Language of document : ECLI:EU:C:2022:168

Processo C205/20

NE

contra

Bezirkshauptmannschaft HartbergFürstenfeld

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landesverwaltungsgericht Steiermark)

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 8 de março de 2022

«Reenvio prejudicial — Livre prestação de serviços — Destacamento de trabalhadores — Diretiva 2014/67/UE — Artigo 20.° — Sanções — Proporcionalidade — Efeito direto — Princípio do primado do direito da União»

1.        Livre prestação de serviços — Destacamento de trabalhadores no âmbito de uma prestação de serviços — Diretiva 2014/67 — Exigências administrativas e medidas de controlo — Obrigações em matéria de direito do trabalho relativas à declaração dos trabalhadores e à conservação de documentos salariais — Sanções em caso de inobservância — Exigência de proporcionalidade das referidas sanções, prevista no artigo 20.° desta diretiva — Efeito direto

(Artigo 288.° TFUE; Diretiva 2014/67 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 20.°)

(cf. n.os 17‑19, 22‑24, 27‑29, 32, disp. 1)

2.        Direito da União Europeia — Efeito direto — Primado — Obrigações das autoridades nacionais — Livre prestação de serviços — Destacamento de trabalhadores efetuado no âmbito de uma prestação de serviços — Diretiva 2014/67 — Exigências administrativas e medidas de controlo — Obrigações em matéria de direito do trabalho relativas à declaração dos trabalhadores e à conservação de documentos salariais — Sanções em caso de inobservância — Exigência de proporcionalidade das referidas sanções, prevista no artigo 20.° desta diretiva — Regulamentação nacional parcialmente contrária a essa exigência — Obrigação de afastar a aplicação de tal regulamentação unicamente na medida do necessário para permitir a aplicação de sanções proporcionadas

(Diretiva 2014/67 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 20.°)

(cf. n.os 35‑37, 39‑42, 44, 51, 52, 56, 57, disp. 2)

Resumo

Destacamento de trabalhadores: o juiz nacional deve assegurarse de que as sanções pela violação de obrigações administrativas são proporcionadas

O juiz nacional pode aplicar um regime nacional de sanções contrário à diretiva relativa ao destacamento de trabalhadores desde que garanta a proporcionalidade das sanções

A sociedade CONVOI s. r. o., com sede na Eslováquia e representada por NE, destacou trabalhadores assalariados para uma sociedade com sede em Fürstenfeld (Áustria). Através de uma Decisão adotada em junho de 2018, com base em constatações feitas no decurso de um controlo efetuado alguns meses mais cedo, a Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (autoridade administrativa do distrito de Hartberg Fürstenfeld, Áustria) aplicou à NE uma coima no montante de 54 000 euros, em razão da inobservância de várias obrigações previstas pela lei austríaca em matéria de direito do trabalho relativas, designadamente, à conservação e à disponibilização de documentos salariais e de segurança social. NE interpôs para o órgão jurisdicional de reenvio, o Landesverwaltungsgericht Steiermark (Tribunal Administrativo Regional de Estíria, Áustria), recurso dessa decisão.

Em outubro de 2018, este órgão jurisdicional, interrogando‑se sobre a conformidade com o direito da União e, em especial, com o princípio da proporcionalidade enunciado, designadamente, no artigo 20.° da Diretiva 2014/67 (1), de sanções como as previstas pela regulamentação austríaca em causa, submeteu ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial. No seu Despacho de 19 de dezembro de 2019, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (2), o Tribunal de Justiça declarou o caráter desproporcionado da combinação de vários elementos do regime austríaco de sanções aplicadas pela violação de obrigações, essencialmente administrativas, de conservação de documentos relativos ao destacamento de trabalhadores.

Salientando que, na sequência desse despacho, o legislador nacional não alterou a regulamentação em causa, e tendo em conta a solução adotada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 4 de outubro de 2018, Link Logistik N&N (3), o órgão jurisdicional de reenvio decidiu interrogar o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se e, se for caso disso, em que medida esta regulamentação pode ser afastada. Com efeito, nesse Acórdão de 4 de outubro de 2018, Link Logistik N&N, o Tribunal de Justiça tinha considerado que uma disposição do direito da União semelhante ao artigo 20.° da Diretiva 2014/67 (4) é desprovida de efeito direto.

