Language of document : ECLI:EU:C:2023:502

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

22 de junho de 2023 (*)

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Saúde pública — Medicamentos para uso humano — Regulamento (CE) n.o 726/2004 — Recusa de autorização de introdução no mercado do medicamento para uso humano — Aplidin — plitidepsin — Agência Europeia de Medicamentos (EMA) — Imparcialidade dos peritos de um grupo de aconselhamento científico (GAC) — Política da Agência Europeia de Medicamentos em matéria de tratamento dos interesses concorrentes dos membros dos comités científicos e dos peritos — Conceito de “empresa farmacêutica” — Âmbito da exclusão a favor dos “institutos de investigação” — Conceito de “produtos rivais”»

Nos processos apensos C‑6/21 P e C‑16/21 P,

que têm por objeto dois recursos de acórdãos do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interpostos em 7 de janeiro de 2021,

República Federal da Alemanha, representada inicialmente por J. Möller e S. Heimerl e, em seguida, por J. Möller e P.‑L. Krüger, na qualidade de agentes (C‑6/21 P),

recorrente,

apoiada por:

Reino dos Países Baixos, representado por M. K. Bulterman, J. Langer e C. S. Schillemans, na qualidade de agentes,

Agência Europeia de Medicamentos (EMA), representada por S. Drosos, H. Kerr e S. Marino, na qualidade de agentes,

intervenientes no presente recurso,

sendo as outras partes no processo:

Pharma Mar SA, com sede em Colmenar Viejo (Espanha), representada por M. Merola e V. Salvatore, avvocati,

recorrente em primeira instância,

Comissão Europeia, representada por L. Haasbeek e A. Sipos, na qualidade de agentes,

recorrida em primeira instância,

e

República da Estónia, representada por N. Grünberg, na qualidade de agente (C‑16/21 P),

recorrente,

apoiada por:

República Federal da Alemanha, representada inicialmente por J. Möller e S. Heimerl, em seguida, por J. Möller e D. Klebs e, por último, por J. Möller e P.‑L. Krüger, na qualidade de agentes,

Reino dos Países Baixos, representado por M. K. Bulterman, J. Langer e C. S. Schillemans, na qualidade de agentes,

Agência Europeia de Medicamentos (EMA), representada por S. Drosos, H. Kerr e S. Marino, na qualidade de agentes,

intervenientes no presente recurso,

sendo as outras partes no processo:

Pharma Mar SA, com sede em Colmenar Viejo, representada por M. Merola e V. Salvatore, avvocati,

recorrente em primeira instância,

Comissão Europeia, representada por L. Haasbeek e A. Sipos, na qualidade de agentes,

recorrida em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Jürimäe, presidente de secção, M. Safjan, N. Piçarra, N. Jääskinen e M. Gavalec (relator), juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: M. Longar, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 12 de outubro de 2022,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 12 de janeiro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        Com os presentes recursos, a República Federal da Alemanha e a República da Estónia pedem a anulação do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 28 de outubro de 2020, Pharma Mar/Comissão (T‑594/18, não publicado, a seguir «acórdão recorrido», EU:T:2020:512), que anulou a Decisão de Execução C(2018) 4831 final da Comissão, de 17 de julho de 2018, que recusou a autorização de introdução no mercado (a seguir «AIM») do medicamento para uso humano «Aplidin — plitidepsine» (a seguir «decisão impugnada»), ao abrigo do Regulamento (CE) n.o 726/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, que estabelece procedimentos comunitários de autorização e de fiscalização de medicamentos para uso humano e veterinário e que institui uma Agência Europeia de Medicamentos (JO 2004, L 136, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (UE) n.o 1027/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012 (JO 2012, L 316, p. 38) (a seguir «Regulamento n.o 726/2004»).

 Quadro jurídico

 Regulamento n.o 726/2004

2        Os considerandos 7, 8 e 19 do Regulamento n.o 726/2004 enunciam:

«(7)      A experiência adquirida desde a aprovação da Diretiva 87/22/CEE do Conselho, de 22 de dezembro de 1986, relativa à aproximação das medidas nacionais respeitantes à colocação no mercado dos medicamentos de alta tecnologia, nomeadamente dos resultantes da biotecnologia [(JO 1987, L 15, p. 38)], demonstrou a necessidade de instituir um procedimento comunitário centralizado de autorização obrigatório para os medicamentos de alta tecnologia, e em especial para os resultantes da biotecnologia, a fim de manter o elevado nível de avaliação científica desses medicamentos na União Europeia e, consequentemente, preservar a confiança dos doentes e das profissões médicas nessa avaliação. […] Esta abordagem deve ser mantida, nomeadamente com vista a assegurar o bom funcionamento do mercado interno no setor farmacêutico.

(8)      Na perspetiva de uma harmonização do mercado interno no que se refere aos novos medicamentos, convém ainda tornar esse procedimento obrigatório para os medicamentos órfãos […]

[…]

(19)      A principal atribuição da Agência [Europeia de Medicamentos, a seguir “Agência” ou “EMA”] deve ser a de emitir pareceres científicos da melhor qualidade possível destinados às instituições comunitárias e aos Estados‑Membros, para o exercício das competências que a legislação comunitária lhes confere no domínio dos medicamentos, no que respeita à autorização e fiscalização dos mesmos. Só após uma avaliação científica única, do mais elevado nível possível, da qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos de alta tecnologia, a efetuar pela Agência, deve a Comunidade conceder uma [AIM], através de um procedimento célere que assegure uma estreita cooperação entre a Comissão e os Estados‑Membros.»

3        Nos termos do artigo 9.o, n.os 1 e 2, deste regulamento:

«1.      A Agência informa imediatamente o requerente se o Comité dos Medicamentos para Uso Humano for do parecer que:

a)      O pedido não satisfaz os critérios de autorização fixados no presente regulamento;

[…]

2.      No prazo de 15 dias a contar da receção do parecer referido no n.o 1, o requerente pode comunicar à Agência, por escrito, a sua intenção de requerer a revisão do parecer. […]»

4        O título IV do referido regulamento, intitulado «Agência Europeia de Medicamentos Responsabilidades e estrutura administrativa», contém um capítulo 1, intitulado «Funções da Agência», que é composto pelos artigos 55.o a 66.o do mesmo regulamento.

