Language of document : ECLI:EU:C:2022:611

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

1 de agosto de 2022 (*)

«Reenvio prejudicial — Tramitação prejudicial urgente — Cooperação judiciária em matéria penal — Diretiva 2010/64/UE — Direito à interpretação e tradução — Artigo 2.°, n.° 1, e artigo 3.°, n.° 1 — Conceito de “documento essencial” — Diretiva 2012/13/UE — Direito à informação em processo penal — Artigo 3.°, n.° 1, alínea d) — Âmbito de aplicação — Não transposição para o direito nacional — Efeito direto — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 47.° e artigo 48.°, n.° 2 — Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais — Artigo 6.° — Condenação numa pena de prisão suspensa na sua execução com subordinação a regime de prova — Incumprimento das obrigações decorrentes do regime de prova — Omissão de tradução de um documento essencial e falta de intérprete quando da elaboração desse documento — Revogação da suspensão da execução da pena — Falta de tradução de atos processuais relativos a essa revogação — Consequências para a validade da referida revogação — Vício processual cominado com nulidade relativa»

No processo C‑242/22 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Tribunal da Relação de Évora (Portugal), por Decisão de 8 de março de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de abril de 2022, no processo penal contra

TL,

sendo interveniente:

Ministério Público,



O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, K. Lenaerts, presidente do Tribunal de Justiça, e L. Bay Larsen, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juízes da Primeira Secção, I. Ziemele (relatora) e A. Kumin, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 27 de junho de 2022,

considerando as observações apresentadas:

–        em representação de TL, por L. C. Esteves, advogado,

–        em representação do Governo português, por P. Almeida, P. Barros da Costa e C. Chambel Alves, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por B. Rechena e M. Wasmeier, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de julho de 2022,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 1.° a 3.° da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal (JO 2010, L 280, p. 1), e do artigo 3.° da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal (JO 2012, L 142, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe TL ao Ministério Público (Portugal) a respeito das consequências da falta de assistência de um intérprete e da omissão da tradução de vários documentos relativos ao processo penal instaurado contra TL.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Diretiva 2010/64

3        Os considerandos 5 a 7, 9, 14, 17, 22 e 33 da Diretiva 2010/64 enunciam:

«(5)      O artigo 6.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos [Humanos] e das Liberdades Fundamentais[, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir “CEDH”),] e o artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [(a seguir “Carta”)] consagram o direito a um julgamento imparcial. O n.° 2 do artigo 48.° da Carta garante o respeito dos direitos da defesa. A presente diretiva respeita estes direitos e deverá ser aplicada em conformidade.

(6)      Apesar de todos os Estados‑Membros serem partes na CEDH, a experiência demonstrou que esta participação por si só nem sempre permite assegurar um grau de confiança suficiente nos sistemas de justiça penal dos outros Estados‑Membros.

(7)      O reforço da confiança mútua requer uma aplicação mais coerente dos direitos e garantias consagrados no artigo 6.° da CEDH. Tal reforço pressupõe igualmente o aprofundamento na União, por meio da presente diretiva e de outras medidas, dos padrões mínimos estabelecidos na CEDH e na Carta.

[...]

(9)      As regras mínimas comuns deverão contribuir para o reforço da confiança nos sistemas de justiça penal de todos os Estados‑Membros, o que, por seu turno, deverá conduzir ao aumento da eficiência da cooperação judicial num clima de confiança mútua. Tais regras mínimas comuns deverão ser estabelecidas nos domínios da interpretação e da tradução em processo penal.

[...]

(14)      O direito à interpretação e tradução para as pessoas que não falam ou não compreendem a língua do processo está consagrado no artigo 6.° da CEDH, tal como interpretado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos [Humanos]. A presente diretiva facilita o exercício daquele direito na prática. Para o efeito, a presente diretiva visa garantir o direito dos suspeitos ou acusados a disporem de interpretação e tradução em processo penal, com vista a garantir o respetivo direito a um julgamento imparcial.

[...]

(17)      A presente diretiva deverá garantir a livre prestação de uma adequada assistência linguística, possibilitando que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal exerçam plenamente o seu direito de defesa e assegurando a equidade do processo.

[...]

(22)      A interpretação e a tradução previstas na presente diretiva deverão ser disponibilizadas na língua materna do suspeito ou acusado ou em qualquer outra língua que ele fale ou compreenda, a fim de lhe permitir exercer plenamente o seu direito de defesa e a fim de garantir a equidade do processo.

[...]

(33)      As disposições da presente diretiva que correspondam a direitos garantidos pela CEDH ou pela Carta deverão ser interpretadas e aplicadas de forma coerente com esses direitos, tal como têm vindo a ser interpretados pela jurisprudência relevante do Tribunal Europeu dos Direitos [Humanos] e do Tribunal de Justiça da União Europeia.»

