Language of document : ECLI:EU:C:2024:252

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

21 de março de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (CE) n.o 1215/2012 — Artigo 45.o — Recusa de reconhecimento de uma decisão — Artigo 71.o — Relação deste regulamento com as convenções relativas a uma matéria especial — Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada (CMR) — Artigo 31.o, n.o 3 — Litispendência — Pacto atributivo de jurisdição — Conceito de “ordem pública”»

No processo C‑90/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal da Lituânia), por Decisão de 10 de fevereiro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 10 de fevereiro de 2022, no processo

«Gjensidige» ADB

sendo intervenientes:

«Rhenus Logistics» UAB,

«ACC Distribution» UAB,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, T. von Danwitz, P. G. Xuereb, A. Kumin (relator) e I. Ziemele, juízes,

advogado‑geral: N. Emiliou,

secretário: R. Stefanova‑Kamisheva, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 23 de março de 2023,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da «Gjensidige» ADB, por G. Raišutienė, advokatė,

–        em representação da «Rhenus Logistics» UAB, por V. Jurkevičius e E. Sinkevičius, advokatai,

–        em representação do Governo Lituano, por V. Kazlauskaitė‑Švenčionienė e E. Kurelaitytė, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por P. Messina, S. Noë e A. Steiblytė, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de dezembro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 45.o, n.o 1, alínea a) e alínea e), ii), do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1), e do artigo 71.o deste regulamento, lido, por um lado, em conjugação com os artigos 25.o, 29.o e 31.o do referido regulamento e, por outro, à luz dos considerandos 21 e 22 do mesmo regulamento.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a «Gjensidige» ADB, uma companhia de seguros, à «Rhenus Logistics» UAB, uma sociedade de transportes, a respeito do reembolso da indemnização que a Gjensidige pagou à «ACC Distribution» UAB para reparação de um prejuízo sofrido por esta última no âmbito da execução de um contrato de transporte internacional celebrado com a Rhenus Logistics.

 Quadro jurídico

 Regulamento n.o 1215/2012

3        Nos termos dos considerandos 3, 4, 21, 22, 30 e 34 do Regulamento n.o 1215/2012:

«(3)      A União atribuiu‑se como objetivo manter e desenvolver um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, nomeadamente facilitando o acesso à justiça, em especial através do princípio do reconhecimento mútuo de decisões judiciais e extrajudiciais em matéria civil. […]

(4)      […] São indispensáveis disposições destinadas a unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial e a fim de garantir o reconhecimento e a execução rápidos e simples das decisões proferidas num dado Estado‑Membro.

[…]

(21)      O funcionamento harmonioso da justiça obriga a minimizar a possibilidade de intentar processos concorrentes e a evitar que sejam proferidas decisões inconciliáveis em Estados‑Membros diferentes. Importa prever um mecanismo claro e eficaz para resolver os casos de litispendência e de conexão e para obviar aos problemas resultantes das divergências nacionais quanto à determinação do momento a partir do qual os processos são considerados pendentes. Para efeitos do presente regulamento, é conveniente fixar esta data de forma autónoma.

(22)      Todavia, a fim de reforçar a eficácia dos acordos exclusivos de eleição do foro competente e de evitar táticas de litigação abusivas, é necessário prever uma exceção à regra geral de litispendência, a fim de lidar de forma satisfatória com uma situação particular no âmbito da qual poderão ocorrer processos concorrentes. Trata‑se da situação em que é demandado um tribunal não designado num acordo exclusivo de eleição do foro competente, e o tribunal designado é demandado subsequentemente num processo com a mesma causa de pedir e com as mesmas partes. Nesse caso, o tribunal demandado em primeiro lugar deverá ser chamado a suspender a instância logo que o tribunal designado seja demandado e até que este declare que não é competente por força do acordo exclusivo de eleição do foro competente. Isto destina‑se a, numa tal situação, dar prioridade ao tribunal designado para decidir da validade do acordo e em que medida o acordo se aplica ao litígio pendente. O tribunal designado deverá poder prosseguir a ação independentemente de o tribunal não designado já ter decidido da suspensão da instância.

[…]

[…]

(30)      A parte que conteste a execução de uma decisão proferida noutro Estado‑Membro deverá, na medida do possível, e de acordo com o sistema jurídico do Estado‑Membro requerido, poder invocar no mesmo processo, além dos fundamentos de recusa previstos no presente regulamento, também os fundamentos de recusa previstos na lei nacional e dentro dos prazos estabelecidos nessa lei.

No entanto, o reconhecimento de uma decisão só deverá ser recusado se se verificarem um ou mais dos fundamentos de recusa previstos no presente regulamento.

[…]

(34)      Para assegurar a continuidade entre a [Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32, a seguir “Convenção de Bruxelas”)], o Regulamento (CE) n.o 44/2001 [do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1),] e o presente regulamento, há que prever disposições transitórias. A mesma continuidade deverá ser assegurada no que diz respeito à interpretação, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, da Convenção de Bruxelas de 1968 e dos regulamentos que a substituem.»