5        O artigo 56.o do Regulamento n.o 726/2004 enuncia, nos n.os 1 e 2:

«1.      A Agência tem a seguinte estrutura:

a)      O Comité dos Medicamentos para Uso Humano, responsável pela elaboração do parecer da Agência sobre qualquer questão relativa à avaliação dos medicamentos para uso humano;

[…]

c)      O Comité dos Medicamentos Órfãos;

[…]

d‑A)      O Comité das Terapias Avançadas;

[…]

2.      Os comités referidos nas alíneas a) a d)‑A do n.o 1 podem criar grupos de trabalho permanentes e temporários. Os comités a que se referem as alíneas a) e b) do n.o 1 podem criar grupos de aconselhamento científico para efeitos de avaliação de tipos específicos de medicamentos ou terapias nos quais o Comité pode delegar determinadas tarefas relacionadas com a elaboração dos pareceres científicos a que se referem os artigos 5.o e 30.o

Ao proceder à criação de grupos de trabalho e grupos de aconselhamento científico, os comités devem prever no regulamento interno a que se refere o n.o 8 do artigo 61.o:

a)      Que a nomeação dos membros desses grupos de trabalho e grupos de aconselhamento científico se baseie na lista de peritos a que se refere o segundo parágrafo do n.o 2 do artigo 62.o; e

b)      Que sejam consultados esses grupos de trabalho e grupos de aconselhamento científico.»

6        O artigo 57.o do referido regulamento dispõe, no n.o 1:

«A Agência fornece aos Estados‑Membros e às instituições da Comunidade os melhores pareceres científicos possíveis sobre qualquer questão relativa à avaliação da qualidade, da segurança e da eficácia dos medicamentos para uso humano ou veterinário que lhe seja apresentada em conformidade com as disposições da legislação comunitária em matéria de medicamentos.

[…]»

7        O artigo 62.o do referido regulamento prevê, nos n.os 1 e 2:

«1.      Caso, em conformidade com o presente regulamento, um dos comités referidos no n.o 1 do artigo 56.o tenha de avaliar um medicamento para uso humano, designa um dos seus membros para agir como relator, tendo em conta a competência especializada existente no Estado‑Membro. O Comité em causa pode nomear um segundo membro como correlator.

[…]

Aquando da consulta aos grupos de aconselhamento científico a que se refere o n.o 2 do artigo 56.o, o comité dá‑lhes conhecimento do projeto de relatório ou relatórios de avaliação elaborados pelo relator ou pelo correlator. O parecer do grupo de aconselhamento científico é transmitido ao presidente do comité competente por forma a assegurar o respeito dos prazos fixados no n.o 3 do artigo 6.o e no n.o 3 do artigo 28.o

O conteúdo do referido parecer é incluído no relatório de avaliação publicado nos termos do n.o 3 do artigo 13.o e do n.o 3 do artigo 38.o

Se for requerida a revisão de um dos seus pareceres, caso tal possibilidade esteja prevista na legislação da União, o comité em causa nomeia um relator e, se for caso disso, um correlator, diferentes dos nomeados para o parecer inicial. A revisão só pode ter por objeto os pontos do parecer inicial previamente identificados pelo requerente e só pode basear‑se nos dados científicos disponíveis aquando da adoção do parecer inicial pelo comité. O requerente pode pedir que o Comité consulte um grupo de aconselhamento científico para efeitos da revisão.

2.      Os Estados‑Membros enviam à Agência o nome dos peritos nacionais com experiência comprovada na avaliação de medicamentos para uso humano e que, tendo em conta o disposto no artigo 63.o, n.o 2, possam integrar os grupos de trabalho ou os grupos de aconselhamento científico de qualquer um dos comités referidos no artigo 56.o, n.o 1, acompanhados da indicação das suas qualificações e áreas de competência específica.

A Agência elabora e mantém uma lista de peritos acreditados. Essa lista inclui os peritos acima referidos, bem como outros peritos designados diretamente pela Agência. Essa lista deve ser atualizada sempre que necessário.»

8        Nos termos do artigo 63.o, n.o 2, do referido regulamento:

«Os membros do Conselho de Administração, os membros dos comités, os relatores e os peritos não podem ter interesses financeiros ou outros, na indústria farmacêutica suscetíveis de afetar a sua imparcialidade. Devem comprometer‑se a agir ao serviço do interesse público e num espírito de independência e devem apresentar anualmente uma declaração sobre os seus interesses financeiros. Todos os interesses indiretos que possam estar relacionados com esta indústria devem constar de um registo mantido pela Agência e ser acessíveis a consulta pública, a pedido, nos serviços da Agência.

O código de conduta da Agência deve prever a aplicação do presente artigo, em particular no que se refere à aceitação de presentes.

Os membros do Conselho de Administração, os membros dos comités, os relatores e os peritos que participem em reuniões ou grupos de trabalho da Agência devem declarar, em cada reunião, os interesses específicos que possam ser considerados prejudiciais à sua independência relativamente aos diversos pontos da ordem de trabalhos. Essas declarações são disponibilizadas ao público.»

