Language of document : ECLI:EU:C:2009:806

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

23 de Dezembro de 2009 (*)

«Directiva 2003/6/CE – Operações de iniciados – Utilização de informação privilegiada – Sanções – Requisitos»

No processo C‑45/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo hof van beroep te Brussel (Bélgica), por decisão de 1 de Fevereiro de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 8 de Fevereiro de 2008, no processo

Spector Photo Group NV,

Chris Van Raemdonck

contra

Commissie voor het Bank‑, Financie‑ en Assurantiewezen (CBFA),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: J. N. Cunha Rodrigues, presidente da Segunda Secção, exercendo funções de presidente da Terceira Secção, P. Lindh (relatora), A. Rosas, U. Lõhmus e A. Ó Caoimh, juízes,

advogada‑geral: J. Kokott,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 11 de Junho de 2009,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Spector Photo Group NV e de C. Van Raemdonck, por K. Van den Broeck, W. Henckens e W. Devroe, advocaten,

–        em representação da Commissie voor het Bank‑, Financie‑ en Assurantiewezen (CBFA), por J. Cerfontaine, F. Deruyck e H. Gilliams, advocaten,

–        em representação do Governo belga, por J.‑C. Halleux, na qualidade de agente, assistido por J. Meyers, advocaat,

–        em representação do Governo alemão, por M. Lumma e J. Möller, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo francês, por G. de Bergues e J.‑C. Gracia, na qualidade de agentes,

–        em representação da Irlanda, por D. O’Hagan, na qualidade de agente, assistido por J. Newman, BL,

–        em representação do Governo italiano, por R. Adam, na qualidade de agente, assistido por P. Gentili, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo cipriota, por D. Lysandrou, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes e C. Guerra Santos, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por S. Ossowski, na qualidade de agente, assistido por A. Henshaw, barrister,

–        em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por P. Dejmek e W. Roels, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 10 de Setembro de 2009,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 2.° e 14.° da Directiva 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2003, relativa ao abuso de informação privilegiada e à manipulação de mercado (abuso de mercado) (JO L 96, p. 16).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Spector Photo Group NV (a seguir «Spector») e um dos seus dirigentes, C. Van Raemdonck, à Commissie voor het Bank‑, Financie‑ en Assurantiewezen (Comissão para os Assuntos Bancários, Financeiros e de Seguros, a seguir «CBFA»), por esta lhes ter aplicado coimas por operações de iniciados.

 Quadro jurídico

 Direito comunitário

3        O artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 89/592/CEE do Conselho, de 13 de Novembro de 1989, relativa à coordenação das regulamentações respeitantes às operações de iniciados (JO L 334, p. 30), definia a operação de iniciados como segue:

«Cada Estado‑Membro proibirá às pessoas que:

–        devido à sua qualidade de membros dos órgãos administrativos, directivos ou de fiscalização do emitente,

–        devido à sua participação no capital do emitente,

ou

–        porque têm acesso a essa informação devido ao desempenho do seu trabalho, da sua profissão ou das suas funções,

disponham de uma informação privilegiada que adquiram ou cedam, em seu nome ou em nome de outrem, quer directa quer indirectamente, valores mobiliários do emitente ou emitentes a quem a informação diz respeito, explorando com conhecimento de causa essa informação privilegiada.»

4        A Directiva 89/592 foi revogada a partir da entrada em vigor, em 12 de Abril de 2003, da Directiva 2003/6. O artigo 2.° desta última directiva dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros proíbem qualquer pessoa referida no segundo parágrafo que detenha informação privilegiada de utilizar essa informação ao adquirir ou alienar, tentar adquirir ou alienar, por sua conta ou por conta de terceiro, directa ou indirectamente, os instrumentos financeiros a que essa informação diga respeito.

O disposto no primeiro parágrafo aplica‑se a qualquer pessoa que detenha a informação em questão:

a)      Em virtude da sua qualidade de membro dos órgãos de administração, de gestão ou de fiscalização do emitente;

b)      Em virtude da sua participação no capital do emitente;

c)      Em virtude do acesso a essa informação privilegiada por força do exercício da sua actividade, da sua profissão ou das suas funções; ou

d)      Em virtude das suas actividades criminosas.

2.      Quando a pessoa referida no n.° 1 for uma pessoa colectiva, a proibição imposta nesse número aplica‑se igualmente às pessoas singulares que participem na decisão de efectuar a operação por conta da pessoa colectiva em causa.

3.      O presente artigo não é aplicável às transacções efectuadas para efeitos de execução de uma obrigação de aquisição ou de alienação de instrumentos financeiros que se torne exigível, sempre que essa obrigação resulte de um contrato celebrado antes de a pessoa em causa deter a informação privilegiada.»

5        O artigo 8.° da Directiva 2003/6 prevê, contudo, que esta proibição não se aplica às operações em que as sociedades procedem à recompra das suas acções próprias. As modalidades de aplicação deste artigo 8.° foram precisadas no Regulamento (CE) n.° 2273/2003 da Comissão, de 22 de Dezembro de 2003, que estabelece as modalidades de aplicação da Directiva 2003/6 no que diz respeito às derrogações para os programas de recompra e para as operações de estabilização de instrumentos financeiros (JO L 336, p. 33), que entrou em vigor em 23 de Dezembro de 2003.

6        O artigo 14.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 está assim redigido:

«Sem prejuízo do direito de imporem sanções penais, os Estados‑Membros asseguram, nos termos da respectiva legislação nacional, que possam ser tomadas medidas administrativas adequadas ou aplicadas sanções administrativas relativamente às pessoas responsáveis por qualquer incumprimento das disposições aprovadas por força da presente directiva. Os Estados‑Membros asseguram que estas medidas sejam efectivas, proporcionadas e dissuasivas.»