4        O capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012 inclui uma secção 6, intitulada «Competências exclusivas» e composta apenas pelo artigo 24.o deste regulamento. Este artigo designa os órgãos jurisdicionais com competência exclusiva para conhecer dos litígios nas matérias que enumera, independentemente do domicílio das partes.

5        O capítulo II do referido regulamento inclui igualmente uma secção 7, intitulada «Extensão de competência». O artigo 25.o do mesmo regulamento, que faz parte desta secção, dispõe, no seu n.o 1:

«Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado‑Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário. […]»

6        O artigo 29.o do Regulamento n.o 1215/2012 prevê:

«1.      Sem prejuízo do disposto no artigo 31.o, n.o 2, quando ações com a mesma causa de pedir e entre as mesmas partes forem submetidas à apreciação de tribunais de diferentes Estados‑Membros, qualquer tribunal que não seja o tribunal demandado em primeiro lugar deve suspender oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal demandado em primeiro lugar.

2.      Nos casos referidos no n.o 1, a pedido de um tribunal a que ação tenha sido submetida, qualquer outro tribunal demandado deve informar o primeiro tribunal, sem demora, da data em que ação lhe foi submetida nos termos do artigo 32.o

3.      Caso seja estabelecida a competência do tribunal demandado em primeiro lugar, o segundo tribunal deve declarar‑se incompetente em favor daquele tribunal.»

7        O artigo 31.o deste regulamento dispõe:

«1.      Se as ações forem da competência exclusiva de vários tribunais, todos eles devem declarar‑se incompetentes em favor do tribunal demandado em primeiro lugar.

2.      Sem prejuízo do artigo 26.o, se for demandado um tribunal de um Estado‑Membro ao qual é atribuída competência exclusiva por um pacto referido no artigo 25.o, os tribunais dos outros Estados‑Membros devem suspender a instância até ao momento em que o tribunal demandado com base nesse pacto declare que não é competente for força do mesmo.

3.      Se o tribunal designado no pacto se atribuir competência por força desse pacto, os tribunais dos outros Estados‑Membros devem declarar‑se incompetentes a favor desse tribunal.

[…]»

8        O artigo 36.o, n.o 1, do referido regulamento tem a seguinte redação:

«As decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros sem quaisquer formalidades.»

9        O artigo 45.o do mesmo regulamento prevê:

«1.      A pedido de qualquer interessado, o reconhecimento de uma decisão é recusado se:

a)      Esse reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido;

[…]

e)      A decisão desrespeitar:

i)      o disposto no capítulo II, secções 3, 4 ou 5, caso o requerido seja o tomador do seguro, o segurado, um beneficiário do contrato de seguro, o lesado, um consumidor ou um trabalhador, ou

ii)      o disposto no capítulo II, secção 6.

[…]

3.      Sem prejuízo do disposto no n.o 1, alínea e), não pode proceder‑se à revisão da competência do tribunal de origem. O critério da ordem pública referido no n.o 1, alínea a), não pode ser aplicado às regras de competência.

[…]»

10      O artigo 71.o do Regulamento n.o 1215/2012 dispõe:

«1.      O presente regulamento não prejudica as convenções em que os Estados‑Membros são partes e que, em matérias especiais, regulem a competência judiciária, o reconhecimento ou a execução de decisões.

2.      Para assegurar a sua interpretação uniforme, o n.o 1 deve ser aplicado do seguinte modo:

[…]

b)      As decisões proferidas num Estado‑Membro por um tribunal cuja competência se funde numa convenção relativa a uma matéria especial são reconhecidas e executadas nos outros Estados‑Membros nos termos do presente regulamento.

Se uma convenção relativa a uma matéria especial, de que sejam partes o Estado‑Membro de origem e o Estado‑Membro requerido, estabelecer as condições para o reconhecimento e execução de decisões, tais condições devem ser respeitadas. Em qualquer caso, pode aplicar‑se o disposto no presente regulamento sobre reconhecimento e execução de decisões.»

 CMR

11      A Convenção relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, assinada em Genebra em 19 de maio de 1956, conforme alterada pelo Protocolo assinado em Genebra em 5 de julho de 1978 (a seguir «CMR»), aplica‑se, em conformidade com o seu artigo 1.o, n.o 1, «a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto […] estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, e independentemente do domicílio e nacionalidade das partes».

12      A CMR foi negociada no âmbito da Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa. Mais de 50 Estados, entre os quais todos os Estados‑Membros da União Europeia, aderiram à CMR.

13      Nos termos do artigo 31.o da CMR:

«1.      Para todos os litígios provocados pelos transportes sujeitos à presente Convenção, o autor poderá recorrer, além das jurisdições dos países contratantes designados de comum acordo pelas partes, para a jurisdição do país no território do qual:

a)      O réu tiver a sua residência habitual, a sua sede principal ou a sucursal ou agência por intermédio da qual se estabeleceu o contrato de transporte, ou

b)      Estiver situado o lugar do carregamento da mercadoria ou o lugar previsto para a entrega,

e só poderá recorrer a essas jurisdições.