 Regulamento (CE) n.o 141/2000

9        O considerando 7 do Regulamento (CE) n.o 141/2000 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 1999, relativo aos medicamentos órfãos (JO 2000, L 18, p. 1), prevê:

«[…] os medicamentos órfãos devem […] ser objeto do processo de avaliação habitual; […]»

 Código de Conduta do EMA

10      O European Medicines Agency Code of Conduct (Código de Conduta da Agência Europeia de Medicamentos), na versão de 16 de junho de 2016 (EMA/385894/2012 rev.1.) (a seguir «Código de Conduta da EMA»), prevê, no ponto 2.3.3:

«A participação dos membros do Conselho de Administração ou dos comités científicos, dos relatores e dos peritos, bem como dos membros do pessoal da EMA nas atividades da EMA está subordinada à comunicação de uma declaração de interesses assinada e a uma análise dos interesses declarados. As restrições aplicáveis às pessoas em questão em termos de atividades individuais no contexto do papel e das responsabilidades da EMA dependerão dos seus interesses concorrentes e das funções exercidas. Os pormenores das restrições pertinentes são fixados nos documentos de orientação política da Agência.»

 Política da EMA

11      A European Medicines Agency policy on the handling of compting interests of scientific committees’ members and experts (Política da [EMA] relativa ao Tratamento dos Interesses Concorrentes dos Membros dos Comités Científicos e dos Peritos), na versão de 6 de outubro de 2016 (EMA/626261/2014. Rev. 1, a seguir «Política da EMA»), contém um ponto 3.2.2, intitulado «Outras definições», que define o conceito de «empresa farmacêutica» do seguinte modo:

«Por “empresa farmacêutica” entende‑se: qualquer pessoa singular ou coletiva vocacionada para descobrir, desenvolver, produzir, comercializar e/ou distribuir medicamentos. Para efeitos da presente política, a definição inclui as empresas às quais são confiadas, no âmbito de um contrato, atividades ligadas à descoberta, ao desenvolvimento, à produção, à comercialização e à manutenção dos medicamentos (que podem também ser efetuadas internamente).

A este respeito, as organizações de investigação clínica ou as empresas de consultoria que prestam aconselhamento ou serviços relacionados com as atividades supramencionadas são abrangidas pela definição de empresa farmacêutica.

As pessoas singulares ou coletivas não abrangidas por esta definição mas que i) controlam (isto é, detêm uma participação maioritária numa empresa farmacêutica ou exercem uma influência considerável nos processos decisórios dessa empresa), ii) são controladas por ou iii) estão sujeitas ao controlo comum de uma empresa farmacêutica, são consideradas empresas farmacêuticas para efeitos da presente política.

Os investigadores independentes e os institutos de investigação, incluindo as universidades e as sociedades científicas, estão excluídos do âmbito da presente definição.»

12      Nos termos do ponto 4.1. da Política da EMA, com a epígrafe «Objetivos da política»:

«O principal objetivo desta política é assegurar que os membros dos comités científicos e os peritos que participam nas atividades da Agência não tenham interesses na indústria farmacêutica suscetíveis de comprometer a sua imparcialidade, em conformidade com as exigências do direito da União. Importa, no entanto, encontrar um equilíbrio com a necessidade de assegurar os melhores conhecimentos científicos (especialistas) para a avaliação e monitorização dos medicamentos para uso humano e veterinário. É por essa razão que é da maior importância procurar um equilíbrio ótimo entre o prazo de reflexão para os interesses declarados e a manutenção dos conhecimentos científicos

A fim de atingir este objetivo e de alcançar o equilíbrio supramencionado, importa atender, em primeiro lugar, à natureza do interesse declarado antes de determinar a duração da aplicação de qualquer eventual restrição.»

13      Nos termos do ponto 4.2.1.2. da referida política, com a epígrafe «Limitar a participação nas atividades da Agência»:

«Níveis das restrições e períodos a tomar em consideração:

–        A participação de uma pessoa nas atividades da Agência é limitada tendo em conta três fatores: a natureza do interesse declarado, o período durante o qual esse interesse existiu e o tipo de atividade. Aplica‑se a seguinte metodologia: a natureza do interesse declarado no contexto da atividade específica da Agência é analisada em primeiro lugar, antes de determinar a duração da aplicação de quaisquer restrições.

–        Regra geral, um emprego […] atual numa empresa farmacêutica ou interesses financeiros atuais na indústria farmacêutica são incompatíveis com a participação nas atividades da Agência. Uma exceção a esta regra geral diz respeito à testemunha especializada. Os interesses financeiros atuais são compatíveis com o envolvimento enquanto testemunha especializada.

–        As exigências relativas à pertença aos órgãos de decisão (isto é, aos comités científicos) são mais rigorosas do que para os órgãos consultivos (isto é, os [grupos de aconselhamento científico (GAC)] e para os grupos de peritos ad hoc).

–        As exigências são igualmente mais rigorosas para os presidentes/vice‑presidentes dos comités científicos do que para os presidentes/vice‑presidentes dos outros fóruns e para os membros dos comités científicos e dos outros fóruns. Do mesmo modo, as exigências são mais rigorosas para os relatores (ou um papel de direção/coordenação equivalente) e para os examinadores oficialmente nomeados do que para os outros membros dos fóruns científicos.

–        O período a ter em conta em função do interesse direto ou indireto declarado é o período atual ou os últimos três anos, ou em certos casos, como indicado anteriormente, um período mais longo (v. secção 4.2.1.1. para mais pormenores).

[…]

Casos específicos de produtos rivais

No caso específico dos produtos rivais (anteriormente designados produtos concorrentes), aplica‑se uma abordagem a dois níveis:

–        o conceito de “produtos rivais” diz respeito às situações em que existe apenas um número muito reduzido (um a dois) de produtos rivais. O mesmo se aplica a uma marca dominante onde um produto genérico é examinado.

–        no que respeita às indicações amplas, dado que são autorizados numerosos produtos para a mesma indicação, o volume existente de concorrência dilui de maneira adequada potenciais interesses.

Em situações que se caracterizam apenas por um pequeno número de produtos rivais, conforme anteriormente referido, as consequências dizem respeito aos presidentes e vice‑presidentes dos comités científicos e dos grupos de trabalho, bem como aos relatores e outros membros que exerçam funções de direção/codireção e aos pares avaliadores oficialmente nomeados.»

 Antecedentes do litígio

14      Os antecedentes do litígio estão expostos nos n.os 1 a 11 do acórdão recorrido e podem ser resumidos do seguinte modo.

