Language of document : ECLI:EU:C:2005:204

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

M. POIARES MADURO

apresentadas em 7 de Abril de 2005 (1)

Processo C-58/04

Antje Köhler

contra

Finanzamt Düsseldorf-Nord

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesfinanzhof (Alemanha)]

«IVA – Lugar das operações tributáveis – Entrega de bens efectuada a bordo de um navio de cruzeiro – Conceito de ‘escala exterior à Comunidade’»





1.     Pelo presente pedido de decisão prejudicial, o Bundesfinanzhof (Alemanha) coloca ao Tribunal de Justiça uma questão relativa à interpretação da noção de «escala exterior à Comunidade», no sentido do artigo 8.°, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (2).

I –    Disposições relevantes de direito comunitário

2.     O artigo 2.° da Sexta Directiva estabelece que estão sujeitas ao imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA») «[a]s entregas de bens […] efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade;».

3.     A noção de «território do país», segundo o artigo 3.°, n.° 2, «corresponde ao âmbito de aplicação do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, tal como é definido, relativamente a cada Estado‑Membro, no artigo 227.° [actual artigo 299.° CE].»

4.     O artigo 8.°, n.° 1, alínea b), determina que «por lugar de entrega de um bem entende‑se […] [s]e o bem não for expedido nem transportado – o lugar onde se encontra o bem no momento da entrega».

5.     O artigo 8.°, n.° 1, alínea c), introduzido pela Directiva 91/680, com a redacção em vigor no ano a que se refere o litígio resultante da Directiva 92/111, determina que se entende por lugar da entrega de um bem:

«Se a entrega dos bens for efectuada a bordo de um navio, de um avião ou de um comboio, durante a parte de um transporte efectuada no território da Comunidade: o lugar de partida do transporte de passageiros.

Para efeitos da presente disposição, entende‑se por:

parte de um transporte de passageiros efectuado no território da Comunidade, a parte de um transporte que é efectuada sem escala exterior à Comunidade entre o local de partida e o local de chegada do transporte de passageiros,

local de partida de um transporte de passageiros, o primeiro ponto previsto para o embarque dos passageiros no território da Comunidade, eventualmente após escala fora da Comunidade,

local de chegada de um transporte de passageiros, o último ponto previsto de desembarque no território da Comunidade dos passageiros que tiverem embarcado no território da Comunidade, eventualmente antes de uma escala fora do território da Comunidade.

No caso de um transporte de ida e volta, o trajecto de volta é considerado como um transporte à parte.

[…]»

II – Matéria de facto, legislação nacional e questão prejudicial

6.     Durante o ano de 1994, A. Köhler (a seguir «demandante») explorou uma loja a bordo de um navio de cruzeiro. No âmbito da exploração desta loja, a demandante efectuou entregas de bens cuja tributação é controversa. Os cruzeiros em causa no litígio partiam de Kiel, Bremerhaven e Travemünde, com passagem por portos situados fora do território da Comunidade, por exemplo, na Noruega, na Estónia, na Rússia ou em Marrocos, e terminavam em Kiel, Bremerhaven ou Génova. As viagens só podiam ser reservadas para todo o cruzeiro; não eram oferecidos trajectos parciais com possibilidade de embarque pela primeira vez ou de desembarque definitivo a meio do percurso.

7.     O Finanzamt considerou que as vendas realizadas a bordo, na loja da demandante, no decurso das viagens, eram tributáveis e sujeitas a IVA na Alemanha, nos termos do § 3e da Umsatzsteuergesetz de 1993 (Lei do imposto sobre o volume de negócios de 1993; a seguir «UStG»), que transpõe o artigo 8.°, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva. Segundo o § 3, n.° 1, da UStG, «[q]uando um bem que não se destine ao consumo in loco é entregue a bordo de um navio […] durante um transporte no território da Comunidade, entende‑se como lugar da entrega o local de partida do respectivo meio de transporte no território da Comunidade».

8.     Por seu turno, o § 3e, n.° 2, da UStG dispõe:

«Entende‑se por transporte efectuado no território da Comunidade, na acepção do n.° 1, o transporte ou a parte do transporte que é efectuado sem escala exterior à Comunidade, entre o local de partida e o local de chegada do meio de transporte. Local de partida de um transporte de passageiros, na acepção desta lei, é o primeiro ponto previsto para o embarque de passageiros no território da Comunidade. Local de chegada de um transporte de passageiros, na acepção desta lei, é o último ponto previsto de desembarque de passageiros no território da Comunidade. Os transportes de ida e volta são considerados transportes à parte.»