[…]

3.      Quando num litígio previsto no parágrafo 1 do presente artigo uma sentença pronunciada por uma jurisdição de um país contratante se tornou executória nesse país, torna se também executória em cada um dos outros países contratantes imediatamente após o cumprimento das formalidades prescritas para esse efeito no país interessado. Essas formalidades não podem comportar nenhuma revisão do caso.

[…]»

14      O artigo 41.o, n.o 1, da CMR estipula:

«Salvas as disposições do artigo 40.o, é nula e sem efeito qualquer estipulação que, direta ou indiretamente, modifique as disposições da presente Convenção. A nulidade de tais estipulações não implica a nulidade das outras disposições do contrato.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

15      A ACC Distribution celebrou com a Rhenus Logistics um contrato para o transporte, por esta última, de material informático dos Países Baixos para a Lituânia (a seguir «contrato de transporte internacional em causa»).

16      Uma vez que uma parte das mercadorias foi furtada durante o transporte, a Gjensidige pagou à ACC Distribution, ao abrigo de um contrato de seguro, uma indemnização no montante de 205 108,89 euros.

17      Em 3 de fevereiro de 2017, a Rhenus Logistics intentou no rechtbank Zeeland‑West‑Brabant (Tribunal de Primeira Instância da Zelândia e do Brabante Ocidental, Países Baixos) uma ação de declaração de limitação de responsabilidade no que a si se refere.

18      A ACC Distribution e a Gjensidige pediram a esse órgão jurisdicional que se declarasse incompetente para conhecer dessa ação ou que suspendesse a instância pelo facto de a ACC Distribution e a Rhenus Logistics terem acordado sobre a competência dos tribunais lituanos para decidir os litígios emergentes da execução do contrato de transporte internacional em causa.

19      Por Decisão de 23 de agosto de 2017, o referido órgão jurisdicional indeferiu o pedido da ACC Distribution e da Gjensidige. A este respeito, considerou que, por força do artigo 41.o, n.o 1, da CMR, o pacto atributivo de jurisdição celebrado entre a ACC Distribution e a Rhenus Logistics era nulo e sem efeito, uma vez que tinha por finalidade restringir a escolha dos tribunais competentes nos termos do artigo 31.o da CMR.

20      Em 19 de setembro de 2017, a Gjensidige intentou no Kauno apygardos teismas (Tribunal Regional de Kaunas, Lituânia) uma ação de regresso, pedindo a condenação da Rhenus Logistics no reembolso da indemnização que tinha pago à ACC Distribution, no montante de 205 108,89 euros.

21      Por Despacho de 12 de março de 2018, o Kauno apygardos teismas (Tribunal Regional de Kaunas) suspendeu a instância até que o rechtbank Zeeland‑West‑Brabant (Tribunal de Primeira Instância da Zelândia e do Brabante Ocidental) proferisse uma decisão com trânsito em julgado.

22      Por Decisão de 25 de setembro de 2019, o rechtbank Zeeland‑West‑Brabant (Tribunal de Primeira Instância da Zelândia e do Brabante Ocidental) declarou que a responsabilidade da Rhenus Logistics para com a ACC Distribution e a Gjensidige era limitada e não podia exceder o montante da indemnização prevista no artigo 23.o, n.o 3, da CMR. Esta decisão não foi objeto de recurso e tem, por conseguinte, força de caso julgado.

23      Em execução da referida decisão, a Rhenus Logistics pagou à Gjensidige o montante de 40 854,20 euros, acrescido de juros, com base na sua responsabilidade assim limitada relativamente ao prejuízo sofrido pela ACC Distribution. Consequentemente, a Gjensidige renunciou proporcionalmente ao pedido de indemnização dirigido contra a Rhenus Logistics.

24      Por Decisão de 22 de maio de 2020, o Kauno apygardos teismas (Tribunal Regional de Kaunas) julgou improcedente a ação de regresso intentada pela Gjensidige com fundamento na exceção de caso julgado resultante da decisão do rechtbank Zeeland‑West‑Brabant (Tribunal de Primeira Instância da Zelândia e do Brabante Ocidental), de 25 de setembro de 2019, a qual tinha força no processo que lhe foi submetido para decisão.

25      Por Despacho de 25 de fevereiro de 2021, o Lietuvos apeliacinis teismas (Tribunal de Recurso da Lituânia) confirmou a decisão do Kauno apygardos teismas (Tribunal Regional de Kaunas), de 22 de maio de 2020, com o fundamento de que, no caso em apreço, tanto as disposições do Regulamento n.o 1215/2012 como as da CMR eram relevantes para a decisão da questão da competência. Ora, por força do artigo 31.o, n.o 1, da CMR, mesmo que as partes no contrato de transporte internacional em causa tivessem celebrado um pacto atributivo de jurisdição, o litígio surgido entre as partes podia ser submetido, à escolha do demandante, aos tribunais competentes nos termos da alínea a) ou da alínea b) do artigo 31.o, n.o 1, da CMR.