Com o seu acórdão, o Tribunal de Justiça, reunido em Grande Secção, pronuncia‑se, por um lado, sobre a questão de saber se a exigência de proporcionalidade das sanções tem efeito direto. Por outro lado, precisa o alcance das obrigações que incumbem a um órgão jurisdicional nacional chamado pronunciar‑se sobre um litígio no âmbito do qual deva aplicar normas nacionais que impõem sanções desproporcionadas.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Num primeiro momento, o Tribunal de Justiça considera que o artigo 20.° da Diretiva 2014/67, na medida em que exige que as sanções nele previstas sejam proporcionadas, é dotado de efeito direto e pode, assim, ser invocado pelos particulares nos órgãos jurisdicionais nacionais contra um Estado‑Membro que dele fez uma transposição incorreta. Para considerar, antes de mais, que a exigência de proporcionalidade das sanções prevista pela referida disposição tem caráter incondicional, o Tribunal de Justiça salienta que a redação deste enuncia essa exigência em termos absolutos. Além disso, a proibição de adotar sanções desproporcionadas, que é consequência desta exigência, não necessita da intervenção de nenhum ato das instituições da União e esta disposição não confere aos Estados‑Membros a faculdade de condicionarem ou de restringirem o alcance desta proibição. A este respeito, a circunstância de que o artigo 20.° desta diretiva deva ser objeto de transposição não põe em causa o caráter incondicional da exigência de proporcionalidade das sanções nele previsto. Em seguida, para considerar que a exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.° da Diretiva 2014/67 apresenta um caráter suficientemente preciso, o Tribunal constata que a margem de apreciação conferida por esta disposição aos Estados‑Membros para definirem o regime de sanções aplicável em caso de violação das disposições nacionais adotadas por força desta diretiva tem os seus limites na proibição, enunciada de forma geral e em termos inequívocos, de prever sanções desproporcionadas. Assim, a existência dessa margem de apreciação não exclui que uma fiscalização jurisdicional possa ser efetuada sobre a transposição desta disposição.

Num segundo momento, o Tribunal enuncia que o princípio do primado impõe às autoridades nacionais a obrigação de afastar a aplicação de uma regulamentação nacional da qual uma parte é contrária à exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.° da Diretiva 2014/67, apenas na medida do necessário para permitir a aplicação de sanções proporcionadas. Recordando que, embora uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal seja adequada para a realização dos objetivos legítimos prosseguidos, o Tribunal reitera que esta regulamentação ultrapassa os limites do que é necessário para a realização desses objetivos em razão da combinação das suas diferentes características(5). Todavia, consideradas isoladamente, essas características não violam necessariamente essa exigência. Por conseguinte, para assegurar a plena eficácia da exigência de proporcionalidade das sanções prevista no artigo 20.° da Diretiva 2014/67, cabe ao juiz nacional chamado a pronunciar‑se sobre um recurso interposto de uma sanção como a que está em causa no processo principal afastar a parte da regulamentação nacional da qual o caráter desproporcionado das sanções decorre, de modo a conduzir à aplicação de sanções proporcionadas, que se mantêm, ao mesmo tempo, efetivas e dissuasivas. A circunstância de que a sanção imposta ser menos pesada do que a sanção prevista pela regulamentação nacional aplicável não pode ser considerada como uma violação dos princípios da segurança jurídica, da legalidade dos delitos e das penas e da não retroatividade da lei penal, uma vez que a sanção continua a ser adotada em aplicação da referida regulamentação. Além disso, uma vez que a exigência de proporcionalidade prevista no artigo 20.° da Diretiva 2014/67 implica uma limitação das sanções que deve ser respeitada por todas as autoridades nacionais encarregadas de aplicar essa exigência no âmbito das suas competências, ao mesmo tempo que lhes permite impor sanções diferentes em função da gravidade da infração com fundamento na regulamentação nacional aplicável, não se pode considerar que tal exigência ponha em causa o princípio da igualdade de tratamento.


1      Diretiva 2014/67/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, respeitante à execução da Diretiva 96/71/CE relativa ao destacamento de trabalhadores no âmbito de uma prestação de serviços e que altera o Regulamento (UE) n.° 1024/2012 relativo à cooperação administrativa através do Sistema de Informação do Mercado Interno («Regulamento IMI», JO 2014, L 159, p. 11).


2      Despacho de 19 de dezembro de 2019, Bezirkshauptmannschaft Hartberg Fürstenfeld (C‑645/18, não publicado, EU:C:2019:1108). Mais especificamente, neste despacho, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 20.° da Diretiva 2014/67, que exige que as sanções nele previstas sejam proporcionadas, se opõe a uma regulamentação nacional que prevê, em caso de inobservância das obrigações em matéria de direito do trabalho relativas à declaração dos trabalhadores e à conservação de documentos salariais, a aplicação de coimas de um montante elevado que não podem ser inferiores a um montante predefinido, que são impostas cumulativamente por cada trabalhador em causa e sem limite máximo, e às quais acresce uma contribuição para as despesas processuais que ascende a 20 % do seu montante em caso de improcedência do recurso interposto da decisão que as imponha.


3      Acórdão de 4 de outubro de 2018, Link Logistik N&N (C‑384/17, EU:C:2018:810).


4      Nesse Acórdão de 4 de outubro de 2018, Link Logistik N&N (C‑384/17, EU:C:2018:810), o Tribunal de Justiça pronunciava‑se sobre o artigo 9.°‑A da Diretiva 1999/62/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 1999, relativa à aplicação de imposições aos veículos pesados de mercadorias pela utilização de certas infraestruturas, conforme alterada pela Diretiva 2011/76/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de setembro de 2011 (JO 1999, L 187, p. 42). Esta disposição prevê igualmente a exigência de proporcionalidade das sanções aplicadas em caso de violação das disposições nacionais adotadas em aplicação da Diretiva 1999/62.


5      Despacho de 19 de dezembro de 2019, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (C‑645/18, não publicado, EU:C:2019:1108).