Language of document : ECLI:EU:C:2023:962

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

JEAN RICHARD DE LA TOUR

apresentadas em 7 de dezembro de 2023 (1)

Processo C706/22

Konzernbetriebsrat der O SE & Co. KG

sendo interveniente

Vorstand der O Holding SE

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Sociedade europeia — Regulamento (CE) n.o 2157/2001 — Artigo 12.o, n.o 2 — Envolvimento dos trabalhadores — Sujeição do registo da sociedade europeia à realização prévia do procedimento de negociação sobre o envolvimento dos trabalhadores referido na Diretiva 2001/86/CE — Sociedade europeia constituída e registada sem trabalhadores que se tornou sociedade‑mãe das filiais que empregam trabalhadores — Inexistência de obrigação de abrir a posteriori o procedimento de negociação — Proibição de utilização abusiva de uma sociedade europeia com o objetivo de privar os trabalhadores de direitos em matéria de envolvimento»






I.      Introdução

1.        O pedido de decisão prejudicial diz respeito à interpretação do artigo 12.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 2157/2001 do Conselho, de 8 de outubro de 2001, relativo ao estatuto da sociedade europeia (SE) (2), lido em conjugação com os artigos 3.o a 7.o da Diretiva 2001/86/CE do Conselho, de 8 de outubro de 2001, que completa o estatuto da Sociedade Europeia no que respeita ao envolvimento dos trabalhadores (3).

2.        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o Konzernbetriebsrat der O SE & Co. KG (conselho de empresa da sociedade O SE & Co. KG, a seguir «conselho de empresa do grupo O KG) à direção da O Holding SE (conselho de administração da O Holding SE), relativamente a um pedido de criação de um grupo especial de negociação (a seguir, «GEN»), para efeitos de realização a posteriori do procedimento de negociação sobre o envolvimento dos trabalhadores referido nos artigos 3.o a 7.o da Diretiva 2001/86.

3.        A Diretiva 2001/86 é fruto de mais de 30 anos de negociações, uma vez que o primeiro projeto de regulamentação relativo à criação de uma sociedade europeia (a seguir «SE»), por meio de regulamento, foi proposto pela Comissão Europeia em 1970 (4). Durante muito tempo, as negociações fracassaram em relação a dois aspetos: o sistema dualista ou monista da sociedade e o envolvimento dos trabalhadores (5), sendo este envolvimento definido como a informação, a consulta, a participação e qualquer mecanismo através do qual os representantes dos trabalhadores possam influir nas decisões a tomar no âmbito da sociedade (6).

4.        O projeto de regulamentação relativo à criação de uma SE foi dividido em duas propostas da Comissão, apresentadas em 25 de agosto de 1989: a primeira, do regulamento relativo ao estatuto da SE (7) e, a segunda, da diretiva que completa o estatuto da SE no que se refere à posição dos trabalhadores (8). A proposta de regulamento previa a possibilidade de constituição de uma SE holding para determinadas sociedades por meio de ações reguladas pelo direito de pelo menos dois Estados‑Membros ou que tenham, há pelo menos dois anos, uma filial regulada pelo direito de outro Estado‑Membro (9).

5.        Mais tarde, no decurso das negociações, o princípio «do antes e depois» (10), apresentado como a consideração, no quadro da nova SE, dos direitos de envolvimento existentes nas sociedades que participam na constituição da SE, permitiu fazer emergir as bases de um compromisso em 1998 (11). Esta proposta central levou ao compromisso aceite por unanimidade na sequência da mudança de base jurídica em relação à Diretiva 2001/86.

6.        Ora, verificou‑se muito rapidamente que a maioria das SE criadas em determinados Estados‑Membros eram SE sem trabalhadores e que podiam ter sido registadas sem realização prévia das negociações com o GEN previstas no artigo 12.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2157/2001.

7.        Contudo, uma vez que um número significativo de SE sem trabalhadores foram registadas sem negociações prévias quanto ao envolvimento dos trabalhadores (12), coloca‑se a questão de saber se se deve permitir ou impor tais negociações a posteriori e definir o prazo para o início destas negociações após o registo da SE.

8.        Nas presentes conclusões, irei propor que o Tribunal de Justiça declare que a Diretiva 2001/86 não impõe a abertura de negociações a posteriori, mas que a permite em caso de abuso.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

1.      Regulamento n.o 2157/2001

9.        O considerandos 1 e 21 do Regulamento n.o 2157/2001 enunciam o seguinte:

«(1)      A realização do mercado interno e a consequente melhoria da situação económica e social no conjunto da [União Europeia], implicam, além da eliminação dos entraves às trocas comerciais, uma adaptação das estruturas de produção à escala da [União]. Para esse efeito, é indispensável que as empresas cuja atividade não se limite à satisfação de necessidades puramente locais possam conceber e promover a reorganização das suas atividades a nível [da União].

[…]

(21)      A Diretiva [2001/86] visa garantir aos trabalhadores o direito de envolvimento nas questões e decisões que afetam a vida da SE. As outras questões de direito social e de direito do trabalho, nomeadamente o direito à informação e à consulta dos trabalhadores, tal como previsto nos Estados‑Membros, regulam‑se pelas disposições nacionais aplicáveis, nas mesmas condições, às sociedades anónimas.»

10.      O artigo 1.o, n.os 1 e 4, deste regulamento, dispõe:

«1.      Podem ser constituídas, no território da [União], sociedades sob a forma de SE, nas condições e de acordo com as regras previstas no presente regulamento.

[…]

4.      O envolvimento dos trabalhadores na SE é regulado pela Diretiva [2001/86].»

11.      O artigo 2.o, n.o 2, alínea a), do referido regulamento prevê:

«As sociedades anónimas e as sociedades de responsabilidade limitada referidas no anexo II, constituídas segundo o direito de um Estado‑Membro e que tenham a sua sede e a sua administração central na [União], podem promover a constituição de uma SE “holding”, se pelo menos duas delas:

a)      se regularem pelo direito de Estados‑Membros diferentes […].»

12.      O artigo 8.o, n.os 1, 14 e 16 do Regulamento n.o 2157/2001 tem a seguinte redação:

«1.      A sede da SE pode ser transferida para outro Estado‑Membro nos termos dos n.os 2 a 13. Essa transferência não origina a dissolução da SE nem a criação de uma nova pessoa coletiva.