4        O artigo 1.° da Diretiva 2010/64, sob a epígrafe «Objeto e âmbito de aplicação», dispõe, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      A presente diretiva estabelece regras relativas ao direito à interpretação e tradução em processo penal e em processo de execução de mandados de detenção europeus.

2.      O direito a que se refere o n.° 1 é conferido a qualquer pessoa, a partir do momento em que a esta seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro, por notificação oficial ou por qualquer outro meio, que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.»

5        O artigo 2.° desta diretiva, sob a epígrafe «Direito à interpretação», prevê:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias.

2.      Os Estados‑Membros asseguram que, caso tal seja necessário à garantia da equidade do processo, seja disponibilizada interpretação para as comunicações entre o suspeito ou acusado e o seu defensor legal diretamente relacionadas com qualquer interrogatório ou audição no decurso do processo, com a interposição de um recurso ou com outros trâmites de caráter processual.

[...]

5.      Os Estados‑Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária interpretação e, caso esta seja disponibilizada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da interpretação não ser suficiente para garantir a equidade do processo.

[...]»

6        O artigo 3.° da referida diretiva, sob a epígrafe «Direito à tradução dos documentos essenciais», dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo.

2.      Entre os documentos essenciais contam‑se as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças.

3.      As autoridades competentes devem decidir, em cada caso, se qualquer outro documento é essencial. O suspeito ou acusado ou o seu defensor legal podem apresentar um pedido fundamentado para esse efeito.

[...]

5.      Os Estados‑Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária a tradução de documentos ou passagens de documentos e, caso esta seja facultada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da tradução não ser suficiente para garantir a equidade do processo.

[...]»

 Diretiva 2012/13

7        Os considerandos 5, 7, 8, 10, 19, 25, 40 a 42 da Diretiva 2012/13 enunciam:

«(5)      O artigo 47.° da [Carta] e o artigo 6.° da [CEDH] consagram o direito a um processo equitativo. O artigo 48.°, n.° 2, da Carta garante o respeito dos direitos da defesa.

[...]

(7)      Apesar de todos os Estados‑Membros serem partes na CEDH, a experiência demonstrou que esta adesão por si só nem sempre permite assegurar um grau de confiança suficiente nos sistemas de justiça penal dos outros Estados‑Membros.

(8)      O reforço da confiança mútua exige regras pormenorizadas relativamente à proteção dos direitos processuais e das garantias decorrentes da Carta e da CEDH.

[...]

(10)      As regras mínimas comuns deverão contribuir para o reforço da confiança nos sistemas de justiça penal de todos os Estados‑Membros, o que, por seu turno, deverá conduzir ao aumento da eficiência da cooperação judicial num clima de confiança mútua. Essas regras mínimas comuns deverão ser estabelecidas no domínio da informação em processo penal.

[...]

(19)      As autoridades competentes deverão informar prontamente os suspeitos ou acusados acerca [dos seus] direitos, [...] oralmente ou por escrito [...] A fim de permitir o exercício prático e efetivo desses direitos, as informações deverão ser prestadas prontamente, no decurso do processo e o mais tardar antes da primeira entrevista oficial do suspeito ou acusado [...]

[...]

(25)      Os Estados‑Membros deverão assegurar que, quando forem prestadas informações nos termos da presente diretiva, o suspeito ou acusado disponha, quando necessário, de traduções ou interpretação numa língua que compreenda, de acordo com as normas que constam da Diretiva [2010/64].

[...]

(40)      A presente diretiva fixa regras mínimas. Os Estados‑Membros podem alargar os direitos nela previstos a fim de proporcionarem um nível de proteção mais elevado igualmente em casos que não sejam expressamente abrangidos pela presente diretiva. O nível de proteção nunca deverá ser inferior ao das normas previstas na CEDH, tal como têm vindo a ser interpretadas pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos [Humanos].

(41)      A presente diretiva respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pela Carta. A presente diretiva procura, nomeadamente, promover o direito à liberdade, o direito a um processo equitativo e os direitos de defesa. Deverá ser aplicada no mesmo sentido.

(42)      As disposições da presente diretiva que correspondam a direitos garantidos pela CEDH deverão ser interpretadas e aplicadas de forma coerente com esses direitos, tal como têm vindo a ser interpretados pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos [Humanos].»

8        O artigo 1.° desta diretiva, sob a epígrafe «Objeto», tem a seguinte redação:

«A presente diretiva estabelece regras relativas ao direito à informação dos suspeitos ou acusados sobre os seus direitos em processo penal e sobre a acusação contra eles formulada [...]»

9        O artigo 2.° da referida diretiva, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe, no seu n.° 1:

«A presente diretiva é aplicável a partir do momento em que a uma pessoa seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro de que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração penal, incluindo, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.»

10      Nos termos do artigo 3.° da mesma diretiva, sob a epígrafe «Direito a ser informado sobre os direitos»:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que os suspeitos ou acusados de uma infração penal recebam prontamente informações sobre pelo menos os seguintes direitos processuais, tal como aplicáveis nos termos do direito nacional, a fim de permitir o seu exercício efetivo:

[...]

d)      O direito à interpretação e tradução;

[...]

