Language of document : ECLI:EU:C:2024:297

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

11 de abril de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Artigo 6.o, n.o 1 — Âmbito de aplicação — Contrato celebrado entre um consumidor que tem a nacionalidade de um Estado terceiro e um banco estabelecido num Estado‑Membro — Ação intentada contra este consumidor — Tribunal do último domicílio conhecido do referido consumidor no território de um Estado‑Membro»

No processo C‑183/23,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sąd Rejonowy dla Warszawy — Śródmieścia w Warszawie (Tribunal de Primeira Instância de Varsóvia‑Centro, Varsóvia, Polónia), por Decisão de 27 de fevereiro de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 22 de março de 2023, no processo

Credit Agricole Bank Polska S.A.

contra

AB

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: O. Spineanu‑Matei (relatora), presidente de secção, J.‑C. Bonichot e L. S. Rossi, juízes,

advogado‑geral: N. Emiliou,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo Polaco, por B. Majczyna e S. Żyrek, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Alemão, por J. Möller e M. Hellmann, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por J. Hottiaux e S. Noë, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 6.o, n.o 1, e do artigo 26.o do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Credit Agricole Bank Polska S.A., com sede na Polónia, a AB, um consumidor cuja morada atual é desconhecida, a respeito do pagamento de uma quantia em dinheiro reclamada a este último por esse banco ao abrigo de um contrato de crédito ao consumo.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 6, 15 e 18 do Regulamento n.o 1215/2012 enunciam:

«(6)      Para alcançar o objetivo da livre circulação das decisões em matéria civil e comercial, é necessário e adequado que as regras relativas à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões sejam determinadas por um instrumento legal da União vinculativo e diretamente aplicável.

[…]

(15)      As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar‑se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. […]

[…]

(18)      No respeitante aos contratos de seguro, de consumo e de trabalho, é conveniente proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral.»

4        O artigo 4.o, n.o 1, deste regulamento dispõe:

«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado‑Membro.»

5        Conforme o artigo 5.o, n.o 1, do referido regulamento:

«As pessoas domiciliadas num Estado‑Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado‑Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo.»

6        Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, do mesmo regulamento:

«Se o requerido não tiver domicílio num Estado‑Membro, a competência dos tribunais de cada Estado‑Membro é, sem prejuízo do artigo 18.o, n.o 1, do artigo 21.o, n.o 2, e dos artigos 24.o e 25.o, regida pela lei desse Estado‑Membro.»

7        O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 enuncia:

«Em matéria de contrato celebrado por uma pessoa, o consumidor, para finalidade que possa ser considerada estranha à sua atividade comercial ou profissional, a competência é determinada pela presente secção, sem prejuízo do disposto no artigo 6.o e no artigo 7.o, ponto 5, se se tratar de:

a)      Contrato de compra e venda, a prestações, de bens móveis corpóreos;

b)      Contrato de empréstimo reembolsável em prestações, ou outra forma de crédito concedido para financiamento da venda de tais bens; ou

c)      Em todos os outros casos, contrato celebrado com uma pessoa com atividade comercial ou profissional no Estado‑Membro do domicílio do consumidor ou que dirija essa atividade, por quaisquer meios, a esse Estado‑Membro ou a vários Estados incluindo esse Estado‑Membro, desde que o contrato seja abrangido por essa atividade.»

8        O artigo 18.o, n.o 2, deste regulamento prevê:

«1.      O consumidor pode intentar uma ação contra a outra parte no contrato, quer nos tribunais do Estado‑Membro onde estiver domiciliada essa parte, quer no tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio, independentemente do domicílio da outra parte.

2.      A outra parte no contrato só pode intentar uma ação contra o consumidor nos tribunais do Estado‑Membro em cujo território estiver domiciliado o consumidor.»