15      A Pharma Mar SA é uma sociedade que exerce atividade no domínio da investigação oncológica. Em 16 de novembro de 2004, em aplicação do Regulamento n.o 141/2000, obteve a designação do medicamento Aplidin, cuja substância ativa é a plitidepsine, como medicamento órfão para o tratamento do mieloma múltiplo, que é um cancro grave da medula óssea.

16      Em 21 de setembro de 2016, a Pharma Mar apresentou à EMA, nos termos do artigo 4.o do Regulamento n.o 726/2004, um pedido de AIM do Aplidin. Este pedido de AIM tinha por objeto a indicação seguinte: «em conjugação com a dexametasona, para o tratamento do mieloma múltiplo reincidente/refratário em pacientes adultos que já tenham recebido pelo menos três tratamentos anteriores, entre os quais bortezomib e, ou com lenalidomida, ou com tealidomida».

17      Em 14 de dezembro de 2017, o Comité dos Medicamentos para Uso Humano da EMA (a seguir «CHMP») emitiu um parecer no qual recomendou à Comissão Europeia que indeferisse o pedido de AIM do Aplidin com o fundamento de que a eficácia e a segurança do produto não estavam suficientemente demonstradas e, por conseguinte, os benefícios não eram superiores aos riscos.

18      Com base no artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento n.o 726/2004, a Pharma Mar apresentou à EMA, em 3 de janeiro de 2018, um pedido de revisão do parecer do CHMP, acompanhado de um pedido de consulta de um grupo de aconselhamento científico, em conformidade com o artigo 62.o, n.o 1, do referido regulamento.

19      O procedimento de revisão teve início em 15 de fevereiro de 2018. Em 7 de março de 2018, realizou‑se uma reunião do grupo de aconselhamento científico de oncologia (a seguir «GAC de oncologia»), que era composto por cinco membros principais, seis peritos adicionais e dois representantes dos pacientes.

20      Em 21 de março de 2018, a Pharma Mar apresentou as suas observações orais no CHMP. Em 22 de março de 2018, o CHMP confirmou o seu parecer de 14 de dezembro de 2017 e elaborou um projeto de decisão da Comissão que indeferiu o pedido de AIM do Aplidin.

21      Em 17 de julho de 2018, a Comissão adotou a decisão impugnada, que contém um anexo intitulado «Conclusões científicas e motivos de recusa apresentados pela EMA», que corresponde ao parecer do CHMP.

 Tramitação processual no Tribunal Geral e acórdão recorrido

22      Por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal Geral em 1 de outubro de 2018, a Pharma Mar interpôs um recurso de anulação da decisão impugnada.

23      A Pharma Mar invocou cinco fundamentos de recurso. Estes eram relativos à violação, primeiro, da obrigação de os membros do GAC de oncologia efetuarem uma análise imparcial do pedido de AIM do Aplidin, segundo, do princípio da boa administração, terceiro, do artigo 12.o do Regulamento n.o 726/2004 e do princípio da igualdade de tratamento, quarto, do dever de fundamentação e, quinto, dos direitos de defesa.

24      O primeiro fundamento é composto por duas partes. No âmbito da primeira parte do referido fundamento, a Pharma Mar contestava a falta de imparcialidade e, mais especificamente, a participação na votação de dois peritos do GAC de oncologia (a seguir, conjuntamente, «dois peritos»). Sustentou que deviam ter sido excluídos da votação por terem declarado interesses incompatíveis com uma análise imparcial do pedido de AIM do Aplidin. A Pharma Mar referia‑se, por um lado, a um professor (a seguir «primeiro perito»), que era vice‑presidente do GAC de oncologia e um dos cinco membros principais desse GAC. Este primeiro perito trabalhava para um instituto universitário (a seguir «Instituto»), estabelecimento de ensino de renome no domínio médico. Segundo a Pharma Mar, o Instituto exerce uma influência significativa no hospital universitário em que se situa e num centro profissional de investigação clínica, que deveriam ser qualificados de organismos de investigação clínica e, portanto, equiparados a empresas farmacêuticas, em aplicação do ponto 3.2.2 da Política da EMA. A Pharma Mar referia‑se, por outro lado, a outra pessoa, também professor e assalariado do Instituto (a seguir «segundo perito»), que era um dos seis peritos adicionais do GAC de oncologia e que tinha declarado que participava no desenvolvimento de produtos concorrentes do Aplidin.

25      No n.o 84 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral sublinhou a influência potencial do GAC de oncologia no desenvolvimento e resultado do procedimento de AIM do Aplidin, bem como o importante papel desempenhado nesse grupo pelo primeiro perito, na sua qualidade de presidente da reunião de 7 de março de 2018. Por conseguinte, em razão da participação dos dois peritos no GAC de oncologia, da sua relação profissional com o hospital universitário e das atividades do segundo perito relacionadas com medicamentos concorrentes do Aplidin, o Tribunal Geral considerou que o procedimento que conduziu à adoção da decisão impugnada não oferecia garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima quanto a uma eventual parcialidade.

26      Por conseguinte, o Tribunal Geral considerou, no n.o 85 do acórdão recorrido, que havia que julgar procedente a primeira parte do primeiro fundamento e, por essa razão, anular a decisão impugnada, sem que fosse necessário pronunciar‑se sobre a segunda parte do primeiro fundamento nem sobre os outros fundamentos do pedido.

 Pedidos das partes

27      Com o seu recurso no processo C‑6/21 P, a República Federal da Alemanha conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        anular o acórdão recorrido;

–        confirmar a decisão impugnada e negar provimento ao recurso;

–        a título subsidiário, remeter o processo ao Tribunal Geral, e

–        condenar a Pharma Mar nas despesas.

28      Com o seu recurso no processo C‑16/21 P, a República da Estónia conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        anular o acórdão recorrido, e

–        condenar cada uma das partes a suportar as suas próprias despesas com o recurso.

