Language of document : ECLI:EU:C:2017:554

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 13 de julho de 2017 (1)

Processo C‑194/16

Bolagsupplysningen OÜ

Ingrid Ilsjan

contra

Svensk Handel AB

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Riigikohus (Supremo Tribunal, Estónia)]

«Regulamento n.° 1215/2012 — Competência em matéria extracontratual — Publicação de informações na Internet — Direitos de personalidade das pessoas coletivas — Centro de interesses — Injunção destinada a obter a supressão e a retificação das informações noutro Estado‑Membro — Pedido de indemnização»






Índice



I.      Introdução

1.        Uma sociedade estónia que exerce a sua atividade na Suécia foi incluída na «lista negra» do sítio Internet de uma associação patronal devido a alegadas práticas empresariais duvidosas. Como inevitavelmente acontece nesta era de bravura anónima na Internet, universalmente conhecida pelo seu estilo refinado, a sua subtileza e a sua moderação, o sítio Internet atraiu alguns comentários hostis dos seus leitores.

2.        A sociedade estónia instaurou uma ação nos órgãos jurisdicionais estónios contra a associação sueca, alegando que as informações publicadas lesavam a sua honra, a sua reputação e o seu bom nome. Pediu aos órgãos jurisdicionais estónios que ordenassem à associação sueca que retificasse as informações e suprimisse os comentários do seu sítio Internet e a condenassem no pagamento de uma indemnização pelo prejuízo alegadamente resultante da publicação das informações e dos comentários na Internet.

3.        O Riigikohus (Supremo Tribunal, Estónia) tem dúvidas sobre a competência dos órgãos jurisdicionais estónios para conhecerem do presente processo. Consequentemente, submeteu ao Tribunal de Justiça essencialmente três questões: primeiro, são os órgãos jurisdicionais estónios competentes para conhecer do presente processo com base no «centro de interesses» da recorrente, um critério de competência especial que o Tribunal de Justiça já aplicou a pessoas singulares mas não, até agora, a pessoas coletivas? Em caso de resposta afirmativa, segundo, de que modo deve o centro de interesses de uma pessoa coletiva ser determinado? Terceiro, caso a competência dos órgãos jurisdicionais estónios esteja limitada às situações em que os danos tenham ocorrido na Estónia, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta‑se se pode condenar a associação sueca a retificar e a suprimir as informações em causa.

4.        Há dois elementos novos que convidam o Tribunal de Justiça a olhar para a sua jurisprudência anterior de uma forma nova e talvez mais crítica: uma pessoa coletiva (não uma pessoa singular) pede, em primeiro lugar, a retificação e a supressão de informações publicadas na Internet (e só em segundo lugar o pagamento de uma indemnização pelo alegado prejuízo causado à sua reputação). Este cenário factual leva‑nos a perguntar até que ponto carecem de atualização as regras aparentemente bastante generosas sobre competência internacional que foram estabelecidas pelo acórdão Shevill (2) em matéria de difamação cometida através de um meio de comunicação impresso e posteriormente alargadas pelo acórdão eDate (3) aos danos causados à reputação de uma pessoa singular por informações publicadas na Internet.

II.    Lei aplicável

Regulamento n.° 1215/2012

5.        Segundo o considerando 15 do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 (4), as regras de competência devem apresentar «um elevado grau de certeza jurídica e fundar‑se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido».

6.        De acordo com o considerando 16, «[o] foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado‑Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. Este elemento é especialmente importante nos litígios relativos a obrigações extracontratuais decorrentes de violações da privacidade e de direitos de personalidade, incluindo a difamação».

7.        A regra geral aplicável à competência internacional encontra‑se no artigo 4.°, n.° 1, e estabelece que «as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado‑Membro».

8.        Nos termos do artigo 5.°, n.° 1, do mesmo regulamento, esta última regra só pode ser objeto de derrogação nos casos previstos nas secções 2 a 7 do capítulo II.

9.        O disposto do artigo 7.°, ponto 2 (constante da secção 2 do capítulo II do Regulamento n.° 1215/2012) é pertinente para o presente processo. Em matéria extracontratual, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro perante «o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso».

III. Factos, tramitação processual e questões prejudiciais

10.      A Bolagsupplysningen OÜ (a seguir «recorrente») é uma sociedade com sede em Taline, Estónia, que, aparentemente, desenvolve a maior parte das suas atividades na Suécia. Ingrid Ilsjan é uma trabalhadora da recorrente.

11.      A Svensk Handel AB é uma associação empresarial sueca (a seguir «recorrida»).

12.      A recorrida incluiu a recorrente numa «lista negra» publicada no seu sítio Internet, afirmando que esta «cometia atos de fraudes e burlas». Num fórum de discussão desse sítio Internet foram publicados cerca de mil comentários em reação à inclusão na «lista negra», incluindo incitamentos à violência contra a recorrente e os seus trabalhadores.

13.      Em 29 de setembro de 2015, a recorrente e I. Ilsjan instauraram uma ação contra a recorrida no Harju Maakohus (Tribunal Distrital de Haiju, Estónia) (a seguir «tribunal de primeira instância»). A recorrente e I. Ilsjan pediram que a recorrida fosse obrigada a retificar as informações publicadas sobre a recorrente e a suprimir os comentários do seu sítio Internet. A recorrente pediu também o pagamento de uma indemnização pelo prejuízo material, em especial por lucros cessantes, no montante de 56 634,99 euros. I. Ilsjan pediu uma indemnização pelo prejuízo moral em montante a determinar pelo órgão jurisdicional. A recorrente e I. Ilsjan alegaram ter sofrido prejuízos em virtude das ações da recorrida, afirmando que a publicação de informações incorretas havia paralisado a atividade da recorrida na Suécia.

14.      Por despacho datado de 1 de outubro de 2015, o tribunal de primeira instância julgou improcedente a ação por não ter sido provado que o prejuízo ocorrera na Estónia. Por conseguinte, não se podia declarar competente nos termos do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012. As informações e os comentários foram escritos em sueco, uma língua que os falantes de estónio não podem compreender sem tradução. Além disso, a quebra no volume de negócios foi expressa na moeda sueca, o que revelava que o prejuízo tinha sido efetivamente sofrido na Suécia. O simples facto de se poder aceder ao sítio Internet na Estónia não podia automaticamente determinar a competência dos tribunais estónios.

15.      A recorrente e I. Ilsjan impugnaram essa decisão no Tallinna Ringkonnakohus (Tribunal de Recurso, Taline, Estónia). Em 9 de novembro de 2015, esse órgão jurisdicional negou provimento ao recurso, confirmando que os tribunais estónios não tinham competência internacional.

16.      Foi interposto novo recurso dessa decisão no órgão jurisdicional de reenvio, o Riigikohus (Supremo Tribunal).

17.      No Riigikohus (Supremo Tribunal), a recorrente alega que os órgãos jurisdicionais estónios são competentes para conhecer do processo, porque o seu centro de interesses se encontra na Estónia. No presente processo, a publicação dos conteúdos na Internet violou o direito da recorrente de exercer uma atividade comercial. A sua gestão, a sua atividade económica, a sua contabilidade, o seu serviço de desenvolvimento empresarial e o seu serviço de recursos humanos estão situados na Estónia. As suas receitas são transferidas da Suécia para a Estónia e não possui nenhum representante nem nenhuma filial no estrangeiro. Por conseguinte, os efeitos do facto danoso foram sentidos na Estónia.

18.      A recorrida considera que não existe qualquer ligação estreita entre o objeto da ação e os órgãos jurisdicionais estónios. Logo, a competência internacional deve ser determinada de acordo com a regra geral constante do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012. A recorrida tem sede na Suécia. Por conseguinte, os órgãos jurisdicionais suecos é que são competentes para conhecer do litígio no processo principal.

19.      O órgão jurisdicional de reenvio decidiu separar os processos da recorrente e de I. Ilsjan. O processo desta última foi remetido ao tribunal de primeira instância para reapreciação da sua admissibilidade. Quanto ao processo da recorrente, o órgão jurisdicional de reenvio considera que os órgãos jurisdicionais estónios são competentes para conhecer do pedido de indemnização pelos prejuízos alegadamente sofridos na Estónia. Porém, não está certo de ter competência para apreciar outros aspetos do pedido da recorrente.

20.      Foi neste contexto que o Riigikohus (Supremo Tribunal) suspendeu a instância e submeteu as seguintes questões ao Tribunal de Justiça, a título prejudicial:

«1. Deve o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1215/2012 ser interpretado no sentido de que uma pessoa singular cujos direitos [tenham sido] alegadamente violados pela publicação na Internet de [informações] incorret[a]s [sobre ela] e pela não supressão [de] comentários a [esse] respeito pode intentar [uma ação] destinada a obter a retificação [das informações] incorret[a]s e a supressão dos comentários que violam os seus direitos nos tribunais de qualquer um dos Estados‑Membros em cujo território a informação publicada na Internet seja ou tenha sido acessível, [em relação ao] prejuízo ocorrido nesse Estado‑Membro?

2. Deve o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1215/2012 ser interpretado no sentido de que uma pessoa coletiva cujos direitos foram alegadamente violados pela publicação na Internet de [informações] incorret[a]s [sobre ela] e pela não supressão [de] comentários a [esse] respeito, pode [intentar uma ação destinada a obter a] retificação [das informações incorretas e a] supressão [desses] comentários [bem como a] reparação do prejuízo [material] sofrido como consequência da publicação na Internet [das informações] incorret[a]s nos tribunais do Estado onde se encontra o centro dos seus interesses, [em relação à totalidade do prejuízo sofrido]?

3. Em caso de resposta afirmativa à segunda questão, deve o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1215/2012 ser interpretado no sentido de que:

—      [se deve presumir que] o centro dos interesses de uma pessoa coletiva e, por conseguinte, o lugar [onde] ocorreu o [facto danoso se situa no] Estado‑Membro [onde] tem a sua sede; ou

—      para determinar o centro de interesses de uma pessoa coletiva e, por conseguinte, o lugar [onde] ocorreu o [facto danoso] devem ser tidas em conta todas as circunstâncias, como por exemplo a [sua] sede e o [seu local] de atividade, o domicílio dos seus clientes e a forma [como as suas transações são realizadas]?»