9        Nos termos do artigo 26.o do referido regulamento:

«1.      Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado‑Membro no qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objetivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 24.o

2.      Nas matérias abrangidas pelas secções 3, 4 e 5, caso o requerido seja o tomador do seguro, o segurado, o beneficiário do contrato de seguro, o lesado, um consumidor ou um trabalhador, o tribunal, antes de se declarar competente ao abrigo do n.o 1, deve assegurar que o requerido seja informado do seu direito de contestar a competência do tribunal e das consequências de comparecer ou não em juízo.»

10      Conforme o artigo 28.o, n.os 1 e 2, do mesmo regulamento:

«1.      Caso o requerido domiciliado num Estado‑Membro seja demandado no tribunal de outro Estado‑Membro e não compareça em juízo, o juiz deve declarar‑se oficiosamente incompetente, salvo se a sua competência resultar do disposto no presente regulamento.

2.      O tribunal suspende a instância enquanto não se verificar que foi dada ao requerido a oportunidade de receber o documento que iniciou a instância, ou documento equivalente, em tempo útil para providenciar pela sua defesa, ou enquanto não se verificar que foram efetuadas todas as diligências necessárias para o efeito.»

11      O artigo 62.o do Regulamento n.o 1215/2012 dispõe:

«1.      Para determinar se uma parte tem domicílio no Estado‑Membro a cujos tribunais é submetida a questão, o juiz aplica a sua lei interna.

2.      Caso a parte não tenha domicílio no Estado‑Membro a cujos tribunais foi submetida a questão, o juiz, para determinar se a parte tem domicílio noutro Estado‑Membro, aplica a lei desse Estado‑Membro.»

 Direito polaco

12      Nos termos do artigo 144.o, § 1, da ustawa — Kodeks postępowania cywilnego (Lei que aprova o Código de Processo Civil), de 17 de novembro de 1964 (Dz. U. n.o 43, posição 296), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Código de Processo Civil»):

«O presidente do tribunal designa um representante judicial ad litem se o requerente demonstrar que o local de residência da parte não é conhecido. […]»

13      Nos termos do artigo 69.o, § 3, do Código de Processo Civil, que é aplicável, mutatis mutandis, ao representante judicial ad litem designado nos termos do artigo 144.o deste código:

«O representante judicial ad litem designado nos termos do § 1 fica habilitado a praticar todos os atos relacionados com o processo em causa.»

14      O artigo 1391 do Código de Processo Civil prevê:

«§ 1. Se, apesar de uma nova notificação, em conformidade com o artigo 139.o, § 1, segundo período, o requerido não tiver retirado a petição ou qualquer outro ato processual que demonstre a necessidade de defender os seus direitos, e se nenhum ato lhe tiver sido previamente citado ou notificado segundo as modalidades previstas nos artigos anteriores, e se o artigo 139.o, §§ 2 a 31, ou qualquer outra disposição especial que preveja o efeito de uma notificação não for aplicável, o presidente informará desse facto o requerente enviando‑lhe uma cópia do ato destinado ao requerido e intimando‑o a proceder à notificação desse ato ao requerido por intermédio de um oficial de justiça.

§ 2.      O requerente deve, no prazo de dois meses a contar da data em que lhe foi notificada a obrigação referida no § 1, juntar aos autos uma confirmação da notificação do ato ao requerido por um oficial de justiça, devolver o ato e indicar o endereço atual do requerido ou provar que este reside na morada indicada na petição. Uma vez expirado o prazo sem qualquer efeito, aplica‑se o artigo 177.o, § 1, ponto 6.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

15      Por ação intentada em 22 de dezembro de 2021, no Sąd Rejonowy dla Warszawy — Śródmieścia w Warszawie (Tribunal de Primeira Instância de Varsóvia‑Centro, Polónia), que é o órgão jurisdicional de reenvio, o Credit Agricole Bank Polska pretende obter a condenação de AB, nacional de um Estado terceiro, que tem a qualidade de consumidor, a pagar‑lhe uma quantia em dinheiro no montante de 10 591,64 zlótis polacos (PLN) (aproximadamente 2 250 euros), acrescido dos juros aplicáveis, bem como as custas judiciais.

