre outros, «uma participação mais efetiva do público no processo de decisão em matéria de ambiente» (19) ou a garantia de que «qualquer pessoa singular ou coletiva tenha direito de acesso à informação sobre ambiente na posse das autoridades públicas ou detida em seu nome, sem ter de justificar o seu interesse» (20).

92.      Em suma, trata‑se de definir todas as possibilidades de autoridade da União, para eliminar os inconvenientes da inexistência de efeito direto das diretivas nas relações entre particulares. Por outras palavras, trata‑se de identificar a autoridade pública nas suas manifestações formais, submetendo‑a de forma efetiva às prescrições constantes da Diretiva 2003/4.

93.      É este o espírito da jurisprudência em que se baseia o acórdão Foster e o., já referido, nos termos da qual, como salientava o advogado‑geral W. van Gerven nas suas conclusões nesse processo, «sempre que, face à finalidade subjacente, se trate de interpretar a noção de ‘Estado’ de modo lato, utiliza‑se o critério do controlo de facto, da influência dominante e da possibilidade, por parte da autoridade pública, de estabelecer diretivas obrigatórias, sejam quais forem as suas modalidades [por meio da propriedade, da participação financeira, da subordinação administrativa ou de disposições legais]» (21).

94.      Foi este critério que a Diretiva 2003/4 formalizou na alínea c) do seu artigo 2.°, ponto 2, ao referir‑se à situação de pessoas ou organismos que tenham responsabilidades ou exerçam funções públicas ou que prestem serviços públicos «sob o controlo de um organismo ou pessoa referidos nas alíneas a) ou b)» (22). Ou seja, sob controlo do Estado propriamente dito [alínea a)] ou de uma entidade privada à qual tenha sido formalmente atribuído o exercício da autoridade pública [alínea b)].

95.      Por conseguinte, novamente nas palavras do advogado‑geral W. van Gerven, «parte‑se sempre da ideia de que na base se encontra um elemento de poder público […] que, para as finalidades da aplicação da regulamentação em causa, se comunica, por meio do controlo ou da influência que exerce, a sua ‘natureza de autoridade pública’ a outros organismos ou aos seus atos, mesmo quando estes sejam regidos pelo direito privado» (23).

96.      Para concretizar o sentido da expressão «sob o controlo de um organismo ou pessoa referidos nas alíneas a) ou b)», consideramos que o legislador da União a utiliza para se referir a algo diferente da posição de controlo que, por definição, é própria da autoridade pública reguladora da atividade exercida por particulares. Em nosso entender, não se trata aqui de uma situação genérica de submissão, de sujeição ou de dependência em que se encontra qualquer particular que exerça uma atividade regida ou regulamentada pelo Estado. Trata‑se sim de uma dependência ou sujeição específicas, por força das quais um particular não é obrigado apenas a atuar no quadro das condições estabelecidas pela autoridade pública sendo, na realidade, esta quem define a sua conduta.

97.      Por outras palavras, a autoridade reguladora apenas delimita o âmbito do que é possível para uma vontade livre e autónoma, ou seja, para um particular em sentido estrito, isto é, aquele que exerce livremente uma atividade no quadro definido pela autoridade pública. Pelo contrário, a pessoa que age meramente sob o controlo da autoridade pública não tem liberdade. Na realidade, é a própria autoridade pública quem age e se manifesta através da pessoa que atua sob o seu controlo.

98.      Assim, em sentido figurado e de acordo com o acórdão Foster e o., pode falar‑se de uma «emanação do Estado». No entanto, não pensamos que o sentido desta expressão justifica a quarta questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, que o próprio reconhece ter trazido a este processo «sem [muita vontade]» (24). Em nossa opinião, é claro que uma pessoa abrangida pela alínea c) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4 pode ser qualificada de «emanação do Estado» se tal significar que a sua submissão à autoridade pública é tal que, sem dúvida, a sua conduta acaba por ser, na realidade, a da própria autoridade pública. Seja como for, não deixa de ser uma expressão ilustrativa de uma relação qualificada de sujeição e de dependência, que em última instância é aquilo que importa.

99.      Enquanto «emanação do Estado», a pessoa singular ou coletiva referida na previsão da alínea c) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4, identifica‑se, para efeitos dessa Diretiva, com o próprio Estado [alínea a) do artigo 2.°, ponto 2] ou com aqueles que, formalmente investidos pelo Estado, exercem a autoridade pública [alínea b) do artigo 2.°, ponto 2], pelo que, nessa qualidade, está sujeita à obrigação de disponibilizar o acesso à informação sobre ambiente que tenha na sua posse.