7        A Directiva 2003/124/CE da Comissão, de 22 de Dezembro de 2003, que estabelece as modalidades de aplicação da Directiva 2003/6 no que diz respeito à definição e divulgação pública de informação privilegiada e à definição de manipulação de mercado (JO L 339, p. 70), completa a Directiva 2003/6 ao definir com mais precisão os conceitos de divulgação pública de informação privilegiada e de manipulação do mercado.

 Direito nacional

8        O artigo 25.°, n.° 1, da Lei de 2 de Agosto de 2002, relativa à Fiscalização do Sector Financeiro e dos Serviços Financeiros (Moniteur belge de 4 de Setembro de 2002, p. 39121, a seguir «Lei de 2 de Agosto de 2002, na versão inicial»), previa:

«É proibido a qualquer pessoa:

1°)      que detenha informação privilegiada:

a)      utilizar essa informação ao adquirir ou alienar, tentar adquirir ou alienar, por sua conta ou por conta de terceiro, directa ou indirectamente, os instrumentos financeiros a que essa informação diga respeito ou instrumentos financeiros conexos;

[...]»

9        O artigo 25.°, n.° 1, da Lei de 2 de Agosto de 2002, alterada pela Lei‑Programa de 22 de Dezembro de 2003 (Moniteur belge de 31 de Dezembro de 2003, p. 62160, a seguir «Lei de 2 de Agosto de 2002, na versão alterada»), dispõe:

«É proibido a qualquer pessoa:

1°)      que detenha uma informação e saiba ou deva saber que a informação detida tem carácter privilegiado:

         a)     adquirir ou alienar, tentar adquirir ou alienar, por sua conta ou por conta de terceiro, directa ou indirectamente, os instrumentos financeiros a que essa informação diga respeito ou instrumentos financeiros conexos;

[...]»

10      Esta última disposição é aplicável apenas aos factos posteriores a 31 de Dezembro de 2003.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

11      A Spector é uma sociedade de direito belga cotada na Bolsa. No quadro da sua política de participação nos lucros, oferece um programa de opções sobre acções, destinado ao seu pessoal. Com o objectivo de honrar os seus compromissos no caso de exercício destas opções, a Spector tinha previsto utilizar prioritariamente as acções na sua posse e, eventualmente, comprar no mercado a parte restante a atribuir. Durante o ano de 2002, a Spector devia assim comprar no mercado mais de 45 000 acções.

12      Em 21 de Maio de 2003, de acordo com a legislação belga então em vigor, a Spector notificou o Euronext Brussels da sua intenção de comprar um determinado número das suas próprias acções, em cumprimento do seu programa de opção sobre acções.

13      De 28 de Maio a 30 de Agosto de 2003, a Spector conseguiu adquirir um total de 27 773 acções. Foram inicialmente realizadas quatro operações sucessivas de 2 000 acções cada. Posteriormente, em 11 e 13 de Agosto de 2003, C. Van Raemdonck deu duas ordens que permitiram à Spector comprar 19 773 acções, ao preço médio de 9,97 euros, sendo o preço de exercício das opções em causa de 10,45 euros.

14      Mais tarde, a Spector publicou determinadas informações relativas aos seus resultados e à sua política comercial, na sequência do que a cotação da acção desta sociedade aumentou. A 31 de Dezembro de 2003, era de 12,50 euros.

15      Por decisão de 28 de Novembro de 2006 (a seguir «decisão impugnada»), a CBFA qualificou as aquisições feitas com base nas ordens de 11 e 13 de Agosto de 2003 de operações de iniciados, proibidas pelo artigo 25.°, n.° 1, da Lei de 2 de Agosto de 2002, na versão inicial. A CBFA aplicou coimas de 80 000 euros à Spector e de 20 000 euros a C. Van Raemdonck, que interpuseram recurso desta decisão para o hof van beroep te Brussel.

16      No âmbito deste litígio, os recorrentes no processo principal suscitaram três séries de argumentos na origem do pedido de decisão prejudicial, relativos à retroactividade da lei nova mais favorável (retroactividade in mitius), aos elementos constitutivos da operação de iniciados e à proporcionalidade da sanção relativamente à infracção imputada.

17      De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, os recorrentes no processo principal censuram a CBFA, antes de mais, por ter ignorado o princípio da retroactividade in mitius. Alegam, no essencial, que as disposições do artigo 25.°, n.° 1, da Lei de 2 de Agosto de 2002, na versão alterada, são incompatíveis com a definição de operação de iniciados que figura no artigo 2.° da Directiva 2003/6 e, portanto, são inaplicáveis. Entendem, assim, que a incompatibilidade destas disposições com a Directiva 2003/6 redundou numa lacuna jurídica, análoga a uma lei penal mais favorável, opondo‑se a que a CBFA aplique o artigo 25.°, n.° 1, da Lei de 2 de Agosto de 2002, na versão inicial.

18      O órgão jurisdicional de reenvio refere que a CBFA aplicou o artigo 25.°, n.° 1, da Lei de 2 de Agosto de 2002, na versão alterada, quando os factos incriminados são anteriores à data de produção de efeitos desta disposição, a saber, 1 de Janeiro de 2004. Entende que é possível que esta disposição tenha alterado em sentido mais repressivo a definição da operação de iniciados. Com efeito, para que a operação de iniciados seja constituída, o referido artigo 25.°, n.° 1, passou a exigir, não a «utilização» de uma informação privilegiada mas a mera «detenção» desta.