16      Esta ação baseia‑se num contrato de crédito ao consumo celebrado em 16 de julho de 2020 entre o demandante e o demandado no processo principal para a compra, por este último, de um telemóvel. A morada deste demandado, indicada na petição inicial, correspondia à referida nesse contrato.

17      Em 30 de março de 2022, o auxiliar de justiça junto do órgão jurisdicional de reenvio (a seguir «auxiliar de justiça») emitiu uma injunção de pagamento contra AB, na qual ordenou a este último que pagasse ao demandante no processo principal o montante de 10 591,64 PLN, acrescido dos juros de mora contratuais, e custas judiciais, acrescidas de juros de mora legais, calculados a partir da data em que essa injunção de pagamento se torne definitiva até à data do pagamento reclamado.

18      Uma cópia desta petição e da referida injunção de pagamento, bem como outras informações destinadas ao demandado no processo principal, foram enviadas por correio para a morada deste último, indicado na referida petição. Em 5 de maio de 2022, essa carta foi devolvida por não ter sido levantada pelo destinatário.

19      O auxiliar de justiça encarregou o mandatário judicial do demandante no processo principal de notificar ao demandado no processo principal, por intermédio de um oficial de justiça, em conformidade com o direito polaco, uma cópia da petição e da injunção de pagamento, sob pena de suspensão da instância. Por carta de 15 de setembro de 2022, este mandatário judicial informou o órgão jurisdicional de reenvio de que a notificação em causa não tinha sido efetuada, uma vez que esse demandado não era conhecido na morada indicada.

20      Por Despacho de 4 de outubro de 2022, o auxiliar de justiça designou um representante judicial ad litem do referido demandado.

21      Em 26 de outubro de 2022, este representante judicial ad litem deduziu oposição à injunção de pagamento emitida em 30 de março anterior, com o fundamento de que o demandante no processo principal não tinha demonstrado que era credor no montante reclamado nas suas pretensões. O referido representante judicial ad litem indicou, também, que não estava em condições de determinar o local de residência do demandado no processo principal, mas não suscitou nenhuma exceção relativa à competência internacional do órgão jurisdicional de reenvio para conhecer do processo principal, em aplicação dos artigos 17.o e 18.o do Regulamento n.o 1215/2012.

22      As diligências efetuadas por esse tribunal, bem como pelo mandatário judicial do demandante no processo principal e pelo representante judicial ad litem do demandado no processo principal não permitiram a identificação de residência ou do domicílio deste último. Apenas permitiram constatar que esse demandado tinha chegado à Polónia em 29 de setembro de 2017, que tinha deixado a morada em que estava registado nesse Estado‑Membro durante o ano de 2018 e que, à data das verificações assim efetuadas, não estava privado de liberdade no território do referido Estado‑Membro.

23      Segundo o referido tribunal, não está excluído que o demandado no processo principal tenha deixado o território polaco sem que esta circunstância possa ser demonstrada com certeza, tendo em conta a inexistência de controlos em determinadas fronteiras terrestres da República da Polónia.

24      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, antes de mais, sobre se, tendo em conta o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, é obrigado a determinar a sua competência em conformidade com as regras do seu direito interno ou em conformidade com as regras de competência uniformes estabelecidas neste regulamento.

25      Segundo esse tribunal, decorre da jurisprudência resultante dos Acórdãos de 17 de novembro de 2011, Hypoteční banka (C‑327/10, EU:C:2011:745), e de 15 de março de 2012, G (C‑292/10, EU:C:2012:142), que a aplicação das regras do direito nacional em vez das regras de competência uniformes só é possível se o tribunal chamado a decidir dispuser de indícios de prova que lhe permitam concluir que o requerido, cidadão da União não domiciliado no Estado‑Membro a que pertence este último tribunal, está, efetivamente, domiciliado fora do território da União Europeia.