100. A este respeito, impõe‑se uma reserva no sentido de que, ainda que possa ser qualificada de «emanação do Estado», a pessoa singular ou coletiva da alínea c) do artigo 2.°, ponto 2, não deixa de ser um particular para todos os efeitos. Ou seja, contrariamente ao Estado stricto sensu e às entidades referidas na alínea b) do artigo 2.°, ponto 2, não exerce a autoridade pública no sentido de que não pode impor unilateralmente a sua vontade a outros particulares. No entanto, na medida em que o Estado atua através dela, é necessariamente abrangida pelo conceito de autoridade pública definido na Diretiva 2003/4.

101. É certo que o Estado atua então aqui como um particular, desprovido do imperium que lhe é próprio enquanto titular originário da autoridade pública. Não obstante, não deixa por isso de ser Estado, sem que nada justifique a sua exclusão do conceito formal utilizado na alínea a) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva, pois é evidente que também o Estado pode atuar por si próprio, no âmbito das relações privadas, como um simples particular. As razões que, como vimos, justificam uma interpretação extensiva, material, do conceito de «Estado», justificam também uma conceção puramente formal se, como é o caso, a única referência ao Estado enquanto sujeito e independentemente da natureza pública ou privada dos seus atos assegura as melhores condições para a prossecução efetiva dos objetivos da Diretiva 2003/4.

102. Assim, se dos particulares que exercem a autoridade pública ao abrigo de um mandato expresso [alínea b) do artigo 2.°, ponto 2] se pode dizer, em sentido figurado, que «são» Estado na medida em que exercem sobre outros particulares prerrogativas próprias da autoridade pública, os particulares que, por se encontrarem sob o controlo da autoridade pública (originária ou derivada), se tornam num instrumento da atuação sine imperio do Estado no âmbito das relações privadas, são igualmente «Estado», ainda que atuem apenas como particulares, simplesmente porque a sua conduta diz respeito, em última instância, à vontade do próprio Estado, que também costuma intervir na área das relações privadas como um mero particular.

103. Em suma, o anteriormente exposto pode sintetizar‑se na ideia de que a alínea b) do artigo 2.°, ponto 2, se refere a particulares que, por força de um mandato formal e expresso, exercem com algum grau de autonomia determinadas prerrogativas da autoridade pública, ao passo que a alínea c) do mesmo preceito abrange os particulares que, privados de uma autonomia substancial, são um instrumento da atuação do próprio Estado no âmbito das relações privadas como um mero particular. Nos dois casos encontramos, assim, o Estado, quer porque um particular exerce a autoridade pública por ele monopolizada, quer porque um particular permite que o Estado (diretamente ou por interposta pessoa) atue através dele como um sujeito de direito privado.

104. A questão reside então em determinar que tipo de controlo é necessário para que um particular, sem que deixe de o ser, atue como uma «emanação do Estado», e quais os critérios a utilizar para comprovar a existência desse controlo.

105. No que respeita ao controlo, entendo que terá de ser o suficiente para se considerar que o particular não pode atuar no comércio privado com um grau de autonomia substancial, quer por referência à determinação dos seus objetivos, quer em relação à definição das estratégias e à seleção dos meios adequados para a sua prossecução.

106. Essa falta de autonomia pode resultar de duas circunstâncias. Em primeiro lugar, do facto de a entidade privada ser uma criação da autoridade pública e de estar diretamente sob a sua direção e controlo. Em segundo lugar, do facto de, sendo uma entidade formalmente independente, a entidade privada dever atuar num contexto condicionado até ao extremo (e não meramente regulamentado) pela autoridade pública, por exemplo, através da fixação de tarifas públicas, do estabelecimento de planos de gestão ou da sujeição a diretrizes pormenorizadas de exploração do serviço. É este segundo caso que pode ser qualificado de hipótese de «controlo de facto», no sentido de não ser consequência da intervenção imediata e direta sobre a entidade privada mas sim do condicionamento da sua atividade até um ponto que torna ilusória a autonomia material da entidade em questão. Não se trata, contrariamente à opinião do Governo italiano, de um controlo à margem da lei ou à margem do direito, de um puro factum, mas sim de um controlo (jurídico) indireto exercido sobre a entidade através dos títulos jurídicos que legitimam a intervenção da autoridade pública na disciplina das atividades da referida entidade, por contraposição com os que lhe permitiriam efetuar um controlo direto e formal sobre essa entidade.