21.      Foram apresentadas observações escritas pela recorrente, pelos Governos estónio, português e do Reino Unido e pela Comissão Europeia. A recorrente, o Governo estónio e a Comissão apresentaram alegações orais na audiência de 20 de março de 2017.

IV.    Apreciação

22.      As questões prejudiciais apresentadas pelo órgão jurisdicional nacional respeitam, em suma, a três tópicos. A dúvida fundamental reside, no meu entender, na segunda questão: é a regra de competência baseada no centro de interesses e definida pelo acórdão eDate (5)relativamente às pessoas singulares também aplicável às pessoas coletivas? Por conseguinte, começo por abordar essa questão (A). Só em caso de resposta positiva à segunda questão será necessário abordar a terceira questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional: qual será então o critério para determinar o centro de interesses das pessoas coletivas (B)? Por último, com a primeira questão o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que aprecie a interação entre a abordagem «mosaico» desenvolvida pelo Tribunal de Justiça no acórdão Shevill (6), segundo a qual a competência do órgão jurisdicional está limitada aos prejuízos sofridos no território nacional em causa, e a natureza indivisível (unitária) do pedido da recorrente (C).

23.      Dito de forma sucinta, as presentes conclusões, primeiro, analisam o âmbito de aplicação pessoal das regras pertinentes em matéria de competência (A), depois o critério a utilizar (B) e finalmente a questão das medidas de reparação pedidas (C). O argumento de fundo é o seguinte: para efeitos da atribuição de competência internacional nos processos de responsabilidade extracontratual por danos causados à reputação de uma pessoa, não vislumbro nenhum bom motivo para estabelecer uma distinção entre pessoas singulares e pessoas coletivas. A minha proposta é que sejam tratadas da mesma forma, em termos de competência internacional. No entanto, por reconhecer a natureza específica da Internet e das informações publicadas em linha, proponho também que a abordagem previamente propugnada pelo Tribunal de Justiça seja restringida. No tocante aos conteúdos disponibilizados na Internet, não creio que faça muito sentido manter a competência «mosaico» prevista no acórdão Shevill especificamente para a distribuição de meios de comunicação impressos. Caso seja preconizado esse endurecimento das regras da competência internacional no tocante à difamação através da Internet, a questão das medidas de reparação disponíveis numa competência «mosaico» de tipo Shevill, territorialmente limitada, nem sequer se coloca.

A.      Aplicabilidade às pessoas coletivas da regra de competência baseada no «centro de interesses»

1.      Introdução: a evolução da jurisprudência (como a exceção se tornou regra)

24.      O presente processo respeita à interpretação da regra constante do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, que determina a competência internacional em matéria de pedidos de indemnização por responsabilidade extracontratual. De acordo com essa regra, em matéria extracontratual, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro perante «o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso».

25.      Trata‑se de uma regra de competência especial, que permite a derrogação da regra geral enunciada no artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012, segundo a qual as pessoas são demandadas no Estado‑Membro do seu domicílio (7).

26.      A regra estabelecida no artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 assenta, de acordo com jurisprudência constante, na existência de um elemento de conexão particularmente estreito entre o litígio e os órgãos jurisdicionais de outro Estado‑Membro que não o do domicílio do demandado. Tal justifica‑se por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo (8).

27.      A expressão «lugar onde ocorreu […] o facto danoso», empregue no artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 (e nos seus antecessores (9)), tem sido interpretada pelo Tribunal de Justiça, desde o acórdão Bier (10), no sentido de que abrangem simultaneamente o lugar da materialização do dano e o lugar do facto danoso. Assim, o demandante pode optar por instaurar a ação contra o demandado perante o órgão jurisdicional de um ou de outro destes dois lugares (11).

28.      No acórdão Shevill, o Tribunal de Justiça esclareceu que, quando a difamação resulta do artigo de um jornal distribuído em vários Estados‑Membros, o demandante pode instaurar a ação de indemnização (em aplicação das regras de competência especial) perante os órgãos jurisdicionais de dois lugares. A ação pode ser proposta nos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro de origem do facto danoso (12), que corresponde ao lugar de estabelecimento do editor da publicação,ou nos órgãos jurisdicionais de cada Estado‑Membro onde a publicação em causa foi divulgada e onde a vítima alega ter sofrido um atentado à sua reputação. A competência destes últimos órgãos jurisdicionais está limitada aos danos causados nesse Estado‑Membro (13). Este segundo tipo de competência especial estabelecido no acórdão Shevill e que se traduz numa limitação territorial da competência é designado por abordagem «mosaico» (14).

29.      No acórdão eDate, o Tribunal de Justiça começou por confirmar a aplicabilidade desta regra de competência aos pedidos relativos à violação de direitos de personalidade resultante da publicação de informações na Internet. O Tribunal de Justiça considerou que a ação de indemnização pode ser proposta nos órgãos jurisdicionais de cada Estado‑Membro em cujo território um conteúdo colocado em linha esteja ou tenha estado acessível. A competência desses órgãos jurisdicionais permanece limitada territorialmente (15).

30.      Todavia, no acórdão eDate o Tribunal de Justiça acrescentou uma outra regra de atribuição de competência: a de que essa ação também pode ser proposta nos órgãos jurisdicionais do lugar onde o demandante tem o centro dos seus interesses. Esse lugar corresponde ao Estado‑Membro onde o demandante tem a sua residência habitual ou a outro Estado‑Membro no qual possa ser estabelecida a existência de um nexo particularmente estreito, como seja o exercício da atividade profissional do demandante (16).

31.      O Tribunal de Justiça definiu esta terceira regra de competência especial para as ações abrangidas pelo artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, atendendo à «gravidade da lesão» e ao facto de o conteúdo que alegadamente a provoca estar disponível em qualquer ponto do globo (17). Estas características aplicam‑se especificamente à Internet, que, à data da prolação do acórdão Shevill, ainda era um meio de comunicação pouco difundido (18).

32.      Em suma: da leitura combinada dos acórdãos Shevill e eDate decorre que, atualmente, no caso de um alegado atentado à reputação causado por informações na Internet, se o demandante for uma pessoa singular poderá optar entre quatro tipos deforos competentes. Três desses foros são «plenos», permitindo pedir a compensação da totalidade dos danos, e o quarto é um foro «parcial» permitindo apenas pedir a compensação dos danos sofridos no território desse Estado. Os foros plenos englobam um foro geral (o do domicílio do demandado) e dois foros especiais (o do lugar do facto danoso — que, na maior parte dos casos, provavelmente coincidirá com o foro geral; e o do lugar do centro dos interesses do demandante). Além disso, todos os outros Estados‑Membros têm provavelmente competência parcial, uma vez que as informações na Internet são acessíveis em todos os Estados‑Membros.

33.      O presente processo respeita à questão da competência internacional numa ação de indemnização por alegada violação dos direitos de personalidade da recorrente. A recorrente é uma pessoa coletiva. Foi pedida uma injunção que obrigue a recorrida a retificar e suprimir as informaçõese os comentários no seu sítio Internet. Tal como foi confirmado na audiência, o principal objetivo da ação da recorrente não é o ressarcimento do prejuízo material sofrido, mas a retificação e a supressão dos conteúdos em linha alegadamente danosos. O pedido de indemnização por danos é apresentado apenas a título secundário.

34.      Conforme mencionado no início das presentes conclusões, estes dois elementos, considerados em conjunto, podem ser interpretados no sentido de que levam demasiado longe a jurisprudência existente do Tribunal de Justiça, alargando‑a a domínios para os quais talvez não tinha sido inicialmente concebida. Contudo, ultrapassar os limites de uma construção intelectual também é útil: proporciona uma reavaliação crítica dos próprios alicerces dessa estrutura.

35.      Todavia, antes de esse exercício poder ser realizado, é necessário abordar uma questão prévia: no tocante à violação dos direitos de personalidade através da Internet, é possível distinguir entre pessoas singulares e coletivas?

2.      Direitos de personalidade das pessoas coletivas

36.      Ainda que o acórdão não o refira expressamente, a ideia fundamental subjacente à criação de uma regra adicional de competência especial no acórdão eDate foi a proteção dos direitos fundamentais. Essa ideia foi formulada claramente no raciocínio do advogado‑geral P. Cruz Villalón nas suas conclusões nesse processo (19).

37.      Seja como for, a questão de saber se a proteção dos direitos de personalidade, enquanto direitos fundamentais, pode ser alargada às pessoas coletivas tem certamente sido objeto de amplo debate no presente processo. As pessoas coletivas têm direitos de personalidade? As partes no presente processo têm pontos de vista diferentes sobre a questão.

38.      Nas suas observações escritas e na audiência, o Governo estónio afirmou que os direitos de personalidade protegidos no acórdão eDate só podem, por definição, ser reconhecidos às pessoas singulares. A Estónia sugere que isso se deve à sua natureza e aos seus efeitos (como a dor e o sofrimento). Do mesmo modo, o Reino Unido sublinhou nas suas observações escritas que, para as pessoas coletivas, o pedido de indemnização em virtude da publicação de conteúdos danosos na Internet se prende, na realidade, com um prejuízo comercial. Isso levanta questões diferentes das que se levantam no caso de pessoas singulares cuja reputação é afetada.

39.      A Comissão reconhece que os direitos de personalidade gozam de proteção em alguns Estados‑Membros, mas sustenta que o forum actoris baseado no centro de interesses não deve ser extensível às pessoas coletivas. Essa extensão não seria consentânea com o equilíbrio dos interesses em causa.

40.      Não posso subscrever estes entendimentos. Primeiro, em termos de princípio, é difícil conceber o motivo pelo qual as pessoas coletivas não poderiam ser titulares de direitos de personalidade, na medida em que a analogia o permita razoavelmente (a). Segundo, contudo, talvez valha a pena salientar que, em termos mais pragmáticos, a questão de saber se as pessoas coletivas gozam ou não de determinados direitos de personalidade fundamentais é pouco pertinente para efeitos do presente processo. Não há dúvida de que, na legislação de alguns Estados‑Membros, as pessoas coletivas beneficiam de proteção da sua reputação ou do seu bom nome como parte dos seus direitos legais. Esses direitos existem e devem ser aplicados independentemente da (in)existência de quaisquer direitos fundamentais das pessoas coletivas. Tais ações, se possuírem natureza transfronteiriça, implicam provavelmente um «dano» na aceção do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, mas uma discussão potencialmente acalorada sobre o alcance dos direitos fundamentais das sociedades não constitui propriamente o elemento essencial do presente processo (b). Estas considerações levam‑me a concluir que não existe nenhum motivo para aplicar a regra especial de competência de forma diferente consoante se trate de uma pessoa singular ou de uma pessoa coletiva (c).

a)      Resposta de princípio

41.      No sistema da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (a seguir «CEDH»), inicialmente só o artigo 1.° do protocolo n.° 1 da CEDH, relativo ao direito da propriedade, previa expressamente a sua aplicação às pessoas coletivas. No entanto, posteriormente, tanto o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») como o Tribunal de Justiça alargaram gradualmente a proteção dos direitos fundamentais às pessoas coletivas, nos casos em que essa abordagem se afigurava adequada à especificidade do direito fundamental em causa.