26      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se esta jurisprudência também se deve aplicar numa situação como a do processo principal em que o demandado em causa é uma pessoa que não tem a nacionalidade de nenhum Estado‑Membro, mas que está, provavelmente, domiciliada no território de um Estado‑Membro. O órgão jurisdicional de reenvio observa que o respeito do princípio da proteção jurisdicional efetiva consagrado no direito da União, nomeadamente, quando se trata de consumidores, pode militar a favor de uma resposta afirmativa a esta questão.

27      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em seguida, sobre se, tendo em conta o artigo 26.o do Regulamento n.o 1215/2012, é possível considerar que o demandado no processo principal compareceu e, por conseguinte, aceitou a competência do tribunal chamado a decidir, quando o processo decorre na presença do representante judicial ad litem desse demandado.

28      O órgão jurisdicional de reenvio especifica que a figura do curator absentis visa garantir o direito de um requerente que, por razões alheias à sua vontade, não está em condições de determinar o domicílio do requerido em causa poder recorrer a um tribunal. O órgão jurisdicional de reenvio alega que, como decorre da jurisprudência resultante dos Acórdãos de 2 de abril de 2009, Gambazzi (C‑394/07, EU:C:2009:219), e de 17 de novembro de 2011, Hypoteční banka (C‑327/10, EU:C:2011:745), embora a possibilidade de prosseguir o processo contra a vontade do requerido mediante, como acontece no processo principal, a notificação da ação a um representante judicial ad litem nomeado pelo órgão jurisdicional chamado a decidir restrinja os direitos de defesa desse requerido, tal restrição é justificada à luz do direito do requerente a uma proteção jurisdicional efetiva.

29      Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à possibilidade de o representante judicial ad litem de um consumidor ausente, cuja residência não é conhecida, aceitar a competência de um tribunal, que, na realidade, não é competente à luz do Regulamento n.o 1215/2012, ao comparecer em juízo perante este.

30      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o processo principal se distingue do que deu origem ao Acórdão de 10 de outubro de 1996, Hendrikman e Feyen (C‑78/95, EU:C:1996:380), no qual o Tribunal de Justiça declarou que a comparência de um representante irregularmente designado para um requerido não pode ser considerada como comparência desse requerido. Com efeito, no caso vertente, o representante judicial ad litem do demandado no processo principal foi nomeado em conformidade com o direito polaco, estando este representante judicial ad litem habilitado a praticar todos os atos relacionados com o processo principal em nome deste, cuja residência permaneceu desconhecida durante o processo.

31      Segundo este órgão jurisdicional, decorre do artigo 26.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012 que, para que se presuma que o consumidor aceitou a competência de um órgão jurisdicional que não decorre das disposições deste regulamento, nomeadamente, do artigo 18.o, n.o 2, deste, é necessário que este consumidor seja informado do seu direito de contestar a competência deste último tribunal e das consequências de comparecer ou não perante este. Por conseguinte, considerar que esta informação pode ser substituída pela informação ao representante do referido consumidor violaria o objetivo essencial prosseguido pelo artigo 26.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012de proteger o próprio consumidor.

32      É nestas condições que o Sąd Rejonowy dla Warszawy — Śródmieścia w Warszawie (Tribunal de Primeira Instância de Varsóvia‑Centro) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      Deve o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento [n.o 1215/2012], ser interpretado no sentido de que as disposições do referido regulamento se aplicam à determinação da competência judiciária [num litígio que opõe] um consumidor com domicílio desconhecido que não é nacional de nenhum Estado‑Membro, em relação ao qual se sabe, por um lado, que teve o seu último domicílio conhecido num Estado‑Membro e, por outro, que existem dados credíveis que permitem presumir que já não está domiciliado no território desse Estado‑Membro, embora não existam dados credíveis que permitam presumir que deixou o território da União e regressou ao Estado de que é nacional?