29      A Pharma Mar conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        declarar que não é necessário conhecer do mérito dos recursos ou declará‑los inadmissíveis ou improcedentes, e

–        condenar as recorrentes a suportar as suas próprias despesas, bem como as efetuadas pela Pharma Mar com os recursos.

 Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

30      Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 30 de março de 2021, os recursos nos processos C‑6/21 P e C‑16/21 P foram apensados para efeitos da fase escrita, da fase oral e do acórdão.

31      Por Decisões de 8 de julho e 17 de setembro de 2021, o presidente do Tribunal de Justiça autorizou, no processo C‑6/21 P, respetivamente, o Reino dos Países Baixos e a EMA a intervirem em apoio dos pedidos da República Federal da Alemanha.

32      Por Decisões de 8 e 9 de julho, bem como de 17 de setembro de 2021, o presidente do Tribunal de Justiça autorizou, no processo C‑16/21 P, respetivamente, o Reino dos Países Baixos, a República Federal da Alemanha e a EMA a intervirem em apoio dos pedidos da República da Estónia.

 Quanto aos recursos

33      Em apoio do seu recurso no processo C‑6/21, a República Federal da Alemanha invoca quatro fundamentos relativos, primeiro, a uma violação do conceito de «empresa farmacêutica», na aceção do ponto 3.2.2. da Política da EMA, segundo, a uma repartição errada do ónus da alegação e do ónus da prova, terceiro, a uma violação do conceito de «medicamento concorrente», na aceção do ponto 4.2.1.2. da Política da EMA, na apreciação da imparcialidade dos peritos, e, quarto, à falta de influência decisiva do segundo perito.

34      Quanto à República da Estónia, invoca, em apoio do seu recurso no processo C‑16/21, três fundamentos relativos, primeiro, à violação do conceito de «empresa farmacêutica», na aceção do ponto 3.2.2. da Política da EMA, segundo, à violação do conceito de «medicamento concorrente», na aceção do ponto 4.2.1.2. da Política da EMA, na apreciação da imparcialidade dos peritos, e, terceiro, à inobservância do papel dos peritos e da sua influência nas conclusões do GAC de oncologia.

35      A Pharma Mar alega a inadmissibilidade dos recursos interpostos pela República Federal da Alemanha e pela República da Estónia e, a título subsidiário, contesta os fundamentos invocados por estes Estados‑Membros em apoio dos respetivos recursos.

 Quanto à exceção de inadmissibilidade dos recursos

36      A Pharma Mar considera que os recursos são desprovidos de objeto e que, consequentemente, devem ser declarados inadmissíveis. Com efeito, alega que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, ainda que os Estados‑Membros e as instituições da União não tenham de demonstrar um interesse específico em interpor recurso de uma decisão do Tribunal Geral, é ainda necessário que esse recurso, se for acolhido, lhes possa conferir um benefício.

37      Ora, no caso em apreço, o acórdão recorrido limita‑se a impor à EMA que proceda a uma nova reapreciação, em conformidade com a exigência de imparcialidade, do pedido de AIM do Aplidin. Essa é a razão pela qual a Comissão e a EMA decidiram não interpor recurso do acórdão recorrido, mas concentrar‑se no lançamento rápido de um novo processo de revisão. Por conseguinte, a Pharma Mar pede ao Tribunal de Justiça que declare oficiosamente que não é necessário pronunciar‑se sobre os recursos, que se destinam simplesmente a clarificar questões hipotéticas, apenas suscetíveis de serem suscitadas em futuros processos.

38      A este propósito, no que respeita ao interesse em agir, resulta do artigo 56.o, segundo e terceiro parágrafos, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia que, independentemente do facto de ter sido parte no litígio em primeira instância, um Estado‑Membro pode interpor recurso de qualquer decisão do Tribunal Geral, mesmo que esta não o afete diretamente, visto que não tem de fazer prova de um interesse para poder interpor recurso dessas decisões (v., neste sentido, Acórdãos de 8 de julho de 1999, Comissão/Anic Partecipazioni, C‑49/92 P, EU:C:1999:356, n.o 171, e de 21 de dezembro de 2011, França/People’s Mojahedin Organization of Iran, C‑27/09 P, EU:C:2011:853, n.os 44 e 45).

39      No que respeita à falta de objeto, com os respetivos recursos, a República Federal da Alemanha e a República da Estónia pedem a anulação do acórdão recorrido que fundamenta a irregularidade do procedimento de AIM do Aplidin na falta de imparcialidade objetiva dos peritos em questão. Os presentes recursos visam reconhecer a legalidade do procedimento que conduziu à recusa do pedido de AIM, o que demonstra, em qualquer caso, que não são desprovidos de objeto.

40      A exceção de admissibilidade suscitada pela Comissão deve, portanto, ser julgada improcedente.

 Quanto aos primeiros fundamentos nos processos C6/21 P e C16/21 P, relativos à violação do ponto 3.2.2. da Política da EMA e do artigo 41.o, n.o 1, da Carta

–       Argumentos das partes

41      Com o seu primeiro fundamento, a República Federal da Alemanha e a República da Estónia contestam os n.os 58 a 65 do acórdão recorrido. Alegam que a Política da EMA oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida quanto à imparcialidade dos membros do GAC de oncologia, pelo que o Tribunal Geral interpretou e aplicou erradamente o ponto 3.2.2. da referida política e, por conseguinte, violou o direito a uma boa administração garantido no artigo 41.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

42      Estes Estados‑Membros alegam que o Tribunal Geral equiparou erradamente, nos n.os 61 e 65 do acórdão recorrido, o hospital universitário, no seu conjunto, a uma «empresa farmacêutica», na aceção do ponto 3.2.2. da Política da EMA. Daí deduziu, de maneira igualmente errada, que a relação de emprego que existia entre esse hospital e alguns dos peritos do GAC de oncologia os colocava automaticamente numa situação potencial de conflito de interesses, passível de suscitar dúvidas quanto à sua imparcialidade.

