Language of document : ECLI:EU:C:2023:678

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PRIIT PIKAMÄE

apresentadas em 14 de setembro de 2023 (1)

Processo C359/22

AHY

contra

Minister for Justice

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela High Court (Tribunal Superior, Irlanda)]

«Reenvio prejudicial — Política de asilo — Determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional — Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Artigo 17.o, n.o 1 — Cláusulas de soberania — Artigo 27.o — Via de recurso efetiva — Efeito suspensivo»






1.        Com o presente pedido de decisão prejudicial, a High Court (Tribunal Superior, Irlanda) pede a interpretação do artigo 17.o, n.o 1, e do artigo 27.o, n.os 1 e 3, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 («Regulamento Dublim III») (2) e do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2.        O pano de fundo das questões submetidas é o regime jurídico especial, atualmente em vigor na Irlanda, que transpõe o Regulamento Dublim III. Nos termos desse regime, a decisão de um Estado‑Membro de fazer uso, ou não, da cláusula de soberania que figura no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III incumbe a uma autoridade administrativa diferente da responsável pela aplicação dos critérios de determinação do Estado‑Membro responsável fixados no referido regulamento e pela adoção da decisão de transferência. Do mesmo modo, os recursos judiciais previstos contra a primeira e segunda decisões são da competência de dois órgãos jurisdicionais nacionais diferentes.

3.        A coexistência destes dois procedimentos, associada à falta de coordenação entre eles, suscita questões jurídicas complexas no contexto do Regulamento Dublim III. No acórdão que irá proferir, o Tribunal de Justiça terá assim a oportunidade de clarificar o alcance do direito a uma via de recurso efetiva como previsto no artigo 27.o desse regulamento, designadamente sobre a questão de saber se uma das duas disposições acima referidas exige que os Estados‑Membros prevejam a possibilidade de impugnar judicialmente, mediante um recurso distinto do interposto contra a decisão de transferência, o exercício do poder discricionário decorrente da cláusula de soberania. Além disso, o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se sobre a questão de saber se a interposição de um recurso dessa natureza conduz necessariamente à suspensão da decisão de transferência.

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União

4.        O artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III dispõe:

«Os Estados‑Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado‑Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado‑Membro, que será aquele que os critérios enunciados no capítulo III designarem como responsável.»

5.        O artigo 17.o desse regulamento, com a epígrafe «Cláusulas discricionárias», prevê no seu n.o 1:

«1. Em derrogação do artigo 3.o, n.o 1, cada Estado‑Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.

O Estado‑Membro que tenha decidido analisar um pedido de proteção internacional nos termos do presente número torna‑se o Estado‑Membro responsável e assume as obrigações inerentes a essa responsabilidade. Se for caso disso, informa, por intermédio da rede de comunicação eletrónica “DubliNet”, criada pelo artigo 18.o do Regulamento (CE) n.o 1560/2003 [da Comissão, de 2 de Setembro de 2003, relativo às modalidades de aplicação do Regulamento (CE) n.o 343/2003 do Conselho, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO 2003, L 22, p. 3)], o Estado‑Membro anteriormente responsável, aquele que conduz o processo de determinação do Estado‑Membro responsável ou aquele que foi requerido para efeitos de tomada ou retomada a cargo.

O Estado‑Membro responsável por força do presente número deve indicar também imediatamente esse facto no Eurodac em conformidade com o Regulamento (UE) n.o 603/2013 [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativo à criação do sistema «Eurodac» de comparação de impressões digitais para efeitos da aplicação efetiva do Regulamento (UE) n.o 604/2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou um apátrida, e de pedidos de comparação com os dados Eurodac apresentados pelas autoridades responsáveis dos Estados‑Membros e pela Europol para fins de aplicação da lei e que altera o Regulamento (UE) n.o 1077/2011 que cria uma Agência europeia para a gestão operacional de sistemas informáticos de grande escala no espaço de liberdade, segurança e justiça (JO 2013, L 180, p. 1)] acrescentando a data em que foi tomada a decisão de analisar o pedido.»

6.        O artigo 27.o do referido regulamento, com a epígrafe «Vias de recurso», tem a seguinte redação:

«1.      O requerente ou outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), tem direito a uma via de recurso efetiva, sob a forma de recurso ou de pedido de revisão, de facto e de direito, da decisão de transferência, para um órgão jurisdicional.

2.      Os Estados‑Membros devem prever um período de tempo razoável para a pessoa em causa poder exercer o seu direito de recurso nos termos do n.o 1.

3.      Para efeitos de recursos ou de pedidos de revisão de decisões de transferência, os Estados‑Membros devem prever na sua legislação nacional que:

a)      O recurso ou o pedido de revisão confira à pessoa em causa o direito de permanecer no Estado‑Membro em causa enquanto se aguarda o resultado do recurso ou da revisão; ou

b)      A transferência seja automaticamente suspensa e que essa suspensão termine após um período razoável, durante o qual um órgão jurisdicional, após exame minucioso e rigoroso, deve tomar uma decisão sobre o efeito suspensivo de um recurso ou de um pedido de revisão; ou

c)      A pessoa em causa tenha a possibilidade de dentro de um prazo razoável requerer junto do órgão jurisdicional a suspensão da execução da decisão de transferência enquanto [se] aguarda o resultado do recurso ou do pedido de revisão. Os Estados‑Membros devem garantir a possibilidade de uma via de recurso, suspendendo o processo de transferência até que seja adotada a decisão sobre o primeiro pedido de suspensão. A decisão sobre a suspensão ou não da execução da decisão de transferência deve ser tomada num prazo razoável, mas que não ponha em causa o exame minucioso e rigoroso do pedido de suspensão. As decisões de não suspensão da execução da decisão de transferência devem ser fundamentadas.

4.      Os Estados‑Membros podem prever que as autoridades competentes possam decidir, a título oficioso, suspender a execução da decisão de transferência enquanto se aguarda o resultado do recurso ou da revisão.»

7.        O artigo 29.o, n.os 1 e 2, do mesmo regulamento dispõe:

«1.      A transferência do requerente ou de outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável efetua‑se em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro requerente, após concertação entre os Estados‑Membros envolvidos, logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3.

Se as transferências para o Estado‑Membro responsável forem efetuadas sob forma de uma partida controlada ou sob escolta, os Estados‑Membros devem garantir que são realizadas em condições humanas e no pleno respeito dos direitos fundamentais e da dignidade humana.

Se necessário, o Estado‑Membro requerente fornece ao requerente um salvo‑conduto. A Comissão adota atos de execução para o modelo deste salvo‑conduto. Esses atos de execução são adotados pelo procedimento de exame a que se refere o artigo 44.o, n.o 2.

O Estado‑Membro responsável informa o Estado‑Membro requerente da chegada da pessoa em causa ao destino, ou de que esta não se apresentou no prazo prescrito, consoante o caso.

2.      Se a transferência não for executada no prazo de seis meses, o Estado‑Membro responsável fica isento da sua obrigação de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, e a responsabilidade é transferida para o Estado‑Membro requerente. Este prazo pode ser alargado para um ano, no máximo, se a transferência não tiver sido efetuada devido a retenção da pessoa em causa, ou para 18 meses, em caso de fuga.»