2.      Os Estados‑Membros asseguram que as informações prestadas por força do n.° 1 devem ser dispensadas oralmente ou por escrito, em linguagem simples e acessível, tendo em conta as necessidades específicas dos suspeitos ou acusados vulneráveis.»

 Direito português

11      O artigo 92.° do Código de Processo Penal (a seguir «CPP»), sob a epígrafe «Língua dos atos e nomeação de intérprete», dispõe, nos seus n.os 1 e 2:

«1 — Nos atos processuais, tanto escritos como orais, utiliza‑se a língua portuguesa, sob pena de nulidade.

2 — Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo [...]»

12      Por força do artigo 120.° do CPP:

«1 —       Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.

2 — Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:

[...]

c)      A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória;

[...]

3 — As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:

a)      Tratando‑se de nulidade de ato a que o interessado assista, antes que o ato esteja terminado;

[...]»

13      O artigo 122.° do CPP, sob a epígrafe «Efeitos da declaração de nulidade», enuncia, no seu n.° 1:

«As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.»

14      O artigo 196.° do CPP, relativo ao termo de identidade e residência (a seguir «TIR»), tem a seguinte redação:

«1 —       A autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal sujeitam a [TIR] lavrado no processo todo aquele que for constituído arguido, ainda que já tenha sido identificado [...]

2 — [...] o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.

3 — Do termo deve constar que àquele foi dado conhecimento:

a)      Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado;

b)      Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado;

c)      De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.° 2, exceto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrarem a correr nesse momento;

d)      De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência [...];

e)      De que, em caso de condenação, o [TIR] só se extinguirá com a extinção da pena.

[...]»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

15      Em 10 de julho de 2019, TL, cidadão moldavo que não domina a língua portuguesa, foi constituído arguido, em Portugal, por factos constitutivos dos crimes de resistência e coação sobre funcionário, condução perigosa de veículo rodoviário e condução sem habilitação legal. O auto de constituição de arguido foi traduzido para a língua oficial da Moldávia, a língua romena.

16      No mesmo dia, o TIR foi lavrado pelas autoridades competentes, sem intervenção de intérprete e sem que esse documento fosse traduzido para a língua romena.

17      Por Sentença de 11 de julho de 2019, transitada em julgado em 26 de setembro de 2019, TL foi condenado numa pena de três anos de prisão suspensa na sua execução por idêntico período com subordinação a regime de prova, na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de doze meses e na pena de 80 dias de multa, à razão diária de 6 euros, num montante total de 480 euros. Em audiência de julgamento, TL beneficiou da assistência de uma defensora e de intérprete.

18      Para implementar o regime de prova fixado na Sentença de 11 de julho de 2019, as autoridades competentes tentaram, em vão, contactar TL na morada indicada no TIR.

19      Em 12 de janeiro de 2021, na sequência de um despacho proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Beja (Portugal) em 7 de janeiro de 2021, TL foi então notificado na morada indicada no TIR, para comparecer no tribunal a fim de ser ouvido relativamente ao incumprimento das obrigações decorrentes do regime de prova impostas na Sentença de 11 de julho de 2019. Em 6 de abril de 2021, a notificação desse despacho foi repetida na mesma morada. Estas duas notificações foram efetuadas em língua portuguesa.

20      Uma vez que TL não compareceu na data designada, esse tribunal, por Despacho de 9 de junho de 2021, revogou a suspensão da execução da pena de prisão. Esse despacho, notificado em 25 de junho de 2021 a TL, em língua portuguesa, na morada indicada no TIR, e à sua defensora, transitou em julgado em 20 de setembro de 2021.

21      Em 30 de setembro de 2021, TL foi detido na sua nova morada, para cumprimento da pena aplicada. Está preso desde tal data.

22      Após ter constituído novo advogado no processo em 11 de outubro de 2021, TL apresentou, em 18 de novembro de 2021, um requerimento de verificação da nulidade, nomeadamente, do TIR, do Despacho de 7 de janeiro de 2021 que o notificou para comparecer em tribunal e do Despacho de 9 de junho de 2021 que revogou a suspensão da execução da pena de prisão.

23      Em apoio desse requerimento, TL alegou que, em virtude de ter mudado de residência após o TIR ter sido lavrado, não pôde ser encontrado na morada indicada no TIR e, por conseguinte, não pôde receber as notificações desses despachos. Informou que não tinha comunicado a mudança de residência por não saber que a tal estava obrigado e desconhecer as consequências decorrentes do incumprimento dessa obrigação, dado que o TIR, de onde constavam essa obrigação e essas consequências, não tinha sido traduzido para a língua romena. Além disso, não foi assistido por intérprete nessa ocasião nem aquando da elaboração do auto de constituição de arguido. Por último, nem o Despacho de 7 de janeiro de 2021 de notificação para comparecer em tribunal na sequência do incumprimento das obrigações decorrentes do regime de prova nem o Despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão de 9 de junho de 2021 foram traduzidos para uma língua que ele fale ou compreenda.