9.     Na acção intentada contra a decisão do Finanzamt, a demandante alegou que as vendas em litígio não são tributáveis na Alemanha, em virtude da existência de escalas fora do território da Comunidade; nos termos do § 3e da UStG, elas não teriam sido então efectuadas durante um transporte realizado no território da Comunidade.

10.   O Finanzgericht julgou a acção improcedente. Este tribunal entendeu que o facto de terem existido paragens do navio fora do território da Comunidade, entre os portos de partida e de chegada, não implicava que as entregas de bens se devessem considerar efectuadas fora do território nacional. Apenas as paragens fora do território da Comunidade, em que pudessem ter lugar o desembarque definitivo de passageiros e a admissão de novos passageiros, deveriam considerar‑se «escalas», na acepção do § 3e, n.° 2, da UStG.

11.   A demandante recorreu desta decisão para o Bundesfinanzhof, que entendeu colocar ao Tribunal de Justiça a seguinte questão:

«As escalas de um navio em portos de países terceiros, durante as quais os passageiros apenas podem desembarcar por curtos períodos de tempo, por exemplo, para realizar visitas, não existindo a possibilidade de iniciar ou de terminar a viajem, constituem ‘escalas exteriores à Comunidade’, na acepção do artigo 8.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 77/388/CEE?»

III – Apreciação

12.   Definir «escala», para efeitos do artigo 8.°, n.° 1 alínea c), da Sexta Directiva é tarefa mais difícil do que poderia supor‑se, a partir de uma leitura menos atenta do preceito em causa. O termo escala não tem, com efeito, um significado unívoco, susceptível de deduzir‑se do texto. Ao espírito do intérprete acorrem várias modalidades de escala: desde a escala técnica, designadamente, para reabastecimento do meio de transporte, ou simplesmente para os passageiros poderem desfrutar de uma vista panorâmica, até à escala em que seja possível a admissão de novos passageiros e a saída definitiva de outros, passando pela escala em que os passageiros podem sair para visitar e fazer compras no território do Estado onde esta tem lugar, sendo suposto que depois regressarão a bordo. Poderia à partida pensar‑se, como em alguma medida sugere a demandante nas suas observações escritas, que quando o legislador não estabeleceu qualquer distinção, não deve ser o intérprete a fazê‑lo. Seria contudo demasiado simplista interpretar o termo «escala», no âmbito do artigo 8.° da Sexta Directiva, no sentido mais amplo que o conceito comporta, sem procurar compreender a razão pela qual a ocorrência ou não de uma escala num Estado terceiro há‑de ser relevante para a aplicação do regime específico consagrado no artigo 8.°, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva.

A –    O carácter conflitual do artigo 8.° como regra de repartição de competências fiscais entre Estados

13.   A resposta à questão colocada pelo Bundesfinanzhof requer uma análise preliminar do artigo 8.° da Sexta Directiva onde a noção de escala exterior à Comunidade surge inserida. Este artigo contém várias regras de conflitos que visam delimitar racionalmente entre os Estados‑Membros as respectivas esferas de aplicação das suas legislações nacionais em matéria de IVA, no que respeita às entregas de bens (3). Cada uma dessas regras determina qual é o Estado‑Membro exclusivamente competente para tributar em sede de IVA uma entrega de bens quando, segundo os elementos de conexão relevantes previstos no artigo 8.°, essa entrega se verifique no seu território. A este respeito, é inevitável encarar em paralelo este artigo 8.° e o artigo 9.°, onde se encontram as regras de conflitos relativas às prestações de serviços. Ambos constituem, aliás, os dois únicos artigos que integram o título VI da Sexta Directiva, «Lugar das operações tributáveis» (4), e a ambos se refere indistintamente o sétimo considerando que acabei de mencionar.