42.      Por conseguinte, a jurisprudência do TEDH passou a abranger, de forma gradual ao longo dos anos, a liberdade de expressão (20), o direito ao respeito do domicílio e da correspondência (21) e o direito a um processo equitativo (22). Ao mesmo tempo, porém, o TEDH também reconheceu que, em matéria das restrições aos direitos fundamentais, as partes signatárias dispõem, em alguns casos, de uma margem de apreciação mais ampla para situações relativas às atividades profissionais das pessoas em causa (23).

43.      De igual modo, no sistema do direito da União, o Tribunal de Justiça confirmou que assistem às pessoas coletivas não só o direito de propriedade (24) mas também a liberdade de empresa (25), o direito à ação (26) e ainda, mais especificamente, o direito à assistência judiciária (27). O Tribunal de Justiça considerou ainda que as pessoas coletivas beneficiam da presunção de inocência e, mais especificamente, de direitos de defesa (28).

44.      De um modo geral, em ambos os sistemas, salvo algumas exceções (29), a extensão dos direitos fundamentais às pessoas coletivas ocorreu gradualmente, de forma bastante natural e espontânea, sem reflexões filosóficas mais aprofundadas acerca da natureza ou da função dos direitos fundamentais (30). As considerações subjacentes parecem ser de natureza mais funcional: pode o direito fundamental em causa ser aplicado, através de uma analogia razoável, a uma pessoa coletiva? Em caso afirmativo, esse direito tende a ser alargado às pessoas coletivas, eventualmente sujeito a limitações e restrições mais rigorosas (31).

45.      Mais especificamente, no que diz respeito aos direitos de personalidade das pessoas coletivas, o seu reconhecimento indireto pode ser encontrado no acórdão Fayed c. Reino Unido (32). O TEDH afirmou que, relativamente ao direito a uma boa reputação, os limites da crítica aceitável são mais amplos no caso dos empresários de grandes empresas públicas do que no caso dos particulares (33). Além disso, o TEDH considerou que o facto de determinada parte ser uma grande empresa multinacional não a deveria privar do direito de se defender de alegações difamatórias. Esse facto tão‑pouco exonerava os demandantes (pessoas singulares) do ónus de provarem a veracidade das afirmações em causa (34).

46.      No entanto, é razoável admitir que a jurisprudência do TEDH nesta matéria talvez não seja totalmente conclusiva, em particular, por dois motivos. Primeiro, a natureza dos direitos de personalidade das pessoas coletivas poderá ser algo distinta dos direitos das pessoas singulares, dependendo do direito em causa, no contexto em que é invocado (artigo 8.°, artigo 10.° ou, eventualmente, artigo 1.° do protocolo n.° 1, ou mesmo no de um dos direitos processuais). Segundo, em casos concretos, o TEDH remeteu frequentemente para a apreciação já efetuada pelo órgão jurisdicional nacional acerca da (in)existência de violações de direitos de personalidade de uma pessoa coletiva (35).

47.      Existem duas abordagens à proteção dos direitos de personalidade das pessoas coletivas enquanto direitos fundamentais: a intrínseca e a instrumental.

48.      A abordagem dos direitos de personalidade como valor intrínseco significa que são merecedores de proteção em si mesmos. Os direitos de personalidade podem ser vistos como uma emanação da dignidade humana. O simples facto de se tratar de um ser humano justifica, em si mesmo e por si mesmo, a proteção. Caso esse conceito de direitos de personalidade seja adotado, poderá efetivamente existir alguma dificuldade intelectual em atribuir tal estatuto a uma pessoa coletiva.

49.      Todavia, os direitos de personalidade também podem ser considerados instrumentais para a proteção efetiva de outros direitos fundamentais, e não como um fim em si mesmos. A proteção dos direitos de personalidade das pessoas coletivas conduz a (ou é necessário à realização de) outros direitos que assistem a essas pessoas, tais como o direito de propriedade (artigo 17.° da Carta) ou a liberdade de empresa (artigo 16.° da Carta). Aplicando esta lógica, a violação dos direitos de personalidade de uma sociedade que consiste no atentado ao seu bom nome e à sua reputação traduzir‑se‑á diretamente na violação dos seus direitos económicos. Por conseguinte, a proteção efetiva desses direitos económicos (de que as pessoas coletivas certamente gozam) exige também a proteção dos seus direitos de personalidade.

50.      Esta última justificação da proteção dos direitos de personalidade das pessoas coletivas torna esses direitos inferiores, ou até inexistentes? Várias observações apresentadas no âmbito do presente processo parecem defender esse argumento moral, que implica em substância que «se está em causa dinheiro, então não é digno da proteção dos direitos fundamentais».

51.      Não subscrevo este entendimento, por três razões. Primeiro, existem outros direitos, essencialmente de natureza processual, cuja proteção não pode considerada um fim em si mesma, mas antes instrumental para a garantia de outros direitos ou valores. Serão esses direitos «inferiores» por este motivo? Segundo, o que dizer de outros direitos substantivos, relativos por exemplo, à proteção do direito de propriedade, do direito de trabalhar ou da liberdade de empresa? Serão também esses direitos «moralmente inferiores»? Terceiro, mesmo que se admitisse essa posição, quod non, isso excluiria as pessoas coletivas com fins lucrativos do benefício da proteção dos direitos fundamentais. E quanto às que não prosseguem fins lucrativos? E quanto às pessoas coletivas sem fins lucrativos que possam ter objetivos sem dúvida mais «nobres»?

b)      Resposta pragmática

52.      Não vejo nenhum motivo pelo qual as pessoas coletivas não possam beneficiar da proteção dos seus direitos de personalidade como um direito fundamental, desde que, em conformidade com a lógica global enunciada na secção anterior, isso seja adequado no contexto do caso concreto.

53.      Todavia, não creio que seja efetivamente necessário que o Tribunal de Justiça aprecie essa questão para se pronunciar no presente processo.

54.      Para além do discurso sobre a «obrigatoriedade» da proteção dos direitos fundamentais nos tempos que correm (36), cumpre recordar que o que está verdadeiramente em causa no presente processo é a decisão de atribuição de competência internacional, ao abrigo do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, para apreciar a responsabilidade extracontratual pelo prejuízo causado à reputação de uma pessoa.

55.      Contudo, a responsabilidade por esse tipo de dano não se limita ao que é protegido pelos direitos fundamentais garantidos constitucionalmente. Muito pelo contrário — no direito interno dos Estados‑Membros, as disposições mais detalhadas em matéria de proteção da personalidade e da reputação estão previstas a nível legislativo, nos códigos civis nacionais ou nas regras sobre a responsabilidade civil. Nesses casos, tais regras são inevitavelmente aplicáveis às pessoas singulares e às pessoas coletivas.

56.      Tomando o exemplo do direito alemão, a proteção dos direitos de personalidade em geral tem raízes constitucionais. Tanto as pessoas singulares como as pessoas coletivas são objeto de proteção. As pessoas coletivas gozam dessa proteção na medida em que esta diga respeito à sua qualidade específica (por exemplo, de operador económico ou de empregador) (37). O direito de personalidade da empresa protege a sua reputação e a sua liberdade de empresa constitucionalmente garantida (38). O alcance da proteção do direito de personalidade da empresa é objeto de uma interpretação relativamente ampla (39). Em França, a jurisprudência parece ter aceitado que as pessoas coletivas são titulares de determinados direitos de personalidade, especialmente quando está em jogo a sua honra ou a sua reputação (40). No direito inglês, os conceitos de difamação e de falsidade dolosa protegem a reputação e os interesses económicos das pessoas coletivas (41).

57.      Assim, independentemente das diferenças de tipo e de alcance, os direitos de personalidade das pessoas coletivas que protegem o seu bom nome e a sua reputação não são um fenómeno invulgar nos Estados‑Membros. Ora, no caso de uma ação fundada na lei ser proposta num Estado‑Membro contra uma entidade de outro Estado‑Membro, a decisão dessa ação exigirá também, naturalmente, uma decisão sobre a competência internacional nos termos do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012.

58.      Dito de outro modo, o artigo 7.°, ponto 2, é uma disposição multifacetada, no sentido de que as regras de competência nele contidas são aplicáveis independentemente do fundamento jurídico nacional preciso da ação, quer a proteção substantiva dos direitos de personalidade seja concedida por um direito fundamental constitucionalmente garantido, por lei ou jurisprudência, ou por ambos.

59.      Ao mesmo tempo, ainda que seja uma disposição multifacetada no que respeita à base material da ação nos termos do direito nacional, o artigo 7.°, ponto 2, deve ser unitário no que se refere ao seu resultado. Por outras palavras, as possíveis diferenças quanto ao fundamento jurídico da ação nos termos do direito nacional não podem afetar a apreciação das regras de competência, desde que, obviamente, a natureza da ação continue a dizer respeito à responsabilidade extracontratual.

60.      Em resumo, a proteção de pelo menos alguns direitos de personalidade das pessoas coletivas é habitualmente concedida não só ao nível dos direitos fundamentais, mas também (ou até mais frequentemente) ao nível da lei ordinária. Por conseguinte, é necessário que existam a nível do direito da União regras de competência equivalentes que permitam determinar o órgão jurisdicional competente para conhecer de uma ação como a do processo principal.

c)      O Regulamento n.° 1215/2012 conduz ao tratamento diferenciado das pessoas coletivas?