107. Assim, uma entidade estará «sob o controlo» do Estado quando ela própria seja uma criação da autoridade pública para a participação do Estado no comércio privado a título particular, ou quando, sendo formalmente una entidade independente da autoridade pública, se veja obrigada a atuar no comércio privado sujeita a condições da autoridade pública que tornam impossível uma conduta substancialmente autónoma em aspetos fundamentais da atividade das sociedades.

108. Naturalmente, compete ao órgão jurisdicional nacional determinar em que medida se verificam, em cada caso, esse tipo de circunstâncias, podendo servir‑se para esse efeito da doutrina constante da jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de sociedades de fachada.

109. Com efeito, a nossa opinião vai no sentido de que é perfeitamente possível transpor os critérios utilizados pelo Tribunal de Justiça para determinar as situações em que uma entidade adjudicante exerce sobre uma entidade adjudicatária, com personalidade jurídica diferente daquele, um controlo análogo (25) àquele que exerce sobre os seus próprios serviços (26).

110. Nesse contexto, o Tribunal de Justiça considera que «existe um ‘controlo análogo’ quando a entidade em causa está sujeita a um controlo que permita à entidade adjudicante influenciar as suas decisões» (27), especificando‑se que «[d]eve tratar‑se de uma possibilidade de influência determinante, tanto nos objetivos estratégicos como nas decisões importantes desta entidade […]. Por outras palavras, a entidade adjudicante deve poder exercer sobre esta entidade um controlo estrutural [,] […] funcional […] [e] efetivo» (28).

111. Consequentemente, como conclusão intermédia, propomos ao Tribunal de Justiça que responda às questões terceira e quarta no sentido de que uma entidade está «sob o controlo de um organismo ou pessoa referidos nas alíneas a) ou b)» do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4 se a sua conduta estiver sujeita a um grau de controlo por parte daquele organismo ou pessoas que a impeça de atuar com verdadeira autonomia no comércio privado, vendo‑se reduzida à condição de instrumento da sua vontade, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

E —    Quinta questão

112. A última pergunta refere‑se em conjunto às alíneas b) e c) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4, e visa saber se as entidades abrangidas pelas suas previsões devem disponibilizar toda a informação sobre ambiente de que disponham ou apenas aquela que esteja relacionada com o exercício de funções públicas na aceção da Diretiva 2003/4.

113. O fundamento da obrigação de divulgar a informação obtida no âmbito do exercício de funções públicas decorre do facto de ter sido possível obter essa informação precisamente devido ao exercício dessas funções.

114. A questão que se coloca é a de saber se, com base nesse fundamento, os organismos ou pessoas referidos nas alíneas b) e c) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4 também devem disponibilizar o acesso a todas as informações sobre ambiente que tenham obtido no exercício de outras atividades que não as desempenhadas na sua condição de «autoridade pública» no sentido daquela Diretiva.

115. Em nosso entender, a resposta a esta interrogação exige que se faça uma distinção entre as hipóteses das alíneas b) e c) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva.

116. As pessoas ou organismos referidos na alínea b), enquanto mandatados de forma explícita e formal para o exercício da autoridade pública, devem ficar sujeitos à obrigação de divulgação nos mesmos termos em que o está a autoridade pública em sentido estrito, ou seja, o próprio Estado. É válida para todos eles a obrigação de disponibilizar o acesso a toda a informação sobre ambiente que tenham na sua posse e independentemente do título nos termos do qual a obtiveram, pois, como defendi no n.° 101, deve impor‑se a aceção formal do conceito de «Estado» sempre que daí resultem melhores condições para a prossecução efetiva dos objetivos prosseguidos pela Diretiva 2003/4.

117. Por seu lado, no que respeita às pessoas ou organismos referidos na hipótese da alínea c), há que considerar duas eventuais situações. Por um lado, a situação daqueles organismos ou pessoas cuja atividade se limita à gestão de um serviço em condições que levam a que seja considerado como «autoridade pública» na aceção da Diretiva 2003/4. Por outro lado, a situação daqueles organismos ou pessoas que, para além dessa gestão, exercem também outras atividades completamente alheias. Pense‑se, por exemplo, no caso de organismos ou pessoas que gerem também noutro território um serviço relacionado com o ambiente, mas em termos de livre concorrência e sem que possam ser qualificadas de «autoridade pública» na aceção da Diretiva 2003/4.