B.      Direito irlandês

1.      European Union (Dublin System) Regulations 2018

8.        O artigo 3.o do European Union (Dublin System) Regulations 2018 [Regulamento de 2018 relativo à União Europeia (Sistema de Dublim) (S. I. n.o 62 de 2018), a seguir «Regulamento de 2018»], com a epígrafe «Exercício de funções nos termos do Regulamento da [União]», confere aos agentes de proteção internacional [agentes que fazem parte do International Protection Office (Serviço de Proteção Internacional, Irlanda, a seguir «IPO»] as funções de determinar o Estado‑Membro responsável por um pedido de proteção internacional ao abrigo dos critérios estabelecidos no capítulo III do Regulamento Dublim III e de adotar decisões de transferência. O artigo 6.o do Regulamento de 2018, com a epígrafe «Recursos de decisões de transferência», prevê que o International Protection Appeals [(Tribunal de Recurso para a Proteção Internacional, Irlanda), a seguir «IPAT»)] é competente para apreciar um recurso de uma decisão de transferência.

9.        O artigo 8.o do Regulamento de 2018, com a epígrafe «Suspensão da execução da decisão de transferência enquanto se aguarda o resultado do recurso», estabelece o efeito suspensivo previsto no artigo 27.o, n.o 3, alínea a), do Regulamento Dublim III e prevê, em substância, que um requerente de proteção internacional que interponha recurso ao abrigo do artigo 6.o do Regulamento de 2018, tem direito de permanecer no Estado enquanto aguarda o resultado do recurso.

10.      O exercício do poder discricionário previsto no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III é da competência do Ministro da Justiça (a seguir «Ministro»). O processo que conduz à adoção de uma decisão de transferência pelo IPO nos termos do Regulamento de 2018 não implica nenhuma tomada em consideração do artigo 17.o, n.o 1, desse regulamento, e a competência do IPAT ao abrigo do artigo 6.o do referido regulamento está limitada aos recursos dessas decisões de transferência. Esse órgão jurisdicional não tem competência para decidir sobre um recurso de uma decisão do Ministro quanto ao exercício do poder discricionário previsto no artigo 17.o, n.o 1, do mesmo regulamento, sendo o único recurso possível dessa decisão o recurso de «judicial review» (fiscalização da legalidade).

2.      Order 84, Superior Courts Rules

11.      A Order 84, Rules of the Superior Courts (Order 84, Regulamento de Processo dos Tribunais Superiores), cujos artigos são designados por «rules» (regras), enuncia, designadamente no seu título V, as regras processuais aplicáveis no contexto de um recurso de fiscalização jurisdicional. A High Court é o órgão jurisdicional de primeira instância competente para tratar os recursos de fiscalização jurisdicional. Assim, qualquer referência ao tribunal na Order 84 diz respeito à High Court (Tribunal Superior) como tribunal de primeira instância.

12.      A regra 20 da Order 84 estabelece, em substância, que o tribunal deve conceder uma autorização prévia («application for leave») antes de tratar um pedido recurso de fiscalização jurisdicional e que o requerente deve ter um interesse suficiente para que a autorização seja concedida. A regra 21 da Order 84 estabelece um prazo de três meses para a apresentação de um pedido ao tribunal, mas este prazo pode ser prorrogado, nomeadamente se existirem razões válidas e suficientes para o fazer.

13.      A Order 84 não prevê efeito suspensivo. A regra 20, ponto 8, alínea b), da Order 84 dispõe que, quando a autorização para pedir uma fiscalização jurisdicional é concedida, o tribunal, se considerar justo e oportuno, pode proferir um despacho que suspenda uma decisão a que o pedido se refere, quando se requer um despacho de proibição ou de certiorari (despacho destinado a anular uma decisão administrativa), até que seja decidido o pedido de fiscalização jurisdicional ou até que o tribunal decida de outra forma.

II.    Matéria de facto do litígio, processo principal, questões prejudiciais e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

14.      O recorrente no processo principal, AHY, é um nacional somali nascido em 21 de outubro de 1987.

15.      Em 21 de janeiro de 2020, apresentou um pedido de proteção internacional na Irlanda, por ter sido vítima de um atentado bombista na Somália, que destruiu a sua loja, matou um dos seus empregados e lhe deixou cicatrizes nas mãos e num braço.

16.      Uma pesquisa no Eurodac revelou que já tinha apresentado dois pedidos de proteção internacional na Suécia, em 5 de novembro de 2012 e 2 de outubro de 2017. Estes pedidos foram indeferidos.

17.      Por conseguinte, com base no artigo 18.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento Dublim III, as autoridades irlandesas enviaram ao Reino da Suécia um pedido de retomada a cargo, que este aceitou em 19 de fevereiro de 2020.

18.      Em 23 de julho de 2020, AHY foi notificado de uma decisão de transferência para a Suécia, decisão que impugnou no IPAT, pedindo a aplicação da cláusula prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III e alegando, nomeadamente, que sofria de depressão.

19.      O IPAT negou provimento a esse recurso em 5 de outubro de 2021 e confirmou a decisão de transferência.

20.      Em 8 de novembro de 2021, AHY foi informado de que devia apresentar‑se no Garda National Immigration Bureau (Serviço Nacional de Imigração) em 16 de dezembro do mesmo ano a fim de preparar a sua transferência para a Suécia, que devia ser efetuada o mais tardar em 6 de abril de 2022.

21.      Em 15 de novembro de 2021, AHY submeteu ao Ministro um pedido destinado a que este último exercesse o poder discricionário previsto no artigo 17.o do Regulamento Dublim III, pelo facto de, nomeadamente, existir o risco de cometer suicídio no caso dessa transferência ter lugar. Para o efeito, apresentou um relatório médico‑legal que indicava que ele apresentava um risco elevado de automutilação e de possível suicídio em caso de transferência para a Suécia. No decurso do processo, apresentou um segundo relatório médico‑legal que indicava que o risco de suicídio era mais elevado do que o descrito no primeiro relatório.

22.      Em 16 de fevereiro de 2022, foi indeferido o pedido destinado a que o Ministro exercesse o poder discricionário previsto no artigo 17.o do Regulamento Dublim III.

23.      Na sequência do segundo relatório médico‑legal, o Ministro fez uma adenda à decisão de indeferimento de exercício desse poder discricionário, especificando que o segundo relatório médico não tinha conduzido a uma alteração da sua posição expressa nessa decisão.

24.      AHY interpôs recurso desta decisão para o órgão jurisdicional de reenvio. Alega, nomeadamente, que, por força do artigo 27.o do Regulamento Dublim III, os recursos das decisões em que é recusado fazer uso do poder discricionário previsto no artigo 17.o deste regulamento têm efeito suspensivo automático.

25.      O órgão jurisdicional de reenvio confirmou e prorrogou as medidas provisórias obtidas por AHY em dezembro de 2021, proibindo a sua transferência para a Suécia, e decidiu submeter ao Tribunal de Justiça o presente reenvio prejudicial.

26.      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, nomeadamente, sobre o efeito suspensivo que um recurso de uma decisão do Ministro que recusa exercer o poder discricionário que lhe é conferido pelo artigo 17.o do Regulamento Dublim III pode ter sobre uma decisão de transferência, nomeadamente quando esta decisão já foi objeto de um recurso ao abrigo do artigo 27.o, n.o 1, desse regulamento.