26      A Gjensidige interpôs recurso desse despacho para o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal da Lituânia), o órgão jurisdicional de reenvio. Como fundamento de recurso, a Gjensidige alegou que, em caso de concurso entre as regras de competência da CMR e do Regulamento n.o 1215/2012, deve prevalecer o artigo 25.o, n.o 1, deste regulamento, uma vez que esta disposição qualifica como exclusiva a competência que as partes acordam em atribuir a um determinado tribunal de um Estado‑Membro.

27      Fazendo referência, nomeadamente, aos Acórdãos de 4 de maio de 2010, TNT Express Nederland (C‑533/08, EU:C:2010:243), de 19 de dezembro de 2013, Nipponka Insurance (C‑452/12, EU:C:2013:858), e de 4 de setembro de 2014, Nickel & Goeldner Spedition (C‑157/13, EU:C:2014:2145), o órgão jurisdicional de reenvio considera que as disposições da CMR, incluindo o seu artigo 31.o, são, em princípio, aplicáveis às questões de competência internacional que se colocam no âmbito de litígios como o que está em causa no processo que lhe foi submetido para decisão. Assim, um pacto atributivo de jurisdição não confere competência exclusiva aos tribunais designados pelas partes, uma vez que o demandante tem liberdade para propor a ação num dos tribunais competentes nos termos desse artigo 31.o Além disso, aquele órgão jurisdicional declara que, no caso em apreço, as ações propostas, respetivamente, nos Países Baixos e na Lituânia são idênticas, dado que têm o mesmo objeto e a mesma causa de pedir.

28      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a compatibilidade do artigo 31.o da CMR com o Regulamento n.o 1215/2012, uma vez que este artigo permite afastar os pactos atributivos de jurisdição.

29      Com efeito, segundo esse órgão jurisdicional, embora o Regulamento n.o 1215/2012 enuncie uma regra geral de litispendência com base na prioridade do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o artigo 31.o, n.os 2 e 3, deste regulamento prevê uma exceção a esta regra nos casos em que tenha sido celebrado um pacto atributivo de jurisdição. Resulta do considerando 22 do referido regulamento que esta exceção visa reforçar a eficácia dos acordos exclusivos de eleição do foro competente e evitar táticas de litigação abusivas.

30      Ora, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a CMR e o Regulamento n.o 1215/2012 tratam os pactos atributivos de jurisdição de modo diametralmente oposto. Segundo esse órgão jurisdicional, o artigo 25.o, n.o 1, deste regulamento prevê que a atribuição de competência acordada pelas partes no contrato é, em princípio, exclusiva. Em contrapartida, por força do artigo 31.o da CMR, o órgão jurisdicional designado pelo pacto atributivo de jurisdição não beneficia de competência exclusiva. Assim, o regime de competência previsto no artigo 31.o da CMR não obsta às táticas de litigação abusivas, até as incentivando.

31      O órgão jurisdicional de reenvio observa que o Regulamento n.o 1215/2012 não trata diretamente das consequências jurídicas de uma violação das regras de litispendência no caso de ter sido celebrado um pacto atributivo de jurisdição. Em especial, este regulamento não prevê expressamente um fundamento de recusa de reconhecimento de uma decisão judicial proferida noutro Estado‑Membro em violação desse pacto.

32      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se, tendo em conta, nomeadamente, a vontade do legislador da União de reforçar a eficácia dos pactos atributivos de jurisdição, as disposições do Regulamento n.o 1215/2012 não devem ser interpretadas no sentido de que ampliam a proteção de tais acordos ao reconhecimento e à execução das decisões judiciais.

33      Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, quando um tribunal não designado por um pacto atributivo de jurisdição se declara competente, o demandado corre o risco de ser apanhado desprevenido tanto em relação ao foro escolhido como, eventualmente, em relação à lei aplicável ao mérito da causa.

34      Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre se esta situação, em que a aplicação das regras decorrentes de uma convenção internacional como a CMR permite afastar o acordo das partes tanto sobre a competência judiciária como sobre a lei aplicável num mesmo processo, é compatível com os princípios fundamentais do processo equitativo e com os objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 1215/2012, pelo que se colocam questões de conformidade com a ordem pública.

35      Nestas circunstâncias, o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal da Lituânia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      Pode o artigo 71.o do [Regulamento n.o 1215/2012], lido em conjugação com os artigos 25.o, 29.o e 31.o e com os considerandos 21 e 22 do mesmo regulamento, ser interpretado no sentido de que também permite a aplicação do artigo 31.o da [Convenção CMR] quando um litígio abrangido pelo âmbito de aplicação desses dois instrumentos jurídicos estiver sujeito a um pacto atributivo de jurisdição?

2.      Tendo em conta a intenção do legislador [da União] de reforçar a proteção dos pactos atributivos de jurisdição na União Europeia, pode o artigo 45.o, n.o 1, alínea e), ii) do Regulamento n.o 1215/2012, ser interpretado de modo mais amplo, no sentido de que abrange não só a secção 6 do capítulo II do referido regulamento, mas também a sua secção 7?