61.      Uma vez estabelecido que as regras de competência internacional do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 são aplicáveis às ações por responsabilidade extracontratual propostas por pessoas coletivas que aleguem a violação dos seus direitos de personalidade, independentemente de a base dessa ação ser garantida constitucionalmente ou por lei ordinária, outra questão se coloca logicamente. Existe algum motivo válido para distinguir entre pessoas singulares e coletivas para efeitos da aplicação de uma regra especial de competência baseada no centro de interesses? Em caso afirmativo, de que modo pode essa distinção ser justificada?

62.      A única justificação invocada no presente processo, para além da negação de direitos de personalidade às pessoas coletivas acima mencionada, assenta na lógica da «parte mais fraca». O argumento é o seguinte: as pessoas singulares são, por natureza, mais fracas no confronto com pessoas coletivas (conforme acontecia nos dois processos apensos em que foi proferido o acórdão eDate). O grave prejuízo que pode ser causado instantaneamente por uma publicação em linha justifica a interpretação das regras de competência a seu favor. No caso das pessoas coletivas, não é necessária a mesma proteção especial, pois estas não são, por definição, «fracas».

63.      Não concordo, por quatro razões.

64.      Em primeiro lugar, à semelhança do que afirmou a Comissão na audiência, chamo a atenção para o facto de que a regra de competência do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 não visa a proteção da parte mais fraca. Reconheço que outras regras de competência especial estabelecidas no Regulamento n.° 1215/2012 visam essa proteção. É o caso da proteção jurisdicional concedida aos consumidores, aos trabalhadores e a pessoas específicas em matérias relacionadas com seguros (42). No entanto, a lógica da «parte mais fraca» não se aplica claramente à regra de competência especial em matéria de responsabilidade extracontratual. Ao invés, esse tipo de competência assenta no vínculo estreito entre o litígio e o órgão jurisdicional competente para o dirimir (43).

65.      Em segundo lugar, mesmo que se aceite que a justificação da parte mais fraca devia ser tomada em consideração neste contexto não obstante a redação clara do Regulamento n.° 1215/2012, quod non, pergunto‑me se essa regra, aplicada automaticamente, seria realmente adequada e conduziria a resultados corretos na maioria dos casos. São as pessoas singulares, por definição, sempre fracas e as pessoas coletivas sempre fortes, independentemente do equilíbrio de forças específico num determinado litígio? E as pessoas coletivas que são, de facto, pequenas e bastante fracas? E os casos de fronteira, como as sociedades em nome individual, os profissionais liberais ou, no outro extremo, as pessoas singulares ricas e poderosas? Além disso, o facto de a pessoa coletiva ser uma organização com ou sem fins lucrativos é relevante neste contexto?

66.      Em terceiro lugar, ao apreciar especificamente o prejuízo suscetível de ser provocado por uma informação na Internet, convém recordar que, provavelmente, não existe alguma diversidade apenas do lado do demandante, mas também do lado do potencial demandado. Aquando da prolação do acórdão Shevill, a difamação era tipicamente praticada pela imprensa escrita. Em muitos casos (certamente, não todos), os editores demandados eram provavelmente pessoas coletivas.

67.      A Internet alterou completamente, para o bem ou para o mal, as regras do jogo: democratizou a publicação. Na era dos sítios Internet privados, das autopublicações, dos blogues e das redes sociais, as pessoas singulares podem muito facilmente divulgar informações relativas a qualquer outra pessoa, quer se trate de pessoas singulares ou coletivas ou de autoridades públicas. Nesse cenário técnico, a ideia inicial que pode ter inspirado as primeiras regras sobre os danos causados por publicações difamatórias, e que partia do pressuposto de que o demandante é provavelmente uma pessoa singular fraca, ao passo que o demandado é um editor (profissional), cai totalmente por terra.

68.      Por último, mesmo seguindo a lógica de uma avaliação individual do equilíbrio de forças nos casos concretos, a realização prática dessa abordagem é contrária muitas vezes ao objetivo do «elevado grau de certeza jurídica» das regras de competência que o Regulamento n.° 1215/2012 prossegue (44). Quais devem ser então os critérios? O dinheiro? A dimensão do departamento jurídico de cada entidade? O caráter profissional ou não profissional da publicação da entidade em causa? Mais uma vez, uma análise complexa com um resultado incerto não constitui, provavelmente, a melhor abordagem para determinar a competência internacional, que deve ser tão célere e rápida quanto possível (45).

69.      Em suma, não vislumbro nenhum motivo válido pelo qual as regras de competência especial contidas no artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, incluindo a regra de competência baseada no centro de interesses, devam ser diferentes consoante o demandante seja uma pessoa singular ou uma pessoa coletiva.

B.      Competência internacional para conhecer das ações por violação dos direitos de personalidade causada pela publicação de informações na Internet

70.      Pelos motivos expostos na secção precedente, não encontro argumentos convincentes que imponham uma distinção entre pessoas singulares e coletivas para efeitos da determinação da competência internacional nas ações de indemnização por responsabilidade extracontratual decorrente da alegada violação dos seus direitos de personalidade.

71.      Contudo, por razões que abordarei na presente secção, considero que existem argumentos ponderosos para reanalisar as regras excessivamente amplas sobre competência especial que foram estabelecidas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça ao longo dos anos. Na análise dessas regras, deve ser prestada a devida atenção ao facto de a Internet ser simplesmente um meio de comunicação muito diferente (46).

72.      Por conseguinte, a tese enunciada na presente secção é a seguinte: estando em causa declarações potencialmente difamatórias publicadas na Internet, devem existir apenas dois foros competentes especiais (e plenamente competentes). Assim, deve aplicar‑se uma regra de competência especial mais restrita tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas, sem distinção.

1.      Dificuldades em aplicar a abordagem «mosaico» aos pedidos de indemnização por responsabilidade extracontratual relacionados com a Internet

73.      Cumpre recordar (47) que, no acórdão Shevill, o Tribunal de Justiça afirmou que a ação de indemnização por prejuízos causados à reputação pode ser proposta tanto nos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro de estabelecimento do editor da publicação como no lugar da distribuição.

74.      No acórdão eDate, o Tribunal de Justiça acrescentou uma terceira regra de competência especial: o centro de interesses do demandante. É importante ter em conta que o Tribunal de Justiça também confirmou a aplicabilidade da regra de competência do acórdão Shevill baseada na distribuição às ações de indemnização por danos alegadamente causados através da Internet. Tal como no acórdão Shevill, essa competência internacional continua circunscrita aos danos ocorridos no território nacional em causa.

75.      Porém, no acórdão Shevill, esta abordagem «mosaico» foi desenvolvida com base na divulgação, por definição limitada, de cópias impressas de um jornal específico num determinado Estado‑Membro. A ideia de difusão territorial parece, pois, enquadrar‑se na competência internacional territorialmente limitada relativamente à ação de indemnização em causa.

76.      O problema desta regra de competência especial reside apenas no facto de a Internet funcionar em moldes muito diferentes. As informações publicadas em linha estão disponíveis instantaneamente e em toda a parte. Em princípio, não existem fronteiras geográficas (48). É possível, decerto, argumentar sobre o acesso à informação e a língua da informação, discutindo se, no contexto de um caso concreto, as informações podiam ou não ter sido razoavelmente compreendidas. Todavia, com o desenvolvimento da tradução automática e, mais do que nunca, com a publicação das informações em línguas amplamente faladas, essas preocupações talvez já não sejam tão relevantes como eram.

77.      No meu entender, a raiz do problema atual consiste na extensão automática da abordagem «mosaico» do acórdão Shevill às ações relacionadas com a Internet no processo eDate, que talvez não tenha tido plenamente em conta as diferenças consideráveis existentes entre os dois tipos de meios de comunicação. Isso traduz‑se em vários problemas estruturais e operacionais. Salientarei três.

78.      Primeiro, transpor o acórdão Shevill para o contexto da Internet significa, no essencial, atribuir competência a um grande número de tribunais em simultâneo (28 só na Europa). As informações estão instantaneamente disponíveis em todos os Estados‑Membros. Conforme salientado pelo advogado‑geral P. Cruz Villalón nas suas conclusões no processo eDate, embora o número das «visitas» a uma página Internet possa ser indicativo de um impacto territorial determinado, não constitui um critério fiável para medir a difusão de informações específicas na Internet (49). Por conseguinte, até uma única «visita» à página da Internet permite concluir que existiu «distribuição» na aceção do acórdão Shevill e concede ao demandante a possibilidade de optar por esse foro.

79.      Essa multiplicidade de foros competentes resultantes do critério da difusão muito dificilmente será conciliável com o objetivo da certeza jurídica das regras de competência e da boa administração da justiça consagrado no considerando 15 do Regulamento n.° 1215/2012 (50).

80.      Segundo, além da multiplicidade de foros competentes, existe também uma considerável fragmentação das ações dentro desses foros: cada um dos 28 possíveis foros será competente apenas para apreciar o pedido de indemnização por danos ocorridos no território nacional em causa. Essa repartição dos danos é, no contexto do meio específico da Internet, difícil (senão impossível) de concretizar (51).

81.      É também difícil perceber de que modo essas várias ações podem ser coordenadas entre si e articuladas com outros mecanismos previstos no Regulamento n.° 1215/2012 que visam racionalizar a condução dos processos, como a litispendência (52) ou a apensação (53) de ações conexas (ou com o princípio do caso julgado).

82.      No que toca à regra da litispendência, pode o seu eventual efeito extintivo ser desencadeado entre duas ações (até um máximo de 28 ações) circunscritas territorialmente por dizerem respeito às mesmas informações danosas cuja eliminação é pedida juntamente com a indemnização? A aplicação dessa regra dependeria do tipo de ação? E de que modo se aplicaria na presença de uma ação «plena» e de várias ações «parciais», territorialmente limitadas? Podemos também perguntar qual seria o efeito de caso julgado de uma decisão sobre a totalidade dos danos, proferida, por exemplo, pelo órgão jurisdicional do centro dos interesses do demandante, numa eventual ação de indemnização proposta num ou mais tribunais parcialmente competentes.

83.      É certo que o presente processo não se prende com esses elementos específicos. No entanto, devem ter‑se presentes as suas potenciais implicações práticas (na verdade impraticáveis) ao apreciar a aplicação de uma regra de competência que, no essencial, atribui competência aos órgãos jurisdicionais de 28 Estados‑Membros diferentes.