24      Em primeira instância, o Tribunal Judicial da Comarca de Beja indeferiu o requerimento, com o fundamento de que, embora os vícios processuais denunciados por TL estivessem demonstrados, estes estavam sanados, porquanto TL não os tinha suscitado nos prazos previstos no artigo 120.°, n.° 3, do CPP.

25      O órgão jurisdicional de reenvio, chamado a pronunciar‑se em sede de recurso dessa decisão de primeira instância, tem dúvidas quanto à conformidade desta disposição nacional com as Diretivas 2010/64 e 2012/13, conjugadas com o artigo 6.° da CEDH.

26      Em primeiro lugar, esse órgão jurisdicional observa que estas diretivas ainda não foram transpostas para o direito português, apesar de terem decorrido os respetivos prazos de transposição. Contudo, considera que às disposições pertinentes das referidas diretivas deve ser reconhecido efeito direto e que, portanto, são diretamente aplicáveis ao litígio no processo principal, uma vez que são incondicionais, suficientemente claras e precisas e conferem aos particulares o direito à interpretação, à tradução e à informação em processo penal.

27      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio considera que os atos em causa no processo principal, a saber, o TIR, bem como o Despacho de 7 de janeiro de 2021 que notificou TL para comparecer em tribunal e o Despacho de 9 de junho de 2021 que revogou a suspensão da execução da pena de prisão, estão incluídos no conceito de «documentos essenciais» na aceção do artigo 3.°, n.os 1 e 2, da Diretiva 2010/64, pela importância que assumem atos desta natureza para os direitos de defesa dos arguidos, decorrente das informações processuais que aportam. Neste contexto, sublinha, em especial, que, através do TIR, são comunicadas à pessoa em causa as informações relativas às suas obrigações em matéria de residência, nomeadamente a obrigação de comunicar às autoridades qualquer alteração de morada.

28      Tendo em conta estas considerações, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se lhe incumbe desaplicar a legislação nacional em causa no processo principal, que prevê que, como neste caso, os vícios processuais relacionados com a falta de assistência de intérprete e com a omissão de tradução dos documentos essenciais para uma língua compreendida pela pessoa em causa devem ser suscitados em prazos cujo esgotamento determina a sua sanação.

29      Nestas condições, o Tribunal da Relação de Évora (Portugal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Podem os artigos 1.° a 3.° da Diretiva [2010/64] e 3.° da Diretiva [2012/13] [...], isoladamente ou em conjunto com o artigo 6.° da [CEDH], ser interpretados no sentido de não se oporem a uma norma de direito nacional que comine com o vício de nulidade relativa, dependente de arguição, a falta de nomeação de intérprete e de tradução de atos processuais essenciais a arguido que não compreenda a língua do processo, permitindo a sanação de tais vícios com o decurso do tempo?»

 Quanto ao pedido de aplicação da tramitação prejudicial urgente

30      O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 23.°‑A, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e no artigo 107.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

31      No caso em apreço, há que constatar que os requisitos previstos para a aplicação desta tramitação processual estão preenchidos.

32      Com efeito, por um lado, o pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação das disposições das Diretivas 2010/64 e 2012/13, adotadas nos domínios a que se refere o título V da parte III do Tratado FUE, relativo ao Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Por conseguinte, este pedido pode ser objeto de tramitação prejudicial urgente.

33      Por outro lado, no que respeita ao critério relativo à urgência, resulta de jurisprudência constante que este critério está preenchido quando, à data da apresentação do pedido prejudicial, a pessoa em causa no processo principal esteja privada de liberdade e a sua manutenção em prisão dependa da decisão do litígio no processo principal [Acórdão de 28 de abril de 2022, C e CD (Obstáculos jurídicos à execução de uma decisão de entrega), C‑804/21 PPU, EU:C:2022:307, n.° 39 e jurisprudência referida].

34      Ora, resulta da descrição dos factos feita pelo órgão jurisdicional de reenvio que TL, pessoa em causa no processo principal, estava efetivamente privado de liberdade à data da apresentação do pedido prejudicial.

35      Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre a compatibilidade, com o direito da União, da aplicação, em condições como as que estão em causa no processo principal, de uma legislação nacional que sujeita ao cumprimento de prazos determinados a possibilidade de invocar certos vícios que inquinam um processo penal e que levaram, nomeadamente, à revogação da suspensão da execução da pena de prisão em que a pessoa em causa foi condenada, de modo que esse órgão jurisdicional poderia, em função da resposta dada pelo Tribunal de Justiça à questão submetida, ter de anular os atos inquinados por tais vícios e, por conseguinte, ordenar a libertação de TL.