14.   Se é certo que o Tribunal não teve ainda a oportunidade de assinalar expressamente que o artigo 8.° da Sexta Directiva visa evitar conflitos de competência fiscal entre Estados, essa posição foi inequivocamente afirmada em relação ao artigo 9.° Assim, no acórdão de 4 de Julho de 1985, Berkholz, o Tribunal afirmou que as disposições contidas no artigo 9.° «visa[m] estabelecer uma repartição racional dos âmbitos de aplicação das legislações nacionais em matéria de imposto sobre o valor acrescentado, determinando de modo uniforme o lugar de conexão fiscal das prestações de serviços», e, deste modo, estabelecer definitivamente o Estado‑Membro com competência exclusiva para tributar uma prestação de serviços (5). Trata-se assim de regras indispensáveis para «evitar conflitos de competências» (6). O Tribunal afirmou, inclusivamente como critério de interpretação do artigo 9.°, n.° 1, a preferência pelo elemento de conexão que evite a criação de conflitos de competência fiscal entre Estados (7).

15.   O paralelismo entre o quadro de regras de repartição de competências fiscais previstas no artigo 9.° da Sexta Directiva e o previsto no seu artigo 8.° é notório. Parece‑me, portanto, aconselhável encarar o artigo 8.° à luz da finalidade conflitual de evitar interferências com a competência fiscal de outros Estados, que o Tribunal tem considerado relevante na interpretação das regras contidas no artigo 9.° relativas à prestação de serviços.

16.   É, portanto, com este enquadramento geral do sentido e da função do artigo 8.° da Sexta Directiva que temos de compreender a regra específica contida na alínea c) do n.° 1 desse mesmo artigo e, de modo particular, o sentido da utilização, nessa regra, da noção de «escala exterior à Comunidade».

B –    A génese e as finalidades do artigo 8.°, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva, em particular da noção de «escala exterior à Comunidade»

17.   A consideração da génese da alínea c) introduzida pelas Directivas 91/680 e 92/111 não afecta, bem pelo contrário, acentua, o sentido geral do artigo 8.° como preceito que contém um conjunto de regras destinadas a evitar conflitos de competências em matéria fiscal entre Estados.

18.   Através da Directiva 91/680, relativa à abolição das fronteiras fiscais entre os Estados‑Membros, foi introduzida a alínea c) contendo o regime simplificado de tributação do IVA sobre as entregas de bens a bordo em viagens intracomunitárias, segundo o princípio da tributação no Estado‑Membro de origem. Através desta alínea procurou‑se assegurar a adopção de um regime simplificado de tributação aplicável nas viagens com início e termo na Comunidade, segundo o princípio da origem. Uma tal solução impunha‑se naturalmente a partir da abolição das fronteiras fiscais entre Estados‑Membros, que tornava a aplicação da regra geral, prevista na alínea b), de tributação no lugar onde o bem se encontra no momento da entrega, manifestamente indesejável, ao levar a uma segmentação das entregas de bens consoante o território dos vários Estados‑Membros que o meio de transporte atravessasse.

19.   O texto da referida alínea c), introduzido pela Directiva 91/680, foi alterado pela Directiva 92/111, em virtude de, segundo a Comissão, os termos em que a alínea c) estava redigida se prestarem a confusão (8). A este respeito, os trabalhos preparatórios desta Directiva 92/111 revelam que a expressão «sem escala exterior à Comunidade» não fazia parte da proposta de alterações à alínea c) proposta pela Comissão. Foi acrescentada pelo Conselho, sem uma indicação explícita dos motivos que a justificaram. A par desta alteração, o Conselho entendeu também que o regime simplificado de tributação segundo o Estado da origem, previsto na alínea c), deveria aplicar‑se não às entregas de bens efectuadas «durante um transporte intracomunitário de passageiros», como propunha a Comissão, mas sim, em termos menos amplos, apenas «durante a parte de um transporte [de passageiros] efectuada no território da Comunidade» (9).

20.   Estas duas alterações finais à proposta da Comissão evidenciam bem, a meu ver, uma preocupação em garantir que a adopção do regime simplificado de tributação de IVA no Estado de origem do transporte intracomunitário não interferisse com a competência fiscal de Estados terceiros nos seus respectivos territórios. É esta finalidade que explica a inclusão da noção de «escala exterior à Comunidade» no texto da referida alínea, em termos, aliás, que o Direito Internacional justifica plenamente (10).