84.      Em terceiro lugar, há também a interação entre o âmbito da competência e o tipo de ação especificamente proposta no presente processo. A jurisprudência Shevill e eDate deixou claro que a competência pode ser «plena» (quando baseada no centro dos interesses ou no estabelecimento/domicílio do demandado) ou «territorialmente limitada» (baseada na difusão). No entanto, essa flexibilidade quanto ao âmbito da competência foi expressamente invocada apenas no tocante às ações de indemnização. Estas ações são, por natureza, ajustáveis quantitativamente. Todavia, o mesmo poderá não acontecer com outras medidas de reparação pedidas, como uma injunção de retificação ou supressão de informações. Este pedido é, por natureza, indivisível. Esta questão constitui o cerne da terceira questão prejudicial do órgão jurisdicional de reenvio. Analisá‑lo‑ei mais pormenorizadamente na secção C, infra, das presentes conclusões.

85.      Em resumo, a aplicação prática da versão «em linha» do acórdão Shevill afigura‑se problemática. Nesta fase, porém, talvez seja oportuno recuar um passo e refletir, não sobre os pormenores práticos, mas sobre os possíveis valores orientadores e interesses em jogo. Que interesses poderia servir tal proliferação de regras especiais de competência? A quem se destinavam?

86.      Provavelmente não servem os interesses do previsível funcionamento do sistema propriamente dito. Cumpre recordar que a regra de competência prevista no artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 é uma expressão do objetivo da boa administração da justiça, na medida em que atribui competência a um órgão jurisdicional que apresenta um vínculo estreito com o pedido em causa (54). Conforme já explicado (55), essa regra de competência não visa proteger a parte mais fraca. Por conseguinte, tanto os interesses do demandante como do demandado devem ser tidos em conta na mesma medida.

87.      Contudo, mesmo que se parta do princípio de que essa multiplicidade de foros competentes visava proteger o demandante, será possível afirmar que os interesses do demandante estão bem protegidos pela possibilidade de escolher entre vários foros competentes, incluindo um grande número de foros parciais?

88.      Não creio que assim seja. A situação do demandante já é bastante confortável em virtude da possibilidade de trazer o demandado até ao seu próprio foro, determinado em razão do seu centro de interesses, conforme estabelecido no acórdão eDate (56). Se, nesse seu foro, o demandante pode pedir a indemnização da totalidade dos danos alegados, existiria algum incentivo razoável para pedir a indemnização de danos «parciais» em vários outros Estados? Não vislumbro de que modo a disponibilidade de outros 27 foros beneficia qualquer das partes, a não ser a possibilidade manifesta oferecida ao demandante de assediar o demandado com ações opressivas em foros paralelos. O risco de assédio já foi referido relativamente ao acórdão Shevill (57), mas torna‑se efetivamente notório na era da Internet.

89.      Assim, embora à primeira vista a atual multiplicidade de foros possa ser considerada favorável ao demandante, é difícil sustentar que beneficia efetivamente qualquer uma das partes. Pelos motivos acima expostos, pode suscitar questões processuais difíceis para ambas as partes. O demandado, em especial, deixa de ter possibilidade de prever em que Estados‑Membros poderá ser chamado a juízo.

90.      Em suma, a extensão da abordagem «mosaico» do acórdão Shevill às declarações alegadamente difamatórias publicadas na Internet resulta numa multiplicação de foros competentes que não serve os interesses de nenhuma das partes e que desafia os objetivos de certeza jurídica e de boa administração da justiça.

2.      A alternativa mais restritiva

91.      A presente secção sugere o regresso e a possível aproximação das regras de competência em casos de declarações difamatórias na Internet às raízes da responsabilidade extracontratual do próprio Regulamento n.° 1215/2012, limitando a competência especial a dois cenários: o lugar onde ocorreu o facto danoso e o lugar onde ocorreu o dano. Esta última regra de competência seria definida como o lugar onde a reputação do demandante foi mais severamente afetada. Esse é o lugar do seu centro de interesses.

a)      O critério redefinido

92.      De acordo com a regra do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, a competência é atribuída ao «tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso». Isso abrange tanto i) o lugar onde ocorreu o facto danoso como ii) aquele onde ocorreu o dano (58). Como podem estas duas regras de competência especial ser apreciadas relativamente às declarações difamatórias publicadas na Internet?

93.      A primeira possibilidade respeita ao lugar de onde emanam as informações («facto danoso»). Conforme referiu o Tribunal de Justiça, esta possibilidade frequentemente coincidirá com a regra geral de competência do domicílio do demandado, constante do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012 (59). Logicamente, há uma maior probabilidade de o demandado divulgar e também controlar as informações a partir do lugar onde tem o seu domicílio. Esse é também o lugar onde podem ser aplicadas medidas legais coercivas para retificar ou suprimir os conteúdos em linha na origem do prejuízo.

94.      Assim, o «facto danoso» está relacionado com a localização da(s) pessoa(s) que controla(m) as informações, não com o lugar onde o suporte físico ou virtual em que as informações foram efetivamente criadas. No acórdão Shevill, o Tribunal de Justiça implicitamente não considerou o lugar onde o jornal era fisicamente imprimido como o lugar onde ocorreu o «facto danoso». Pelo contrário, concentrou‑se no domicílio do editor. No meu entender, este paralelismo com o acórdão Shevill pode ser mantido: a localização física do(s) servidor(es) em que as informações estão armazenadas não deve ser relevante. O fundamental é quem pode aceder ao conteúdo, ou seja, a pessoa normalmente (60) competente para publicar e alterar o conteúdo das informações em linha (61).

95.      A segunda possibilidade respeita ao lugar onde ocorreu o dano. O presente processo prende‑se com danos alegadamente causados à reputação de uma pessoa coletiva. Esses danos são provavelmente sofridos no lugar onde essa pessoa desenvolve a sua atividade comercial ou profissional.

96.      Caso a abordagem «mosaico» do acórdão Shevill fosse rejeitada (62), o lugar onde o dano ocorreu ficaria limitado a um único foro. Uma vez que o valor protegido é a reputação do demandante, esse lugar deve ser aquele onde a sua reputação foi mais fortemente afetada. É provável que esse lugar seja aquele onde essa pessoa, singular ou coletiva, tem o seu centro de interesses. Esse lugar representaria, assim, o verdadeiro centro do litígio, ao qual uma regra especial de competência baseada no vínculo mais estreito deveria conduzir.

97.      Deste modo, o demandante teria à disposição dois possíveis foros. O primeiro seria o do domicílio do demandado, enquanto regra geral nos termos do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012, que também corresponde ao local do facto danoso. O segundo seria o local do seu centro de interesses, que corresponde ao lugar onde ocorreu o dano. Ambos os foros atribuem ao órgão jurisdicional competência plena para conhecer da totalidade do prejuízo sofrido e de todas as medidas de reparação previstos nas respetivas leis nacionais, incluindo uma possível injunção, caso tal fosse pedido.

98.      Esta limitação sugerida serve um duplo objetivo. Primeiro, reconhece e tem em conta a situação do lesado, que fica habilitado a trazer o autor do prejuízo até ao seu foro e a pedir a indemnização da totalidade dos danos sofridos. Segundo, promove o objetivo da boa administração da justiça, na medida em que atribui competência aos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro com um vínculo mais estreito com o centro dos interesses do demandante e que melhor conhecem a sua situação. Portanto, são os mais habilitados para avaliar o impacto global da totalidade dos danos causados.

b)      Determinação do centro de interesses

99.      A questão fundamental remanescente consiste, então, em saber de que modo deve ser determinado o centro de interesses no caso das pessoas singulares e no caso das pessoas coletivas.

100. A determinação desse lugar varia, pela sua natureza, em função do caso concreto, especialmente com base em dois elementos: a situação factual e social do demandante, considerada no contexto da natureza da declaração específica. O primeiro elemento prende‑se com a situação específica do demandante. O segundo respeita à forma como essa situação poderia ou não ter sido afetada pela declaração controvertida.

101. Esta dupla avaliação tem de ser necessariamente efetuada em relação a cada pedido concreto. Por definição, não pode ser feita em abstrato, independentemente do tipo e da natureza específicos do pedido em causa (63). Serve para determinar a competência do órgão jurisdicional situado no centro de gravidade do litígio concreto. Esse órgão jurisdicional possuirá, portanto, o melhor conhecimento da situação do demandante, bem como dos efeitos razoavelmente suscetíveis de se fazerem sentir nesse Estado‑Membro e eventualmente fora dele.

102. Ao tentar apreciar de uma forma geral o lugar onde o impacto de uma declaração difamatória será provavelmente sentido pelas pessoas singulares, o Tribunal de Justiça afirmou, no acórdão eDate, que o centro de interesses do demandante corresponde ao Estado‑Membro da residência habitual. Considerou que pode igualmente corresponder a outro Estado‑Membro com o qual seja possível estabelecer a existência de um nexo particularmente estreito devido a outros fatores, como o exercício de uma atividade profissional (64). Consoante a situação específica de cada demandante, esse lugar pode, por conseguinte, ser outro, como aquele onde se encontra o seu círculo de amizades, a sua família, etc.

103. O critério da residência habitual pode certamente constituir um bom ponto de partida para a avaliação factual do centro de interesses das pessoas singulares. Todavia, esse ponto de partida tem de ser confirmado à luz da declaração concreta em causa, uma vez que é natural que nem todas as informações produzam o mesmo efeito na vida profissional e pessoal das pessoas, que pode não estar circunscrita a um Estado‑Membro.

104. No tocante ao centro dos interesses das pessoas coletivas, o dano incidirá tipicamente sobre a sua atividade profissional. No caso de uma pessoa coletiva que prossegue fins lucrativos, ou seja, uma empresa, o foro competente provavelmente corresponderá ao Estado‑Membro onde realiza o maior volume de negócios. No caso das organizações sem fins lucrativos, esse foro será provavelmente o do lugar onde a maior parte dos seus «clientes» (no sentido mais amplo da palavra) está localizada. Em ambos os casos, esse Estado‑Membro provavelmente será aquele onde os danos causados à reputação e, portanto, à sua vida profissional, serão mais fortemente sentidos.

105. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a determinação do centro dos interesses de uma pessoa coletiva deve ter em conta o lugar onde essa pessoa tem o seu estabelecimento (65). Essa sugestão parece inspirar‑se numa analogia com o lugar da residência das pessoas singulares, referido pelo Tribunal de Justiça no acórdão eDate.