27.      Nestas condições, a High Court (Tribunal Superior) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O direito a uma via de recurso efetiva, sob a forma de recurso ou de pedido de revisão, de facto e de direito, da «decisão de transferência», nos termos do disposto no artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento [Dublim III], abrange também o direito a um recurso efetivo de uma decisão, tomada pelo Estado‑Membro nos termos do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, quanto ao exercício [do seu poder discricionário previsto] no artigo 17.o, n.o 1, relativa à questão de saber se deve ou não analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja, ao abrigo dos critérios definidos no Regulamento Dublim III, da sua competência?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão prejudicial:

a)      Daí resulta que um Estado‑Membro requerente está impedido de executar uma decisão de transferência enquanto não houver uma decisão sobre o pedido do recorrente relativo ao exercício da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III?

b)      as disposições do artigo 27.o, n.o 3, que impõem aos Estados‑Membros a obrigação de prever, na sua legislação nacional, uma das três formas de efeito suspensivo dos recursos ou pedidos de revisão de decisões de transferência, abrangem o recurso de uma decisão tomada nos termos do artigo 17.o, n.o 1, [do Regulamento Dublim III] que recusa o exercício da faculdade de assumir a responsabilidade por um pedido de proteção internacional […]?

c)      quando nenhuma lei nacional específica prevê uma das três formas, previstas no artigo 27.o, n.o 3, [do Regulamento Dublim III] de efeito suspensivo dos recursos de uma decisão de recusa nos termos do artigo 17.o, são os órgãos jurisdicionais obrigados a reconhecer, ao abrigo da sua legislação nacional, um efeito suspensivo numa dessas três formas, e, na afirmativa, qual delas?

d)      devem todas as vias de recurso suspensivas previstas no artigo 27.o, n.o 3, [do Regulamento Dublim III] ser interpretadas no sentido de que suspendem a execução de uma decisão de transferência nos termos do artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III?

3)      Em caso de resposta negativa à primeira questão prejudicial:

a)      o direito à ação ao abrigo do artigo 47.o da [Carta] opõe‑se a que um Estado‑Membro requerente execute uma decisão de transferência enquanto não houver uma decisão sobre o pedido do recorrente relativo ao exercício da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III?

b)      o direito à ação ao abrigo do artigo 47.o da [Carta] opõe‑se a que um Estado‑Membro requerente execute uma decisão de transferência enquanto não houver uma decisão sobre o recurso de fiscalização jurisdicional, interposto ao abrigo do direito nacional, de uma decisão de recusa nos termos do artigo 17.o [do Regulamento Dublim III]?

c)      a título subsidiário, deve um recurso de fiscalização jurisdicional de uma decisão de recusa nos termos do artigo 17.o [do Regulamento Dublim III], interposto ao abrigo das disposições do direito nacional, resultar na suspensão da execução de uma decisão de transferência por força do artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III ou ter efeito suspensivo sobre a decisão de transferência?»

28.      O órgão jurisdicional de reenvio solicitou que o presente pedido de decisão prejudicial fosse submetido à tramitação urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

29.      Como fundamento do seu pedido, o referido órgão jurisdicional invocou o estado de saúde de AHY, precisando, nomeadamente, que estava preocupado, à luz dos elementos médicos de que dispunha, com o facto de o prazo de tramitação de um processo prejudicial ordinário poder representar um risco real para a sua saúde, ou mesmo para a sua vida, dado que o mesmo tinha desenvolvido pensamentos suicidas na sequência da decisão da sua transferência para a Suécia. O órgão jurisdicional de reenvio indicou igualmente que a urgência era reforçada pelo facto de as questões jurídicas suscitadas no presente processo se colocarem igualmente numa série de outros processos pendentes. A incerteza jurídica quanto à fiscalização de decisões que recusam a aplicação da cláusula prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III e quanto ao efeito suspensivo dos recursos dessas decisões teria um impacto sistémico no funcionamento do sistema instituído por esse regulamento na Irlanda e provocaria atrasos.

30.      Na reunião administrativa de 21 de junho de 2022, a Segunda Secção decidiu que não havia fundamento para deferir este pedido do órgão jurisdicional de reenvio.

31.      No âmbito do processo prejudicial ordinário, foram apresentadas observações escritas por AHY, pelo Ministro, pelos Governos Irlandês e Grego e pela Comissão Europeia.

III. Análise

32.      A título preliminar, cabe observar que as questões prejudiciais objeto do presente processo, que têm por objeto a fiscalização jurisdicional de uma decisão adotada pelas autoridades dos Estados‑Membros ao abrigo da cláusula que consta do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III e o eventual caráter suspensivo de um recurso jurisdicional interposto contra a decisão de transferência, se justificam, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, por duas ordens de considerações.

33.      A primeira prende‑se com as particularidades do sistema irlandês, em que a decisão de proceder ou não à transferência de um requerente de proteção internacional e a decisão de exercer ou não o poder discricionário decorrente do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III não são da competência da mesma autoridade. Enquanto a primeira decisão é tomada pelo IPO, a segunda é da competência do Ministro. Além disso, os recursos das decisões de transferência devem ser interpostos no IPAT, mas este órgão jurisdicional não é competente para decidir de um recurso de uma decisão do Ministro quanto ao exercício do referido poder discricionário. Com efeito, esta última decisão só pode ser impugnada mediante recurso de fiscalização jurisdicional na High Court (Tribunal Superior).

34.      Resulta também claramente da decisão de reenvio que, no estado atual do direito irlandês, estes dois procedimentos distintos podem ser acionados em momentos diferentes sem coordenação, nomeadamente em matéria de prazos. Assim, nada impede que um requerente de proteção internacional, objeto de uma decisão de transferência na Irlanda, apresente um pedido ao abrigo do artigo 17.o do Regulamento Dublim III num momento posterior ao não provimento do seu recurso dessa decisão de transferência pelo IPAT. Foi o que aconteceu no caso em apreço e, segundo as fontes disponíveis, em muitos outros casos.

35.      A segunda ordem de considerações diz respeito às questões suscitadas pelo Acórdão M.A. e o (3)., no qual o Tribunal de Justiça se pronunciou sobre as particularidades do sistema irlandês num contexto factual diferente do contexto do caso em apreço. O órgão jurisdicional de reenvio refere as dificuldades em determinar o alcance exato do raciocínio e da decisão do Tribunal de Justiça nesse acórdão.

A.      Quanto à primeira questão prejudicial

36.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que exige que os Estados‑Membros prevejam uma via de recurso efetiva contra uma decisão de um Estado‑Membro de exercer, ou de recusar exercer, o seu poder discricionário para assumir, nos termos do artigo 17.o, n.o 1, desse regulamento, a responsabilidade pela análise de um pedido de proteção internacional que não é da sua competência por força dos critérios enunciados pelo referido regulamento.

37.      A resposta do Tribunal de Justiça determinará, no entender do órgão jurisdicional de reenvio, se a questão do efeito suspensivo do recurso de fiscalização jurisdicional previsto pelo direito irlandês e pendente no processo principal, deve ser apreciada à luz do artigo 27.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III (segunda série de questões) ou do artigo 47.o da Carta (terceira série de questões).

38.      A fim de ilustrar a minha posição, procederei da seguinte forma. Antes de mais, apresentarei os elementos que definem o conteúdo da cláusula que figura no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III (subsecção 1). Seguidamente, examinarei a jurisprudência sobre o direito a uma via de recurso efetiva, consagrado no artigo 27.o, n.o 1, desse regulamento, a fim de determinar se este direito inclui o de dispor de um recurso contra a decisão de fazer ou não uso da cláusula prevista no artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento (subsecção 2). Por último, a interpretação assim desenvolvida será confrontada com os ensinamentos que decorrem do Acórdão M. A. e o. (subsecção 3), para chegar à proposta de uma resposta à presente questão prejudicial (subsecção 4).