118. No que respeita aos primeiros, a questão é solucionada pela própria Diretiva 2003/4, cujo artigo 3.°, n.° 1, dispõe que «[o]s Estados‑Membros asseguram que as autoridades públicas sejam, nos termos da presente Diretiva, obrigadas a disponibilizar a qualquer requerente informação sobre ambiente na sua posse ou detida em seu nome […]» (29). Em suma, a Diretiva 2003/4 impõe ao Estado — tanto ao Estado stricto sensu como à «autoridade pública» na aceção, mais vasta, da alínea b) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4 — a obrigação de permitir o acesso à informação sobre ambiente que esteja na sua posse independentemente do título com base no qual a obteve, ou seja, quer seja fruto do exercício do imperium, quer resulte da sua atividade enquanto sujeito de direito privado.

119. No que respeita aos segundos, em nosso entender, estes não podem ser objeto do mesmo tratamento. Só são considerados «autoridade pública» na medida em que exerçam uma atividade relacionada com o ambiente em termos de poderem ser qualificados de «autoridade» na aceção da alínea c) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4, ou seja, quando atuam «sob o controlo» da autoridade pública. Excetuado este caso mais não são do que particulares aos quais, por conseguinte, não é aplicável o mandato do artigo 3.°, n.° 1, da mesma diretiva.

120. Reconhecemos que, como foi salientado pelas partes, tal possa conduzir, em determinadas circunstâncias, a uma situação «híbrida» difícil de gerir na prática. Se tal suceder, penso que, atendendo ao espírito da Diretiva 2003/4 e à sua vocação de proporcionar o acesso à informação que esteja na posse da autoridade pública na sua aceção mais vasta, as situações de incerteza devem sempre ser resolvidas em benefício do requerente da informação.

121. Em suma, como última conclusão intermédia, propomos ao Tribunal de Justiça que responda à quinta questão no sentido de que os organismos ou pessoas referidos na alínea b) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4 devem ficar sujeitos à obrigação de divulgação nos mesmos termos em que o está a autoridade pública em sentido estrito, ou seja, o próprio Estado. A mesma obrigação impende sobre os organismos ou pessoas a que se refere a alínea c) do mesmo preceito no caso de a sua atividade se limitar à gestão de um serviço em condições que levam a que seja considerado como «autoridade pública» na aceção da Diretiva 2003/4. No entanto, aqueles organismos ou pessoas que, além de uma gestão desse tipo, exerçam também outras atividades completamente alheias, não são obrigados a disponibilizar a informação que obtenham no âmbito destas últimas. Em caso de dúvida, prevalecerá a obrigação de divulgação.

VII — Conclusão

122. Tendo em conta as considerações acima expostas, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas nos termos seguintes:

«1)      Para considerar que uma pessoa singular ou coletiva ‘exer[ce] funções administrativas públicas nos termos da legislação nacional’ na aceção do artigo 2.°, ponto 2, alínea b), da Diretiva 2003/4/CE deve atender‑se exclusivamente ao direito da União no que respeita à definição do conceito de ‘funções administrativas públicas’, cabendo à legislação dos Estados‑Membros determinar quais as pessoas singulares ou coletivas, caso tal venha a ser previsto, autorizadas a exercer essas funções.

2)      Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se as empresas de abastecimento de água em causa podem impor aos particulares obrigações para as quais não é necessário o consentimento daqueles particulares, gozando assim de uma posição substancialmente equivalente à dos órgãos da administração do Estado, nos termos de um ato jurídico formal e explícito de atribuição de poderes específicos de autoridade pública.

3)      Um particular está ‘sob o controlo de um organismo ou pessoa referidos nas alíneas a) ou b)’ do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4 se a sua conduta estiver sujeita a um grau de controlo por parte daqueles organismos ou pessoas que a impeça de atuar com verdadeira autonomia no comércio privado, vendo‑se reduzida à condição de instrumento da vontade do Estado, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

4)      Os organismos ou pessoas referidos na alínea b) do artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4 devem ficar sujeitos à obrigação de divulgação nos mesmos termos em que o está a autoridade pública em sentido estrito. A mesma obrigação impende sobre os organismos ou pessoas a que se refere a alínea c) do mesmo preceito no caso de a sua atividade se limitar à gestão de um serviço em condições que levam a que seja considerado como ‘autoridade pública’ na aceção da Diretiva 2003/4. No entanto, aqueles organismos ou pessoas que, além de uma gestão desse tipo, exerçam também outras atividades completamente alheias, não são obrigados a disponibilizar a informação que obtenham no âmbito destas últimas. Em caso de dúvida, prevalecerá a obrigação de divulgação.»


1 —      Língua original: espanhol.


2 —      Diretiva 2003/4/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2003, relativa ao acesso do público às informações sobre ambiente e que revoga a Diretiva 90/313/CEE do Conselho (JO L 41, p. 26).


3 —      JO L 124, p. 1.