106. Ao procurar situações paralelas em que o lugar do estabelecimento desempenha um papel na atribuição da competência internacional, é possível estabelecer uma analogia (ou melhor, um contraste) com o conceito de «centro dos interesses principais» (a seguir «CIP»), que constitui efetivamente o elemento fundamental das regras de competência previstas no regulamento relativo aos processos de insolvência (66).

107. No contexto desse regulamento, o CIP corresponde ao local onde o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e verificável por terceiros. No caso das pessoas coletivas, presume‑se que o CIP é o local da sua sede social. No caso das pessoas singulares, é o local onde exerce a atividade principal (se essa pessoa exercer uma atividade comercial independente) ou o lugar de residência habitual (sempre sem prejuízo de prova em contrário e desde que a sede estatutária, o local onde é exercida a atividade principal ou a residência habitual não tenha mudado para outro Estado‑Membro nos três ou seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência).

108. O CIP do devedor determina a competência internacional do órgão jurisdicional para instaurar o chamado processo principal de insolvência. O CIP é portanto definido por referência ao devedor que, no contexto do processo de insolvência, é equiparável ao demandado.

109. Assim, o facto de a sede social ser considerada como ponto de partida para determinar o CIP de uma pessoa coletiva (e, consequentemente, de o órgão jurisdicional ser competente para iniciar o processo de insolvência dito «principal») não constitui um desvio significativo à regra de competência clássica de aplicação geral conforme consagrada no artigo 4.° do Regulamento n.° 1215/2012.

110. Em contrapartida, o centro dos interesses desenvolvido no acórdão eDate refere‑se ao demandante. Conforme a Comissão salientou, por princípio, nessa matéria, a lógica principal subjacente às regras de competência é invertida, porque atribui ao demandante o seu forum actoris (67), que de outro modo está reservado no regulamento para a «parte mais fraca» (68).

111. Por conseguinte, para determinar o centro de interesses para efeitos do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, o lugar do estabelecimento ou domicílio de uma pessoa coletiva podem ser tidos em conta como um de vários elementos de facto. Porém, não é seguramente o elemento decisivo.

112. Conforme já referi, a localização do centro de interesses é factual e contextual e visa identificar o lugar onde o dano causado à reputação de uma pessoa coletiva é sentido mais intensamente. Esse lugar só corresponderá ao domicílio da pessoa coletiva se a sua principal atividade profissional também estiver localizada nesse Estado‑Membro. Se, pelo contrário, nenhuma atividade profissional for exercida nesse Estado‑Membro e se o demandante não gerar aí nenhum volume de negócios, esse lugar não pode servir para a determinação do centro de interesses.

113. Assim, para determinar o centro dos interesses das pessoas coletivas, os fatores relevantes serão provavelmente a principal atividade comercial ou outra atividade profissional, que, por sua vez, será identificada com maior precisão por referência ao volume de negócios ou ao número de clientes ou de outros contactos profissionais. A sede social pode ser tida em conta como um dos elementos factuais, mas não isoladamente. Ao contrário do que acontece com as pessoas singulares, não é invulgar que as pessoas coletivas tenham a sua sede social num território com o qual não possuem nenhum vínculo significativo.

114. A utilização da residência como critério relevante afigura‑se plenamente justificada quando os demandantes são pessoas singulares cuja reputação tenha sido afetada, sem que isso tenha qualquer relação relevante com a sua atividade profissional. Com efeito, o Estado‑Membro de residência dessa pessoa será provavelmente o lugar onde se encontra a sua estrutura social e profissional.

115. Fora deste cenário, não se pode excluir que uma pessoa singular tenha estabelecido a sua residência habitual num Estado‑Membro, embora a sua vida real (profissional, pessoal ou mesmo ambas) se situe noutro Estado‑Membro.

116. Isso leva‑me à seguinte observação final: há que precisar claramente que, tanto em relação às pessoas singulares como às pessoas coletivas, pode existir mais do que um centro de interesses no tocante a um pedido específico. Feitas todas as avaliações (factuais e contextuais), pode chegar‑se à conclusão, muito simplesmente, de que existem vários centros de interesses relativamente a determinado pedido.

117. Nesse caso, caberá ao demandante fazer uma opção e escolher os órgãos jurisdicionais de um desses Estados‑Membros. Contudo, uma vez que a competência fundada no centro de interesses é uma competência «plena», o exercício dessa opção desencadeia o mecanismo da litispendência, ficando excluída a possibilidade de recorrer a outro órgão jurisdicional enquanto estiver pendente a primeira ação.

c)      Conclusão provisória

118. À luz do exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda nos seguintes termos à segunda e terceira questões prejudiciais: O artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que uma pessoa coletiva que alega a violação dos seus direitos de personalidade pela publicação de informações na Internet pode, relativamente à totalidade do prejuízo sofrido, instaurar uma ação nos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro onde se situa o seu centro de interesses.

O centro dos interesses de uma pessoa coletiva considera‑se situado no Estado‑Membro onde essa pessoa exerce a sua atividade profissional principal, desde que as informações alegadamente danosas sejam suscetíveis de afetar a sua situação profissional.

C.      Competência para ordenar a retificação e a supressão das informações alegadamente danosas

119. Na parte final das presentes conclusões, analisarei o problema suscitado pela primeira questão prejudicial: caso seja mantida a abordagem «mosaico» do acórdão Shevill à competência internacional relativa aos danos limitados territorialmente, atribui essa abordagem ao órgão jurisdicional nacional competência para emitir uma injunção transfronteiras como a que é pedida no processo principal? Por outras palavras, se a competência dos órgãos jurisdicionais estónios estiver limitada aos danos causados à demandante no território estónio, podem esses órgãos jurisdicionais impor à demandada, na Suécia, uma injunção de retificação e de supressão das informações danosas na sua totalidade?

120. Cumpre referir, a título preliminar, que não é totalmente claro se o meio processual visado pela demandante é uma medida provisória ou uma injunção como partes da decisão de mérito. Se a primeira visa uma solução provisória enquanto se aguarda o desfecho do processo, a segunda é parte da decisão final sobre o mérito.

121. Esta distinção tem consequências quanto ao critério a aplicar para determinar a competência internacional (69), assim como ao sistema de reconhecimento e de execução (70).

122. Todavia, conforme foi clarificado na audiência, a injunção em causa é pedida pela demandante como parte da decisão quanto ao mérito. Por conseguinte, partirei do princípio de que assim é.

123. Caso o Tribunal de Justiça adote a resposta que proponho para a segunda e terceira questões prejudiciais, a resposta à primeira deixa de ser necessária. Uma vez que não existiria qualquer limitação territorial suplementar, como a propugnada no acórdão Shevill, relativamente à competência para conhecer do pedido, tão‑pouco se colocaria a questão da dissonância entre o âmbito da competência e as medidas de reparação solicitadas. Por outras palavras, o órgão jurisdicional competente para apreciar plenamente o pedido de indemnização também teria competência para apreciar todas as medidas de reparação previstas na lei nacional, incluindo injunção.

124. Se, pelo contrário, o Tribunal de Justiça considerar que a abordagem «mosaico» do acórdão Shevill deve ser mantida, a primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio é de grande pertinência. A fim de assistir plenamente o Tribunal de Justiça, delinearei, na parte restante das presentes conclusões, uma resposta sucinta a essa questão.

125. A abordagem «mosaico» do acórdão Shevill suscita o problema de como adaptar a competência territorialmente limitada para conhecer da ação de indemnização à medida de reparação solicitada, unitária e, por natureza, indivisível. Será possível limitar o órgão jurisdicional competente em função dos tipos de medidas de reparação que pode ordenar, uma vez determinada a sua competência internacional extracontratual? Ou, em caso de resposta negativa, será possível limitar de alguma forma o âmbito ou o alcance dessa medida?

126. Não vislumbro nenhuma possibilidade ou base legal que permita fazê‑lo. Hipoteticamente falando, caso se tivesse determinado que o pedido da demandante é procedente e que os órgãos jurisdicionais estónios têm competência internacional para conhecer dos danos causados à demandante na Estónia, entendo que o mesmo órgão jurisdicional será também competente para decretar a medida de reparação solicitada, desde que esteja prevista na lei nacional. Assim o impõe a natureza unitária da fonte dos danos alegados no presente processo. Está em causa apenas um sítio Internet. As informações simplesmente não podem ser retificadas ou suprimidas «na proporção» dos danos sofridos num determinado território.

127. Para melhor explicar este ponto, podemos recorrer ao exemplo de um diferendo entre vizinhos. Imaginemos que a caixa de esgotos do meu vizinho tem uma fuga. As águas residuais provenientes dessa caixa afetam vários moradores da aldeia e também se infiltram no meu jardim, contaminando e destruindo os meus adorados vegetais biológicos, que cultivei com grande esforço. Se eu ou algum dos outros vizinhos afetados acabar por recorrer à via judicial, visto os contactos com o vizinho não terem tido sucesso, provavelmente pediremos que esse vizinho seja obrigado a reparar a sua caixa de esgotos e a estancar a fuga de águas residuais. Quando isso acontecer, todos serão, por definição, beneficiados. Dificilmente se concebe que o vizinho seja obrigado a estancar a fuga apenas na percentagem que corresponde matematicamente à parte que o dano causado nos meus vegetais biológicos representa relativamente ao dano global causado a todos os moradores da minha aldeia.

128. No contexto do caso vertente, caso se determinasse que a demandante pode instaurar a sua ação nos órgãos jurisdicionais estónios relativamente aos danos ocorridos na Estónia, a questão passaria a ser a seguinte: a competência parcial de tais órgãos jurisdicionais poderia e deveria traduzir‑se numa competência parcial para decretar uma injunção? Seria razoável ordenar à demandada que retificasse uma parte proporcional das informações e dos comentários alegadamente danosos? Em caso afirmativo, como seria determinada essa parte? Seria ordenado à demandada que suprimisse apenas uma parte proporcional das informações? Ou apenas uma parte dos comentários?

129. Estas considerações algo absurdas apontam claramente para uma única resposta possível: desde que o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro seja competente para conhecer de uma ação de indemnização por responsabilidade extracontratual, deve também poder decidir quanto a todas as medidas de reparação previstas no direito nacional (71). Porém, isso suscita um tipo de problema diferente: se todos os 28 órgãos jurisdicionais potencialmente competentes forem também competentes para decretar injunções, é provável que sejam proferidos inúmeros despachos, formulados de diferentes formas, dirigidos ao demandado relativamente à mesma conduta que terá de adotar ou da qual terá de se abster.