3.      Após análise das características específicas da situação e das consequências jurídicas daí resultantes, pode a expressão “ordem pública” que figura no Regulamento n.o 1215/2012 ser interpretada no sentido em que constitui um fundamento para o não reconhecimento de uma sentença de outro Estado‑Membro, quando a aplicação de uma convenção especial, como a Convenção CMR, cria uma situação jurídica na qual, no mesmo caso, nem o pacto atributivo de jurisdição nem o acordo sobre a lei aplicável são respeitados?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Observações preliminares

36      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o tribunal de um Estado‑Membro se pode declarar competente para julgar uma ação intentada ao abrigo de um contrato de transporte internacional, mesmo que esse contrato contenha um pacto atributivo de jurisdição a favor dos tribunais de outro Estado‑Membro.

37      Além disso, com as suas segunda e terceira questões, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em substância, sobre a possibilidade de um tribunal de um Estado‑Membro recusar reconhecer a decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro que se declarou competente apesar da existência desse pacto atributivo de jurisdição.

38      A este respeito, num primeiro momento, há que analisar se um tribunal de um Estado‑Membro pode efetivamente recusar‑se a reconhecer a decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro relativa a uma ação intentada ao abrigo de um contrato de transporte internacional pelo facto de este último tribunal se ter declarado competente apesar da existência de um pacto atributivo de jurisdição a favor de outros tribunais, independentemente da questão de saber se o tribunal desse outro Estado‑Membro tinha ou não razão para se declarar competente.

39      Neste contexto, importa determinar se esta questão deve ser apreciada à luz do Regulamento n.o 1215/2012 ou da CMR, uma vez que, no caso em apreço, é pacífico que o contrato de transporte internacional em causa está abrangido pelo âmbito de aplicação tanto deste regulamento como desta convenção.

40      Dado que o Regulamento n.o 1215/2012 revogou e substituiu o Regulamento n.o 44/2001, que, por sua vez, substituiu a Convenção de Bruxelas, a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça às disposições de um destes instrumentos jurídicos também é válida para as disposições dos outros, quando essas disposições possam ser consideradas equivalentes (Acórdão de 16 de novembro de 2023, Roompot Service, C‑497/22, EU:C:2023:873, n.o 21 e jurisprudência referida).

41      Como salientou o advogado‑geral no n.o 78 das conclusões, por força do artigo 71.o do Regulamento n.o 1215/2012, uma convenção relativa a uma matéria especial, como a CMR, prevalece sobre este regulamento. Com efeito, o artigo 71.o, n.o 1, do referido regulamento prevê que este não prejudica as convenções em que os Estados‑Membros são partes e que, em matérias especiais, regulem a competência judiciária, o reconhecimento ou a execução de decisões. Além disso, o artigo 71.o, n.o 2, segundo parágrafo, primeiro período, do mesmo regulamento prevê que, se uma convenção relativa a uma matéria especial, de que sejam partes o Estado‑Membro de origem e o Estado‑Membro requerido, estabelecer as condições para o reconhecimento e execução de decisões, tais condições devem ser respeitadas. Assim, o legislador da União previu, em caso de concurso de normas, a aplicação destas convenções (v., por analogia, Acórdão de 4 de maio de 2010, TNT Express Nederland, C‑533/08, EU:C:2010:243, n.os 46 e 47).

42      No caso em apreço, importa salientar que, nos termos do artigo 31.o, n.o 3, da CMR, quando uma sentença pronunciada por uma jurisdição de um país contratante se tornou executória nesse país, torna‑se também executória em cada um dos outros países contratantes imediatamente após o cumprimento das formalidades prescritas para esse efeito no país interessado, não podendo estas formalidades, todavia, comportar nenhuma revisão do caso.

43      No entanto, por um lado, admitindo que o artigo 31.o, n.o 3, da CMR, que regula a força executória, possa igualmente ser qualificado como norma de reconhecimento a ser aplicada por força do artigo 71.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 1215/2012, importa salientar que este artigo 31.o, n.o 3, se limita a sujeitar a execução de uma «sentença», na aceção desta disposição, ao cumprimento das formalidades prescritas para o efeito no país interessado, precisando apenas, neste contexto, que essas formalidades não podem comportar nenhuma revisão do caso.

44      Neste contexto, importa tomar em consideração o artigo 71.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea b), e segundo parágrafo, segundo período, do Regulamento n.o 1215/2012, do qual resulta que as decisões proferidas num Estado‑Membro por um tribunal que tenha baseado a sua competência numa convenção relativa a uma matéria especial devem ser reconhecidas e executadas nos outros Estados‑Membros em conformidade com este regulamento, cujas disposições devem, em todo o caso, ser respeitadas mesmo que essa convenção determine as condições de reconhecimento e de execução dessas decisões.