43      A Pharma Mar considera que este fundamento é improcedente. Alega que, mesmo que a EMA disponha efetivamente da alegada margem de apreciação para garantir a imparcialidade dos peritos dessa agência, a Política da EMA não contém nenhuma regra específica pertinente no caso presente. Por conseguinte, a EMA nunca exerceu esse poder de apreciação quando definiu a sua política. No caso em apreço, o centro de terapia celular do hospital universitário está envolvido no desenvolvimento de um produto rival do Aplidin, sem que um terceiro observador possa facilmente apreciar se a imparcialidade objetiva é respeitada, dado que este centro não é juridicamente distinto do hospital universitário. Além disso, a Comissão não demonstrou a inexistência de controlo entre o hospital universitário e o referido centro. A Pharma Mar sublinha, por outro lado, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça exige que sejam prestadas garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima quanto à existência de um conflito de interesses.

–       Apreciação do Tribunal de Justiça

44      A título preliminar, há que examinar o argumento invocado pela Pharma Mar, na sua contestação, segundo o qual, em substância, a Política da EMA não é pertinente para apreciar a imparcialidade de um perito do GAC de oncologia que declarou ter interesses em produtos rivais de medicamentos órfãos.

45      A este respeito, deve notar‑se, em primeiro lugar, que o considerando 8 do Regulamento 726/2004 afirma claramente que, na perspetiva de uma harmonização do mercado interno no que se refere aos novos medicamentos, convém tornar obrigatório para os medicamentos órfãos o procedimento centralizado de autorização da União. Em seguida, decorre do considerando 7 do Regulamento n.o 141/2000 que, para que os pacientes com patologias raras disponham de medicamentos com qualidade, segurança e eficácia equivalentes às dos medicamentos oferecidos aos outros pacientes, os medicamentos órfãos devem ser objeto do procedimento de avaliação habitual, ou seja, do procedimento previsto pelo Regulamento n.o 726/2004. Por último, segundo o artigo 57.o, n.o 1, deste último regulamento, a EMA fornece aos Estados‑Membros e às instituições da Comunidade os melhores pareceres científicos possíveis sobre qualquer questão relativa à avaliação da qualidade, da segurança e da eficácia dos medicamentos para uso humano ou veterinário que lhe seja apresentada em conformidade com as disposições da legislação da União em matéria de medicamentos. Pelo seu caráter genérico, esta formulação inclui necessariamente os medicamentos órfãos.

46      Daqui resulta, como a EMA declarou na audiência, que a Política da EMA é um documento global que se aplica indistintamente a todos os medicamentos, sejam eles órfãos ou não. Assim, contrariamente ao que alega a Pharma Mar, a imparcialidade de um perito do GAC de oncologia que declarou ter interesses em produtos rivais do medicamento órfão em causa pode ser apreciada à luz da Política da EMA.

47      Feita esta precisão, há que examinar a argumentação da República Federal da Alemanha e da República da Estónia segundo a qual o Tribunal Geral cometeu um erro de direito, no n.o 61 do acórdão recorrido, ao interpretar de forma ampla o conceito de «empresa farmacêutica», na aceção do ponto 3.2.2. da Política da EMA, e ao ignorar, assim, a ampla margem de apreciação conferida à EMA pelo legislador da União para garantir a imparcialidade dos peritos desta agência, bem como a redação do referido ponto 3.2.2.

48      A este respeito, importa salientar, em primeiro lugar, que o Regulamento n.o 726/2004, como decorre nomeadamente dos seus considerandos 7 e 8, pretende assegurar o bom funcionamento do mercado interno no setor farmacêutico e harmonizar o mercado interno para os novos medicamentos. Essa é a razão pela qual o legislador da União fundamentou o referido regulamento, designadamente, no artigo 95.o CE, disposição que lhe permite adotar as medidas relativas à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros que tenham por objeto o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno.

49      Ora, como o Tribunal de Justiça já declarou, com a expressão «medidas relativas à aproximação» que figura no artigo 95.o CE, os autores do Tratado quiseram conferir ao legislador da União, em função do contexto geral e das circunstâncias específicas da matéria a harmonizar, margem de apreciação quanto à técnica de aproximação mais adequada para alcançar o resultado pretendido, designadamente nos domínios que se caracterizam por particularidades técnicas complexas. Essa margem de apreciação pode ser utilizada designadamente para escolher a técnica de harmonização mais adequada quando a aproximação tida em mente requeira análises físicas, químicas ou biológicas, bem como a tomada em consideração dos desenvolvimentos científicos relativos à matéria em causa (Acórdão de 6 de dezembro de 2005, Reino Unido/Parlamento e Conselho, C‑66/04, EU:C:2005:743, n.os 45 e 46).

50      Tendo em conta a margem de apreciação que lhe é assim conferida pelo artigo 95.o CE, o legislador da União optou, no que respeita à exigência de imparcialidade dos peritos da EMA, por fixar critérios essenciais no regulamento de base e por confiar, em seguida, a esta agência a tarefa de os aplicar. É este o objeto do artigo 63.o do Regulamento n.o 726/2004, que sujeita os membros do Conselho de Administração, os membros dos comités, os relatores e os peritos da EMA a obrigações de imparcialidade e de independência, precisando que a concretização dessas exigências é conferida à EMA, à qual incumbe adotar um código de conduta.

51      O legislador da União confiou assim à EMA a arbitragem a efetuar entre, por um lado, a dupla exigência de imparcialidade e de independência dos seus peritos, conforme enunciada no artigo 63.o, n.o 2, do referido regulamento, e, por outro, o interesse público, mencionado no artigo 57.o, n.o 1, do mesmo regulamento, relativo à necessidade de dispor dos melhores pareceres científicos possíveis sobre qualquer questão relativa à avaliação da qualidade, da segurança e da eficácia dos medicamentos para uso humano ou veterinário que lhe seja apresentada.