[…]

14.      A legislação de um Estado‑Membro pode prever, em relação às SE nele registadas, que uma transferência de sede de que resulte uma mudança do direito aplicável não produza efeitos se, no prazo de dois meses […], uma autoridade competente desse Estado‑Membro se lhe opuser. […]

[…]

16.      Para efeitos de litígios surgidos antes da transferência […], considera‑se que uma SE que tenha transferido a sua sede para outro Estado‑Membro tem a sua sede no Estado‑Membro em que estava registada antes da transferência, mesmo quando seja contra ela intentada uma ação depois da transferência.»

13.      Nos termos do artigo 9.o, n.o 1, alínea c), deste regulamento:

«A SE é regulada:

[…]

c)      No que se refere às matérias não abrangidas pelo presente regulamento ou, quando uma matéria o for apenas parcialmente, em relação aos aspetos por ele não abrangidos:

[…]

ii)      Pelas disposições legislativas dos Estados‑Membros que seriam aplicáveis a uma sociedade anónima constituída segundo o direito do Estado‑Membro onde a SE tem a sua sede;

[…]»

14.      O artigo 12.o, n.os 1 e 2, do referido regulamento dispõe:

«1.      A SE está sujeita a inscrição no Estado‑Membro onde tem a sua sede, num Registo designado pela lei desse Estado‑Membro […]

2.      Uma SE só pode ser registada se se tiver chegado a um acordo sobre o regime de envolvimento dos trabalhadores nos termos do artigo 4.o da [Diretiva 2001/86], se tiver sido tomada uma decisão nos termos do n.o 6 do artigo 3.o da mesma diretiva ou se o período de negociações previsto no artigo 5.o da diretiva tiver decorrido sem se ter chegado a um acordo.»

2.      Diretiva 2001/86

15.      Os considerandos 3, 7 e 18 da Diretiva 2001/86 enunciam:

«(3)      Para promover os objetivos sociais da [União], é necessário estabelecer disposições específicas, nomeadamente no domínio do envolvimento dos trabalhadores, a fim de garantir que a constituição de uma SE não conduza à abolição ou à redução das práticas de envolvimento dos trabalhadores existentes nas sociedades participantes na constituição de uma SE. Este objetivo deve ser prosseguido através do estabelecimento de um conjunto de regras neste domínio que completem as disposições do referido [R]egulamento [n.o 2157/2001].

[…]

(7)      Sempre que se verifique a existência de direitos de participação numa ou mais sociedades participantes na constituição de uma SE, estes devem ser mantidos através da sua transferência para a SE, uma vez constituída, exceto se as partes decidirem em contrário.

[…]

(18)      A garantia dos direitos adquiridos dos trabalhadores quanto ao seu envolvimento nas decisões das sociedades é um princípio fundamental e um objetivo declarado da presente diretiva. Os direitos dos trabalhadores anteriores à criação da SE constituem um ponto de partida para a definição dos seus direitos de envolvimento na SE (princípio “do antes e depois”). Esta abordagem é, por conseguinte, aplicável não só à criação de uma SE mas também às mudanças estruturais de uma SE já constituída e às sociedades afetadas pelos processos de alteração estruturais.»

16.      Nos termos do artigo 1.o desta diretiva:

«1.      A presente diretiva regula o envolvimento dos trabalhadores nas atividades das [SE], a que se refere o Regulamento [n.o 2157/2001].

2.      Para o efeito, é instituído em cada SE um regime de envolvimento dos trabalhadores, de acordo com o procedimento de negociação previsto nos artigos 3.o a 6.o ou, nas circunstâncias definidas no artigo 7.o, de acordo com o Anexo.»

17.      O artigo 2.o, alíneas b) e g), da referida diretiva define as sociedades participantes como «as sociedades que participem diretamente na constituição de uma SE» e o GEN como «o grupo constituído nos termos do artigo 3.o para negociar com o órgão competente das sociedades participantes a instituição de um regime de envolvimento dos trabalhadores na SE».

18.      O artigo 3.o da Diretiva 2001/86, sob a epígrafe «Criação de um [GEN]», dispõe, nos seus n.os 1, 2 e 6:

«1.      Ao estabelecerem o projeto de constituição de uma SE, os órgãos de direção ou de administração das sociedades participantes tomam o mais rapidamente possível, após a publicação do projeto de fusão ou de constituição de uma “holding”, ou após aprovação de um projeto de constituição de uma filial ou de transformação numa SE, as medidas necessárias, incluindo a prestação de informações sobre a identidade das sociedades participantes, e das filiais ou dos estabelecimentos interessados e o número dos seus trabalhadores, para iniciar as negociações com os representantes dos trabalhadores daquelas sociedades sobre o regime de envolvimento dos trabalhadores na SE.

2.      Para o efeito, será constituído um [GEN] representativo dos trabalhadores das sociedades participantes e das filiais ou dos estabelecimentos interessados […]

[…]

6.      O [GEN] pode decidir […] não iniciar negociações ou concluir as já iniciadas e invocar as regras aplicáveis em matéria de informação e consulta de trabalhadores nos Estados‑Membros onde estejam empregados trabalhadores da SE. Esta decisão suspende o processo de conclusão do acordo referido no artigo 4.o Sempre que tenha sido tomada uma decisão desse tipo, não é aplicável nenhuma das disposições do anexo.

[…]

O [GEN] é novamente convocado, mediante pedido escrito de pelo menos 10 % dos trabalhadores da SE, suas filiais e estabelecimentos, ou dos seus representantes, decorrido um prazo mínimo de dois anos a contar da referida decisão, exceto se as partes acordarem em reiniciar as negociações antes do termo desse prazo. Se o [GEN] decidir reiniciar as negociações com a direção, e destas não resultar qualquer acordo, não é aplicável nenhuma das disposições do anexo.»

19.      O artigo 7.o desta diretiva, sob a epígrafe «Disposições supletivas», prevê, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      Para assegurar a realização do objetivo referido no artigo 1.o, os Estados‑Membros estabelecem […] disposições supletivas sobre o envolvimento dos trabalhadores, que devem preencher o disposto no anexo.