4 —      As empresas em causa são as sociedades de direito inglês United Utilities Water plc, Yorkshire Water Services Ltd e Southern Water Services Ltd (a seguir «as empresas em causa»).


5 —      Despacho de reenvio, n.° 1.


6 —      Processo Smartsource/Information Commissioner e o. [2010] UKUT 415 (AAC).


7 —      Griffin/South West Water Services Ltd [1995] IRLR 15.


8 —      Processo C‑188/89, Colet., p. I‑3313.


9 —      O mesmo Upper Tribunal, com outra composição, decidiu recentemente um processo semelhante (Smartsource) no sentido defendido pela Administração. A composição do Upper Tribunal que submete a presente questão tem interesse em que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a justeza da tese contida naquela decisão.


10 —      Despacho de 10 de junho de 2011, Mohamad Imran (C‑155/11 P, n.° 21), que se refere ao acórdão de 20 de janeiro de 2005, García Blanco (C‑225/02, Colet., p. I‑ 523, n.° 28), e despacho de 24 de março de 2009, Nationale Loterij (C‑525/06, Colet., p. I‑2197, n.° 10).


11 —      Processo C‑204/09, n.° 37, que remete para o acórdão de 9 de setembro de 2003, Monsanto Agricoltura Italia e o. (C‑236/01, Colet., p. I‑8105, n.° 72). No mesmo sentido, acórdãos de 18 de janeiro de 1984, Ekro (327/82, Recueil, p. 107, n.° 11), de 19 de setembro de 2000, Linster (C‑287/98, Colet., p. I‑6917, n.° 43); e de 22 de setembro de 2011, Budějovický Budvar (C‑482/09, Colet., Colet., p. I‑8701, n.° 29).


12 —      Ao reconhecer expressamente a possibilidade de as autoridades legislativas e jurisdicionais serem excluídas do âmbito da autoridade pública, a Diretiva 2003/4 acaba por proibir, a contrario, que se excluam as autoridades administrativas. Os Estados‑Membros podem, assim, alargar esse âmbito até abranger o poder legislativo e o judicial, mas não o podem reduzir para além do mínimo representado pelas autoridades administrativas, que são, na realidade, as que efetivamente interessam no contexto da Diretiva 2003/4, «uma vez que, nos Estados, são elas que habitualmente, no exercício das suas funções, possuem as informações sobre ambiente» (Flachglas Torgau, já referido, n.° 40).


13 —      Processo C‑182/10.


14—      O problema da exceção prevista no artigo 2.°, ponto 2, da Diretiva 2003/4 também foi objeto das conclusões apresentadas em 21 de março de 2013 pela advogada‑geral E. Sharpston no processo Deutsche Umwelthilfe (acórdão de 18 de julho de 2013, C‑515/11).


15 —      Neste sentido, por exemplo, a série de acórdãos iniciada com o acórdão de 24 de maio de 2011, Comissão/Bélgica (C‑47/08, Colet., p. I‑4105). Jurisprudência inspirada, sobretudo, na necessidade de delimitar o mais claramente possível o âmbito de uma liberdade da União face à exceção representada pelo exercício da autoridade pública estatal.


16 —      Foster e o., já referido (n.° 20). O sublinhado é nosso.


17 —      A este respeito, em geral, v. De Otto y Pardo, I., «Estudios sobre el Poder Judicial», em Obras Completas, Universidad de Oviedo/Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2010, pp. 1266 a 1279.


18 —      Foi o que sucedeu no caso do processo Foster e o., já referido, no qual o Tribunal de Justiça se refere a «um organismo que, seja qual for a sua natureza jurídica, foi encarregado, por um ato de uma autoridade pública, de prestar, sob controlo desta, um serviço de interesse público […]» (n.os 20 e 22; o sublinhado é nosso).


19 —      Considerando 1.


20 —      Considerando 8.


21 —      Conclusões do advogado‑geral W. van Gerven, n.° 16.


22 —      O sublinhado é nosso.


23 —      Conclusões acima referidas do advogado‑geral W. van Gerven. O sublinhado é nosso.


24 —      N.° 28 do despacho de reenvio da questão prejudicial.


25 —      Não necessariamente idêntico, como se especifica no acórdão de 13 de novembro de 2008, Coditel Brabant (C‑324/07, n.° 46), que se refere ao acórdão de 13 de outubro de 2005, Parking Brixen (C‑458/03, n.° 62).


26 —      Jurisprudência contida, entre muitos outros, no acórdão de 29 de novembro de 2012, Econord (C‑182/11 e C‑183/11).


27 —      Idem, n.° 27.


28 —      Ibidem.


29 —      O sublinhado é nosso.