19      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se os Estados‑Membros podem definir os elementos constitutivos da operação de iniciados de uma forma mais estrita do que a prevista no artigo 2.° da Directiva 2003/6, bem como sobre a interpretação do conceito de «utilização» de uma informação privilegiada na acepção desta última disposição.

20      De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, os recorrentes no processo principal sustentam, a título subsidiário, que os elementos da operação de iniciados não se verificaram, à luz do artigo 25.°, n.° 1, da Lei de 2 de Agosto de 2002, na versão inicial. A CBFA não fez prova de que as aquisições de acções em causa no processo principal tenham sido efectuadas em razão da iminência da publicação dos resultados da sociedade em causa.

21      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se quanto à natureza da prova destinada a demonstrar que uma informação privilegiada foi «utilizada» na acepção do artigo 2.° da Directiva 2003/6.

22      De acordo com a decisão de reenvio, os recorrentes no processo principal sustentam que as sanções aplicadas são desproporcionadas relativamente à gravidade da infracção. O órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre os critérios que permitem avaliar a proporcionalidade da sanção.

23      Foi nestas condições, que o hof van Beroep te Brussel decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      As disposições da Directiva [2003/6], em especial o seu artigo 2.°, constituem uma harmonização total, com excepção das disposições que conferem expressamente aos Estados‑Membros a liberdade de adoptar medidas de aplicação, ou destinam‑se, no seu conjunto, a uma harmonização mínima?

2)      O artigo 2.°, n.° 1, da Directiva [2003/6] deve ser interpretado no sentido de que o simples facto de uma pessoa referida no artigo 2.°, n.° 1, [que] detém informação privilegiada, adquirir ou alienar, ou tentar adquirir ou alienar, por sua conta ou por conta de terceiro, instrumentos financeiros a que essa informação privilegiada diga respeito implica automaticamente que esta utiliza a dita informação privilegiada?

3)      Em caso de resposta negativa à segunda questão, deverá admitir‑se que, para efeitos de aplicação do artigo 2.° da Directiva [2003/6], é necessário que tenha sido tomada uma decisão deliberada de utilização da informação privilegiada?

Se tal decisão também puder ser não escrita, a decisão de utilização deve, nesse caso, resultar de circunstâncias que não sejam susceptíveis de qualquer outra explicação, ou é suficiente que elas possam ser interpretadas nesse sentido?

4)      Se, para determinar a proporcionalidade de uma sanção administrativa prevista no artigo 14.° da Directiva [2003/6], as mais‑valias realizadas devem ser tidas em conta, deve‑se pressupor que a divulgação da informação qualificada como privilegiada influenciou efectivamente de maneira sensível o preço, do instrumento financeiro?

Em caso de resposta afirmativa, qual deve ser o nível mínimo da variação do preço, para que esta possa ser considerada sensível?

5)      Independentemente da questão de saber se a variação do preço após a divulgação da informação deve ou não ser sensível, que período deve ser tido em consideração, após tal divulgação, para determinar o nível da variação do preço, e que data deve ser tida em conta na avaliação do benefício patrimonial realizado, para definir a sanção adequada?

6)      À luz da fiscalização da proporcionalidade da sanção, o artigo 14.° da Directiva [2003/6] deve, consequentemente, ser interpretado no sentido de que, se um Estado‑Membro introduziu a possibilidade de uma sanção penal cumulada com a sanção administrativa, na apreciação do carácter proporcional da sanção, deve ser tida em conta a possibilidade e/ou o montante de uma sanção pecuniária de natureza penal?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

24      A CBFA e os Governos belga e alemão suscitam dúvidas quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial. Alegam, no essencial, que as questões colocadas revestem carácter hipotético, na medida em que versam sobre a compatibilidade do artigo 25.° da Lei de 2 de Agosto de 2002, na versão alterada, quando a decisão impugnada assenta, não nesta disposição mas no artigo 25.° da Lei de 2 de Agosto de 2002, na versão inicial.

25      A este propósito, recorde‑se que, no âmbito do processo instituído pelo artigo 234.° CE, compete apenas ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões colocadas sejam relativas à interpretação do direito comunitário, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (v., designadamente, acórdãos de 18 de Julho de 2007, Lucchini, C‑119/05, Colect., p. I‑6199, n.° 43, e de 22 de Dezembro de 2008, Magoora, C‑414/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 22).

26      Segundo jurisprudência assente, as questões relativas à interpretação do direito comunitário submetidas pelo juiz nacional no quadro factual e regulamentar que o mesmo define sob sua responsabilidade, cuja exactidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. A recusa do Tribunal de Justiça de responder a uma questão prejudicial submetida à sua apreciação por um órgão jurisdicional nacional só é possível quando for manifesto que a interpretação do direito comunitário solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objecto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe foram submetidas (v., neste sentido, acórdão de 7 de Junho de 2007, van der Weerd e o., C‑222/05 a C‑225/05, Colect., p. I‑4233, n.° 22 e jurisprudência referida).

27      É certo que a pertinência da interpretação da Directiva 2003/6 para efeitos de apreciação da conformidade com o direito comunitário do artigo 25.° da Lei de 2 de Agosto de 2002, na versão alterada, se afigura muito discutível, como foi realçado pela advogada‑geral no n.° 19 das suas conclusões, uma vez que a decisão impugnada não se baseia nessa disposição.