52      Em segundo lugar, para permitir que a EMA prossiga eficazmente o objetivo que lhe foi fixado, e tendo em consideração as avaliações técnicas complexas que deve efetuar, o amplo poder de apreciação que lhe é reconhecido (v., por analogia, Acórdão de 18 de julho de 2007, Industrias Químicas del Vallés/Comissão, C‑326/05 P, EU:C:2007:443, n.o 75) manifesta‑se nomeadamente na definição dos critérios que devem presidir à imparcialidade e à independência das pessoas que contribuem para a elaboração dos seus pareceres científicos.

53      A este respeito, o ponto 2.3.3. do Código de Conduta da EMA remete, por sua vez, para os documentos de orientação desta agência para que detalhem as restrições aplicáveis aos membros do Conselho de Administração ou dos comités científicos, aos relatores e aos peritos. Essas restrições, que dependem das atividades, do papel e das responsabilidades de cada uma dessas pessoas na EMA, devem ser adequadas aos seus interesses concorrentes e à função que lhes é confiada.

54      Assim, o ponto 4.1., primeiro parágrafo, da Política da EMA, que concretiza o artigo 57.o, n.o 1, do Regulamento n.o 726/2004, enuncia que «[o] principal objetivo desta política é assegurar que os membros dos comités científicos e os peritos que participam nas atividades da Agência não tenham interesses na indústria farmacêutica suscetíveis de comprometer a sua imparcialidade, em conformidade com as exigências do direito da União. Importa, no entanto, encontrar um equilíbrio com a necessidade de assegurar os melhores conhecimentos científicos (especialistas) para a avaliação e monitorização dos medicamentos para uso humano e veterinário. É por essa razão que é da maior importância procurar um equilíbrio ótimo entre o prazo de reflexão para os interesses declarados e a manutenção dos conhecimentos científicos.»

55      Além disso, o ponto 4.2.1.2. da referida política prevê que «[r]egra geral, um emprego […] atual numa empresa farmacêutica ou interesses financeiros atuais na indústria farmacêutica são incompatíveis com a participação nas atividades da Agência. […]»

56      Em terceiro lugar, como resulta da redação do ponto 3.2.2. da Política da EMA, referida no n.o 11 do presente acórdão, há que determinar, num primeiro momento, se um hospital universitário pode ser equiparado aos «institutos de investigação» e, por conseguinte, ser excluído do âmbito de aplicação da definição de «empresa farmacêutica». Em caso afirmativo, importa, num segundo momento, examinar se o facto de um hospital universitário controlar o centro de terapia celular, que é facto assente que constitui uma empresa farmacêutica, leva a que este fique privado do benefício dessa exclusão.

57      Quanto ao primeiro aspeto, resulta da redação da referida disposição que, enquanto os seus três primeiros parágrafos definem pela positiva a «empresa farmacêutica», o seu último parágrafo exclui do âmbito de aplicação desta definição «[o]s investigadores independentes e os institutos de investigação, incluindo as universidades e as sociedades científicas». Tendo em conta a formulação utilizada, nomeadamente a locução «incluindo», esta enumeração não pode ser considerada exaustiva.

58      Ora, decorre de uma interpretação teleológica do ponto 3.2.2. da Política da EMA que os hospitais universitários devem ser equiparados a institutos de investigação.

59      Com efeito, primeiro, a denominação dos hospitais universitários demonstra a proximidade que mantêm com uma universidade, que, por sua vez, está expressamente excluída do perímetro da «empresa farmacêutica».

60      Segundo, como salientou o Tribunal Geral no n.o 57 do acórdão recorrido, um hospital universitário exerce uma tripla função, de assistência, ensino e investigação. Como sustentaram a República Federal da Alemanha e a República da Estónia, as universidades e os hospitais universitários dedicam‑se essencialmente e, regra geral, por força da lei, à investigação científica sem fins lucrativos no interesse da saúde, estão sujeitos a uma série de normas éticas estritas no âmbito das investigações que efetuam e não participam na comercialização dos medicamentos.

61      Terceiro, como acertadamente expuseram a República da Estónia, o Reino dos Países Baixos e a EMA, tanto nos seus articulados como na audiência, o facto de excluir os hospitais universitários do conceito de «empresa farmacêutica», na aceção do ponto 3.2.2. da Política da EMA, contribui para alcançar um equilíbrio entre a necessidade de efetuar, por um lado, uma análise imparcial dos pedidos de AIM de um medicamento e, por outro, um exame científico atento e o mais preciso possível relativamente às questões que se colocam quando da avaliação de um medicamento. Ora, para alcançar esse equilíbrio, é necessário, como salientam essas partes, autorizar a EMA a designar como perito pessoas que pertencem ao pessoal dos hospitais universitários uma vez que, em conformidade com o ponto 4.2.1.2, segundo parágrafo, dessa política, a EMA não pode designar nessa qualidade, exceto no que respeita às testemunhas especializadas, pessoas que ocupam um lugar na indústria farmacêutica ou que nela têm interesses financeiros atuais.

62      Decorre das considerações precedentes que um hospital universitário deve ser excluído do âmbito de aplicação do conceito de «empresa farmacêutica», na aceção do ponto 3.2.2. da referida política.

63      Importa também examinar, num segundo momento, se o facto de um hospital universitário controlar uma empresa farmacêutica, neste caso o centro de terapia celular, leva a considerar que o referido hospital não está abrangido por essa exclusão.

64      Nos termos do quarto e último parágrafo do conceito de «empresa farmacêutica» definido no ponto 3.2.2. da Política da EMA, «[o]s investigadores independentes e os institutos de investigação, incluindo as universidades e as sociedades científicas, estão excluídos do âmbito [dessa] definição». Formulada de maneira unívoca, esta disposição não prevê nenhuma exceção à exclusão que consagra.