21.   É, com efeito, ponto assente em Direito Internacional que, como manifestação central da sua soberania, cada Estado dispõe, por um lado, do poder absoluto e exclusivo de fixar impostos no interior do seu território e, por outro lado, que eventuais derrogações a este princípio, designadamente no sentido de serem aplicáveis leis fiscais estrangeiras no interior do território do Estado, em vez das suas próprias leis, terão de resultar de um consentimento soberano desse Estado (11). Este princípio é, aliás, bem visível no caso de navios mercantes estacionados em portos estrangeiros. Na medida em que estes se encontrem em águas internas do Estado do porto (12), ficam sujeitos integralmente às suas leis fiscais (13). Este efeito não é prejudicado pelo facto de esse Estado poder prescindir de exercer efectivamente a sua competência fiscal no interior do navio, seja por considerar tratar‑se de uma matéria puramente de «economia interna» deste (14), seja apenas por não querer tomar medidas que dissuadam os navios estrangeiros de demandarem os seus portos (15).

22.   A preocupação de evitar que a aplicação da Sexta Directiva conduza a interferências com a soberania fiscal dos Estados nos seus territórios está, aliás, patente na jurisprudência do Tribunal de Justiça. Assim, no acórdão de 23 de Janeiro de 1986, Trans Tirreno Express, o Tribunal reconheceu expressamente a liberdade de um Estado‑Membro submeter «à sua legislação sobre o IVA uma prestação de transporte entre dois pontos do seu território nacional, mesmo que o trajecto se efectue em parte fora do seu território nacional, desde que não invada as competências de outros Estados» (16). O processo Trans Tirreno Express aponta, portanto, como limite à aplicação do sistema comum do IVA que se «não invada a área de competência fiscal de outros Estados» (17). Se, nas águas internacionais, se considera que um Estado pode estender o campo de aplicação da sua legislação fiscal, o mesmo não sucede quando se «atravessa qualquer área sujeita à soberania nacional de outro Estado» (18). A competência fiscal de um Estado‑Membro para aplicar o sistema comum do IVA termina, assim, segundo o princípio da territorialidade, onde começa a competência fiscal de Estados terceiros para tributarem as entregas de bens realizadas nos seus territórios respectivos.

C –    As consequências da ocorrência de uma escala exterior à Comunidade na tributação de entregas de bens realizadas a bordo

23.   Para responder à questão colocada pelo Bundesfinanzhof, é forçoso tomar em consideração as consequências para a tributação de entregas de bens a bordo, decorrentes da verificação de uma escala exterior à comunidade.

24.   Como já assinalei, o artigo 8.° estabelece um regime simplificado de tributação sobre a entrega de bens realizada a bordo durante a parte de um transporte efectuada no território da Comunidade. Essas entregas de bens ficam assim sujeitas a um só regime de IVA: o do Estado onde tem início esse transporte intracomunitário. Evita‑se, deste modo, o retorno à regra geral de territorialidade estrita contida na alínea b) desse artigo, que levaria à aplicação, ao longo da viagem, de tantos regimes nacionais de IVA quantos os Estados‑Membros por cujo território a viagem decorresse (19).

25.   O facto de existirem escalas exteriores à Comunidade justifica certamente, pelas razões já destacadas, que, no decurso dessas escalas em territórios sujeitos à competência fiscal de Estados terceiros, se suspenda a aplicação do sistema comum do IVA relativamente às entregas de bens aí realizadas. O que não justifica é que se deixe de aplicar o regime simplificado a toda a restante parte da viagem que decorre quer no território da Comunidade propriamente dito, quer em águas internacionais, quer ainda quando o meio de transporte se encontre apenas em trânsito no espaço territorial de Estados terceiros, sem que haja uma interferência efectiva com a soberania fiscal de outros Estados.

26.   Com efeito, uma segmentação em várias partes intracomunitárias – como consequência de uma interrupção do regime simplificado através da escala exterior à Comunidade – daquilo que é uma só viagem intracomunitária (na medida em que liga efectivamente os dois pontos mais distantes no território da Comunidade, previstos para a entrada e a saída de passageiros) colidiria frontalmente com o objectivo de simplificação subjacente à alínea c). Ao mesmo tempo, a finalidade de evitar qualquer interferência com a soberania fiscal de Estados terceiros nos seus portos não justifica que se sacrifique a aplicação desse regime simplificado para além daquilo que é necessário para que essa finalidade seja assegurada. Ora, para este efeito, é suficiente suspender a aplicação do regime de IVA do Estado de origem durante a escala no exterior da Comunidade.