1.      Cláusula que consta do artigo 17.o, n.o1, do Regulamento Dublim III

39.      Há que recordar, antes de mais, que o Regulamento Dublim III tem por objetivo estabelecer os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida.

40.      O sistema instaurado por este regulamento baseia‑se no princípio, estabelecido no seu artigo 3.o, n.o 1, segundo o qual um único Estado‑Membro é competente para analisar a necessidade de proteção internacional de um requerente.

41.      Para este efeito, o capítulo III do referido regulamento estabelece uma hierarquia de critérios objetivos e equitativos, tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa (4). Estes critérios, que constam dos artigos 8.o a 15.o desse mesmo regulamento, destinam‑se a fornecer um método claro e operacional por forma a permitir uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de concessão de proteção internacional e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional (5).

42.      O capítulo IV do Regulamento Dublim III contém, além do artigo 16.o, relativo às pessoas a cargo, o artigo 17.o, com a epígrafe «Cláusulas discricionárias». O seu n.o 1 prevê que, em derrogação do artigo 3.o, n.o 1, desse regulamento, um Estado‑Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos pelo Regulamento Dublim III.

43.      Esta disposição baseia‑se essencialmente em três características.

44.      Primeiro, trata‑se de um elemento de flexibilidade do regime jurídico em causa. O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III reproduz a cláusula de «soberania» que figurava no artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 343/2003 (a seguir «Regulamento Dublim II») (6) e, antes disso, no artigo 3.o, n.o 4, da Convenção de Dublim (7). Se esta cláusula sobreviveu a todas as reformas legislativas realizadas pela União neste domínio foi porque constitui a tradução do princípio, decorrente do direito internacional e, concretamente, da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados (8), segundo a qual o reconhecimento do direito de asilo é uma prerrogativa do Estado (9). Por outras palavras, em conformidade com este princípio, os Estados devem dispor do direito de examinar o mérito de todos os pedidos de asilo que lhes são apresentados.

45.      Segundo, a localização da cláusula de soberania no capítulo IV do Regulamento Dublim III sugere o seu caráter autónomo em relação aos critérios enunciados no capítulo III do referido regulamento.

46.      Terceiro, e sobretudo, esta cláusula implica a atribuição de um amplo poder discricionário aos Estados‑Membros. Como a jurisprudência tem repetidamente reconhecido, trata‑se de uma faculdade («um Estado‑Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida […]») (10) que não está sujeita a nenhuma condição especial. Segundo o Tribunal de Justiça, cabe a cada Estado‑Membro determinar as circunstâncias em que pretende fazer uso desta faculdade e decidir analisar ele próprio um pedido de proteção internacional pelo qual não é responsável por força dos critérios definidos pelo Regulamento Dublim III (11).

47.      Com efeito, e como demonstra a proposta da Comissão que conduziu à adoção do Regulamento Dublim II (12), a cláusula em questão foi introduzida a fim de permitir que cada Estado‑Membro decida soberanamente, em função de considerações políticas, humanitárias ou práticas, aceitar analisar um pedido de asilo mesmo que não seja ele o responsável por essa análise (13).

48.      Qualquer argumento segundo o qual as circunstâncias específicas do processo têm o efeito de circunscrever o poder discricionário do Estado‑Membro até ao ponto de lhe impor uma obrigação de ativar a cláusula de soberania, foi até agora rejeitado pelo Tribunal de Justiça (14).

49.      Concretamente, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que esta cláusula não pretende ser uma salvaguarda contra as disfuncionalidades do sistema de Dublim que possam conduzir a violações dos direitos fundamentais dos requerentes de proteção internacional (15).

50.      Importa recordar, a este respeito, que esse sistema assenta na confiança mútua, incluindo uma presunção de respeito dos direitos fundamentais pelos outros Estados‑Membros. Esta confiança é posta em causa em duas circunstâncias.

51.      A primeira é quando existem razões sérias para acreditar que no Estado‑Membro inicialmente designado como responsável existem falhas sistémicas no que respeita ao procedimento de asilo e às condições de acolhimento dos requerentes de asilo, suscetíveis de expor os referidos requerentes a um risco de tratamento desumano ou degradante, na aceção do artigo 4.o da Carta. Se esta situação levar a que, na impossibilidade de identificar outro Estado‑Membro responsável, o Estado‑Membro que determinou o Estado‑Membro responsável se torne ele próprio responsável, tal obrigação decorre do artigo 3.o, n.o 2, segundo e terceiro parágrafos, do Regulamento Dublim III, e não da aplicação da cláusula de soberania. A segunda é quando existe um risco real de expor um requerente de proteção internacional, em virtude do seu estado de saúde, a um tratamento desumano e degradante, na aceção do artigo 4.o da Carta. No Acórdão C. K. e o (16).,  o Tribunal de Justiça declarou que, embora este risco possa justificar a suspensão da execução da transferência, não implica que o Estado‑Membro ao qual o pedido foi apresentado seja obrigado a declarar‑se responsável pela sua análise em aplicação da cláusula de soberania.

52.      Em suma, embora a exigência de proteção dos direitos fundamentais possa obrigar o Estado‑Membro ao qual é apresentado o pedido a afastar, pelo menos provisoriamente, a aplicação dos critérios que figuram no capítulo III do Regulamento Dublim III, esta exigência não pode obrigar os Estados‑Membros a exercer o poder de evocação que lhes é conferido pelo artigo 17.o, n.o 1, desse regulamento. Daqui resulta que o caso em que a proteção dos direitos fundamentais justifica a derrogação dos critérios estabelecidos pelo Regulamento Dublim III é distinto da aplicação da cláusula de soberania. Mais recentemente, no Acórdão M.A. e o., o Tribunal de Justiça reiterou a sua posição, ao afirmar que a tomada em consideração do interesse superior da criança não pode obrigar um Estado‑Membro a fazer uso desta cláusula e a analisar ele próprio um pedido que não lhe incumbe.

53.      Por último, importa acrescentar que resulta da jurisprudência que mesmo as situações de crise humanitária em certos Estados‑Membros, como a que ocorreu nos Balcãs Ocidentais entre o final de 2015 e o início de 2016, não podem dar origem a uma obrigação, para os outros Estados‑Membros, de recorrer à cláusula de soberania relativamente aos pedidos de proteção internacional que lhes são apresentados, tendo, no entanto, o Tribunal de Justiça tido o cuidado de sublinhar que o exercício da faculdade de ativar essa cláusula seria, nesse caso, coerente com o princípio da solidariedade consagrado no artigo 80.o TFUE e subjacente ao Regulamento Dublim III (17).

2.      O direito a um recurso efetivo ao abrigo do Regulamento Dublim III

54.      O artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III prevê que o requerente de proteção internacional tem direito a uma via de recurso efetiva, sob a forma de recurso ou de pedido de revisão, de facto e de direito, da decisão de transferência, para um órgão jurisdicional.

55.      O âmbito do recurso de que dispõe o requerente de proteção internacional contra uma decisão de transferência tomada a seu respeito é especificado no considerando 19 do Regulamento Dublim III, que estabelece que, a fim de garantir o respeito do direito internacional, o direito efetivo de recurso contra decisões de transferência deverá abranger, por um lado, a análise da aplicação do referido regulamento, e, por outro, da situação jurídica e factual no Estado‑Membro para o qual o requerente é transferido (18).