36      Nestas condições, a Primeira Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 12 de maio de 2022, mediante proposta da juíza‑relatora, ouvido o advogado‑geral, deferir o pedido de tramitação urgente do presente reenvio prejudicial, apresentado pelo órgão jurisdicional de reenvio.

 Quanto à questão prejudicial

37      No âmbito do processo de cooperação previsto no artigo 267.° TFUE, embora, no plano formal, o órgão jurisdicional de reenvio tenha limitado a sua questão à interpretação de uma disposição específica do direito da União, tal circunstância não obsta a que o Tribunal de Justiça lhe forneça todos os elementos de interpretação desse direito que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do referido direito que requerem uma interpretação tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (Acórdão de 15 de julho de 2021, DocMorris, C‑190/20, EU:C:2021:609, n.° 23 e jurisprudência referida).

38      Uma vez que a questão prejudicial visa os artigos 1.° a 3.° da Diretiva 2010/64 e o artigo 3.° da Diretiva 2012/13, considerados isoladamente ou em conjunto com o artigo 6.° da CEDH, importa recordar, por um lado, que esta disposição garante o direito a um processo equitativo e o respeito pelos direitos de defesa, o que inclui, em conformidade com o disposto neste artigo 6.°, n.° 3, o direito de o acusado ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada, bem como de se fazer assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo.

39      Por outro lado, o artigo 52.°, n.° 3, da Carta especifica que, na medida em que esta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela CEDH, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa convenção. Além disso, em conformidade com as anotações relativas ao artigo 47.° e ao artigo 48.°, n.° 2, da Carta, que, como resulta do artigo 6.°, n.° 1, terceiro parágrafo, TUE e do artigo 52.°, n.° 7, da Carta, devem ser tidas em conta para a interpretação da Carta, estas disposições correspondem, respetivamente, ao artigo 6.°, n.° 1, e ao artigo 6.°, n.os 2 e 3, da CEDH [v., neste sentido, Acórdão de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do despacho de reenvio), C‑564/19, EU:C:2021:949, n.° 101].

40      Acresce que, no que respeita à interpretação das diretivas em causa no processo principal, há que recordar que, por força dos considerandos 5 a 7, 9 e 33 e do artigo 1.° da Diretiva 2010/64, bem como dos considerandos 5, 7, 8, 10 e 42 e do artigo 1.° da Diretiva 2012/13, estas diretivas visam estabelecer regras mínimas comuns em matéria de proteção das garantias e dos direitos processuais decorrentes do artigo 47.° e do artigo 48.°, n.° 2, da Carta, bem como do artigo 6.° da CEDH, em particular nos domínios da interpretação, tradução e informação em processo penal, e que estas regras devem ser interpretadas e aplicadas de forma coerente com esses direitos e garantias, reforçando a confiança mútua nos sistemas de justiça penal dos Estados‑Membros, a fim de aumentar a eficiência da cooperação judiciária neste domínio.

41      Assim, o artigo 2.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64 exige que os Estados‑Membros assegurem que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, ao passo que o artigo 3.°, n.° 1, desta diretiva exige que assegurem que aos suspeitos ou acusados que não compreendem tal língua seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo. Por seu turno, o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13 impõe aos Estados‑Membros que assegurem que os suspeitos ou acusados de uma infração penal recebam prontamente informações sobre o direito à interpretação e à tradução, a fim de permitir o seu exercício efetivo.

42      Por conseguinte, há que constatar, por um lado, que este artigo 2.°, n.° 1, e este artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como este artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, são concretamente os que estão em causa no processo principal e, por outro, que estas disposições concretizam os direitos fundamentais a um processo equitativo e ao respeito pelos direitos de defesa, consagrados, nomeadamente, no artigo 47.° e no artigo 48.°, n.° 2, da Carta e devem ser interpretados à luz destes últimos.

43      Nestas condições, deve considerar‑se que o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, lidos à luz do artigo 47.° e do artigo 48.°, n.° 2, da Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual, por um lado, a violação dos direitos consagrados nas referidas disposições destas diretivas apenas pode ser utilmente arguida pelo beneficiário desses direitos e, por outro, essa violação deve ser suscitada num prazo determinado, sob pena de sanação.

44      A este respeito, importa salientar, antes de mais, que resulta da decisão de reenvio que TL não beneficiou da assistência de um intérprete quando da elaboração do TIR e que este documento não foi traduzido para uma língua que ele fale ou compreenda. Além disso, nem o Despacho de 7 de janeiro de 2021 que o notificou para comparecer em tribunal na sequência dos incumprimentos alegados das obrigações decorrentes do regime de prova nem o Despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão de 9 de junho de 2021 foram traduzidos para uma língua compreendida por TL.