27.   Assim sendo, deve interpretar‑se o artigo 8.°, n.° 1, alínea c), no sentido de que fica sujeita ao regime simplificado nele previsto a totalidade de uma viagem intracomunitária, isto é, de uma viagem entre o primeiro local de entrada de passageiros situado no território da Comunidade e o último local no território da Comunidade onde esses passageiros podem terminar a sua viagem. A existência de escalas exteriores à Comunidade entre estes dois locais deve apenas suspender a aplicação desse regime simplificado durante cada escala (20).

28.   Nada justifica, antes pelo contrário, que de cada vez que a viagem retoma o seu curso intracomunitário fique sujeita a sucessivos regimes de IVA diferenciados. Tal seria a consequência de um eventual retorno ao regime de territorialidade previsto no artigo 8.°, n.° 1, alínea b), ou da sua sujeição a sucessivas novas aplicações do regime da alínea c) (21).

29.   A interpretação aqui proposta para o artigo 8.°, n.° 1, alínea c), no sentido de que uma escala exterior à Comunidade constitui apenas uma causa de suspensão, pelo período de duração da escala, da aplicação do regime simplificado estabelecido nesse artigo, não obsta a que a viagem intracomunitária se integre numa viagem mais longa que tenha eventualmente o seu início e/ou o seu término fora da Comunidade. É este precisamente o sentido da referência, na parte final das definições de local de partida e de local de chegada do transporte, à existência eventual de uma «escala fora da Comunidade» (22). Nessas partes da viagem sem carácter intracomunitário, não será obviamente aplicável o regime simplificado previsto na alínea c).

30.   De igual modo, se uma viagem tem o seu ponto de partida, por exemplo, na Alemanha, e nenhum ponto de chegada previsto para esses passageiros no território da Comunidade, essa viagem não é intracomunitária, estando, como tal, as entregas de bens a bordo sujeitas ao regime territorial estrito previsto na alínea b). Neste caso, estarão sujeitas a IVA na Alemanha as entregas de bens que se encontrem em território alemão no momento da entrega.

D –    A interpretação proposta para a noção de «escala exterior à Comunidade»

31.   Nem o texto nem a finalidade que terá, ao que tudo indica, determinado a inclusão da noção de escala exterior à Comunidade no texto da alínea c) fornecem uma orientação precisa no sentido de haver uma interpretação desta noção que se destaque claramente como mais acertada.

32.   Os elementos de interpretação aqui envolvidos apenas permitem, em particular o elemento teleológico, afastar, por um lado, certas interpretações por serem particularmente incompatíveis com as finalidades visadas e, por outro lado, destacar a existência de várias interpretações possíveis e igualmente defensáveis para esta noção.

33.   Relativamente à interpretação sugerida pelo Governo alemão, penso tratar‑se, precisamente, de uma interpretação que pertence à primeira categoria. Na verdade, tal interpretação teria como consequência a aplicação do sistema comum do IVA às entregas de bens realizadas aquando da estadia do navio no território de um Estado terceiro, quando os passageiros podem sair do navio e fazer compras nesse território. Penso que uma leitura do conceito de escala que produza este resultado não é de todo aconselhável, tendo em conta a finalidade prosseguida de evitar conflitos com a competência fiscal de Estados terceiros nos seus territórios (23).

34.   Já no que toca às interpretações possíveis da noção que me parecem compatíveis com a finalidade da norma, o Tribunal é afinal confrontado com a necessidade de escolher entre várias soluções igualmente defensáveis, que divergem essencialmente ao nível do modo mais ou menos estrito como asseguram o duplo objectivo prosseguido pelo legislador: simplificação do regime fiscal aplicável e prevenção de conflitos com a soberania fiscal de Estados terceiros nos territórios exteriores à Comunidade.

35.   Entre essas interpretações teleologicamente defensáveis, aquela que garante de modo mais estrito a não interferência com a competência fiscal de um Estado terceiro onde uma escala tenha lugar é a que interpreta a noção de escala simplesmente como qualquer paragem num local apropriado para o efeito (porto, aeroporto, estação), conforme o meio de transporte em causa (24). Assim sendo, independentemente da possibilidade de os passageiros poderem sair, por exemplo, de um navio durante a escala num porto de um Estado terceiro, na medida em que este navio se encontra integralmente sujeito à soberania fiscal do Estado do porto, o sistema comum do IVA não abrangeria as entregas de bens realizadas a bordo durante essa escala. Trata‑se, no entanto, de uma interpretação que, ao respeitar de forma tão rigorosa o objectivo de evitar interferências com a competência territorial de Estados terceiros, poderá potenciar comportamentos abusivos. Isto na medida em que legitima a suspensão da aplicação do regime previsto na alínea c) às entregas de bens realizadas a bordo durante a escala, como resultado da mera decisão de fazer parar o meio de transporte num território terceiro no decurso da sua viagem intracomunitária.