56.      No que diz respeito ao objeto do exame da aplicação do regulamento em causa, o Tribunal de Justiça reafirmou sistematicamente a interpretação extensiva resultante da linha de raciocínio do Acórdão de 7 de junho de 2016, Ghezelbash (C‑63/15, a seguir «Acórdão Ghezelbash», EU:C:2016:409).

57.      Este raciocínio baseou‑se em duas considerações essenciais. Primeiro, ao adotar o Regulamento Dublim III, o legislador da União associou os requerentes de asilo ao processo de determinação do Estado‑Membro responsável, obrigando os Estados‑Membros a informá‑los dos critérios de responsabilidade e dando‑lhes a oportunidade de prestarem as informações que permitam a correta aplicação desses critérios, bem como assegurando‑lhes um direito de recurso efetivo contra a decisão de transferência eventualmente tomada na sequência de um processo. Segundo, o Regulamento Dublim III visa melhorar a proteção concedida aos referidos requerentes, sendo esta assegurada, nomeadamente, pela proteção jurisdicional de que beneficiam.

58.      Uma interpretação restritiva do âmbito do recurso previsto no artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III seria suscetível, segundo o Tribunal de Justiça, de impedir a realização deste objetivo, privando de efeito útil os outros direitos do requerente de asilo consagrados neste regulamento (19).

59.      Assim, no Acórdão Ghezelbash, o Tribunal de Justiça começou por concluir que um requerente de asilo tem o direito de invocar, no âmbito de um recurso contra a decisão de transferência tomada a seu respeito, a aplicação incorreta de um critério de responsabilidade previsto no capítulo III do Regulamento Dublim III. Em acórdãos posteriores, o Tribunal de Justiça reconheceu que o mesmo requerente pode igualmente invocar o incumprimento de disposições de outros capítulos do Regulamento Dublim III que conferem garantias processuais aos requerentes de asilo.

60.      No Acórdão Karim (20), considerou‑se que uma destas disposições é o artigo 19.o, n.o 2, segundo parágrafo, daquele regulamento, nos termos do qual, quando, após ter apresentado um primeiro pedido de asilo num Estado‑Membro, um nacional de um país terceiro tiver abandonado o território dos Estados‑Membros durante um período mínimo de três meses antes de apresentar um novo pedido de asilo noutro Estado‑Membro, este último é obrigado a realizar o procedimento de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise desse novo pedido.

61.      No Acórdão Mengesteab (21), considerou‑se que outra disposição deste tipo é o artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, nos termos do qual, se um pedido de tomada a cargo não for formulado nos prazos ali previstos, a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional cabe ao Estado‑Membro ao qual o pedido tiver sido apresentado. No Acórdão Shiri (22), o Tribunal incluiu igualmente na categoria em questão o artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III, nos termos do qual, se a transferência do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável não for efetuada no prazo previsto nesse artigo, este último Estado fica isento da sua obrigação de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa e a responsabilidade é então transferida para o Estado‑Membro requerente.

62.      Nessa jurisprudência, parece‑me que o Tribunal de Justiça atribuiu um peso decisivo ao facto de que cada uma das disposições examinadas estabelece o quadro em que o processo de determinação do Estado‑Membro responsável deve ter lugar e contribui igualmente, da mesma forma que os critérios enunciados no capítulo III, para a determinação do Estado‑Membro responsável (23).

63.      Conclui‑se, a meu ver, que o alcance da via de recurso efetiva prevista no artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III contra uma decisão de transferência abrange o exame da aplicação das referidas disposições, na medida em que estas consagram regras que, devido ao seu caráter obrigatório para o Estado‑Membro em causa, são suscetíveis de conferir ao requerente de proteção internacional o direito a que o seu pedido seja examinado pelo Estado‑Membro responsável.

64.      Não é este o caso do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, uma vez que a ativação da cláusula de soberania nele contida tem, como já foi explicado anteriormente, caráter puramente facultativo (24).

65.      Por conseguinte, há que concluir que o direito a uma via de recurso efetiva previsto no artigo 27.o, n.o 1, daquele regulamento não inclui o direito de impugnar a recusa de fazer uso da cláusula de soberania pelo Estado‑Membro ao qual é submetido o pedido de proteção internacional.

66.      Na minha opinião, esta análise não é posta em causa pelo recente acórdão de 1 de agosto de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Recusa de tomada a cargo de um menor egípcio não acompanhado) (C‑19/21, EU:C:2022:605).

67.      É verdade que o Tribunal de Justiça considerou nesse acórdão que um requerente de proteção internacional deve poder interpor recurso judicial, nos termos do artigo 27.o do Regulamento Dublim III, não só na hipótese de o Estado‑Membro requerente adotar uma decisão de transferência, como também na de o Estado‑Membro requerido recusar a tomada a cargo do interessado. No entanto, esta interpretação lata do Tribunal de Justiça foi possível pelo facto de a legalidade da decisão de recusa de tomada a cargo do requerente em causa ter sido impugnada à luz de um dos critérios de responsabilidade enunciados no capítulo III desse regulamento. Essa circunstância decorre explicitamente do número do acórdão assim formulado: «a proteção jurisdicional de um requerente menor não acompanhado não pode variar, no que toca ao respeito do critério obrigatório de responsabilidade que figura no artigo 8.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III, consoante esse requerente seja alvo de uma decisão de transferência, tomada pelo Estado‑Membro requerente, ou de uma decisão pela qual o Estado‑Membro requerido indefere o pedido de tomada a cargo do referido requerente» (25). Concluo que a decisão de recusa de utilização da cláusula de soberania não é uma das decisões abrangidas pelo direito a uma via de recurso efetiva previsto no artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III.

3.      Alcance do Acórdão M.A. e o.

68.      A interpretação que acaba de ser proposta parece‑me perfeitamente compatível com o Acórdão M.A. e o.

69.      O órgão jurisdicional de reenvio faz referência, nomeadamente, a duas partes do acórdão.

70.      Primeiro, o Tribunal de Justiça considerou que o poder de apreciação reconhecido aos Estados‑Membros pela cláusula de soberania faz parte integrante dos mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável concebidos pelo legislador da União (26).

71.      Segundo, o Tribunal de Justiça pronunciou‑se sobre a mesma problemática que é objeto da presente questão prejudicial. A este respeito, começou por constatar que o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III não prevê expressamente o recurso da decisão de não fazer uso da faculdade prevista no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento e que o objetivo de celeridade na determinação do Estado‑Membro responsável, subjacente ao procedimento instituído pelo Regulamento Dublim III, convida a não multiplicar as vias de recurso (27). Em seguida, o Tribunal de Justiça indicou que, é certo que o artigo 47.o da Carta dispõe que qualquer pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a um recurso efetivo num tribunal nos termos previstos neste artigo (28). Todavia, se um Estado‑Membro recusa fazer uso da cláusula de soberania, isso equivale necessariamente, segundo o Tribunal de Justiça, a que esse Estado‑Membro adote uma decisão de transferência (29). Assim, o Tribunal de Justiça conclui que o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser entendido no sentido de que «não impõe que seja previsto um recurso da decisão de não fazer uso da faculdade prevista no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento, sem prejuízo de essa decisão poder ser impugnada no âmbito de um recurso da decisão de transferência» (30).