45      Em seguida, embora a decisão de reenvio não mencione expressamente que TL não foi informado, aquando da sua constituição como arguido, do direito que lhe assistia de beneficiar de intérprete e da tradução dos documentos essenciais do processo penal contra si instaurado, afigura‑se que o órgão jurisdicional de reenvio parte da premissa implícita de que essa informação não existiu, razão pela qual interroga o Tribunal de Justiça não só sobre a interpretação da Diretiva 2010/64 mas também sobre a interpretação da Diretiva 2012/13.

46      Por último, essa mesma decisão especifica que o artigo 92.°, n.° 2, do CPP, aplicável aos factos do processo principal, impõe a nomeação de um intérprete nos processos relativos a pessoas que não conhecem ou que não dominam a língua portuguesa e que, em conformidade com o disposto no artigo 120.° do CPP, a falta de nomeação de um intérprete num ato a que a pessoa em causa assista é suscetível de determinar a nulidade desse ato, na dupla condição, por um lado, de o pedido de declaração de nulidade provir dessa pessoa e, por outro, de esse pedido ser apresentado antes de o ato estar terminado.

47      Por conseguinte, é à luz deste contexto que há que examinar a questão, conforme reformulada no n.° 43 do presente acórdão.

48      Para responder a esta questão, importa constatar, em primeiro lugar, que, mesmo na hipótese de o artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, não terem sido transpostos ou terem sido transpostos de maneira incompleta para a ordem jurídica portuguesa, hipótese que o órgão jurisdicional de reenvio considera assente, ao passo que o Governo português parece contestá‑la, TL pode invocar os direitos decorrentes destas disposições, uma vez que, como observaram tanto esse órgão jurisdicional como todos os interessados que intervieram no processo no Tribunal de justiça, estas disposições têm efeito direto.

49      Na verdade, cabe recordar que, em todos os casos em que, do ponto de vista do seu conteúdo, as disposições de uma diretiva se afigurem incondicionais e suficientemente precisas, os particulares podem invocá‑las perante o juiz nacional contra o Estado‑Membro em causa, quer quando este não tenha transposto a diretiva para o direito nacional nos prazos previstos quer quando tenha feito uma transposição incorreta da mesma (Acórdão de 14 de janeiro de 2021, RTS infra e Aannemingsbedrijf Norré‑Behaegel, C‑387/19, EU:C:2021:13, n.° 44 e jurisprudência referida).

50      A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou que uma disposição do direito da União é, por um lado, incondicional quando prevê uma obrigação que não está sujeita a nenhuma condição nem subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à adoção de um ato das instituições da União ou dos Estados‑Membros e, por outro, suficientemente precisa para ser invocada por um particular e aplicada pelo juiz quando prevê uma obrigação em termos inequívocos (Acórdão de 14 de janeiro de 2021, RTS infra e Aannemingsbedrijf Norré‑Behaegel, C‑387/19, EU:C:2021:13, n.° 46 e jurisprudência referida).

51      O Tribunal de Justiça declarou, além disso, que, ainda que uma diretiva deixe aos Estados‑Membros uma certa margem de apreciação na adoção das modalidades de execução da mesma, se pode considerar que uma disposição dessa diretiva tem caráter incondicional e preciso quando impõe aos Estados‑Membros, em termos inequívocos, uma obrigação de resultado precisa e que não está sujeita a nenhuma condição relativa à aplicação da regra nela contida (Acórdão de 14 de janeiro de 2021, RTS infra e Aannemingsbedrijf Norré‑Behaegel, C‑387/19, EU:C:2021:13, n.° 47 e jurisprudência referida).

52      Uma vez que, como salientou o advogado‑geral nos n.os 58 a 62 das suas conclusões, o artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, preveem, de forma precisa e incondicional, o conteúdo e o alcance dos direitos, de que beneficiam todos os suspeitos ou acusados, de dispor da interpretação e da tradução dos documentos essenciais e de ser informado desses dois primeiros direitos, deve considerar‑se que estas disposições têm efeito direto, pelo que qualquer pessoa que beneficie desses direitos pode opô‑los ao Estado‑Membro perante os órgãos jurisdicionais nacionais.

53      Em segundo lugar, importa salientar que os três atos processuais em causa no processo principal, a saber, o TIR, o Despacho de 7 de janeiro de 2021 que notificou TL para comparecer em tribunal e o Despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão de 9 de junho de 2021, estão abrangidos pelo âmbito de aplicação das Diretivas 2010/64 e 2012/13 e constituem, designadamente, documentos essenciais cuja tradução escrita devia ter sido facultada a TL por força do artigo 3.°, n.° 1, da primeira destas diretivas.

54      A este respeito, cabe recordar que, em conformidade com o disposto no artigo 1.°, n.° 2, da Diretiva 2010/64 e no artigo 2.°, n.° 1, da Diretiva 2012/13, os direitos aí reconhecidos são conferidos a qualquer pessoa, a partir do momento em que lhe seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal, até ao termo do processo penal, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração penal que lhe é imputada, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.