130. Conforme decorre da discussão na secção B das presentes conclusões, foram essas e outras questões práticas que me conduziram a recomendar ao Tribunal de Justiça que limite a competência internacional para conhecer das ações por responsabilidade extracontratual relacionadas com a Internet a duas regras de competência especial. De acordo com essas duas regras de competência, os órgãos jurisdicionais nacionais competentes seriam plenamente competentes tanto para conhecer dos pedidos e condenar no pagamento das indemnizações como para aplicar quaisquer outras medidas de reparação previstas na lei nacional, incluindo injunções.

V.      Conclusão

131. À luz do exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda nos seguintes termos à segunda e terceira questões prejudiciais do Riigikohus (Supremo Tribunal, Estónia):

–        O artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (reformulação), deve ser interpretado no sentido de que uma pessoa coletiva que alega que os seus direitos de personalidade foram violados pela publicação de informações na Internet pode instaurar uma ação nos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro onde se situa o seu centro de interesses relativamente à totalidade do prejuízo sofrido.

–        O centro dos interesses de uma pessoa coletiva situa‑se no Estado‑Membro onde essa pessoa exerce a sua atividade profissional principal, desde que as informações alegadamente danosas sejam suscetíveis de afetar a sua atividade profissional nesse Estado‑Membro.


1      Língua original: inglês.


2      Acórdão de 7 de março de 1995, Shevill e o. (C‑68/93, EU:C:1995:61).


3      Acórdão de 25 de outubro de 2011, eDate Advertising e o. (C‑509/09 e C‑161/10, EU:C:2011:685).


4      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (reformulação) (JO 2012, L 351, p. 1).


5      Acórdão de 25 de outubro de 2011, eDate Advertising e o. (C‑509/09 e C‑161/10, EU:C:2011:685).


6      Acórdão de 7 de março de 1995, Shevill e o. (C‑68/93, EU:C:1995:61).


7      Para um exemplo recente, v. acórdão de 22 de janeiro de 2015, Hejduk (C‑441/13 EU:C:2015:28, n.° 17 e jurisprudência referida).


8      Isso foi estabelecido no acórdão de 30 de novembro de 1976, Bier (21/76, EU:C:1976:166, n.° 11). V., também, acórdãos de 7 de março de 1995, Shevill e o. (C‑68/93, EU:C:1995:61, n.° 19 e jurisprudência referida); de 25 de outubro de 2011, eDate Advertising e o. (C‑509/09 e C‑161/10, EU:C:2011:685, n.° 40 e jurisprudência referida); de 3 de outubro de 2013, Pinckney (C‑170/12, EU:C:2013:635, n.° 27 e jurisprudência referida); de 22 de janeiro de 2015, Hejduk (C‑441/13 EU:C:2015:28, n.° 19 e jurisprudência referida); e de 21 de dezembro de 2016, Concurrence (C‑618/15, EU:C:2016:976, n.° 26 e jurisprudência referida). V. igualmente considerando 16 do Regulamento n.° 1215/2012.


9      A redação do artigo 7.°, ponto 2, é idêntica à do artigo 5.°, ponto 3, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1). É também quase idêntica à do artigo 5.°, n.° 3, da Convenção de Bruxelas, de 27 de setembro de 1968, relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1978, L 304, p. 36; EE 01 F1, p. 186).


10      Acórdão de 30 de novembro de 1976, Bier (21/76, EU:C:1976:166, n.° 19).


11      Para um exemplo recente, v. acórdão de 22 de janeiro de 2015, Hejduk (C‑441/13, EU:C:2015:28, n.° 18 e jurisprudência referida).


12      Isso também corresponde à regra geral da sede do demandado. V. acórdão de 7 de março de 1995, Shevill e o. (C‑68/93, EU:C:1995:61, n.° 26).


13      Acórdão de 7 de março de 1995, Shevill e o. (C‑68/93, EU:C:1995:61, n.os 30 a 31).


14      V., por exemplo, Mankowski, P., Kommentar zum Art. 5 EuGVVO, in EWiR 2011, pp. 743 a 744. Considera‑se geralmente que a solução adotada no acórdão Shevill foi concebida para refletir a circunstância de, nesse caso, a grande maioria dos exemplares impressos ter sido distribuída em França e apenas uma pequena parte ter circulado em Inglaterra, onde residiam as pessoas afetadas pelas informações publicadas. V., por exemplo, Briggs, A., «The Brussels Convention», Yearbook of European Law, 1995, vol. 15, n.° 1, pp. 487 a 514.


15      Acórdão de 25 de outubro de 2011, eDate Advertising e o. (C‑509/09 e C‑161/10, EU:C:2011:685, n.os 51 e 52).


16      Acórdão de 25 de outubro de 2011, eDate Advertising e o. (C‑509/09 e C‑161/10, EU:C:2011:685, n.° 49).


17      Ibidem, n.° 47.


18      Para uma apreciação crítica na literatura jurídica que salienta a mudança para a regra da competência do forum actoris, a falta de previsibilidade e o risco da procura do foro mais vantajoso (forum shopping) dessa abordagem, v., por exemplo, Bollée, S., & Haftel, B., «Les nouveaux (dés)équilibres de la competence international en matière de cyber délits après l'arrêt eDate Advertising et Martinez», Recueil Le Dalloz, 2012, n.° 20, pp. 1285 a 1293; Kuipers, J.‑J., «C‑509/09 &161/10, eDate Advertising v. X and Olivier Martinez and Robert Martinez v. MGN Limited, Judgment of the Court of Justice (Grand Chamber) of 25 October 2011», Common Market Law Review 2012, pp. 1211 a 1231; Thiede, T., «Bier, Shevill und eDate — Aegrescit medendo?», Zeitschrift für das Privatrecht der Europäischen Union, 4/2012, pp. 219 a 222.


19      Que referiu, entre outras coisas, que os direitos fundamentais à reserva da intimidade da vida privada e à liberdade de informação, consagrados nos artigos 7.° e 11.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), «expressam a especial proteção que merece a informação numa sociedade democrática, do mesmo modo que destacam a relevância da esfera privada, na qual também se inclui a própria imagem». Conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón nos processos apensos eDate Advertising e o. (C‑509/09 e C‑161/10, EU:C:2011:192, n.° 52).


20      Consagrada no artigo 10.° da CEDH. Acórdão do TEDH de 26 de abril de 1979, Sunday Times c. Reino Unido (CE:ECHR:1980:1106JUD000653874).


21      Fundado no artigo 8.° da CEDH. O TEDH tornou o conceito de «domicílio» extensível às instalações das sociedades. Acórdão do TEDH de 16 de abril de 2002, Société Colas Est e o. c. França (CE:ECHR:2002:0416JUD003797197, §§ 40 a 42).


22      Garantido pelo artigo 6.°, n.° 1, da CEDH. Acórdão do TEDH de 20 de setembro de 2011, Oao Neftyanaya Kompaniya Yukos c. Rússia (CE:ECHR:2011:0920JUD001490204, §§ 536 a 551). Foi observado que não existia nenhum motivo para tratar as pessoas coletivas de modo diferente, uma vez que o respeito ao direito a um processo equitativo é uma condição prévia da possibilidade de fazer valer direitos substantivos correspondentes. V. Oliver, P., «Companies and their Fundamental Rights: a comparative perspective», International and Comparative Law Quarterly, 2015, vol. 64, n.° 3, p. 678.


23      V. acórdão do TEDH de 16 de dezembro de 1992, Niemietz c. Alemanha (CE:ECHR:1992:1216JUD001371088), no qual o TEDH considerou que uma busca policial no escritório de um advogado que exercia a sua atividade a título independente, onde o mesmo residia, constituía uma violação do seu «domicílio». Porém, o TEDH acrescentou que o direito de ingerência dos Estados ao abrigo do artigo 8.°, n.° 2, da CEDH poderia ir mais longe «relativamente às instalações ou às atividades profissionais ou comerciais» do que noutros casos (§ 31).


24      Consagrado no artigo 17.° da Carta. V., por exemplo, acórdão de 11 de junho de 2015, Berlington Hungary e o. (C‑98/14, EU:C:2015:386, n.os 89 a 91 e jurisprudência referida).


25      Prevista no artigo 16.° da Carta. V. acórdão de 21 de dezembro de 2016, AGET Iraklis (C‑201/15, EU:C:2016:972, n.os 66 a 69 e jurisprudência referida).


26      Previsto no artigo 47.° da Carta. V., por exemplo, acórdão de 16 de maio de 2017, BerliozInvestment Fund (C‑682/15, EU:C:2017:373, n.° 48).


27      Previsto no artigo 47.° da Carta. Acórdão de 22 de dezembro de 2010, DEB(C‑279/09, EU:C:2010:811, n.os 44 a 59).


28      Consagrados no artigo 48.° da Carta. V., por exemplo, acórdãos de 26 de novembro de 2013, Groupe Gascogne/Comissão (C‑58/12 P, EU:C:2013:770, n.os 29 e segs.), e de 14 de setembro de 2010, Akzo Nobel Chemicals e Akcros Chemicals/Comissão (C‑550/07 P, EU:C:2010:512, n.° 92).


29      Uma das quais é o acórdão de 22 de dezembro de 2010, DEB (C‑279/09, EU:C:2010:811), em que o Tribunal de Justiça confirmou que a assistência judiciária também pode ser concedida às pessoas coletivas. Ao fazê‑lo (n.° 38), o Tribunal de Justiça invocou um argumento linguístico (o termo «pessoa», na disposição em causa, não excluía as pessoas coletivas), conjugado com considerações sistémicas (a localização do capítulo em questão na Carta).


30      V., também, por exemplo, Oliver, P., «Companies and their Fundamental Rights: a comparative perspective», International and Comparative Law Quarterly, 2015, vol. 64, n.° 3, pp. 661 a 696.


31      Este tipo de debate e a potencial extensão da proteção dos direitos fundamentais às pessoas coletivas não se circunscrevem aos dois sistemas europeus. Para exemplos do outro lado do Atlântico, v. Citizens United c. Federal Election Commission 558 U.S. 310 (2010), relativo à liberdade de expressão política das pessoas coletivas, e, mais recentemente, Burwell c. Hobby Lobby Stores 573 U.S. _ (2014), em que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos reconheceu que as sociedades de capital fechado com fins lucrativos podem ter convicções religiosas.