45      Por outro lado e em qualquer dos casos, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, embora, em conformidade com o artigo 71.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, quando o litígio está abrangido pelo âmbito de aplicação de uma convenção especial de que os Estados‑Membros são partes, esta última deva, em princípio, ser aplicada, não é menos verdade que a aplicação dessa convenção não pode violar os princípios basilares da cooperação judiciária em matéria civil e comercial no seio da União, como sejam os princípios relativos à livre circulação das decisões em matéria civil e comercial, à certeza jurídica dos tribunais competentes e, consequentemente, à segurança jurídica dos cidadãos, à boa administração da justiça, à minimização do risco de processos concorrentes, bem como à confiança recíproca na administração da justiça no seio da União (v., por analogia, Acórdão de 4 de maio de 2010, TNT Express Nederland, C‑533/08, EU:C:2010:243, n.os 45 e 49).

46      Ora, no que se refere especificamente ao princípio da confiança recíproca, o tribunal do Estado requerido nunca está mais bem colocado que o tribunal do Estado de origem para se pronunciar sobre a competência deste, pelo que o Regulamento n.o 1215/2012, além de algumas exceções limitadas, não permite o controlo da competência do tribunal de um Estado‑Membro pelo tribunal de outro Estado‑Membro (v., por analogia, Acórdão de 4 de maio de 2010, TNT Express Nederland, C‑533/08, EU:C:2010:243, n.o 55 e jurisprudência referida).

47      Nestas condições, é à luz do Regulamento n.o 1215/2012 que há que apreciar se um tribunal de um Estado‑Membro pode recusar reconhecer a decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro numa ação intentada ao abrigo de um contrato de transporte internacional pelo facto de este último tribunal se ter declarado competente apesar da existência de um pacto atributivo de jurisdição a favor de outros tribunais.

48      Por seu turno, o Regulamento n.o 1215/2012 contém, no seu artigo 45.o, uma disposição específica sobre a recusa de reconhecimento de uma decisão judicial. É a esta disposição que se referem a segunda e terceira questões, que devem, portanto, ser examinadas conjuntamente e em primeiro lugar.

 Quanto à segunda e terceira questões

49      Com as suas questões segunda e terceira, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 45.o, n.o 1, alínea a), e alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que permite a um tribunal de um Estado‑Membro recusar o reconhecimento da decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro com o fundamento de que este último tribunal se declarou competente para julgar uma ação intentada ao abrigo de um contrato de transporte internacional, em violação de um pacto atributivo de jurisdição, na aceção do artigo 25.o deste regulamento, que faz parte desse contrato.

50      Importa começar por recordar que a interpretação de uma disposição do direito da União exige que se tenha em conta não só os seus termos mas também o contexto em que se insere e os objetivos e a finalidade prosseguidos pelo ato de que faz parte (Acórdão de 22 de junho de 2023, Pankki S, C‑579/21, EU:C:2023:501, n.o 38 e jurisprudência referida).

51      No que respeita, por um lado, ao artigo 45.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012, resulta dos termos desta disposição que, a pedido de qualquer interessado, o reconhecimento de uma decisão é recusado se esse reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido.

52      Ora, o artigo 45.o, n.o 3, segundo período, do Regulamento n.o 1215/2012 precisa, neste contexto, que o critério da ordem pública referido no artigo 45.o, n.o 1, alínea a), não pode ser aplicado às regras de competência.

53      Resulta, portanto, da leitura conjugada do n.o 1, alínea a), e do n.o 3, segundo período, do artigo 45.o do Regulamento n.o 1215/2012 que este artigo 45.o, n.o 1, alínea a), não permite a um tribunal de um Estado‑Membro recusar reconhecer uma decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro pelo facto de este último tribunal se ter declarado competente apesar da existência de um pacto atributivo de jurisdição a favor dos tribunais de um Estado‑Membro diferente daquele a que pertence.

54      No que respeita, por outro lado, ao artigo 45.o, n.o 1, alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012, esta disposição prevê que, a pedido de qualquer interessado, o reconhecimento de uma decisão é recusado se esta decisão violar o disposto no capítulo II, secção 6, relativa às competências exclusivas.

55      Esta secção 6 é composta unicamente pelo artigo 24.o do Regulamento n.o 1215/2012, que designa os tribunais com competência exclusiva para conhecer dos litígios nas matérias que enumera, independentemente do domicílio das partes.

56      É neste contexto que o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre se não há que interpretar de forma mais ampla o artigo 45.o, n.o 1, alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012, no sentido de que o reconhecimento de uma decisão pode igualmente ser recusado se esta violar as disposições da secção 7 do capítulo II deste regulamento, da qual faz parte, nomeadamente, o seu artigo 25.o, relativo à extensão de competência por um pacto atributivo de jurisdição.

57      A este respeito, a redação clara e inequívoca do artigo 45.o, n.o 1, alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012 permite, por si só, concluir que está excluída uma interpretação ampla desta disposição, sob pena de conduzir a uma interpretação contra legem da mesma.