28      Todavia, não se pode afirmar, no caso vertente, que a solicitada interpretação da Directiva 2003/6 não tem manifestamente nenhuma relação com a realidade ou o objecto do litígio no processo principal. Com efeito, os factos em causa no processo principal são posteriores à entrada em vigor desta directiva e foram punidos ao abrigo da legislação nacional que proíbe as operações de iniciados. Os elementos de facto e de direito necessários para o Tribunal de Justiça responder utilmente às questões que lhe são submetidas estão, além disso, expostos na decisão de reenvio, que, por outro lado, indica os textos cuja interpretação é pedida.

29      Daqui resulta que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto ao mérito

 Quanto à segunda e terceira questões

30      Com a sua segunda e terceira questões, que importa apreciar conjunta e prioritariamente, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça quanto ao sentido do conceito de «utilização de uma informação privilegiada», a que se refere o artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6. Esta disposição impõe aos Estados‑Membros que proíbam qualquer pessoa referida no segundo parágrafo (a seguir «iniciado primário») que «detenha informação privilegiada de utilizar essa informação ao adquirir ou alienar […], por sua conta ou por conta de terceiro, directa ou indirectamente, os instrumentos financeiros a que essa informação diga respeito», ou de tentar realizar uma tal operação de mercado. O órgão jurisdicional de reenvio procura, mais exactamente, determinar se, para qualificar uma operação de operação de iniciados proibida, basta que um iniciado primário, na posse de uma informação privilegiada, efectue uma operação de mercado com os instrumentos financeiros a que essa informação diga respeito, ou se, além disso, é necessário demonstrar que tal pessoa «utilizou» essa informação «com conhecimento de causa».

31      O artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 não define a operação proibida como devendo ser realizada «com conhecimento de causa», limitando‑se a proibir aos iniciados primários a utilização de uma informação privilegiada quando realizam uma operação de mercado. Este artigo define os elementos constitutivos da operação proibida, referindo‑se expressamente a dois tipos de elementos, a saber, por um lado, as pessoas susceptíveis de serem abrangidas pelo seu âmbito de aplicação e, por outro, os comportamentos materiais constitutivos dessa operação.

32      Ao invés, esta disposição não prevê expressamente requisitos subjectivos relativos à intenção que inspirou esses comportamentos materiais. Assim, o artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 não especifica se o iniciado primário deve ter sido movido por uma intenção especulativa, prosseguido um desígnio fraudulento ou agido com propósitos dolosos ou negligentes. Este artigo não indica expressamente que é necessário demonstrar que a informação privilegiada determinou a decisão de realizar a operação de mercado em causa, e também não prevê expressamente que o iniciado primário deve ter consciência do carácter privilegiado da informação na sua posse.

33      A este propósito, há que salientar que o legislador comunitário, ao elaborar a Directiva 2003/6, pretendeu preencher algumas lacunas constatadas na aplicação da Directiva 89/592. O artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 89/592 visa, com efeito, proibir «às pessoas que […] disponham de uma informação privilegiada» realizar uma operação de mercado sobre os valores mobiliários a que a informação diga respeito, «explorando com conhecimento de causa essa informação privilegiada». A transposição desta disposição para o direito interno deu lugar a variantes de interpretação pelos Estados‑Membros, tendo o conceito de «exploração com conhecimento de causa» sido, em determinados direitos nacionais, equiparado à exigência de um elemento moral.

34      Neste contexto, a proposta de directiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre as operações de iniciados e as manipulações do mercado (abusos de mercado) [2001/0118(COD)], apresentada em 30 de Maio de 2001 pela Comissão das Comunidades Europeias, baseou‑se na redacção do artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 89/592, mas suprimiu a expressão «com conhecimento de causa», uma vez que «por definição, [os iniciados primários] podem ter acesso diariamente a informações privilegiadas e têm consciência da natureza confidencial das informações que recebem». Os trabalhos preparatórios subsequentes invocados no n.° 58 das conclusões da advogada‑geral mostram, aliás, que o Parlamento, em conformidade com a abordagem objectiva do conceito de operação de iniciados preconizada pela Comissão, pretendeu substituir o verbo «explorar» pelo verbo «utilizar», para não conservar nenhum elemento de finalidade ou de intencionalidade na definição das operações de iniciados.

35      Estes elementos provam que o artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 define objectivamente as operações de iniciados, sem que a intenção que lhes subjaz caiba explicitamente na sua definição, e isso com o objectivo de alcançar uma harmonização uniforme do direito dos Estados‑Membros.

36      O facto de o artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 não prever expressamente o elemento moral explica‑se, em primeiro lugar, pela natureza particular da operação de iniciados, que permite presumir este elemento moral a partir da reunião dos elementos constitutivos mencionados nesta disposição. Antes de mais, a relação de confiança que liga os iniciados primários previstos no artigo 2.°, n.° 1, alíneas a) a c), ao emissor dos instrumentos financeiros a que se refere a informação privilegiada implica da parte daqueles uma responsabilidade especial a este respeito. Em seguida, a execução de uma operação de mercado resulta necessariamente de uma cadeia de decisões que se inscreve num contexto complexo que permite excluir, em princípio, que o seu autor possa ter actuado sem ter consciência dos seus comportamentos. Por último, quando esta operação de mercado é realizada estando o seu autor na posse de uma informação privilegiada, deve, em princípio, presumir‑se que esta informação foi integrada no processo decisório.