36.   Outra interpretação teleologicamente defensável para a noção de escala é a proposta pela Comissão e, em termos quase inteiramente coincidentes, pelo Governo grego, assim como pela demandante. Trata‑se afinal de dizer que, para haver uma escala nos termos do artigo 8.°, n.° 1, alínea c), é necessário que quem viaja tenha a possibilidade de sair do meio de transporte em causa, ainda que por um curto período de tempo, e de realizar compras no Estado terceiro onde a escala tem lugar. Apenas nestas circunstâncias é que a sujeição das entregas de bens a bordo ao sistema comum do IVA seria potenciadora de um conflito com a competência fiscal do Estado terceiro, que importa evitar. Trata‑se afinal de dizer que só quando haja a possibilidade de escolha entre adquirir bens dentro do meio de transporte ou fora dele é que haveria um conflito efectivo de competências, inaceitável à luz dos objectivos prosseguidos pelo legislador ao integrar a noção de escala na alínea c) em apreço. Por outras palavras: o conflito de competências a evitar ocorrerá apenas quando, num determinado local, como um porto, juridicamente submetido à soberania fiscal do Estado do porto, os estabelecimentos a bordo de navios aí estacionados, apesar de se situarem efectivamente no mesmo mercado que os estabelecimentos fora do navio, ficassem sujeitos, por força do direito comunitário, a um regime de tributação indirecta, diferente daquele a que estão sujeitos este últimos igualmente situados nesse Estado.

37.   Esta última interpretação não é tão estritamente conforme ao princípio da sujeição integral do meio de transporte à soberania fiscal do Estado em cujo território se encontra e à prevenção de eventuais conflitos de competência fiscal com Estados terceiros. Penso, no entanto, ser preferível, atendendo a que o conflito resultante da eventual sujeição das entregas de bens realizadas a bordo, nos casos em que não haja possibilidade de desembarcar e fazer compras, a um regime fiscal diferente do aplicável no território do Estado terceiro tende a ser meramente hipotético.

IV – Conclusão

38.   Em conformidade com as considerações que precedem, sugiro que o Tribunal de Justiça dê a seguinte resposta à questão colocada pelo Bundesfinanzhof:

«As escalas de um navio em portos de Estados terceiros, durante as quais os passageiros apenas podem desembarcar por curtos períodos de tempo, por exemplo, para efectuar visitas, não existindo a possibilidade de se iniciar ou de se terminar a viajem, constituem ‘escalas exteriores à Comunidade’, na acepção do artigo 8.°, n.° 1, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, conforme alterada pela Directiva 91/680/CEE do Conselho, de 16 de Dezembro de 1991, que completa o sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado e altera, tendo em vista a abolição das fronteiras fiscais, a Directiva 77/388, e pela Directiva 92/111/CEE do Conselho, de 14 de Dezembro de 1992, que altera a Directiva 77/388 e introduz medidas de simplificação em matéria de imposto sobre o valor acrescentado, na medida em que os passageiros tenham a possibilidade de fazer compras nesse território terceiro, suspendendo‑se assim a aplicação do regime previsto nessa alínea, pelo período de duração da escala.»


1 – Língua original: português.


2  – JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54. Esta directiva foi alterada pela Directiva 91/680/CEE do Conselho, de 16 de Dezembro de 1991, que completa o sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado e altera, tendo em vista a abolição das fronteiras fiscais, a Directiva 77/388 (JO L 376, p. 1), e pela Directiva 92/111/CEE do Conselho, de 14 de Dezembro de 1992, que altera a Directiva 77/388 e introduz medidas de simplificação em matéria de imposto sobre o valor acrescentado (JO L 384, p. 47, a seguir «Sexta Directiva»).


3 – V. o sétimo considerando da Sexta Directiva.


4  – V., a este respeito, as conclusões do advogado‑geral Sir Gordon Slynn no processo Trans Tirreno Express (283/84, Colect. 1986, pp. 231, 232, especialmente p. 235, in fine).