58      Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a interpretação de uma disposição do direito da União não pode ter por resultado privar de qualquer efeito útil a letra clara e precisa dessa disposição. Assim, quando o sentido de uma disposição do direito da União resulta inequivocamente da sua própria redação, o Tribunal de Justiça não se pode afastar desta interpretação (Acórdão de 23 de novembro de 2023, Ministarstvo financija, C‑682/22, EU:C:2023:920, n.o 31 e jurisprudência referida).

59      Em todo o caso, a interpretação literal do artigo 45.o, n.o 1, alínea a), e alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012, no sentido de que estas disposições não permitem a um tribunal de um Estado‑Membro recusar reconhecer a decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro pelo facto de este se ter declarado competente em violação de um pacto atributivo de jurisdição, é corroborada pelo contexto em que se inserem as referidas disposições, bem como pelos objetivos e finalidade que este regulamento prossegue.

60      Com efeito, importa salientar que, em conformidade com o princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais e extrajudiciais em matéria civil referido no considerando 3 do Regulamento n.o 1215/2012, o artigo 36.o, n.o 1, deste regulamento prevê que as decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros sem quaisquer formalidades. Este regulamento tem por objetivo garantir o reconhecimento e a execução rápidos e simples das decisões proferidas num dado Estado‑Membro.

61      Em contrapartida, como sublinhado no considerando 30 do Regulamento n.o 1215/2012, o reconhecimento de uma decisão só deverá ser recusado se se verificarem um ou mais fundamentos de recusa previstos neste regulamento. Neste contexto, o artigo 45.o, n.o 1, do referido regulamento enumera exaustivamente os fundamentos pelos quais o reconhecimento de uma decisão pode ser recusado (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2022, H Limited, C‑568/20, EU:C:2022:264, n.o 31).

62      Por conseguinte, por um lado, no que respeita à exceção de ordem pública, prevista no artigo 45.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012, esta deve ser objeto de interpretação estrita, na medida em que constitui um obstáculo à realização de um dos objetivos fundamentais deste regulamento, pelo que um fundamento de não reconhecimento de uma decisão relativo à violação da ordem pública do Estado‑Membro requerido só pode ser utilmente invocado em casos excecionais (v., por analogia, Acórdão de 7 de setembro de 2023, Charles Taylor Adjusting, C‑590/21, EU:C:2023:633, n.o 32 e jurisprudência referida).

63      Embora os Estados‑Membros sejam, em princípio, livres de determinar, ao abrigo da reserva constante do artigo 45.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012, em conformidade com as suas conceções nacionais, as exigências da sua ordem pública, os limites desse conceito decorrem da interpretação desse regulamento (v., por analogia, Acórdão de 7 de setembro de 2023, Charles Taylor Adjusting, C‑590/21, EU:C:2023:633, n.o 33 e jurisprudência referida).

64      Assim, embora não caiba ao Tribunal de Justiça definir o conteúdo da ordem pública de um Estado‑Membro, incumbe‑lhe controlar os limites dentro dos quais o juiz de um Estado‑Membro pode recorrer a este conceito para não reconhecer uma decisão emanada de outro Estado‑Membro (Acórdão de 7 de setembro de 2023, Charles Taylor Adjusting, C‑590/21, EU:C:2023:633, n.o 34 e jurisprudência referida).

65      A este respeito, é jurisprudência constante que o juiz do Estado‑Membro requerido não pode recusar o reconhecimento ou a execução dessa decisão com base apenas no facto de haver uma divergência entre a norma jurídica aplicada pelo juiz do Estado‑Membro de origem e a que seria aplicada pelo juiz do Estado‑Membro requerido se fosse ele a decidir o litígio. Do mesmo modo, o juiz do Estado‑Membro requerido não pode controlar a exatidão das apreciações jurídicas ou da matéria de facto levadas a cabo pelo juiz do Estado‑Membro de origem (Acórdão de 25 de maio de 2016, Meroni, C‑559/14, EU:C:2016:349, n.o 41 e jurisprudência referida).

66      Por conseguinte, o recurso à exceção de ordem pública, prevista no artigo 45.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012, só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado‑Membro contrarie de forma inaceitável a ordem jurídica do Estado‑Membro requerido, por infringir um princípio fundamental. Para respeitar a proibição da revisão do mérito da decisão proferida no Estado‑Membro de origem, essa contradição deve constituir uma violação manifesta de uma norma considerada essencial na ordem jurídica do Estado‑Membro requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica (v., por analogia, Acórdão de 7 de setembro de 2023, Charles Taylor Adjusting, C‑590/21, EU:C:2023:633, n.o 35 e jurisprudência referida).

67      Por outro lado, no que respeita às regras de competência previstas no Regulamento n.o 1215/2012, o seu artigo 45.o só permite recusar o reconhecimento de uma decisão com fundamento na violação dessas regras nos casos previstos no n.o 1, alínea e), deste artigo.