As disposições supletivas previstas na legislação do Estado‑Membro em que se situará a sede da SE são aplicáveis a partir da data de registo da SE:

a)      Se as partes assim o decidirem; ou

b)      se […] não tiver sido celebrado qualquer acordo e:

–        o órgão competente de cada uma das sociedades participantes decidir aceitar a aplicação das disposições supletivas em relação à SE e, portanto, dar continuidade ao registo da SE; e

–        o [GEN] não tiver tomado a decisão prevista no n.o 6 do artigo 3.o

2.      Além disso, as disposições supletivas estabelecidas pela legislação nacional do Estado‑Membro de registo nos termos da parte 3 do anexo aplicam‑se apenas:

[…]

c)      No caso de uma SE constituída pela criação de uma “holding” ou pela constituição de uma filial:

–        se, antes do registo da SE, uma ou várias formas de participação se aplicavam numa ou em várias das sociedades participantes abrangendo pelo menos 50 % do número total dos trabalhadores do conjunto das sociedades participantes; ou

–        se, antes do registo da SE, uma ou várias formas de participação se aplicavam numa ou em várias das sociedades participantes abrangendo menos de 50 % do número total dos trabalhadores do conjunto das sociedades participantes e se o [GEN] assim o decidir.

Se havia mais de uma forma de participação nas diferentes sociedades participantes, o grupo especial de negociação decide qual dessas formas deve ser instituída na SE. Os Estados‑Membros podem estabelecer regras aplicáveis na falta de decisão na matéria por uma SE registada no seu território. O grupo especial de negociação informa o órgão competente das sociedades participantes das decisões tomadas ao abrigo do presente número.»

20.      Nos termos do artigo 11.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Procedimentos abusivos»:

«Os Estados‑Membros tomam as medidas adequadas, nos termos do direito [da União], para impedir a utilização abusiva de uma SE com o objetivo de privar os trabalhadores de direitos de envolvimento ou de lhes negar esses direitos.»

21.      O artigo 12.o, n.o 2, da mesma diretiva prevê:

«Os Estados‑Membros tomarão as medidas adequadas em caso de incumprimento do disposto na presente diretiva, assegurando, nomeadamente, a existência de processos administrativos ou judiciais que permitam a execução das obrigações resultantes da presente diretiva.»

B.      Direito alemão

22.      A Diretiva 2001/86 foi transposta para o direito alemão pela Gesetz über die Beteiligung der Arbeitnehmer in einer Europäischen Gesellschaft (Lei Relativa ao Envolvimento dos Trabalhadores numa Sociedade Europeia) (13), de 22 de dezembro de 2004.

23.      O artigo 18.o desta lei, intitulado «Retoma das negociações» prevê, no seu n.o 3:

«Se forem previstas alterações estruturais da SE, suscetíveis de reduzir os direitos de envolvimento dos trabalhadores, serão realizadas negociações relativamente aos direitos de envolvimento dos trabalhadores da SE, por iniciativa da direção ou do conselho de empresa da SE. Em alternativa ao [GEN] que deve ser novamente criado, as negociações com a direção da SE podem ser realizadas, por comum acordo, pelo conselho de empresa da SE em conjunto com os representantes dos trabalhadores afetados pela alteração estrutural pretendida, que até então não estavam representados pelo conselho de empresa da SE. Se não for alcançado um acordo durante estas negociações, aplicam‑se os artigos 22.o a 33.o relativos ao conselho de empresa da SE por força da lei e os artigos 34.o a 38.o, relativos à co‑gestão por força da lei.»

24.      O artigo 43.o da referida lei dispõe:

«Uma SE não pode ser objeto de utilização abusiva com o objetivo de privar os trabalhadores de direitos de envolvimento ou de lhes negar esses direitos. Presume‑se a existência de abuso se, sem a execução de um procedimento nos termos do artigo 18.o, n.o 3, tiverem sido realizadas, durante o ano seguinte ao da constituição da SE, alterações estruturais que tenham por efeito privar os trabalhadores de direitos de envolvimento ou negar‑lhes esses direitos.»

III. Factos do litígio no processo principal e questões prejudiciais

25.      Em 28 de março de 2013, a sociedade O Holding SE, constituída, em conformidade com o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2157/2001, pelas sociedades O Ltd e O GmbH, duas sociedades sem trabalhadores, sem filiais com trabalhadores e com sede, respetivamente, no Reino Unido e na Alemanha, foi inscrita no registo para a Inglaterra e para o País de Gales, sem que tenham sido realizadas as negociações sobre o envolvimento dos trabalhadores, previstas nos artigos 3.o a 7.o, da Diretiva 2001/86.

26.      No dia seguinte, em 29 de março de 2013, a O Holding SE tornou‑se acionista única da sociedade O Holding GmbH, sociedade com sede em Hamburgo (Alemanha) e com um conselho de supervisão composto, em um terço, por representantes dos trabalhadores. Uma vez que a O Holding SE deliberou, em 14 de junho de 2013, a transformação desta sociedade numa sociedade por comandita simples, denominada O KG, a alteração da sua forma foi inscrita no registo em 2 de setembro de 2013 e, a partir dessa data, a co‑gestão no âmbito do conselho de supervisão deixou de ser aplicável.

27.      Embora a O KG empregue cerca de 816 trabalhadores e disponha de filiais em diversos Estados‑Membros que empregam aproximadamente 2 200 trabalhadores, as suas sócias (a O Holding SE, sócia comanditária, e a sociedade O Management SE, sócia pessoalmente responsável, registada em Hamburgo, cuja única acionista é a O Holding SE) não empregam nenhum trabalhador.

28.      A O Holding SE transferiu a sua sede social para Hamburgo com efeitos a partir de 4 de outubro de 2017.

29.      O conselho de empresa do grupo O KG, considerando que a direção da O Holding SE devia criar um GEN a posteriori, uma vez que dispunha de filiais, na aceção do artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2001/86, que empregavam trabalhadores em diversos Estados‑Membros, interpôs um processo contencioso em matéria de direito do trabalho. A direção da O Holding SE opôs‑se a este pedido.

30.      Na sequência do indeferimento do pedido do conselho de empresa do grupo O KG pelo Arbeitsgericht Hamburg (Tribunal do Trabalho de Hamburgo, Alemanha), confirmado pelo Landesarbeitsgericht Hamburg (Tribunal Superior do Trabalho de Hamburgo, Alemanha), o Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal, Alemanha), o órgão jurisdicional de reenvio, foi chamado a decidir.