72.      Há que admitir que a argumentação do Tribunal de Justiça não é fácil de apreender e que as dúvidas suscitadas pelo órgão jurisdicional de reenvio não são, portanto, surpreendentes. Esse órgão jurisdicional parece inclinar‑se para uma leitura, defendida igualmente por AHY e a Comissão nas respetivas observações escritas, segundo a qual, na medida em que o artigo 17.o do Regulamento Dublim III faz parte integrante dos mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável, o direito a um recurso efetivo contra uma decisão de transferência, previsto no artigo 27.o, n.o 1, deste regulamento, deve igualmente incluir o direito a um recurso efetivo contra uma decisão adotada ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento.

73.      A meu ver, não há dúvidas de que esta interpretação é incorreta.

74.      Desde logo, importa observar que, no processo que deu origem ao Acórdão M. A. e o., os requerentes não tinham solicitado ao Ministro a aplicação a seu favor da cláusula de soberania, na sequência da adoção da decisão de transferência. Pelo contrário, o Office of the Refugee Applications Commissioner (Gabinete do Comissário responsável pelos recursos dos refugiados, Irlanda) tinha recomendado a sua transferência para o Reino Unido após ter recusado fazer uso da referida cláusula. Daqui resulta que a resposta do Tribunal de Justiça assenta necessariamente na premissa de que essa decisão de recusa foi adotada anteriormente à adoção da decisão de transferência (31). Relativamente a esta hipótese, o Tribunal de Justiça entendeu, em substância, que as exigências inerentes ao princípio da proteção jurisdicional efetiva são satisfeitas pela possibilidade de impugnar a referida recusa no âmbito do recurso contra a decisão de transferência.

75.      A meu ver, seria incorreto deduzir daí a contrario, como fizeram AHY e a Comissão, que, se a decisão de não fazer uso da cláusula de soberania fosse tomada num momento posterior à adoção da decisão de transferência, essas mesmas exigências tornariam indispensável um recurso separado contra a primeira decisão. Com efeito, seria difícil conciliar esta leitura com as considerações literal e teleológica que figuram nos primeiros pontos da resposta do Tribunal de Justiça a esta questão prejudicial, segundo as quais, respetivamente, o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III não prevê expressamente um recurso da decisão de não fazer uso da cláusula de soberania, e o objetivo de celeridade na determinação do Estado‑Membro responsável convida a evitar a multiplicação das vias de recurso.

76.      Além disso, a formulação do n.o 79 do acórdão em causa, acima reproduzida, deve ser entendida no sentido de que um recurso específico contra a decisão de um Estado‑Membro que recusa exercer o poder que lhe é conferido pela cláusula de soberania não é, regra geral, imposto pelo artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III e que a única conclusão relativa à possibilidade de impugnar esta decisão no âmbito de um recurso contra a decisão de transferência depende do facto de a primeira decisão ser tomada antes da segunda.

77.      As considerações que acabam de ser desenvolvidas parecem‑me fornecer a chave para interpretar o número do acórdão, acima citado, segundo o qual o poder de apreciação conferido aos Estados‑Membros pela cláusula de soberania faz parte integrante dos mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável, previstos no Regulamento Dublim III.

78.      Importa começar por observar que, numa linha de jurisprudência que remonta ao Acórdão N. S. e o., o Tribunal de Justiça se baseou nessa constatação para concluir que a decisão adotada por um Estado‑Membro com base na cláusula de soberania aplicava o direito da União e devia, por conseguinte, respeitar os direitos consagrados na Carta (32).

79.      Na minha opinião, a referida constatação não pode ser validamente invocada para sustentar que um recurso específico contra a recusa de aplicar a cláusula de soberania deve necessariamente ser reconhecido aos requerentes de proteção internacional pelo direito do Estado‑Membro em causa.

80.      Com efeito, ao declarar que o poder discricionário dos Estados‑Membros decorrente do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III faz parte integrante dos «mecanismos» de determinação do Estado‑Membro responsável, o Tribunal de Justiça parece‑me ter utilizado uma linguagem que revela que este artigo não se integra no conjunto de disposições do Regulamento Dublim III que impõem uma obrigação aos Estados‑Membros e que, correlativamente, conferem um direito aos requerentes de proteção internacional.

81.      O exercício deste poder discricionário aplica o direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, uma vez que conduz à adoção de uma decisão de transferência. Consequentemente, qualquer fundamento baseado numa violação da Carta pode ser invocado no âmbito de um recurso contra esta última decisão, tal como previsto no artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III. Em contrapartida, quando um requerente de proteção internacional impugna a legalidade da decisão de transferência com base num vício da decisão de recusa de utilização da cláusula de soberania, os fundamentos invocados devem necessariamente assentar no direito nacional.

4.      Conclusão sobre a primeira questão prejudicial

82.      Face às considerações anteriores, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda à primeira questão que o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que não impõe aos Estados‑Membros que prevejam um recurso efetivo contra uma decisão do Estado‑Membro de exercer, ou de recusar exercer, o seu poder discricionário a fim de assumir a responsabilidade pela análise de um pedido de proteção internacional nos termos do artigo 17.o n.o 1, deste regulamento.

83.      Tendo em conta as observações feitas anteriormente a propósito da natureza da cláusula de soberania, a circunstância de o recorrente no processo principal ter invocado, em apoio do seu pedido de ativação desta cláusula, um elemento destinado a demonstrar o risco de violação de um desses direitos fundamentais, a saber, um relatório médico sobre o seu estado de saúde psicológico, não infirma a interpretação sugerida. Na falta de restrições impostas pelo direito da União, a decisão do Ministro de não fazer uso da referida cláusula só pode ser objeto de fiscalização jurisdicional da legalidade externa dessa decisão, tal como previsto no direito irlandês.

84.      Do mesmo modo, não se pode identificar uma incompatibilidade com a afirmação do Tribunal de Justiça, no Acórdão M. A. e o., segundo a qual o Regulamento Dublim III não exige que a determinação do Estado‑Membro responsável, em função dos critérios estabelecidos por este regulamento, e o exercício do poder discricionário decorrente da cláusula de soberania sejam garantidos pela mesma autoridade nacional.

85.      Ora, estou consciente de que a interpretação que preconizo não só equivaleria a obrigar os Estados‑Membros a prever que a adoção da decisão tomada ao abrigo da cláusula de soberania precede invariavelmente a da decisão de transferência, como também obrigaria certos Estados‑Membros, como a Irlanda, a rever a repartição de competências entre as autoridades judiciais, a fim de garantir que a autoridade que aprecia o recurso contra a decisão de transferência seja competente para apreciar a recusa de aplicar esta cláusula. Com efeito, mesmo que se preveja que qualquer decisão relativa ao uso da cláusula de soberania deve ser tomada antes da adoção de uma decisão de transferência pelo IPO, o IPAT continua a não ser competente para examinar os argumentos destinados a impugnar a legalidade dessa decisão.

86.      Cabe referir, porém, que isso não constitui uma razão para adotar uma interpretação diferente, uma vez que, como é sabido, um Estado‑Membro não pode invocar disposições, práticas ou situações da sua ordem jurídica interna para justificar o incumprimento das obrigações que decorrem para ele do direito da União (33).

87.      Uma vez que a segunda questão prejudicial só deve ser respondida em caso de resposta afirmativa à presente questão, há que responder apenas à terceira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio.

B.      Quanto à terceira questão prejudicial

88.      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o direito à ação previsto pelo artigo 47.o da Carta se opõe a que um Estado‑Membro execute uma decisão de transferência enquanto não houver uma decisão sobre o pedido destinado a que esse Estado exerça o seu poder discricionário ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, ou sobre um recurso judicial específico, interposto nos termos das disposições do direito nacional, contra a resposta a esse pedido.