37      O facto de o artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 não prever expressamente um elemento moral entre os elementos constitutivos da operação de iniciados explica‑se, em segundo lugar, pela finalidade da Directiva 2003/6, que, como indicado, nomeadamente, no seu segundo e décimo segundo considerandos, é assegurar a integridade dos mercados financeiros comunitários e reforçar a confiança dos investidores nesses mercados. O legislador comunitário optou por um mecanismo de prevenção e de sanção administrativa das operações de iniciados cuja eficácia seria atenuada se tal mecanismo estivesse condicionado à busca sistemática de um elemento moral. Como realçou a advogada‑geral no n.° 55 das suas conclusões, é só quando permite uma punição efectiva das infracções que a proibição das operações de iniciados revela toda a sua eficácia e promove de forma duradoura o cumprimento das regras pelos operadores de mercado. A aplicação efectiva da proibição das operações de mercado baseia‑se, pois, numa estrutura simples em que os meios de defesa subjectivos estão limitados, a fim de não só punir como também prevenir eficazmente as infracções a esta proibição.

38      A reunião dos elementos constitutivos da operação de iniciados prevista no artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 permite, portanto, presumir a intenção do autor desta operação.

39      Uma tal presunção não pode, no entanto, colidir com os direitos fundamentais, em especial com o princípio da presunção da inocência consagrado, designadamente, no artigo 6.°, n.° 2, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950 (a seguir «CEDH»).

40      Importa, a este propósito, lembrar que, de acordo com jurisprudência assente, os direitos fundamentais são parte integrante dos princípios gerais de direito cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça (acórdão de 3 de Setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão, C‑402/05 P e C‑415/05 P, Colect., p. I‑6351, n.° 283).

41      Resulta igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o respeito dos direitos do Homem é um requisito da legalidade dos actos comunitários e que, na Comunidade, não se podem admitir medidas incompatíveis com o respeito desses direitos (acórdão Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão, já referido, n.° 284).

42      É certo que o artigo 14.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 não impõe aos Estados‑Membros a previsão de sanções penais contra os autores de operações de iniciados, limitando‑se a enunciar que estes Estados devem assegurar que «possam ser tomadas medidas administrativas adequadas ou aplicadas sanções administrativas relativamente às pessoas responsáveis por qualquer incumprimento das disposições aprovadas por força [desta] directiva», sendo os Estados‑Membros, além disso, obrigados a assegurar que estas medidas sejam «efectivas, proporcionadas e dissuasivas». Não obstante, atenta a natureza das infracções em causa, bem como o grau de severidade das sanções que podem implicar, estas podem, para efeitos da aplicação da CEDH, ser qualificadas de sanções penais (v., por analogia, acórdão de 8 de Julho de 1999, Hüls/Comissão, C‑199/92 P, Colect., p. I‑4287, n.° 150; bem como TEDH, acórdãos Engel e o., de 8 de Junho de 1976, série A, n.° 22, § 82; Öztürk, de 21 de Fevereiro de 1984, série A, n.° 73, § 53; e Lutz, de 25 de Agosto de 1987, série A, n.° 123, § 54).

43      De acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, todos os sistemas jurídicos conhecem presunções de facto ou de direito e o TEDH não coloca obviamente obstáculos de princípio, mas, em matéria penal, obriga os Estados contratantes a não ultrapassarem, a este respeito, certo limite. Assim, o princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 6.°, n.° 2, da TEDH, não se alheia das presunções de facto ou de direito que se encontram nas leis repressivas. Apela aos Estados para as encerrarem nos limites do razoável, ponderando a gravidade dos interesses em jogo e salvaguardando os direitos de defesa (v. TEDH, acórdãos Salabiaku, de 7 de Outubro de 1988, série A, n.° 141‑A, § 28, e Pham Hoang, de 25 de Setembro de 1992, série A, n.° 243, § 33).

44      Há que considerar que o princípio da presunção de inocência não se opõe à presunção prevista no artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6, segundo a qual a intenção do autor de uma operação de iniciados se deduz tacitamente dos elementos materiais constitutivos desta infracção, uma vez que esta presunção é ilidível e que estão salvaguardados os direitos da defesa.

45      A criação de um regime eficaz e uniforme de prevenção e de sanção das operações de iniciados, com o objectivo legítimo de proteger a integridade dos mercados financeiros, levou, assim, o legislador comunitário a acolher uma definição objectiva dos elementos constitutivos de uma operação de iniciados proibida. O facto de o artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 não prever expressamente o elemento moral não significa, no entanto, que se deva interpretar esta disposição de modo a que qualquer iniciado primário na posse de informações privilegiadas, que realize uma operação de mercado, caia automaticamente na alçada da proibição das operações de iniciados.

46      Com efeito, como sublinharam, designadamente, os Governos italiano e do Reino Unido, uma interpretação tão lata do artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 comportaria o risco de alargar o âmbito de aplicação desta proibição para além do que é adequado e necessário para alcançar os objectivos prosseguidos por esta directiva. Tal interpretação poderia, na prática, levar à proibição de determinadas operações de mercado que não violam necessariamente os interesses protegidos pela referida directiva. É, assim, necessário diferenciar as «utilizações de uma informação privilegiada» que são susceptíveis de colidir com esses interesses daquelas que o não são.

47      Importa, a este propósito, fazer referência à finalidade da Directiva 2003/6. Tal como resulta do seu título, esta visa lutar contra os abusos do mercado. O seu segundo e décimo segundo considerandos enunciam que, à semelhança da Directiva 89/592, ela proíbe as operações de iniciados, com o objectivo de proteger a integridade dos mercados financeiros e reforçar a confiança dos investidores, confiança que reside, designadamente, no facto de os mesmos serem postos em pé de igualdade e protegidos contra a utilização ilícita da informação privilegiada (v., por analogia, acórdão de 22 de Novembro de 2005, Grøngaard e Bang, C‑384/02, Colect., p. I‑9939, n.os 22 e 33).