31.      Para resolver o presente litígio, este órgão jurisdicional solicita a interpretação do artigo 12.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2157/2001, lido em conjugação com os artigos 3.o a 7.o, da Diretiva 2001/86. Esse órgão jurisdicional salienta que é certo que estas disposições não preveem expressamente que o procedimento de negociação sobre o envolvimento dos trabalhadores deve, caso não tenha sido previamente, realizar‑se a posteriori. No entanto, considera que este regulamento e esta diretiva partem do princípio, como resulta, nomeadamente, dos considerandos 1 e 2 do referido regulamento, que as sociedades participantes ou as suas filiais exercem uma atividade económica que implica o emprego de trabalhadores, pelo que, a partir da constituição e antes do registo da SE, é possível iniciar tal procedimento de negociação. Por conseguinte, o referido órgão jurisdicional interroga‑se sobre se, em caso de registo de uma SE cujas sociedades participantes ou filiais não empregam nenhum trabalhador, o objetivo prosseguido pelos artigo 3.o a 7.o da referida diretiva poderá exigir a realização a posteriori do procedimento de negociação sobre o envolvimento dos trabalhadores quando a SE passe a ser uma empresa que exerce o controlo sobre filiais que empregam trabalhadores em diversos Estados‑Membros.

32.      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio entende que tal obrigação poderá impor‑se pelo menos à luz do artigo 11.o da Diretiva 2001/86 se, como sucede no processo principal, existir uma ligação temporal estreita entre o registo da SE e a aquisição de filiais, uma vez que esta circunstância pode levar a supor que se trata de uma montagem abusiva com o objetivo de privar os trabalhadores de direitos de envolvimento ou de lhes negar estes direitos.

33.      Se existisse uma obrigação de realizar a posteriori o procedimento de negociação sobre o envolvimento dos trabalhadores, colocar‑se‑iam as questões de saber se a mesma está sujeita a uma limitação temporal e se a sua execução se regula pelo direito do Estado‑Membro no qual a SE tem atualmente a sua sede ou do Estado‑Membro no qual a mesma foi registada pela primeira vez, tendo em conta que, no presente caso, este último Estado se retirou da União após a transferência da sede da SE para a Alemanha.

34.      Nestas circunstâncias, o Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      Deve o artigo 12.o, n.o 2, do Regulamento [n.o 2157/2001], em conjugação com os artigos 3.o a 7.o da Diretiva [2001/86], ser interpretado no sentido de que, no caso da constituição, bem como da inscrição no registo comercial de um Estado‑Membro, de uma SE “holding” por sociedades participantes que não empregam trabalhadores nem dispõem de filiais que o façam (as denominadas “SE sem trabalhadores”), sem um procedimento prévio de negociação sobre o envolvimento dos trabalhadores na SE, deve esse procedimento de negociação ser realizado a posteriori se a SE se tornar uma empresa que exerce o controlo de filiais que empregam trabalhadores em vários Estados‑Membros […]?

2.      Caso o Tribunal de Justiça responda afirmativamente à primeira questão, na situação descrita, a realização a posteriori do procedimento de negociação é possível, e mesmo necessária, sem limitação temporal?

3.      Caso o Tribunal de Justiça responda afirmativamente à segunda questão, opõe‑se o artigo 6.o da Diretiva [2001/86] a que se aplique, à realização a posteriori do procedimento de negociação, o direito do Estado‑Membro no qual a SE passou a ter a sua sede, numa situação em que a “SE sem trabalhadores” foi registada noutro Estado‑Membro sem a realização prévia desse procedimento e se tornou, ainda antes da transferência da sua sede, uma empresa que exerce o controlo de filiais que empregam trabalhadores em vários Estados‑Membros […]?

4.      Caso o Tribunal de Justiça responda afirmativamente à terceira questão, o referido regime também se aplica quando o Estado em que a “SE sem trabalhadores” foi inicialmente registada se tenha retirado da União […] após a transferência da sede e a sua ordem jurídica tenha deixado de conter disposições acerca da realização de um procedimento de negociação sobre o envolvimento dos trabalhadores na SE?»

35.      Foram apresentadas observações escritas pelo Governo Alemão e pela Comissão.

36.      Na audiência que decorreu em 28 de setembro de 2023, o conselho de empresa do grupo O KG, o conselho de administração da O Holding SE, os Governos Alemão e Luxemburguês, bem como a Comissão, apresentaram observações orais e responderam às questões para resposta oral colocadas pelo Tribunal de Justiça.

IV.    Análise

37.      A criação de uma SE é regulada por alguns grandes princípios.

38.      Em primeiro lugar, a mesma só pode resultar de quatro modalidades de constituição: por fusão, pela constituição de uma SE «holding», pela constituição de uma SE filial, pela transformação de uma sociedade anónima em SE (14).

39.      Em segundo lugar, a SE é regulada:

–        pelas disposições do Regulamento n.o 2157/2001;

–        pelo disposto nos seus estatutos, quando este regulamento o autorize expressamente, ou,

–        quanto às matérias não abrangidas (parcial ou totalmente) pelo referido regulamento, pelas disposições de direito nacional adotadas em aplicação de medidas de direito da União que visem especificamente as SE, pelas aplicáveis às sociedades anónimas do Estado‑Membro onde a SE foi registada e pelas disposições dos estatutos da SE, nas mesmas condições que para as sociedades anónimas do Estado‑Membro onde a SE foi registada (15).

40.      Em terceiro lugar, uma SE só pode ser registada se se tiver chegado a um acordo sobre o regime de envolvimento dos trabalhadores nos termos do artigo 4.o da Diretiva 2001/86, se o GEN decidir invocar as regras aplicáveis nos Estados‑Membros onde estejam empregados trabalhadores da SE ou se o período de negociações previsto no artigo 5.o da diretiva tiver decorrido sem se ter chegado a um acordo (16).

41.      No que respeita à participação dos trabalhadores, definida como a influência exercida pelo órgão de representação dos trabalhadores e/ou pelos representantes dos trabalhadores nas atividades de uma sociedade (17), este era um dos pontos cruciais das negociações sobre o projeto de regulamentação relativo à criação da SE que impediam a conclusão das mesmas, conforme foi acima recordado (18). Associado ao princípio do respeito pelo elevado nível de proteção dos direitos de envolvimento existente, o princípio «do antes e depois» foi determinante e permitiu que essas negociações chegassem a bom termo. Este princípio foi aceite tanto pelos defensores da participação, dado que permitia manter um nível elevado de participação dos trabalhadores, como pelos Estados‑Membros que não conheciam este sistema, que nele viram um meio para atrair as sedes sociais para esses Estados (19).

42.      No entanto, o princípio «do antes e depois» só se aplica às sociedades participantes e permite proteger os direitos de envolvimento existentes nestas sociedades (20).