89.      Por outras palavras, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à questão de saber se um requerente de proteção internacional que não obteve a anulação de uma decisão de transferência com base nos critérios do capítulo III do Regulamento Dublim III, e cujo recurso de fiscalização jurisdicional contra uma decisão de recusa de utilização da cláusula de soberania ainda não foi decidido, pode ser transferido antes de esse recurso ter sido decidido. Assim, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, uma certa forma de efeito suspensivo da execução da decisão de transferência na pendência do resultado do recurso contra essa decisão de recusa seria adequada para evitar uma violação do artigo 47.o da Carta.

90.      No que diz respeito ao artigo 47.o da Carta, importa começar por observar que o preâmbulo do Regulamento Dublim III contém referências a esta disposição. De acordo com o seu considerando 19, este regulamento visa instaurar o direito efetivo de recurso contra decisões de transferência nos termos, nomeadamente, do artigo 47.o da Carta. De acordo com o seu considerando 39, o mesmo regulamento visa assegurar o pleno respeito do direito de asilo garantido pelo artigo 18.o da Carta, bem como dos direitos nela reconhecidos pelos artigos 1.o, 4.o, 7.o, 24.o e 47.o da Carta.

91.      O artigo 47.o da Carta dispõe o seguinte: «Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo.»

92.      Resulta da jurisprudência que o caráter efetivo dessa ação exige, em casos excecionais, que lhe seja atribuído efeito suspensivo. Mais precisamente, o Tribunal de Justiça declarou, a propósito da Diretiva 2008/115/CE (34), que, quando existam motivos sérios para acreditar que o afastamento de um nacional de um país terceiro constituiria uma violação do seu direito de não ser sujeito a tratamentos desumanos ou degradantes, o nacional em causa deve dispor de um recurso com efeito suspensivo contra a execução da decisão que autoriza esse afastamento, a fim de evitar danos graves e irreparáveis na pendência do resultado desse recurso (35).

93.      Além disso, o Tribunal de Justiça não excluiu, no que diz respeito ao Regulamento Dublim III, que a execução de uma decisão de transferência seja suscetível de implicar, a título excecional, um prejuízo dessa ordem (36), e que a eficácia de um recurso contra tal decisão possa, por conseguinte, tornar indispensável o efeito suspensivo.

94.      É evidente, no entanto, que a problemática relativa à exigência de garantir essa eficácia não se coloca numa situação como a do caso em apreço.

95.      Com efeito, o artigo 47.o da Carta impõe a existência de uma ação apenas quando esteja em causa um direito (ou uma liberdade) garantido pelo direito da União. Em contrapartida, tal como foi acima explicado, o requerente de proteção internacional não dispõe de nenhum direito, garantido pelo direito da União, a que o Estado‑Membro onde o pedido foi apresentado assuma a responsabilidade pela análise desse pedido nos termos do artigo 17.o do Regulamento Dublim III. Na inexistência desse direito, o direito a uma ação consagrado no artigo 47.o da Carta não é aplicável.

96.      Por conseguinte, a questão de saber se o recurso de fiscalização jurisdicional previsto pelo direito irlandês tem efeito suspensivo depende unicamente das disposições desse direito.

97.      A título subsidiário, o órgão jurisdicional de reenvio coloca uma questão relativa à interpretação do artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento Dublim III.

98.      Cabe recordar que este artigo prevê que a transferência da pessoa em causa se efetue logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo dessa pessoa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27. o, n. o 3, desse regulamento.

99.      O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se um recurso judicial específico contra uma decisão de recusa de utilização da cláusula de soberania tem por efeito suspender o prazo de execução de uma decisão de transferência, previsto no artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, ou se tem efeito suspensivo sobre a decisão de transferência de qualquer outra forma. Mais precisamente, o órgão jurisdicional de reenvio parece pretender saber se o artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que o prazo de seis meses nele previsto começa a correr a partir da data da decisão final sobre um recurso contra uma decisão de um Estado‑Membro de não fazer uso da cláusula de soberania, tomada após a adoção da decisão de transferência, como o recurso de «judicial review» previsto no direito irlandês.

100. Parece‑me que a resposta tem de ser necessariamente negativa.

101. Como já demonstrei acima, o artigo 47.o da Carta não exige que os Estados‑Membros atribuam efeito suspensivo a um recurso interposto ao abrigo das disposições do direito nacional, como o presente recurso de «judicial review». Conclui‑se logicamente que o prazo de seis meses para proceder à transferência do requerente de proteção internacional começa a correr, no caso vertente, a partir da data em que é negado provimento a um recurso contra uma decisão de transferência.

102. Atendendo às considerações anteriores, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à terceira questão prejudicial no sentido de que o artigo 47.o da Carta não se opõe a que um Estado‑Membro execute uma decisão de transferência antes de ter sido tomada uma decisão sobre um pedido destinado a que esse Estado exerça o seu poder discricionário, nos termos do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, ou sobre um recurso específico, interposto, ao abrigo das disposições do direito nacional, contra a resposta a esse pedido. Neste caso, o prazo de seis meses para proceder à transferência do requerente de proteção internacional, tal como previsto no artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento Dublim III, começa a correr a partir da data em que é negado provimento ao recurso contra uma decisão de transferência.

C.      Observações finais

103. De acordo com um estudo realizado pela Comissão e publicado em 2016, as autoridades irlandesas já tinham manifestado a sua frustração face ao aumento considerável de litígios gerado pelo artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III. Segundo essas autoridades, esta disposição era entendida, a nível nacional, no sentido de que introduz um «procedimento quase novo», o que teve por efeito criar uma carga administrativa significativa para os órgãos jurisdicionais nacionais (37).

104. A meu ver, o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III não pode ser entendido no sentido de que permite estabelecer um procedimento administrativo distinto daquele que termina com a adoção da decisão de transferência. Pelo contrário, estou convencido de que o Regulamento Dublim III estabeleceu um regime jurídico em que nenhum ato administrativo posterior à decisão de transferência é suscetível de afetar a validade desta última.

105. Deste ponto de vista, as disposições nacionais que dissociam o exercício do poder discricionário decorrente da cláusula de soberania da decisão de transferência adotada ao abrigo do Regulamento Dublim III, e que permitem que um pedido de exercício desse poder discricionário seja apresentado e apreciado independentemente da adoção de uma decisão de transferência e após essa adoção, são suscetíveis de entravar o bom funcionamento do regulamento em geral, como reconhece a Comissão nas suas observações escritas.

106. Além de assentar numa leitura errada das disposições pertinentes do direito derivado, entendo que a conclusão de que os Estados‑Membros são obrigados a prever um recurso separado contra a decisão de utilizar, ou de não utilizar, a cláusula de soberania acabaria, aos olhos dos Estados‑Membros, por validar opções legislativas nacionais suscetíveis de produzir a consequência referida no final do número anterior.

107. A este respeito, convido a considerar, a título de exemplo, o artigo 26.o daquele regulamento.

108. Nos termos deste artigo, que constitui uma das garantias processuais abrangidas pelo Regulamento Dublim III, a notificação da decisão de transferência à pessoa em causa inclui, se for caso disso, a decisão de não analisar o seu pedido de proteção internacional, tal como, em minha opinião, a decisão de recusa de utilização da cláusula de soberania. Ora, esta decisão não poderia ser notificada como parte da decisão de transferência se só fosse tomada após a adoção desta última. Além disso, nesse caso, a informação sobre as vias de recurso que deve figurar na decisão notificada em conformidade com o artigo 26.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III seria necessariamente parcial, uma vez que não poderia abranger as vias de recurso disponíveis contra a decisão de recusa de utilização da cláusula de soberania.