48      A proibição das operações de iniciados enunciada no artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 visa garantir a igualdade entre os contraentes numa transacção bolsista, evitando que um deles, que possui uma informação privilegiada e se encontra, por esse facto, numa posição vantajosa relativamente aos outros investidores, daí tire proveito em prejuízo dos que a desconhecem (v., por analogia, acórdão de 10 de Maio de 2007, Georgakis, C‑391/04, Colect., p. I‑3741, n.° 38).

49      No memorando explicativo que acompanha a sua proposta na origem da Directiva 2003/6, a Comissão indicava, assim, que «pode existir abuso de mercado nos casos em que os investidores foram lesados, directa ou indirectamente, por outros que [...] utilizaram em seu benefício ou em benefício de terceiros informações que não eram públicas [...]. Este tipo de conduta pode dar uma imagem enganadora das operações sobre instrumentos financeiros e violar o princípio geral que pretende que todos os investidores sejam postos em pé de igualdade [...] em termos de acesso à informação. Os iniciados estão na posse de informações confidenciais. As operações baseadas nestas informações conferem‑lhes vantagens económicas injustificadas à custa dos ‘não iniciados’». A proposta de directiva baseava‑se, assim, na vontade de proibir os iniciados de tirarem partido de uma informação privilegiada ao realizarem uma operação de mercado em prejuízo dos outros intervenientes no mercado que não possuíam essa informação.

50      Por conseguinte, existe um nexo estreito entre a proibição das operações de iniciados e o conceito de informação privilegiada, tendo esta sido definida, no artigo 1.° da Directiva 2003/6, como «toda a informação com carácter preciso, que não tenha sido tornada pública», diga respeito a emitentes de instrumentos financeiros ou a instrumentos financeiros e que, «caso fosse tornada pública, seria susceptível de influenciar de maneira sensível o preço desses instrumentos financeiros ou dos instrumentos financeiros derivados com eles relacionados».

51      Com o objectivo de reforçar a segurança jurídica dos participantes nos mercados, a Directiva 2003/124 precisou a definição de dois elementos essenciais da informação privilegiada, a saber, o carácter preciso desta informação e o alcance do seu impacto potencial nas cotações. O artigo 1.°, n.° 1, desta directiva prevê, assim, que se considera que uma informação «possui um ‘carácter preciso’ se fizer referência a um conjunto de circunstâncias existentes ou razoavelmente previsíveis ou a um acontecimento já ocorrido ou razoavelmente previsível e se essa informação for suficientemente precisa para permitir retirar uma conclusão quanto ao eventual efeito desse conjunto de circunstâncias ou acontecimentos a nível dos preços dos instrumentos financeiros». Este artigo 1.° enuncia, no n.° 2, que uma informação susceptível de influenciar de maneira sensível o preço dos instrumentos financeiros é a «que um investidor razoável utilizaria normalmente para basear em parte as suas decisões de investimento».

52      Graças ao seu carácter não público e preciso e à sua capacidade de influenciar de maneira sensível o preço dos instrumentos financeiros, uma informação privilegiada confere assim ao iniciado que a possui uma vantagem relativamente a todos os outros intervenientes no mercado que a desconhecem. Com efeito, ela permite que o iniciado, quando actua de modo consequente com essa informação, ao efectuar uma operação de mercado, espere dela retirar uma vantagem económica, sem simultaneamente se expor aos mesmos riscos que os outros intervenientes no mercado. A característica essencial da operação de iniciado reside, assim, no facto de retirar indevidamente partido de uma vantagem em detrimento de terceiros que a desconhecem e, por conseguinte, de afectar a integridade dos mercados financeiros bem como a confiança dos investidores.

53      Por conseguinte, a proibição das operações de iniciados aplica‑se quando um iniciado primário que detém uma informação privilegiada utiliza indevidamente a vantagem que essa informação lhe oferece, realizando uma operação de mercado consequente com essa informação.

54      Daí resulta que o facto de um iniciado primário que detém uma informação privilegiada efectuar uma operação de mercado sobre instrumentos financeiros com os quais esta informação se relaciona implica que essa pessoa «utilizou essa informação», na acepção do artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6, sem prejuízo do respeito dos direitos de defesa e, em especial, do direito de poder ilidir esta presunção.

55      Todavia, a fim de não alargar a proibição prevista no artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 para além do que é adequado e necessário à realização dos objectivos prosseguidos por esta directiva, determinadas situações podem requerer um exame minucioso das circunstâncias de facto que permita assegurar que a utilização da informação privilegiada reveste efectivamente o carácter indevido que a dita directiva visa impedir em nome da integridade dos mercados financeiros e da confiança dos investidores.

56      A este respeito, importa realçar que o preâmbulo da Directiva 2003/6 fornece vários exemplos de situações em que o facto de um iniciado primário na posse de uma informação privilegiada efectuar uma operação de mercado não deve, em si, constituir uma «utilização de uma informação privilegiada», na acepção do artigo 2.°, n.° 1, desta directiva.

57      Assim, o décimo oitavo considerando da Directiva 2003/6 recorda que a utilização de uma informação privilegiada «pode consistir na aquisição ou alienação de instrumentos financeiros, quando a parte envolvida sabe ou lhe seja exigível saber que a informação detida tem carácter privilegiado». Esta hipótese está, com efeito, expressamente prevista no artigo 4.° da directiva, que alarga a proibição das operações de iniciados a qualquer pessoa que saiba ou a quem seja exigível que saiba que detém uma informação privilegiada. Não obstante, a aplicação automática destes critérios a determinados profissionais dos mercados financeiros, que possuem informações privilegiadas relativas a operações de mercado efectuadas por terceiros, levaria à proibição da sua actividade, que, no entanto, é legítima e útil ao bom funcionamento dos mercados financeiros. O décimo oitavo considerando da referida directiva especifica, a este respeito, que a apreciação do que uma pessoa razoável sabe ou deveria saber cabe às autoridades competentes «em cada circunstância».