43.      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga, em substância, o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se as negociações relativas às modalidades de envolvimento dos trabalhadores podem ser abertas a posteriori, ou seja, após o registo da SE holding criada por sociedades que não empregavam trabalhadores no momento desse registo.

44.      A título preliminar, importa recordar que, contrariamente ao que indicia a redação desta questão prejudicial, o facto de a SE holding dispor ou não de filiais que empregam trabalhadores não é pertinente para a constituição da obrigação de criar um GEN e de abrir as negociações ab initio relativas ao envolvimento dos trabalhadores. Com efeito, apenas as sociedades que participam diretamente na constituição da SE são referidas pelo artigo 2.o, alínea b), e pelo artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/86 e, em consequência, só os direitos dos trabalhadores em matéria de envolvimento, adquiridos no âmbito destas sociedades, são tidos em conta. Em contrapartida, no momento da criação do GEN (21) e da elaboração do acordo (22), são tidos em conta as filiais e os estabelecimentos afetados (23).

45.      Embora, nos termos do artigo 12.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2157/2001, o registo de uma SE esteja sujeito a negociações no quadro do GEN, na prática, existem hipóteses em que tal registo ocorre sem a criação de um GEN nem negociações sobre as modalidades de envolvimento dos trabalhadores por serem impossíveis.

46.      É o caso da constituição de uma SE na forma de holding quando as sociedades que promovem esta criação não empregam trabalhadores. O mesmo se aplica no caso de constituição de uma filial na forma de SE por sociedades que não empregam trabalhadores (24). Nestas hipóteses, perante a inexistência de trabalhadores nas sociedades participantes, o GEN não pode ser criado segundo as modalidades previstas na Diretiva 2001/86.

47.      A questão da possibilidade de registar uma SE sem cumprir o artigo 12.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2157/2001 foi colocada aos órgãos jurisdicionais alemães. Baseando‑se numa leitura teleológica desta disposição, o Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Düsseldorf, Alemanha) (25) aceitou o registo de uma tal SE, apesar da oposição dos sindicatos (26).

48.      SE registadas sem negociações ab initio sobre o envolvimento dos trabalhadores surgiram em diversos Estados‑Membros (nomeadamente, na Alemanha e na República Checa onde existem em grande número (27)).

49.      Esta aceitação, contrária à letra do artigo 12.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2157/2001, foi justificada, segundo o Governo Alemão, com uma interpretação teleológica desta disposição com o objetivo de permitir o exercício das liberdades económicas no mercado único que não implique necessariamente a contratação dos seus próprios trabalhadores. Além disso, foi reconhecido não apenas que, perante a inexistência de trabalhadores nas sociedades participantes, um GEN não podia ser criado, mas também que não havia direitos existentes dos trabalhadores a proteger e que, em consequência, o princípio «do antes e depois» não se podia aplicar. Impor tais negociações equivaleria a proibir a criação de SE nestas situações. A Comissão, nas suas observações, explicou que este registo sem negociações prévias podia basear‑se nas normas do Regulamento n.o 2157/2001 que previam que, para as matérias não abrangidas por este regulamento, se aplicava o direito nacional aplicável às sociedades anónimas no Estado‑Membro e que, consequentemente, se esse direito nacional permitisse a constituição de sociedades anónimas sem trabalhadores, tal deveria ser permitido para a SE (28).

50.      Assim, não se contesta que o registo de uma SE sem trabalhadores é possível na hipótese apresentada ao Tribunal de Justiça (29).

51.      Por conseguinte, coloca‑se a questão da possibilidade de abertura de negociações sobre o envolvimento dos trabalhadores a posteriori.

52.      A Diretiva 2001/86 prevê que estas negociações após o registo só podem ocorrer, nos termos do seu artigo 3.o, n.o 6, quarto parágrafo, mediante pedido escrito de pelo menos 10 % dos trabalhadores da SE, das suas filiais e estabelecimentos, ou dos seus representantes, decorrido um prazo mínimo de dois anos a contar da data da decisão do GEN de não iniciar negociações ou de concluir as negociações prévias, salvo melhor acordo entre as partes sobre a data de renegociação. Assim, parece evidente que as negociações a posteriori só podem ocorrer se um GEN tiver sido constituído ab initio e se se tratar de uma renegociação propriamente dita. O anexo desta diretiva também prevê negociações quatro anos após a instituição do órgão de representação em caso de aplicação das disposições supletivas (30).

53.      O considerando 18 da Diretiva 2001/86 enuncia, por um lado, que os direitos dos trabalhadores anteriores à criação da SE constituem um ponto de partida para a definição dos seus direitos de envolvimento na SE (princípio “do antes e depois”) e, por outro lado, que esta abordagem é, por conseguinte, aplicável não só à criação de uma SE mas também às alterações estruturais de uma SE já constituída e às sociedades afetadas pelos processos de alteração estruturais. Deste modo, este considerando não é suficiente para fundar um direito às negociações sobre o envolvimento dos trabalhadores a posteriori quando o GEN não tenha sido constituído ab initio.

54.      Com efeito, contrariamente ao que afirmam os Governos Alemão e Luxemburguês, esta impossibilidade de abrir negociações a posteriori não resulta de um esquecimento aquando da elaboração da Diretiva 2001/86, mas de uma verdadeira escolha do legislador da União resultante do compromisso em relação ao princípio «do antes e depois».

55.      Podem ser destacados vários elementos neste sentido. Em primeiro lugar, o relatório Davignon, que serviu de base às últimas negociações do Regulamento n.o 2157/2001 e da Diretiva 2001/86, preconizou claramente negociações sobre o envolvimento dos trabalhadores antes do registo, para proporcionar uma maior previsibilidade para os acionistas e os trabalhadores, bem como estabilidade na vida da SE (31). Em segundo lugar, o Parlamento Europeu propôs um considerando 7‑A que previsse expressamente as negociações a posteriori, o qual foi descartado (32) em benefício da redação muito mais vaga do considerando 18 da Diretiva 2001/86.

56.      Esta escolha do legislador da União surgiu também aquando da elaboração do estatuto da sociedade cooperativa europeia e na Diretiva 2003/72/CE (33), no que respeita ao envolvimento dos trabalhadores em tal sociedade, uma vez que se preveem expressamente negociações sobre o envolvimento dos trabalhadores a posteriori se o número de trabalhadores for superior a 50 em pelo menos dois Estados‑Membros (34). Assim, nesta hipótese, a negociação entre Estados‑Membros permitiu criar uma obrigação de negociações a posteriori, certamente ligadas à ultrapassagem de um limiar, mas o mesmo não foi previsto na regulamentação aplicável à SE.