65      Ora, a EMA salientou, em substância, na audiência, que os hospitais universitários estão frequentemente dotados de uma pequena entidade que fabrica medicamentos e que preenche os critérios para ser qualificada como «empresa farmacêutica», quer porque esses medicamentos dispõem de um curto prazo de conservação, o que pressupõe poder administrá‑los muito rapidamente após o seu fabrico, quer porque têm de ser produzidos a partir de matérias biológicas extraídas dos pacientes. Neste contexto, a exclusão sem reservas dos institutos de investigação do âmbito de aplicação da definição de «empresa farmacêutica», na aceção do ponto 3.2.2. da Política da EMA, demonstra a intenção da EMA, no âmbito da habilitação que lhe foi concedida pelo legislador da União, como foi recordado nos n.os 50 e 51 do presente acórdão, de excluir do âmbito de aplicação desta definição os institutos de investigação e, por extensão, os hospitais universitários.

66      Além disso, a aplicação a um hospital universitário do critério do controlo enunciado no terceiro parágrafo da referida definição de empresa farmacêutica privaria de efeito útil a exclusão prevista no quarto parágrafo dessa mesma definição. Com efeito, o referido hospital ficaria inteiramente privado da possibilidade de beneficiar dessa exclusão, uma vez que controlaria uma entidade que cumpriria os critérios de uma empresa farmacêutica, independentemente de qual fosse a percentagem do seu pessoal adstrito a essa entidade.

67      Considerar que todo o pessoal de um hospital universitário é empregado por uma «empresa farmacêutica», na aceção do ponto 3.2.2. da referida política, seria igualmente contrário ao objetivo do artigo 57.o, n.o 1, do Regulamento n.o 726/2004, lido em conjugação com o seu considerando 19, bem como do ponto 4.1. da referida política, que consiste em encontrar um equilíbrio ótimo entre a exigência de imparcialidade dos membros dos comités científicos e dos peritos que participam nas atividades da Agência e a necessidade de dispor de um parecer científico da melhor qualidade possível.

68      No caso em apreço, a República da Estónia expôs na audiência, baseando‑se nas estatísticas relativas ao ano de 2021, que tal interpretação levaria a considerar que os 4 656 trabalhadores do Hospital Universitário de Tartu (Estónia), que é o único hospital universitário deste Estado, trabalham para uma empresa farmacêutica, apesar de apenas quatro funcionários estarem adstritos ao fabrico de medicamentos. A República Federal da Alemanha indicou igualmente, na audiência, que o maior hospital universitário alemão, concretamente o Hospital Charité em Berlim, emprega 20 900 trabalhadores, dos quais apenas uma centena, quando muito, está adstrita às entidades de fabrico com finalidade comercial do hospital.

69      Assim, o facto de prever uma exclusão global dos peritos dos hospitais universitários da participação nos pareceres científicos da EMA com o fundamento de que nesses hospitais existe uma ou várias entidades suscetíveis de constituir empresas farmacêuticas, na aceção do ponto 3.2.2. da Política da EMA, pode gerar uma escassez de peritos com conhecimentos médicos aprofundados em determinados domínios científicos, em particular em matéria de medicamentos órfãos e de medicamentos inovadores. Segundo os autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, o pessoal das universidades e dos hospitais universitários representa, com efeito, a parte mais significativa da rede de peritos a quem a EMA pede pareceres científicos no âmbito do procedimento de avaliação do pedido de AIM de um medicamento.

70      Todavia, a exclusão do âmbito de aplicação do conceito de «empresa farmacêutica», definido no ponto 3.2.2. da Política da EMA, previsto no quarto parágrafo da referida definição, não se aplica às entidades controladas por um hospital universitário que preencham, elas próprias, os critérios da «empresa farmacêutica», na aceção do primeiro parágrafo da referida definição.

71      Por conseguinte, as pessoas empregadas por uma entidade controlada por um hospital universitário ou que, mais amplamente, colaboram com essa entidade não podem emitir um parecer científico para a EMA se a referida entidade preencher os critérios do conceito de «empresa farmacêutica», conforme definido no ponto 3.2.2 da Política da EMA.

72      Tal interpretação é suscetível de assegurar um equilíbrio ótimo entre a exigência de imparcialidade dos peritos que participam nas atividades da Agência e a exigência de excelência dos peritos solicitados.

73      Daqui resulta que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito quando considerou, no caso em apreço, que o hospital universitário constituía uma «empresa farmacêutica», na aceção do primeiro parágrafo da definição desses termos constante do ponto 3.2.2. da Política da EMA, pelo simples facto de controlar um centro de terapia celular que cumpria, ele próprio, os critérios de uma «empresa farmacêutica» na aceção desta disposição.

74      Por conseguinte, os primeiros fundamentos nos processos C‑6/21 P e C‑16/21 P, relativos à violação do ponto 3.2.2. da Política da EMA, devem ser julgados procedentes.

75      Uma vez que os primeiros fundamentos invocados pela República Federal da Alemanha e pela República da Estónia foram julgados procedentes, há que anular o acórdão recorrido, sem que seja necessário examinar os outros fundamentos do recurso invocados por essas partes.

 Quanto à remessa do processo ao Tribunal Geral

76      Em conformidade com o artigo 61.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, quando o recurso for julgado procedente, o Tribunal de Justiça pode, em caso de anulação da decisão do Tribunal Geral, decidir definitivamente o litígio, se este estiver em condições de ser julgado, ou remeter o processo ao Tribunal Geral para julgamento.

77      No caso em apreço, uma vez que, quanto ao mérito, o litígio não está em condições de ser julgado, há que remeter o processo ao Tribunal Geral.

 Quanto às despesas

78      Uma vez que o litígio é remetido ao Tribunal Geral, há que reservar para final a decisão quanto às despesas relativas ao presente recurso.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) decide:

1)      O Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 28 de outubro de 2020, Pharma Mar/Comissão (T594/18, não publicado, EU:T:2020:512), é anulado.

2)      O processo T594/18 é remetido ao Tribunal Geral da União Europeia.

3)      Reservase para final a decisão quanto às despesas.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.