55      Assim, decorre das disposições referidas no número anterior que estas diretivas são aplicáveis aos processos penais na medida em que estes visem determinar se o suspeito ou o acusado cometeu uma infração penal [v., neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 2021, AB e o. (Revogação da amnistia), C‑203/20, EU:C:2021:1016, n.° 69].

56      Em contrapartida, um processo que não tem por objeto determinar a responsabilidade penal de uma pessoa, como um processo de natureza legislativa relativo à revogação da amnistia ou um processo jurisdicional que tem por objeto a fiscalização da conformidade dessa revogação com a Constituição nacional, não pode ser abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2012/13 [v., neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 2021, AB e o. (Revogação da amnistia), C‑203/20, EU:C:2021:1016, n.os 70 e 71].

57      De igual modo, um processo especial como o que tem por objeto o reconhecimento de uma decisão judicial transitada em julgado, proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, da qual o interessado já tinha obtido a tradução em conformidade com o artigo 3.° da Diretiva 2010/64, não está abrangido pelo âmbito de aplicação desta diretiva, dado que, por um lado, esse processo decorre, por definição, após a determinação definitiva da questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração que lhe é imputada, e, sendo caso disso, após a condenação deste, e, por outro, a nova tradução dessa decisão judicial não é necessária à proteção dos direitos de defesa ou do direito à tutela jurisdicional efetiva do interessado, de modo que não se justifica à luz dos objetivos prosseguidos pela referida diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 9 de junho de 2016, Balogh, C‑25/15, EU:C:2016:423, n.os 37 a 40).

58      Neste contexto, como enunciam designadamente os seus considerandos 14, 17 e 22, a Diretiva 2010/64 visa garantir que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo tenham direito a interpretação e a tradução, facilitando o exercício desse direito, com vista a garantir a essas pessoas o direito de beneficiar de um processo equitativo. Deste modo, o artigo 3.°, n.os 1 e 2, desta diretiva prevê que os Estados‑Membros asseguram que a estas pessoas seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais, o que inclui, designadamente, as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças proferidas a seu respeito, para lhes permitir exercer os seus direitos de defesa e a fim de garantir a equidade do processo (v., neste sentido, Acórdão de 9 de junho de 2016, Balogh, C‑25/15, EU:C:2016:423, n.° 38).

59      Ora, há que observar que, contrariamente às situações em causa nos processos que deram origem aos Acórdãos de 16 de dezembro de 2021, AB e o. (Revogação da amnistia) (C‑203/20, EU:C:2021:1016), e de 9 de junho de 2016, Balogh (C‑25/15, EU:C:2016:423), os três atos processuais em causa no processo principal fazem parte integrante, como salientaram, em substância, o órgão jurisdicional de reenvio e todos os interessados que intervieram no âmbito do processo no Tribunal de Justiça, do processo que determinou a responsabilidade penal de TL, e a aplicação das Diretivas 2010/64 e 2012/13 a esses atos justifica‑se plenamente pelos objetivos que prosseguem.

60      Assim, no que se refere, por um lado, ao TIR, resulta da decisão de reenvio e do artigo 196.° do CPP que este termo, que é elaborado com a constituição de arguido como fase do processo penal, constitui uma medida de coação prévia que enuncia uma série de obrigações que impendem sobre essa pessoa, bem como as consequências processuais em caso de incumprimento dessas obrigações, e que permite às autoridades competentes, nomeadamente, tomarem conhecimento da morada na qual é suposto a dita pessoa manter‑se à disposição delas, devendo esta, entre outros, comunicar qualquer alteração a este respeito. Esta medida de coação fica em vigor até à extinção da pena na qual essa mesma pessoa seja, eventualmente, condenada. Assim, o incumprimento dessa medida de coação é suscetível de determinar a revogação da suspensão da execução da pena aplicada. Atendendo às obrigações e às consequências significativas resultantes do TIR para a pessoa em causa ao longo de todo o processo penal e ao facto de esta ser informada dessas obrigações e consequências por meio do TIR, tal documento constitui, como o órgão jurisdicional de reenvio considera com razão, um «documento essencial» na aceção do artigo 3.°, n.os 1 e 2, da Diretiva 2010/64, especificando, aliás, o n.° 3 deste artigo que «as autoridades competentes devem decidir, em cada caso, se qualquer outro documento é essencial».

61      Por conseguinte, por força do artigo 2.°, n.° 1, e do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, TL tinha direito à tradução escrita do TIR e à assistência de um intérprete quando da elaboração do TIR. Além disso, em conformidade com o disposto no artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, TL tinha o direito de ser informado sobre esses direitos. Quanto a este último aspeto, resulta do considerando 19 desta última diretiva que as informações por ela abrangidas devem ser prestadas prontamente no decurso do processo e, o mais tardar, antes da primeira entrevista oficial do suspeito ou acusado, a fim de permitir o exercício prático e efetivo dos seus direitos processuais.