57.      Além disso, a dificuldade relacionada com as SE sem trabalhadores tem sido sublinhada desde 2003 pelo grupo de peritos SE (35), mas também pelo grupo de peritos independentes mandatados pela Comissão com vista à reapreciação da Diretiva 2001/86, previsto no artigo 15.o desta diretiva (36).

58.      Assim, é com perfeito conhecimento desta dificuldade que a Comissão elaborou e redigiu os seus relatório e comunicação relativos à aplicação do Regulamento n.o 2157/2001 e à reapreciação da Diretiva 2001/86. No primeiro, depois de ter invocado a questão da ativação das SE sem existência económica (37), a Comissão refere que «[q]uaisquer considerações relativas a alterações ao estatuto das SE que visem solucionar os problemas práticos identificados por diversas partes interessadas deverão ter em consideração o facto de o estatuto das SE resultar de um compromisso delicado assumido após longas negociações. A Comissão está atualmente a considerar potenciais alterações ao estatuto das SE com vista a apresentar propostas em 2012, se adequado» (38). Na segunda, depois de ter reconhecido também a inexistência de disposições na Diretiva 2001/86 relativas à hipótese das SE criadas sem trabalhadores (39), a Comissão reconheceu que tinha identificado dificuldades, mas que, uma vez que a adoção do Regulamento n.o 2157/2001 e da Diretiva 2001/86 foi o resultado de um compromisso delicado que implicou mais de 30 anos de negociações, a mesma consideraria se é ou não adequado rever ambos ao mesmo tempo, por ocasião da reapreciação deste regulamento em 2009 (40).

59.      Por outro lado, a questão foi aprofundada, com um recuo mais significativo em relação à data de transposição da Diretiva 2001/86, numa obra consagrada aos dez anos de aplicação da SE (41).

60.      Numa resolução de 2021, o Parlamento instou a Comissão a introduzir as melhorias necessárias nos quadros que regulam as SE e as sociedades cooperativas europeias, e, com base numa avaliação feita atempadamente, no pacote relativo ao direito das sociedades, bem como a alterá‑los para integrar normas mínimas da UE que regulem a participação e a representação dos trabalhadores nos conselhos de supervisão (42).

61.      Apesar de reconhecer, desde 2003 e até 2021, dificuldades relativas à criação e à existência de uma SE, nomeadamente, no que respeita à constituição de uma SE sem criação de um GEN, a Comissão nunca propôs alterações ao Regulamento n.o 2157/2001 ou à Diretiva 2001/86 para as resolver. A Comissão não só nunca propôs alterações neste sentido, mas as suas outras propostas de regulamentações em matéria de direito das sociedades com impacto em sede de participação ou de envolvimento dos trabalhadores no âmbito da estrutura e do papel dos sindicatos na elaboração do projeto não foram concretizadas (projeto de sociedade privada europeia de responsabilidade limitada apresentado em 2008 e retirado em 2014, projeto de sociedade unipessoal de responsabilidade limitada apresentado em 2014 e retirado em 2018 (43)).

62.      Nesta fase da reflexão, parece‑me, deste modo, assente que a inexistência de regra relativa às negociações sobre a implicação dos trabalhadores a posteriori na hipótese de uma SE constituída sem GEN resulta de uma escolha consciente do legislador da União, ainda que esta inexistência possa ser analisada como uma lacuna pelos defensores do sistema do envolvimento, nomeadamente, no que toca à participação, dos trabalhadores.

63.      Neste contexto, o considerando 18 da Diretiva 2001/86 deve, por conseguinte, ser entendido como dizendo respeito às hipóteses de alterações estruturais numa SE constituída com um GEN: tal é tanto mais lógico porquanto a sua redação faz referência a «esta abordagem», ou seja, ao princípio «do antes e depois», enunciado na frase precedente, que implica a existência de direitos a proteger numa fase anterior. Assim, este considerando destina‑se a esclarecer, na realidade, o princípio da prioridade conferida às negociações na matéria, ilustrado pelo facto de o acordo inicial sobre o envolvimento dos trabalhadores dever fixar a data de entrada em vigor do acordo e a sua duração, os casos em que o acordo deva ser renegociado, e o procedimento de renegociação (44).

64.      Foi assim que o entenderam também os peritos nacionais e os consultores em matéria de assuntos sociais do grupo de peritos SE (que participaram nas negociações da Diretiva 2001/86 e foram encarregados de elaborar um relatório destinado a facilitar a sua transposição), porquanto referem que, além das referências desta diretiva que abordam implícita e parcialmente esta questão (45), as regras da referida diretiva foram concebidas para se aplicarem apenas imediatamente antes e no momento da constituição da SE e que, deste modo, pode ser necessário que as partes interessadas apliquem as regras da mesma diretiva, que são concebidas principalmente para proteger os sistemas de participação dos trabalhadores, de uma forma dinâmica e não apenas no momento em que a SE for constituída. Acrescentam que a experiência da aplicação da Diretiva 94/45/CE (46) demonstra que a resolução destas dificuldades se faz, no essencial, pela via convencional. Concluem que, uma vez que a Diretiva 2001/86 não vai mais longe, a problemática das alterações realizadas fora dos casos de abuso parece esgotar‑se numa simples referência pormenorizada a hipóteses de alterações estruturais posteriores nas disposições nacionais de transposição do artigo 4.o, n.o 2, desta diretiva, relativo ao conteúdo do acordo, com o objetivo de alertar as partes para a realidade destas alterações (47).

65.      Assim, o grupo de peritos SE não vislumbra outra margem de manobra dos Estados‑Membros a este respeito.

66.      Em contrapartida, estes peritos indicaram claramente que as negociações sobre o envolvimento dos trabalhadores a posteriori podem ser uma sanção eficaz em caso de utilização abusiva da SE para privar os trabalhadores dos seus direitos de participação e que esta sanção tinha inclusivamente a vantagem de ser uma resposta uniforme possível entre os Estados‑Membros (48). Com efeito, o artigo 11.o da Diretiva 2001/86 enuncia que os Estados‑Membros tomam as medidas adequadas, nos termos do direito da União, para impedir a utilização abusiva de uma SE com o objetivo de privar os trabalhadores de direitos de envolvimento ou de lhes negar esses direitos.