58      Além disso, este considerando esclarece que o simples facto de os criadores de mercado, as instâncias autorizadas a actuar como contraparte, e as pessoas autorizadas a executar ordens de terceiros detentores de informações privilegiadas se limitarem a efectuar operações de mercado de forma legítima e de acordo com as regras que lhes são aplicáveis «não deverá, enquanto tal, ser considerado como constituindo uma utilização dessa informação privilegiada».

59      O vigésimo nono considerando da Directiva 2003/6 esclarece que o acesso à informação privilegiada relativa a outra sociedade e a utilização dessa informação no contexto de uma oferta pública de aquisição ou de uma proposta de fusão «não deverá ser considerado por si só um abuso de informação privilegiada». Com efeito, a operação que consiste em uma empresa, após ter obtido informações privilegiadas relativas a uma sociedade‑alvo, lançar posteriormente uma oferta pública de aquisição do capital desta, a uma cotação superior à do mercado, não pode, em princípio, ser considerada uma operação de iniciados proibida, uma vez que não viola os interesses protegidos por esta directiva.

60      O trigésimo considerando da Directiva 2003/6 enuncia que, uma vez que a operação de mercado pressupõe necessariamente uma decisão prévia por parte do seu autor, o facto de realizar essa operação «não deverá ser considerado por si só utilização de informação privilegiada». Se assim não fosse, o artigo 2.°, n.° 1, desta directiva poderia, designadamente, levar a proibir a pessoa que decidiu lançar uma operação pública de aquisição de executar essa decisão, por esta ser uma informação privilegiada. Ora, tal resultado não só excederia o que pode ser considerado adequado e necessário para alcançar os objectivos da referida directiva como poderia mesmo colidir com o bom funcionamento dos mercados financeiros, ao impedir as ofertas públicas de aquisição.

61      Resulta do que antecede que a questão de saber se um iniciado primário que detém uma informação privilegiada «utiliza essa informação» na acepção do artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 deve ser determinada à luz da finalidade da directiva, que consiste em proteger a integridade dos mercados financeiros e promover a confiança dos investidores, confiança que assenta, designadamente, na garantia de que serão postos em pé de igualdade e protegidos contra a utilização indevida de informações privilegiadas. Apenas uma utilização contrária a esta finalidade constitui uma operação de iniciados proibida.

62      Por conseguinte, há que responder à segunda e terceira questões que o artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 deve ser interpretado no sentido de que o facto de uma pessoa visada no segundo parágrafo desta disposição, que detenha uma informação privilegiada, adquirir ou alienar, ou tentar adquirir ou alienar, por sua conta ou por conta de terceiros, directa ou indirectamente, os instrumentos financeiros a que essa informação diga respeito implica que essa pessoa «utilizou essa informação» na acepção da dita directiva, sem prejuízo do respeito dos direitos de defesa e, em especial, do direito de poder ilidir esta presunção. A questão de saber se a referida pessoa violou a proibição das operações de iniciados deve ser analisada à luz da finalidade desta directiva, que é proteger a integridade dos mercados financeiros e promover a confiança dos investidores, a qual assenta, designadamente, na garantia de que estes são postos em pé de igualdade e protegidos contra a utilização indevida de informações privilegiadas.

 Quanto à primeira questão

63      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a Directiva 2003/6 constitui uma harmonização completa da proibição das operações de iniciados, de modo que os Estados‑Membros não podem dar uma definição mais rigorosa do que a prevista no artigo 2.°, n.° 1, desta directiva.

64      Resulta da decisão de reenvio que esta questão foi colocada para a hipótese de o artigo 2.°, n.° 1, da directiva proibir considerar que o facto de um iniciado primário que possui uma informação privilegiada efectuar uma operação de mercado sobre instrumentos financeiros a que essa informação diga respeito pode implicar que esta pessoa «utilizou essa informação» na acepção desta disposição. Ora, atendendo à resposta dada à segunda e terceira questões prejudiciais, importa concluir que não se põe a hipótese em que assenta esta primeira questão. Por conseguinte, não há que responder a esta questão.

 Quanto à quarta e quinta questões

65      Com estas duas questões, que importa examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se, a fim de punir uma operação de iniciados no respeito pelo princípio da proporcionalidade, é necessário tomar em consideração a mais‑valia realizada e, se assim for, qual a data a ter em conta para apurar essa mais‑valia.

66      O referido órgão jurisdicional pergunta, além disso, se se deve considerar que a divulgação de uma informação privilegiada influenciou o preço do instrumento financeiro a que se refere e, se assim for, qual é o limite a partir do qual essa influência pode ser qualificada de sensível.

67      Em resposta a este último ponto, importa salientar que a aptidão de uma informação para afectar de maneira sensível o preço dos instrumentos financeiros a que se refere é um dos elementos característicos do conceito de informação privilegiada.

68      Com efeito, como afirmado no n.° 51 do presente acórdão, o conceito de «informação privilegiada», definido no artigo 1.°, n.° 1, da Directiva 2003/6, caracteriza‑se designadamente pelo facto de que, se essa informação fosse tornada pública, «seria susceptível de influenciar de maneira sensível o preço desses instrumentos financeiros ou dos instrumentos financeiros derivados com eles relacionados», sendo este conceito ainda especificado, no artigo 1.°, n.° 2, da Directiva 2003/124, como a «informação que um investidor razoável utilizaria normalmente para basear em parte as suas decisões de investimento».