2.      Deve o artigo 26.o, n.os 1 e 2, do Regulamento [n.o 1215/2012], ser interpretado no sentido de que a comparência de um representante [judicial ad litem] designado, ao abrigo do direito nacional de um Estado‑Membro, para representar um consumidor com domicílio desconhecido substitui a comparência desse consumidor e permite reconhecer a competência de um órgão jurisdicional desse Estado‑Membro, ainda que existam dados credíveis que permitem concluir que o consumidor já não está domiciliado no território desse Estado‑Membro?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Observações preliminares

33      Importa lembrar que, em primeiro lugar, na medida em que o Regulamento n.o 1215/2012 revogou e substituiu o Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), o qual, por sua vez, substituiu a Convenção de 27 de setembro de 1968 Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 3 F6 p. 166), conforme alterada pelas sucessivas convenções relativas à adesão dos novos Estados‑Membros a essa Convenção, a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça às disposições destes instrumentos jurídicos vale também para a interpretação do Regulamento n.o 1215/2012 quando essas disposições possam ser qualificadas de «equivalentes» (Acórdão de 9 de julho de 2020, Verein für Konsumenteninformation, C‑343/19, EU:C:2020:534, n.o 22 e jurisprudência referida).

34      Em segundo lugar, há que observar que o órgão jurisdicional de reenvio se refere, tanto na fundamentação do pedido de decisão prejudicial como nas próprias questões submetidas, alternativamente, ao local de residência e ao local de domicílio do demandado no processo principal.

35      Ora, há que observar que o Regulamento n.o 1215/2012 faz referência apenas ao conceito de «domicílio» do requerido, que constitui o critério geral de conexão que permite estabelecer a competência internacional de um tribunal em conformidade com o artigo 4.o, n.o 1, deste regulamento.

36      A este respeito, como resulta expressamente do relatório de P. Jenard sobre a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (JO 1979, C 59, p. 1), cujos comentários sobre a determinação do domicílio também são válidos para a interpretação do Regulamento n.o 1215/2012, a opção do legislador da União de aplicar o critério do domicílio do requerido, e não o de residência habitual deste ou estes dois critérios simultaneamente, foi motivada pela necessidade de evitar a multiplicação dos foros competentes.

37      Tal como a Convenção de 27  de setembro de 1968 relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, conforme alterada, e o Regulamento n.o 44/2001, o Regulamento n.o 1215/2012 não define o conceito de «domicílio». Assim, o artigo 62.o, n.o 1, deste último regulamento remete para a lei do Estado‑Membro cujos tribunais foram chamados a decidir para determinar se uma parte tem domicílio no território desse Estado‑Membro. Nos termos do artigo 62.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012, «[c]aso a parte não tenha domicílio no Estado‑Membro a cujos tribunais foi submetida a questão, o juiz, para determinar se a parte tem domicílio noutro Estado‑Membro, aplica a lei desse Estado‑Membro».

38      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que observar que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar a sua competência para conhecer do processo principal tendo em conta o conceito de «domicílio», conforme estabelecido pelo direito polaco.

 Quanto à primeira questão

39      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, quando o último domicílio conhecido de um requerido, nacional de um Estado terceiro e que tem a qualidade de consumidor, se situa no território do Estado‑Membro do tribunal chamado a decidir e este não consegue identificar o domicílio atual deste requerido nem dispõe de indícios de prova que lhe permitam concluir que este está efetivamente domiciliado no território de outro Estado‑Membro ou fora do território da União, a competência para conhecer desse litígio é determinada pela lei do Estado‑Membro a que pertence esse tribunal.