67.      Os referidos peritos ilustraram as suas observações com exemplos de situações suscetíveis de serem abusivas não apenas em caso de constituição de uma SE sem participação, através de filiais sem participação, em que esta SE assume posteriormente o controlo do conjunto das filiais sujeitas ou não ao regime de participação, mas também em caso de constituição de uma SE mediante transformação num Estado‑Membro que não preveja um regime de participação, seguido da transferência da sede para um Estado‑Membro que preveja esse regime, ou ainda em caso de constituição de uma SE antes de atingidos os limiares que determinam a aplicação do regime de participação (49).

68.      O que estes exemplos têm de comum é a constituição de uma SE sem negociações prévias sobre o envolvimento dos trabalhadores no quadro de um GEN, uma vez que estas SE são constituídas a partir de sociedades não sujeitas à participação. Assim, é manifesto que o grupo de peritos SE, por um lado, tinha em mente hipóteses de constituição de SE sem negociações prévias e sem aplicação por defeito das normas supletivas e, por outro, não previa negociações legais a posteriori em caso de alterações estruturais, mas apenas em caso de abuso.

69.      Este grupo de peritos, prosseguindo a sua reflexão, propôs uma redação para a escolha no âmbito do direito nacional de uma disposição anti‑abuso (50), baseada na ideia de que as negociações deviam ocorrer nas hipóteses referidas no n.o 67 das presentes conclusões, depois de se ter demonstrado o abuso nos termos das regras gerais, podendo adotar‑se uma presunção simples de abuso se as alterações ocorrerem num prazo curto (por exemplo, de um ano) após o registo da SE (51). Precisou que a solução ideal seria ter uma disposição que previsse uma renegociação nestas hipóteses com a aplicação das disposições supletivas relativas à participação, constantes do anexo da Diretiva 2001/86 (52), em caso de fracasso. Para o efeito, os artigos 3.o a 7.o desta diretiva deveriam aplicar‑se mutatis mutandis e as referências no momento do registo da SE deveriam ser substituídas por referências no momento em que as negociações fracassassem (53).

70.      Em todo o caso, sob reserva da apreciação do juiz nacional, a simples transferência de sede ou a aplicação de uma disposição de direito nacional que permita suprimir a participação dos trabalhadores numa filial de uma SE, filial esta que continua a ser regulada pelo referido direito nacional, não podem ser por si só constitutivas de abuso, sob pena de pôr em causa a efetividade do Regulamento n.o 2157/2001 e da Diretiva 2001/86.

71.      Por último, o resultado das negociações deste regulamento e desta diretiva pode parecer incompleto, mas, na realidade, a aplicação do princípio «do antes e depois» no momento do registo da SE foi pretendida pelos Estados‑Membros e, em consequência, não me parece possível a extensão dos direitos de envolvimento dos trabalhadores pela jurisprudência, pois tal poria em causa os equilíbrios duramente conquistados por essas negociações. Com efeito, se se tivessem estendido além dos casos de abuso, as negociações sobre o envolvimento dos trabalhadores a posteriori afetariam a estabilidade do funcionamento da sociedade, que é também pretendida pela regulamentação (54), uma vez que as mesmas poderão ocorrer nos casos de transformação em SE antes de ultrapassados os limiares que, no direito nacional, determinam a participação ou quando o perímetro dos trabalhadores for modificado em razão da cessão ou da aquisição de filiais.

72.      À luz de todas as razões acima expostas, proponho que o Tribunal de Justiça responda à primeira questão prejudicial que o artigo 12.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2157/2001, lido em conjugação com os artigos 3.o a 7.o da Diretiva 2001/86, deve ser interpretado no sentido de que, após o registo de uma SE holding constituída por sociedades participantes que não empregam trabalhadores, sem um procedimento prévio de negociação sobre o envolvimento dos trabalhadores, o mesmo não impõe a abertura de tais negociações pelo simples motivo de esta SE holding se tornar numa empresa que exerce o controlo de filiais que empregam trabalhadores num ou em vários Estados‑Membros.

73.      Atendendo a esta resposta, não me parece necessário que o Tribunal de Justiça responda às restantes questões prejudiciais.

V.      Conclusão

74.      À luz de todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal, Alemanha) do seguinte modo:

O artigo 12.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 2157/2001 do Conselho, de 8 de outubro de 2001, relativo ao estatuto da sociedade europeia (SE), lido em conjugação com os artigos 3.o a 7.o da Diretiva 2001/86/CE do Conselho, de 8 de outubro de 2001, que completa o estatuto da sociedade europeia no que respeita ao envolvimento dos trabalhadores

deve ser interpretado no sentido de que:

após o registo de uma sociedade europeia (SE) holding constituída por sociedades participantes que não empregam trabalhadores, sem um procedimento prévio de negociação sobre o envolvimento dos trabalhadores, o mesmo não impõe a abertura de tais negociações pelo simples motivo de esta SE holding se tornar numa empresa que exerce o controlo de filiais que empregam trabalhadores num ou em vários Estados‑Membros.


1      Língua original: francês.


2      JO 2001, L 294, p. 1.


3      JO 2001, L 294, p. 22.


4      V. considerando 9 do Regulamento n.o 2157/2001.


5      V. relatório final do grupo de peritos «Systèmes européens d’implication des salariés» de maio de 1997 (Relatório Davignon) (C4‑0455/97), n.o 9: «Apesar dos esforços realizados para aproximar as posições de ambas as partes (de um lado, “inexistência de sociedade europeia sem participação”, do outro lado, “não exportação dos modelos nacionais de participação”), instalou‑se uma situação de bloqueio.»


6      V. artigo 2.o, alínea h), da Diretiva 2001/86.


7      V. proposta de regulamento (CEE) do Conselho relativo ao Estatuto da Sociedade Europeia [COM(89) 268 final — SYN 218.


8      V. proposta de diretiva do Conselho que completa o estatuto da sociedade europeia no que se refere à posição dos trabalhadores [COM(89) 268 final — SYN 219].


9      V. artigo 2.o, n.o 1, desta proposta de regulamento, atual artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2157/2001.


10      V. considerando 18 da Diretiva 2001/86.


11      V. Projeto de ata da 2102.a sessão do Conselho (Trabalho e Assuntos Sociais) realizada no Luxemburgo em 4 de junho de 1998 (8717/98), disponível no seguinte endereço Internet: https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST‑8717‑1998‑INIT/pt/pdf, p. 8.