32      Acórdão do TEDH de 21 de setembro de 1990, Fayed c. Reino Unido (CE:ECHR:1994:0921JUD001710190).


33      Ibidem, § 75. V., também, acórdãos do TEDH de 15 de maio de 2005, Steel e Morris c. Reino Unido (CE:ECHR:2005:0215JUD006841601, § 94), e de 20 de novembro de 1989, Markt intern Verlag GmbH e Klaus Beermann c. Alemanha (CE:ECHR:1989:1120JUD001057283, §§ 33 a 38).


34      Acórdão do TEDH de 15 de maio de 2005, Steel e Morris c. Reino Unido (CE:ECHR:2005:0215JUD006841601, § 94).


35      V. acórdão recente do TEDH de 2 de fevereiro de 2016, Magyar Tartalomszolgáltatók Egyesülete e Index.hu Zrt c. Hungria (CE:ECHR:2016:0202JUD002294713, § 66).


36      A título retrospetivo, vale a pena salientar que, no acórdão Shevill, três dos quatro demandantes eram efetivamente pessoas coletivas. No entanto, essa circunstância não suscitou quaisquer dúvidas sobre a aplicabilidade das mesmas regras de competência internacional. Não obstante, esse mesmo facto pode também ser visto como uma prova indireta de quanto o discurso jurídico da União se alterou e reorientou na última década. Um cético poderá acrescentar que isso nem sempre é positivo, no sentido de o discurso sobre os direitos fundamentais proporcionar ferramentas analíticas melhores e mais eficazes para a interpretação, por exemplo, das regras relativas à competência internacional.


37      V., por exemplo, acórdãos do Supremo Tribunal Federal alemão de 18 de maio de 1971, VI ZR 220/69, NJW 1971, 1665; acórdão de 8 de julho de 1980 — VI ZR 177/78, NJW 1980, 2807; acórdão de 19 de abril de 2005 — X ZR 15/04, NJW 2005, 2766; acórdão de 23 de setembro de 2014 — VI ZR 358/13, NJW 2015, 489; e ainda de 28 de julho de 2015 — VI ZR 340/14, NJW 2016, 56. V., também, decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht) de 24 de maio de 2006, 1 BvR 49/00, NJW 06, 3771.


38      Koreng, A., «Das “Unternehmenspersönlichkeitsrecht” als Element des gewerblichen Reputationsschutzes», in: GRUR 2010, pp. 1065 e segs.


39      Essa proteção engloba as declarações suscetíveis de levar os consumidores a deixarem de procurar os produtos ou serviços da empresa, mas as gravações de vídeos não autorizadas nas instalações da empresa também podem constituir uma violação dos seus direitos de personalidade. V., por exemplo, acórdão do Tribunal Regional de Estugarda (Landgericht Stuttgart) de 09.10.2014, 11 O 15/14.


40      V., por exemplo, Dumoulin, L., «Les droits de la personnalité des personnes morales», Revue des sociétés 2006, n.° 3, ponto 19.


41      V., por exemplo, Tesla Motors Ltd c. BBC [2013] EWCA Civ 152ouMarathon Mutual Ltd c. Waters [2009] EWHC 1931 (QB).


42      V. considerando 18 do Regulamento n.° 1215/2012: «No respeitante aos contratos de seguro, de consumo e de trabalho, é conveniente proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral». Essas regras estão contidas nas secções 3 a 5 do capítulo II do mesmo regulamento.


43      V. referências à jurisprudência mencionadas acima na nota 8.


44      Considerando 15 do Regulamento n.° 1215/2012.


45      Para um exemplo das dificuldades práticas suscitadas pelo exame individual do «equilíbrio de forças» em matéria de seguros nos termos do Regulamento n.° 44/2001, v. as minhas conclusões no processo MMA IARD (C‑340/16, EU:C:2017:396, em especial n.os 61 e 62).


46      De um ponto de vista abstrato e ao nível dos princípios, partilho totalmente o anseio por critérios jurisdicionais de atribuição de competência que sejam tecnologicamente neutros, conforme expôs eloquentemente o advogado‑geral P. Cruz Villalón nas suas conclusões nos processos apensos eDate Advertising e o. (C‑509/09 e C‑161/10, EU:C:2011:192, n.os 53 e 54). Porém, ao nível da sua realização prática, encontro, conforme explicarei na presente secção, dificuldades em tratar como iguais situações que são objetivamente muito diferentes.


47       V. n.° 28 das presentes conclusões.


48      Para um entendimento semelhante e inspiração comparativa, v., por exemplo, acórdão Dow Jones and Company Inc c. Gutnick [2002] HCA 56, n.° 113 (High Court da Austrália). V., também, acórdão do Supremo Tribunal Federal alemão de 2 de março de 2010, VI ZR 23/09.


49      Conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón nos processos apensos eDate Advertising e o. (C‑509/09 e C‑161/10, EU:C:2011:192, n.° 50).


50      Neste sentido, v., por exemplo, Garber, T., «Die internationale Zuständigkeit für Klagen aufgrund einer Persönlichkeitsrechts verletzung im Internet», ÖJZ, 2012, pp. 108 e segs. Para o entendimento oposto, v., por exemplo, Mankowski, P., Kommentar zum Art. 5 EuGVVO, inEWiR 2011, pp. 743 a 744.


51      A discussão académica que teve lugar em resposta ao acórdão eDate identificou, entre outras coisas, as dificuldades em «dividir matematicamente os insultos em porções de âmbito territorial» conforme estabelecido no acórdão Shevill. V. Pichler, P., «Forum‑Shopping für Opfer von Persönlichkeitseingriffen im Internet? Das EuGH‑Urteil eDate Advertising gegen X und Martinez gegen MGN (C‑509/09 und C‑161/10)», MR 2011, pp. 365 e segs.


52      Ou seja, ações com a mesma causa de pedir e entre as mesmas partes, mas em órgãos jurisdicionais de diferentes Estados‑Membros. V. secção 9 do capítulo II do Regulamento n.° 1215/2012.


53      V. artigo 8.° do Regulamento n.° 1215/2012.


54      V. nota 8, supra.


55      V. n.° 64, supra.


56      Uma parte da doutrina sugeriu que esse forum actoris já faz pender indevidamente a balança a favor do demandante. V. nota 18, supra.


57      Briggs, A., «The Brussels Convention», Yearbook of European Law, 1995, vol. 15, n.° 1, pp. 487 a 514.


58      V. nota 8, supra.


59      Acórdão de 7 de março de 1995, Shevill e o. (C‑68/93, EU:C:1995:61, n.° 26), a propósito do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas, o antecessor do artigo 4.° do Regulamento n.° 1215/2012.


60      Que é, portanto, a principal responsável pelo conteúdo das informações (sem prejuízo da eventual possibilidade de obrigar o administrador do servidor, quando diferente do editor, ou o fornecedor de serviços de Internet a bloquear o acesso a essas informações).


61      Além disso, porque a publicação de conteúdos em linha é habitualmente realizada em múltiplos servidores situados em lugares diferentes ou até em diferentes países.


62      Pelos motivos acima enunciados pormenorizadamente, nos n.os 77 a 90 das presentes conclusões.


63      Tratando assim as situações em que o centro (objetivo) dos interesses de um demandante está situado no Estado‑Membro X, mas a natureza do pedido reveste particular especificidade, respeitando a uma situação muito concreta ou ímpar no Estado‑Membro Y, e não é, muito simplesmente, suscetível de afetar a reputação do demandante no Estado‑Membro X.


64      Acórdão de 25 de outubro de 2011, eDate Advertising e o. (C‑509/09 e C‑161/10, EU:C:2011:685, n.° 49).


65      Importa recordar que o artigo 63.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012 estabelece que «[p]ara efeitos do presente regulamento, uma sociedade ou outra pessoa coletiva ou associação de pessoas singulares ou coletivas tem domicílio no lugar em que tiver: a) A sua sede social; b) A sua administração central; ou c) O seu estabelecimento principal».


66      V. artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento (UE) n.° 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência (JO 2015, L 141, p. 19). V. artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (JO 2000, L 160 p. 1), mais antigo e semelhante, embora menos matizado.


67      A preocupação com a possibilidade de o demandante nos processos de responsabilidade extracontratual vir a beneficiar do forum actoris tinha já sido manifestada no rescaldo do acórdão Shevill. V. Briggs, A., «The Brussels Convention», Yearbook of European Law, 1995, vol. 15, n.° 1, pp. 487 a 514. E voltou a ser discutida em resposta ao acórdão eDate. V. nota 18, supra.


68      V., supra, n.° 64 das presentes conclusões.


69      V. artigo 35.° do Regulamento n.° 1215/2012. Esta disposição confirma a possibilidade (anteriormente existente) de um órgão jurisdicional adotar uma medida provisória ainda que não seja competente para se pronunciar sobre o mérito da ação. Nesse contexto, o Tribunal de Justiça afirmou que os órgãos jurisdicionais podem decretar medidas provisórias desde que exista «um elemento de conexão real entre o objeto das medidas requeridas e a competência territorial do Estado contratante do juiz a quem são pedidas». Acórdão de 17 de novembro de 1998, Van Uden (C‑391/95, EU:C:1998:543, n.° 40). Por isso, o artigo 35.° constitui uma regra de competência adicional e específica que existe paralelamente às outras regras do mesmo regulamento. V., neste sentido, conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón no processo Solvay (C‑616/10, EU:C:2012:193, n.° 46).


70      V. considerando 33 e artigo 42.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1215/2012. V. acórdão de 21 de maio de 1980, Denilauler (125/79, EU:C:1980:130, n.os 16 a 18).


71      A não ser, naturalmente, que se considerasse que a abordagem «mosaico» do acórdão Shevill só permitia que o órgão jurisdicional nacional se pronunciasse exclusivamente em relação ao pedido de indemnização (ou seja, a compensação pecuniária) e a nada mais. Contudo, seria difícil identificar uma base jurídica para tão drástica limitação da competência dos órgãos jurisdicionais nacionais ou compreender como os órgãos poderiam então conhecer de ações em que, na prática, as suas competências para o fazer estaria reduzida a esse ponto.