40      Importa recordar que o Regulamento n.o 1215/2012 visa unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial, por meio de regras de competência que apresentem um elevado grau de certeza jurídica. Este regulamento prossegue, assim, um objetivo de segurança jurídica que consiste em reforçar a proteção jurídica das pessoas estabelecidas na União, permitindo simultaneamente ao requerente identificar facilmente o órgão jurisdicional a que se pode dirigir e ao requerido prever razoavelmente aquele em que pode ser demandado (Acórdão de 4 de outubro de 2018, Feniks, C‑337/17, EU:C:2018:805, n.o 34 e jurisprudência referida).

41      Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, se o requerido não tiver domicílio num Estado‑Membro, a competência dos tribunais de cada Estado‑Membro é, sem prejuízo do artigo 18.o, n.o 1, do artigo 21.o, n.o 2, e dos artigos 24.o e 25.o, regida pela lei desse Estado‑Membro.

42      Na medida em que o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 permite aplicar, em vez das regras de competência uniformes, estabelecidas neste regulamento, as regras do direito de cada Estado‑Membro, a premissa em que assenta a aplicação desta disposição, a saber, a inexistência do domicílio do requerido no território de um Estado‑Membro, deve ser interpretada de forma estrita.

43      Esta interpretação estrita é ainda mais justificada quando o requerido tem a qualidade de consumidor e beneficia, assim, em conformidade com o artigo 18.o do Regulamento n.o 1215/2012, de uma proteção reforçada pela instituição de uma regra de competência especial a favor dos tribunais do Estado‑Membro onde se situa o seu domicílio. Com efeito, não se pode excluir que este consumidor possa correr o risco de perder esta proteção em caso de aplicação das regras de competência do direito nacional.

44      É por esta razão que o Tribunal de Justiça declarou que se o domicílio de um consumidor demandado, nacional de um Estado‑Membro, for desconhecido o artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001, cujo texto está redigido em termos, em substância, equivalentes aos do artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, só é aplicável se o juiz nacional dispuser de indícios de prova que lhe permitam concluir que esse demandado está efetivamente domiciliado fora do território da União (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de novembro de 2011, Hypoteční banka, C‑327/10, EU:C:2011:745, n.o 42, e de 15 de março de 2012, G, C‑292/10, EU:C:2012:142, n.o 42).

45      Em contrapartida, o Tribunal de Justiça considerou que, quando o juiz nacional não dispõe de indícios de prova que lhe permitam concluir que o consumidor requerido está, efetivamente, domiciliado fora do território da União e não consegue identificar o local do domicílio desse consumidor, a regra de competência especial prevista no artigo 16.o, n.o 2, do Regulamento n.o 44/2001, atual artigo 18.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012, por força da qual a ação intentada contra o consumidor em causa pela outra parte no contrato deve ser intentada nos tribunais do Estado‑Membro em cujo território estiver domiciliado esse consumidor, abrange também o último domicílio conhecido do referido consumidor (v., neste sentido, Acórdão de 17 de novembro de 2011, Hypoteční banka, C‑327/10, EU:C:2011:745, n.o 42).

46      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se a jurisprudência referida nos n.os 44 e 45 do presente acórdão também é aplicável numa situação como a que está em causa no processo principal, em que é intentada uma ação contra um consumidor que não é nacional de um Estado‑Membro, mas nacional de um Estado terceiro e cujo último domicílio conhecido se encontra no território do Estado‑Membro do tribunal chamado a decidir, sem que se possa demonstrar com certeza que este consumidor deixou esse território tendo por destino outro Estado‑Membro ou que deixou o território da União.

47      A este respeito convém observar que, como recordado no n.o 35 do presente acórdão, o Regulamento n.o 1215/2012 se baseia no critério do domicílio do requerido e não na sua nacionalidade. Com efeito, o artigo 4.o, n.o 1, deste regulamento dispõe que, independentemente da sua nacionalidade, as pessoas domiciliadas no território de um Estado‑Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado.

48      Por conseguinte, a regra de competência baseada no último domicílio conhecido do consumidor requerido no território de um Estado‑Membro, referida no n.o 45 do presente acórdão, aplica‑se independentemente da nacionalidade deste consumidor.