68      Assim, além da possibilidade, prevista no artigo 45.o, n.o 1, alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012, de recusar o reconhecimento de uma decisão se esta última violar o disposto no capítulo II, secção 6, deste regulamento, o reconhecimento de uma decisão só pode ser recusado, em conformidade com o artigo 45.o, n.o 1, alínea e), i), do referido regulamento, em caso de violação do disposto no capítulo II, secções 3, 4 ou 5, do mesmo regulamento, caso o requerido seja o tomador do seguro, o segurado, um beneficiário do contrato de seguro, o lesado, um consumidor ou um trabalhador. Isto é confirmado pelo artigo 45.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1215/2012, que precisa que, sem prejuízo do disposto no artigo 45.o, n.o 1, alínea e), deste regulamento, não pode proceder‑se à revisão da competência do tribunal de origem no âmbito da apreciação de uma eventual recusa do reconhecimento da decisão adotada por esse tribunal.

69      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio observa, em primeiro lugar, que, como resulta do seu considerando 22, o Regulamento n.o 1215/2012 visa reforçar a eficácia dos acordos de eleição do foro. Por conseguinte, parece paradoxal que a violação da regra de litispendência, no caso de tal acordo ter sido celebrado, não tenha consequências quanto ao reconhecimento da decisão proferida.

70      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio refere que o incumprimento de um pacto atributivo de jurisdição pode ter por efeito tornar aplicável uma lei diferente da que seria aplicada se esse pacto tivesse sido respeitado. Assim, no caso de um tribunal não designado se declarar competente, o requerido é apanhado desprevenido, tanto em relação ao foro escolhido como, eventualmente, em relação à lei aplicável ao mérito da causa.

71      Mais concretamente, no caso em apreço, o facto de o rechtbank Zeeland‑West‑Brabant (Tribunal de Primeira Instância da Zelândia e do Brabante Ocidental) se ter declarado competente para julgar a ação nele intentada em 3 de fevereiro de 2017 teve como consequência que esta ação tenha sido julgada segundo o direito neerlandês. Daí resultou para a Gjensidige, enquanto demandada nesse processo, um resultado menos favorável do que se a ação tivesse sido julgada segundo o direito lituano, ou seja, segundo o direito do Estado cujos tribunais foram designados como competentes no pacto atributivo de jurisdição constante do contrato de transporte internacional em causa.

72      A este respeito, importa, no entanto, recordar que, como foi salientado nos n.os 60 e 61 do presente acórdão, no sistema instituído pelo Regulamento n.o 1215/2012, o reconhecimento mútuo constitui a regra, ao passo que o artigo 45.o, n.o 1, deste regulamento enumera, exaustivamente, os fundamentos pelos quais o reconhecimento de uma decisão pode ser recusado.

73      Ora, impõe‑se observar que o legislador da União optou por não incluir a violação do disposto na secção 7 do capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012, relativa à extensão de competência, entre os fundamentos que permitem recusar o reconhecimento de uma decisão. Assim, a proteção dos pactos atributivos de jurisdição, prevista neste regulamento, não tem como consequência que a sua violação constitua, enquanto tal, um fundamento para a recusa de reconhecimento.

74      Além disso, como salientou, em substância, o advogado‑geral no n.o 117 das suas conclusões, no que respeita às consequências concretas do reconhecimento da decisão do rechtbank Zeeland‑West‑Brabant (Tribunal de Primeira Instância da Zelândia e do Brabante Ocidental), de 25 de setembro de 2019, nada nos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça permite concluir que esse reconhecimento violaria de forma inaceitável a ordem jurídica lituana por violar um princípio fundamental, como exige a jurisprudência recordada no n.o 66 do presente acórdão.

75      Em especial, a mera circunstância de uma ação não ser julgada pelo tribunal designado no pacto atributivo de jurisdição e de, por conseguinte, não ser julgada segundo o direito do Estado‑Membro a que pertence esse tribunal não pode ser considerada uma violação do direito a um processo equitativo com uma gravidade tal que o reconhecimento da decisão na referida ação seja manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido.

76      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à segunda e terceira questões que o artigo 45.o, n.o 1, alínea a), e alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que não permite a um tribunal de um Estado‑Membro recusar o reconhecimento da decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro com o fundamento de que este último tribunal se declarou competente para julgar uma ação intentada ao abrigo de um contrato de transporte internacional, em violação de um pacto atributivo de jurisdição, na aceção do artigo 25.o deste regulamento, que faz parte desse contrato.

 Quanto à primeira questão

77      Tendo em conta as respostas dadas às questões segunda e terceira, não há que responder à primeira questão.

 Quanto às despesas

78      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 45.o, n.o 1, alínea a), e alínea e), ii), do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

não permite a um tribunal de um EstadoMembro recusar o reconhecimento da decisão de um tribunal de outro EstadoMembro com o fundamento de que este último tribunal se declarou competente para julgar uma ação intentada ao abrigo de um contrato de transporte internacional, em violação de um pacto atributivo de jurisdição, na aceção do artigo 25.o deste regulamento, que faz parte desse contrato.

Assinaturas


*      Língua do processo: lituano.