5  – 168/84, Recueil, p. 2251, n.° 14, e acórdão de 11 de Setembro de 2003, Cookies World (C-155/01, Colect., p. I-8785, n.° 46). V., também, acórdãos de 17 de Novembro de 1993, Comissão/França (C-68/92, Colect., p. I‑5881, n.º 14), Comissão/Luxemburgo (C-69/92, Colect., p. I-5907, n.º 15), e Comissão/Espanha (C-73/92, Colect., p. I-5997, n.º 12).


6  – Acórdão de 13 de Março de 1990, Comissão França (C‑30/89, Colect., p. I‑691, n.° 10); Berkholz, já referido, n.º 14; e Trans Tirreno Express, já referido, n.º 15.


7  – Acórdão Berkholz, já referido, n.° 17, e, ulteriormente, acórdãos de 2 de Maio de 1996, Faaborg Gelting Linien (C‑231/94, Colect., p. I‑2395, n.° 16), e de 20 de Fevereiro de 1997, DFDS (C‑260/95, Colect., p. I‑1005, n.° 19).


8  – V. p. 4 da exposição de motivos da Proposta de directiva do Conselho que altera a Directiva 77/388 e introduz medidas de simplificação (COM(92) 448 final) (JO 1992, C 335, p. 10), apresentada pela Comissão ao Conselho, Bruxelas, 4 de Novembro de 1992.


9  – O sublinhado é meu.


10  – Se bem que o sexto considerando do preâmbulo da Directiva 92/111 não refira expressamente a necessidade de acautelar as relações com «territórios terceiros» na clarificação introduzida pelo legislador comunitário quanto à definição de local de tributação de certas operações efectuadas a bordo de navios, aviões ou comboios, durante o transporte de passageiros no interior da Comunidade, os segundo, terceiro e quarto considerandos desse mesmo preâmbulo evidenciam bem como esta Directiva 92/111/CEE teve em conta as relações com «territórios terceiros» ao formular as disposições nela contidas, determinadas pela abolição das fronteiras fiscais na Comunidade.


11  – V. Gest, G.; Tixier, G. – Droit Fiscal international, 2.a ed., PUF, Paris, 1990, p. 17, referindo-se ao «pouvoir fiscal absolu à l’intérieur de son territoire, qui constitue une sorte de chasse gardée». No mesmo sentido, Qureshi, A. H. – «The Freedom of a State to Legislate in Fiscal Matters under General International Law», in The Public International Law of Taxation – Text, Cases and Materials, Graham & Trotman, London, 1994, pp. 29, 31, e Terra, B. – The Place of Supply in European VAT, Kluwer Law, Dordrecht, 1998, p. 3. V., igualmente, Rutsel Silvestre, M. – The Jurisdiction to tax in International Law – Theory and Practice of Legislative Fiscal Jurisdiction, Kluwer, Deventer, 1989, pp. 7, 15, 16, 23, especialmente p. 37, apresentando a competência fiscal do Estado como decorrente da sua soberania, que define também os limites dessa competência. Referindo-se expressamente à «soberania territorial» do Estado, o autor toma como referência a afirmação do juiz Moore no processo S. S. Lotus (acórdão do Tribunal Permanente de Justiça Internacional de 7 de Setembro de 1927, França c. Turquia, série A, n.° 10, p. 69), segundo a qual «[t]he principle of absolute and exclusive jurisdiction within the national territory applies to foreigners as well as to citizens or inhabitants of the country, and the foreigner can claim no exemption from the exercise of such jurisdiction, except so far as he may be able to show either: (1) that he is, by reason of some special immunity, not subject to the operation of the local law, or (2) that the local law is not in conformity with international law».


12  – V. Churchill, R. R.; Lowe, A. V. – The Law of the Sea, Juris Publishing, Manchester Univ. Press, 3.a ed., 1999, p. 61, afirmando que «[t]he coastal State enjoys full territorial sovereignty over its internal waters.» [...] «By entering foreign ports and other internal waters, ships put themselves within the territorial jurisdiction of the coastal State. Accordingly, that State is entitled to enforce its laws against the ship and those on board» (idem, p.  65). Sobre os portos como parte integrante das águas internas do Estado, que não devem confundir-se com as suas águas territoriais, v. O’Connell, D. P. – The International Law of the Sea, vol. I, Clarendon Press, Oxford, 1982, p. 385. Assiste-se mesmo, como assinala Vignes, D. – «La juridiction de l’État du port et le navire en droit international» in Le navire en Droit International, Colloque de Toulon, Éditions A. Pedone, Paris, 1993, p. 127-150, especialmente p. 127, a um alargamento da competência (ou «creeping jurisdiction») do Estado do porto, nos tempos mais recentes.