49      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, quando o último domicílio conhecido de um requerido, nacional de um Estado terceiro e que tem a qualidade de consumidor, se situa no território do Estado‑Membro do tribunal chamado a decidir e este não consegue identificar o domicílio atual deste requerido nem dispõe de indícios de prova que lhe permitam concluir que este está efetivamente domiciliado no território de outro Estado‑Membro ou fora do território da União Europeia, a competência para conhecer desse litígio não é determinada pela lei do Estado‑Membro a que pertence esse tribunal, mas sim pelo artigo 18.o, n.o 2 deste regulamento, que atribui competência para conhecer desse litígio a um tribunal em cuja área de jurisdição se encontra o último domicílio conhecido do referido requerido.

 Quanto à segunda questão

50      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 26.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que a comparência em tribunal de um representante judicial ad litem, nomeado por um juiz nacional para representar um consumidor requerido que não está presente e cujo domicílio atual não é conhecido, equivale à comparência desse consumidor nesse tribunal e permite assim presumir a competência internacional do referido tribunal.

51      A título preliminar, há que recordar que o artigo 26.o do Regulamento n.o 1215/2012 figura na secção 7 do seu capítulo II, intitulada «Extensão de competência».

52      O artigo 26.o, n.o 1, deste regulamento prevê uma regra de competência baseada na comparência do requerido, aplicável a todos os litígios em que a competência do tribunal chamado a decidir não resulte de outras disposições do referido regulamento, com exceção dos litígios abrangidos por uma regra de competência exclusiva por força do artigo 24.o do mesmo regulamento, em relação aos quais a comparência do requerido não implica uma extensão de competência.

53      O artigo 26.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012 impõe, em matéria de contratos de seguro, de contratos de consumo e de contratos individuais de trabalho, ao tribunal, que se considere competente por força do n.o 1 deste artigo, uma obrigação de informação à parte mais fraca antes de se declarar competente. Assim, quando um consumidor requerido comparece num tribunal que não o do seu domicílio, competente por força do artigo 18.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012, o juiz chamado a decidir deve assegurar‑se de que esse consumidor é informado do seu direito de contestar a competência do tribunal e das consequências da sua comparência em juízo.

54      Resulta do que precede que a questão da extensão da competência por efeito da comparência do consumidor requerido ou, se for caso disso, da comparência do seu representante judicial ad litem apenas se coloca na situação em que o tribunal chamado a decidir não faz derivar a sua competência para conhecer do litígio em causa de outras disposições diferentes do artigo 26.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012.

55      Ora, no caso vertente, como resulta da resposta à primeira questão, na impossibilidade de conseguir identificar o local onde está domiciliado o consumidor em causa e na falta de indícios de prova de que esse consumidor deixou, efetivamente, o território da União, o órgão jurisdicional de reenvio faz derivar a sua competência do artigo 18.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1215/2012, enquanto tribunal do último domicílio conhecido do referido consumidor.

56      Por conseguinte, tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não é necessário responder à segunda questão.

 Quanto às despesas

57      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

O artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

quando o último domicílio conhecido de um requerido, nacional de um Estado terceiro e que tem a qualidade de consumidor, se situa no território do EstadoMembro do tribunal chamado a decidir e este não consegue identificar o domicílio atual deste requerido nem dispõe de indícios de prova que lhe permitam concluir que este está efetivamente domiciliado no território de outro EstadoMembro ou fora do território da União Europeia, a competência para conhecer desse litígio não é determinada pela lei do EstadoMembro a que pertence esse tribunal, mas sim pelo artigo 18.o, n.o 2 deste regulamento, que atribui competência para conhecer desse litígio a um tribunal em cuja área de jurisdição se encontra o último domicílio conhecido do referido requerido.

Assinaturas


*      Língua do processo: polaco.