12      Em 2017, havia 450 SE com uma atividade efetiva e que empregavam mais de 5 trabalhadores entre 2 695 SE registadas, sendo certo que, em relação a um determinado número de SE registadas, os dados não estavam acessíveis (v. documento de trabalho de Waddington, J., e Conchon, A., intitulado «Is Europeanised board‑level employee representation specific? The case of European Companies (SEs)», The European Trade Union Institute, Bruxelles, 2017, p. 7).


13      BGBl. 2004 I, p. 3675.


14      V. artigo 2.o do Regulamento n.o 2157/2001.


15      V. artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2157/2001.


16      V. artigo 12.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2157/2001.


17      V. artigo 2.o, alínea k), da Diretiva 2001/86.


18      V. n.o 3 das presentes conclusões.


19      V. Sick, S., «Worker participation in SEs — a workable, albeit imperfect compromise», em Cremers, J., Stollt, M., e Vitols, S., A decade of experience with the European Company, The European Trade Union Institute, Bruxelas, 2013, p. 93 a 106, em particular p. 96 e 97.


20      V. considerandos 3, 7 e 18 da Diretiva 2001/86.


21      V. artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2001/86.


22      V. artigo 4.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/86.


23      V. documento de trabalho n.o 6 do grupo de peritos composto por peritos nacionais e parceiros sociais criado pela Comissão como fórum de discussão sobre as modalidades de transposição da Diretiva 2001/86 para as legislações nacionais (a seguir, «grupo de peritos SE»), de 2 de outubro de 2002, intitulado «Definição de «sociedades participantes» Artigo 2.°, b)», p. 30 e 31.


24      V. Stollt, M., e Kelemen, M., «A big hit or a flop? A decade of facts and figures on the European Company (SE)», em Cremers, J., Stollt, M., e Vitols, S., A decade of experience with the European Company, op. cit., p. 25 a 47, em particular p. 45 e 46.


25      V. Acórdão I‑3 Wx 248/08, de 30 de março de 2009.


26      V. Köstler, R., « SEs in Germany», em Cremers, J., Stollt, M., e Vitols, S., A decade of experience with the European Company, op. cit., p. 123 a 131, em particular p. 128 e 129.


27      V. Stollt, M., e Wolters, E., Implication des travailleurs dans la Société européenne (SE) — Guide pour les acteurs de terrain, The European Trade Union Institute, Bruxelas, 2013, p. 93.


28      V. artigo 9.o, n.o 1, alínea c), ii), do Regulamento n.o 2157/2001.


29      Será também o caso da constituição de uma SE filial por sociedades participantes sem trabalhadores.


30      V. anexo, parte 1, alínea g), da Diretiva 2001/86.


31      V. relatório Davignon, n.os 50 e 69, bem como documento de trabalho n.o 19 do grupo de peritos SE, de 23 de junho de 2003, intitulado «Procedimentos abusivos — Artigo 11.o» (a seguir «documento de trabalho n.o 19 do grupo de peritos SE»), p. 125 e 126.


32      V. relatório do Parlamento Europeu de 21 de junho de 2001, sobre o projeto de diretiva do Conselho que completa o estatuto da sociedade cooperativa europeia no que respeita ao envolvimento dos trabalhadores (A5‑0231/2001), p. 7.


33      Diretiva do Conselho, de 22 de julho de 2003, que completa o estatuto da sociedade cooperativa europeia no que respeita ao envolvimento dos trabalhadores (JO 2003, L 207, p. 25).


34      V. artigo 8.o, n.o 3, da Diretiva 2003/72.


35      V. documento de trabalho n.o 19 do grupo de peritos SE, p. 124.


36      V. Valdès Dal‑Ré, F., Studies on the implementation of Labour Law Directives in the enlarged European Union, Directive 2001/86/EC supplementing the European Company with regard to the involvement of employees, Synthesis report, p. 101 e 102.


37      V. relatório, da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho, de 17 de novembro de 2010, relativo à aplicação do Regulamento (CE) n.o 2157/2001 do Conselho, de 8 de outubro de 2001, relativo ao estatuto da sociedade europeia (SE) [COM(2010) 676 final], p. 9.


38      V. relatório já referido na nota 37 das presentes conclusões, p. 11.


39      V. comunicação, de 30 de setembro de 2008, da Comissão relativa à revisão da Diretiva 2001/86/CE do Conselho, de 8 de outubro de 2001, que completa o estatuto da sociedade europeia no que respeita ao envolvimento dos trabalhadores [COM(2008) 591 final], p. 7.


40      V. comunicação já referida na nota 39 das presentes conclusões, p. 9.


41      V. Cremers, J., Stollt, M., e Vitols, S., A decade of experience with the European Company, op. cit., em particular capítulos 1, 4 e 6 (v., respetivamente, notas 24, 19 e 26 das presentes conclusões).


42      V. Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de dezembro de 2021, sobre a democracia no trabalho: um quadro europeu sobre os direitos de participação dos trabalhadores e revisão da Diretiva relativa à instituição de um Conselho de Empresa Europeu (2021/2005(INI)], n.os 6 e 10.


43      V. ficha temática do Parlamento Europeu sobre a União Europeia, intitulada «O direito das sociedades», disponível no seguinte endereço Internet: https://www.europarl.europa.eu/factsheets/fr/sheet/35/le‑droit‑des‑societes.


44      V. artigo 4.o, n.o 2, alínea h), da Diretiva 2001/86.


45      V. artigo 4.o, n.o 2, alínea h), e anexo, parte 1, alínea g), da Diretiva 2001/86.


46      Diretiva do Conselho, de 22 de setembro de 1994, relativa à instituição de um conselho de empresa europeu ou de um procedimento de informação e consulta dos trabalhadores nas empresas ou grupos de empresas de dimensão comunitária (JO 1994, L 254, p. 64).


47      V. documento de trabalho n.o 17 do grupo de peritos SE, de 23 de junho de 2003, intitulado «Conteúdo do acordo — Artigo 4.o», p. 113 e 114.


48      V. documento de trabalho n.o 19 do grupo de peritos SE, p. 124 a 126.


49      V. documento de trabalho n.o 19 do grupo de peritos SE, p. 124.


50      V. documento de trabalho n.o 19 do grupo de peritos SE, p. 126 e 127.


51      V. documento de trabalho n.o 19 do grupo de peritos SE, p. 125.


52      V. anexo, parte 3, da Diretiva 2001/86.


53      V. documento de trabalho n.o 19 do grupo de peritos SE, p. 127.


54      V. relatório Davignon, n.o 50, referido no documento de trabalho n.o 19 do grupo de peritos SE, p. 126.