13  – Assim, para mais desenvolvimentos, Gidel, G. – Le Droit International Public de la mer – Le temps de paix, tome II, les eaux intérieures, Topos Verlag e Librairie Edouard Duchemin, Liechtenstein/Paris, 1981, pp. 79 e segs., e, especialmente quanto à sujeição integral do navio às leis fiscais do Estado do porto, pp. 119-125.


14  – V. Churchill, R. R.; Lowe, A. V. – The Law of the Sea, op. cit., p. 68, considerando que, relativamente a matérias internas do navio, o Estado do porto, «as a matter of strict law», pode, de qualquer modo, exercer a sua jurisdição pelo simples facto da entrada voluntária desses navios nas suas águas internas.


15  – É bem conhecida, em particular, a concorrência comercial entre portos na captação de escalas de navios de cruzeiro. V. Combacau, J.; Sur, S. – Droit International Public, 5.a ed., Montchrestien, Paris, 2001, p. 461, relativamente ao direito de negar entrada no porto.


16 – N.° 21 do acórdão e, ulteriormente, acórdão C-30/89, Comissão/França, já referido, n.° 18 (o sublinhado é meu). O Tribunal refere-se indistintamente, no processo Trans Tirreno Express, a «outros Estados», incluindo logicamente os Estados terceiros e não apenas os outros Estados‑Membros. Mesmo que a preocupação no caso fosse a salvaguarda da competência fiscal de outros Estados‑Membros, logicamente que essa mesma preocupação em respeitar o princípio da territorialidade estará presente quando se trate de Estados terceiros. Tal decorrerá, aliás, desde logo, como referido pelo Governo grego na audiência, da necessidade de respeitar o âmbito de aplicação territorial do sistema comum de IVA definido nos artigos 2.º e 3.º, n.º 2, da Sexta Directiva. V., também, Terra, B. – The Place of Supply in European VAT, op. cit., pp. 3, 4.


17  – Acórdão Trans Tirreno Express, n.° 21.


18  – Idem, n.° 18.


19  – Que esta regra da alínea b) constitui «the general rule in the Sixth Directive with regard to the place of supply of goods» é aliás opinião expressa na doutrina (Terra, B.; Kajus, J. – A Guide to the European VAT Directives, vol. I, IBFD Publications, 2005, p. 557, especialmente pp. 559, 560). Isto, obviamente, no caso de o bem em causa não ser um bem a expedir ou a transportar, hipótese a que se refere a alínea a) do mesmo artigo 8.º, n.º 1.


20  – Assim sendo, durante o período de escala do meio de transporte num porto de um Estado terceiro, as entregas de bens realizadas a bordo não ficarão sujeitas ao regime de IVA do primeiro Estado‑Membro em que teve início a viagem intracomunitária. O meio de transporte em causa encontra-se, durante esse período, integralmente sujeito à competência fiscal de um Estado terceiro e, por conseguinte, as entregas de bens realizadas a bordo durante essa escala ocorrem manifestamente fora do âmbito de aplicação territorial da Sexta Directiva.


21  – Pelo exposto, não posso acompanhar a interpretação do artigo 8.º, n.º 1, alínea c), que parece ser seguida por Terra, B.; Kajus, J. – A Guide to the European VAT Directives, op. cit., p. 560, nota 552, com o exemplo aí apresentado.


22  – A este respeito, é relevante chamar a atenção para o facto de, por exemplo, na Alemanha, a norma de transposição contida no § 3e, n.° 2, da UStG não incluir sequer estas menções finais, previstas nas definições dadas pela Sexta Directiva, de «local de partida de um transporte de passageiros» e de «local de chegada de um transporte de passageiros».


23  – Acrescentaria ainda que, do ponto de vista literal, como referido pela Comissão na audiência, se bem que o legislador tenha, em vários pontos desta mesma alínea c), referido expressamente o embarque de novos passageiros e o seu desembarque definitivo para definir os locais de partida e de chegada do transporte, não o fez em relação à noção de escala.


24  – Este entendimento encontra, aliás, algum apoio na versão inglesa do texto, que se refere simplesmente a «stop» em território exterior à Comunidade.