IV.    Conclusão

109. Tendo em conta as considerações anteriores, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo às questões prejudiciais submetidas pela High Court (Tribunal Superior, Irlanda):

1)      O artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida

deve ser interpretado no sentido de que:

não impõe aos Estados‑Membros que prevejam um recurso efetivo contra uma decisão do Estado‑Membro de exercer, ou de recusar exercer, o seu poder discricionário a fim de assumir, nos termos do artigo 17.o n.o 1, deste regulamento, a responsabilidade pela análise de um pedido de proteção internacional que não lhe incumbe por força dos critérios enunciados pelo referido regulamento.

2)      O artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não se opõe a que um Estado‑Membro execute uma decisão de transferência antes de ter sido tomada uma decisão sobre um pedido destinado a que esse Estado exerça o seu poder discricionário, nos termos do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 604/2013 ou sobre um recurso específico, interposto, ao abrigo das disposições do direito nacional, contra a resposta a esse pedido. Neste caso, o prazo de seis meses para proceder à transferência do requerente de proteção internacional, tal como previsto no artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 604/2013, começa a correr a partir da data em que é negado provimento ao recurso contra uma decisão de transferência.


1      Língua original: francês.


2      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31).


3      Acórdão de 23 de janeiro de 2019 (C‑661/17, a seguir «Acórdão M.A. e o.», EU:C:2019:53).


4      V. considerando 5 do Regulamento Dublim III.


5      V. considerando 4 do Regulamento Dublim III.


6      Regulamento do Conselho de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO 2003, L 50, p. 1).


7      Convenção sobre a determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num Estado‑Membro das Comunidades Europeias ‑ Convenção de Dublim (JO 1997, C 254, p. 1).


8      Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra em 28 de julho de 1951, United Nations Treaty Series, vol. 189, p. 150, n.o 2545 (1954).


9      V. Acórdão de 5 de julho de 2018, X (C‑213/17, EU:C:2018:538, n.o 61 e jurisprudência aí referida).


10      O sublinhado é meu.


11      V. Acórdão de 16 de fevereiro de 2023, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Nascituro no momento do pedido de asilo) (C‑745/21, EU:C:2023:113, n.o 50 e jurisprudência aí referida).


12      Proposta de regulamento do Conselho que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro/* COM/2001/0447 final ‑ CNS 2001/0182 */(JO 2001, C 304E, p. 192).


13      V. Acórdão de 4 de outubro de 2018, Fathi (C‑56/17, EU:C:2018:803, n.o 53 e jurisprudência aí referida).


14      V., nomeadamente, Acórdãos de 14 de novembro de 2013, Puid (C‑4/11, EU:C:2013:740); de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127); e M.A. e o.


15      A este respeito, v. análise de Petralia V., «Clausola di sovranità e tutela dei diritti umani nel sistema di Dublino», Studi sull'integrazione europea, XII (2017), pp. 553‑568.


16      Acórdão de 16 de fevereiro de 2017 (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127).


17      V. Acórdão de 26 de julho de 2017, Jafari (C‑646/16, EU:C:2017:586, n.o 100). V., igualmente, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões ‑ Agenda Europeia da Migração/* COM/2015/0240 final */, na qual a Comissão refere o seu desejo de que os Estados‑Membros «[façam] uma utilização mais ampla e regular das cláusulas discricionárias que lhes permita analisar um pedido de asilo e aliviar a pressão sobre os Estados‑Membros que estão na primeira linha».


18      Acórdão de 2 de abril de 2019, H. e R. (C‑582/17 e C‑583/17, EU:C:2019:280, n.o 39 e jurisprudência aí referida).


19      V. Acórdão Ghezelbash (C‑63/15, EU:C:2016:409, n.os 51 a 53).


20      Acórdão de 7 de junho de 2016 (C‑155/15, EU:C:2016:410).


21      Acórdão de 26 de julho de 2017 (C‑670/16, EU:C:2017:587).


22      Acórdão de 25 de outubro de 2017 (C‑201/16, EU:C:2017:805).


23      V. Acórdãos de 7 de junho de 2016, Karim (C‑155/15, EU:C:2016:410, n.os 23 a 25); de 26 de julho de 2017, Mengesteab (C‑670/16, EU:C:2017:587, n.o 53); e de 25 de outubro de 2017, Shiri (C‑201/16, EU:C:2017:805, n.o 39).


24      A este respeito, cabe observar que a correlação necessária entre a existência de um poder discricionário alargado por parte das autoridades públicas e a inexistência de um direito dos destinatários foi igualmente expressa pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») na sua análise destinada a verificar o cumprimento das condições de aplicabilidade do artigo 6.o da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950 (a seguir «CEDH») (Direito a um processo equitativo). Com efeito, embora tenha repetidamente declarado que a mera presença de um elemento discricionário na redação de uma disposição legal não exclui, por si só, a existência de um direito (v. TEDH, Acórdão de 18 de outubro de 2016, Miessen c. Bélgica, CE:ECHR:2016:1018JUD003151712, § 48), o TEDH também concluiu, em casos em que a autoridade competente dispunha de um amplo poder discricionário, que não era possível identificar um direito e que o artigo 6.o da CEDH era, assim, inaplicável (TEDH, Acórdãos de 28 de setembro de 1995, Masson e Van Zon c. Países Baixos, CE:ECHR:1995:0928JUD001534689, § 51, Série A n.o 327‑A, §§ 48 a 52, e de 3 de abril de 2012, Boulois c. Luxemburgo, CE:CEDH:2012:8.8.2008, §§ 48 a 52). Luxemburgo, CE:ECHR:2012:0403JUD003757504, nomeadamente § 102).


25      Acórdão de 1 de agosto de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid ((Recusa de tomada a cargo de um menor egípcio não acompanhado) (C‑19/21, EU:C:2022:605, n.o 41) (o sublinhado é meu).


26      Acórdão M.A. e o., n.o 64.


27      Acórdão M.A. e o., n.os 75 e 76.


28      Acórdão M.A. e o., n.o 77.


29      Acórdão M.A. e o., n.o 78.


30      Acórdão M.A. e o., n.o 79.


31      Isso ressalta de forma mais evidente do n.o 78 da versão em língua inglesa de processo do Acórdão M.A. e o. («if a Member State refuses to use the discretionary clause set out in Article 17(1) of the Dublin III Regulation, that necessarily means that that Member State must adopt a transfer decision») (o sublinhado é meu).


32      Acórdão de 21 de dezembro de 2011 (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 68 e 69). V., também, Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 53).


33      V. Acórdão de 27 de abril de 2023, M.D. (Proibição de entrada na Hungria) (C‑528/21, EU:C:2023:341, n.o 82 e jurisprudência aí referida).


34      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (JO 2008, L 348, p. 98).


35      V., nomeadamente, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 50).


36      V. Acórdão de 30 de março de 2023, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Prazo de transferência — Tráfico de seres humanos) (C‑338/21, EU:C:2023:269, n.os 45 e 46).


37      V. estudo, de 18 de março de 2016, elaborado pelo Information and Cooperation Forum para a Comissão Europeia «Evaluation of the Implementation of the Dublin III Regulation — Final Report» (Avaliação da implementação do Regulamento Dublim III — Relatório final), p. 35.