69      Em conformidade com a finalidade da Directiva 2003/6, esta aptidão para influenciar de maneira sensível o preço deve apreciar‑se, a priori, à luz do conteúdo da informação em causa e do contexto em que se insere. Assim, não é necessário, a fim de determinar se uma informação é privilegiada, examinar se a sua divulgação, efectivamente, influenciou de maneira sensível o preço dos instrumentos financeiros a que se refere.

70      Quanto à primeira partes destas questões, importa lembrar que o artigo 14.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 dispõe que os Estados‑Membros asseguram, nos termos da respectiva legislação nacional, que possam ser tomadas medidas administrativas adequadas ou aplicadas sanções administrativas relativamente às pessoas responsáveis por qualquer incumprimento das disposições aprovadas por força dessa directiva. A este respeito, os Estados‑Membros devem assegurar que estas medidas sejam efectivas, proporcionadas e dissuasivas.

71      Importa concluir que o artigo 14.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 não estabelece nenhum critério para a apreciação do carácter efectivo, proporcionado e dissuasivo de uma sanção. A definição destes critérios compete à legislação nacional.

72      Importa entretanto salientar que o trigésimo oitavo considerando da Directiva 2003/6 enuncia que as sanções devem ser suficientemente dissuasivas e proporcionadas à gravidade da infracção e às mais-valias realizadas e devem ser aplicadas de forma sistemática.

73      Por conseguinte, cabe responder à quarta e quinta questões que o artigo 14.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 deve ser interpretado no sentido de que a vantagem económica resultante de uma operação de iniciados pode constituir um elemento pertinente para efeitos da determinação de uma sanção efectiva, proporcionada e dissuasiva. O método de cálculo desta vantagem económica e, em especial, a data ou o período a tomar em consideração são da competência do direito nacional.

 Quanto à sexta questão

74      O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 14.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 deve ser interpretado no sentido de que, se um Estado‑Membro previu, para além das sanções administrativas visadas nesta disposição, a possibilidade de infligir uma sanção pecuniária de natureza penal, há lugar, na fase da determinação da sanção administrativa, a tomar em consideração a possibilidade e/ou o nível de uma eventual sanção penal pecuniária posterior.

75      O artigo 14.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 exige que os Estados‑Membros assegurem que as medidas ou sanções administrativas que aplicam às pessoas responsáveis por um abuso de mercado, como uma operação de iniciados, sejam efectivas, proporcionadas e dissuasivas, sem prejuízo do direito de os Estados‑Membros imporem sanções penais.

76      Esta disposição não pode ser interpretada no sentido de que impõe às autoridades nacionais competentes a obrigação de tomarem em consideração, na fase da determinação de uma sanção pecuniária de natureza administrativa, a possibilidade de aplicação de uma eventual sanção pecuniária de natureza penal posterior. Com efeito, a apreciação do carácter efectivo, proporcionado e dissuasivo das sanções administrativas previstas na Directiva 2003/6 não pode depender de uma hipotética sanção penal ulterior.

77      Por conseguinte, é de responder à sexta questão que o artigo 14.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 deve ser interpretado no sentido de que, se um Estado‑Membro previu, para além das sanções administrativas visadas por esta disposição, a possibilidade de infligir uma sanção pecuniária de natureza penal, não há que tomar em consideração, para efeitos da apreciação do carácter efectivo, proporcionado e dissuasivo da sanção administrativa, a possibilidade e/ou o nível de uma eventual sanção penal ulterior.

 Quanto às despesas

78      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1)      O artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2003, relativa ao abuso de informação privilegiada e à manipulação de mercado (abuso de mercado), deve ser interpretado no sentido de que o facto de uma pessoa visada no segundo parágrafo desta disposição, que detenha uma informação privilegiada, adquirir ou alienar, ou tentar adquirir ou alienar, por sua conta ou por conta de terceiros, directa ou indirectamente, os instrumentos financeiros a que essa informação diga respeito implica que essa pessoa «utilizou essa informação» na acepção da dita disposição, sem prejuízo do respeito dos direitos de defesa, em especial do direito de poder ilidir esta presunção. A questão de saber se a referida pessoa violou a proibição das operações de iniciados deve ser analisada à luz da finalidade desta directiva, que é proteger a integridade dos mercados financeiros e promover a confiança dos investidores, a qual assenta, designadamente, na garantia de que estes serão postos em pé de igualdade e protegidos contra a utilização indevida de informações privilegiadas.

2)      O artigo 14.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 deve ser interpretado no sentido de que a vantagem económica resultante de uma operação de iniciados pode constituir um elemento pertinente para efeitos da determinação de uma sanção efectiva, proporcionada e dissuasiva. O método de cálculo desta vantagem económica e, em especial, a data ou o período a tomar em consideração são da competência do direito nacional.

3)      O artigo 14.°, n.° 1, da Directiva 2003/6 deve ser interpretado no sentido de que, se um Estado‑Membro previu, para além das sanções administrativas visadas por esta disposição, a possibilidade de infligir uma sanção pecuniária de natureza penal, não há que tomar em consideração, para efeitos da apreciação do carácter efectivo, proporcionado e dissuasivo da sanção administrativa, a possibilidade e/ou o nível de uma eventual sanção penal ulterior.

Assinaturas


* Língua do processo: neerlandês.