62      Embora, na audiência no Tribunal de Justiça, o Governo português tenha indicado que, regra geral, os direitos previstos nas disposições mencionadas no número anterior são respeitados no âmbito dos processos penais conduzidos em Portugal contra as pessoas que não compreendem a língua portuguesa, decorre, todavia, da decisão de reenvio que não foi o que se passou na situação em causa no processo principal, porquanto TL não foi informado da obrigação, prevista no artigo 196.° do CPP, de não mudar de residência sem comunicar a sua nova morada e, assim, não pôde cumprir essa obrigação. Daí resultou que as autoridades competentes para a implementação das obrigações decorrentes do regime de prova tentaram, em vão, entrar em contacto com TL na morada indicada no TIR. De igual modo, o Despacho de 7 de janeiro de 2021 que o notificou para comparecer em tribunal na sequência do incumprimento dessas obrigações e o Despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão de 9 de junho de 2021 foram notificados nessa morada e não na nova morada, ficando TL impossibilitado de tomar conhecimento desses despachos.

63      Por outro lado, cabe notar que, como observaram o Governo português e a Comissão, os referidos despachos constituem atos processuais complementares à condenação da pessoa em causa e que ainda fazem parte do processo penal, na aceção das Diretivas 2010/64 e 2012/13.

64      A este respeito, a aplicação das Diretivas 2010/64 e 2012/13 aos atos processuais relativos a uma eventual revogação da suspensão da execução da pena de prisão em que a pessoa em causa foi condenada, sem ter tido a possibilidade de compreender os documentos essenciais elaborados durante o processo penal, é necessária à luz do objetivo destas diretivas de assegurar o respeito pelo direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 47.° da Carta, bem como o respeito pelos direitos de defesa, garantido no artigo 48.°, n.° 2, da Carta, e de, assim, reforçar a confiança mútua nos sistemas de justiça penal dos Estados‑Membros, a fim de aumentar a eficiência da cooperação judiciária neste domínio.

65      Com efeito, estes direitos fundamentais seriam violados se uma pessoa que foi condenada por uma infração penal numa pena de prisão suspensa na sua execução com subordinação a regime de prova fosse — devido à omissão de tradução da convocatória ou à falta de intérprete na audiência sobre a eventual revogação dessa suspensão — privada da possibilidade de ser ouvida, designadamente, sobre as razões por que não cumpriu as obrigações decorrentes do regime de prova. Assim, tal possibilidade pressupõe, por um lado, que a pessoa em causa receba a convocatória para a audiência para eventual revogação da suspensão da execução da pena de prisão, numa língua que fale ou compreenda, sem o que não se pode considerar que foi devidamente convocada e informada dos motivos dessa convocatória, e, por outro, que possa beneficiar, se necessário, de intérprete nessa audiência, para estar efetivamente em condições de explicar as razões na origem do incumprimento das obrigações decorrentes do regime de prova, razões que, eventualmente, podem ser legítimas e justificar assim a manutenção da suspensão da execução.

66      Além disso, na medida em que a decisão de revogação da suspensão determina a execução da pena de prisão aplicada à pessoa em causa, esta decisão também deve ser objeto de tradução quando a referida pessoa não fala ou não compreende a língua do processo, para que ela possa, nomeadamente, compreender as razões que fundamentam essa decisão e, se for caso disso, interpor recurso da mesma.

67      Esta interpretação é corroborada pela sistemática da Diretiva 2010/64. Com efeito, se, por um lado, em conformidade com o disposto no artigo 1.°, n.° 2, esta visa expressamente a «decisão da sanção» e se, por outro, em conformidade com o disposto no artigo 3.°, n.° 2, o conceito de «documentos essenciais» inclui expressamente «decisões que imponham uma medida privativa de liberdade», seria incoerente excluir do âmbito de aplicação desta diretiva os atos relativos a uma possível revogação da suspensão da execução, dado que, a final, esses atos são suscetíveis de conduzir à prisão efetiva da pessoa em causa e, assim, a uma ingerência mais significativa nos seus direitos fundamentais no decurso do processo penal.

68      Além do mais, o Tribunal de Justiça já declarou que, quando um ato processual é enviado apenas na língua do processo em causa a uma pessoa que não domine essa língua, essa pessoa não está em condições de compreender o que lhe é imputado e não pode, portanto, exercer validamente os seus direitos de defesa se não lhe for facultada a tradução do referido ato numa língua que fale ou compreenda (v., neste sentido, Acórdão de 12 de outubro de 2017, Sleutjes, C‑278/16, EU:C:2017:757, n.° 33).

69      Ora, no presente caso, resulta da decisão de reenvio que nem o Despacho de 7 de janeiro de 2021 que notificou TL para comparecer em tribunal nem o Despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão de 9 de junho de 2021 foram traduzidos para a língua romena. Além disso, afigura‑se que TL não foi informado do direito de receber a tradução desses despachos. Por último, não resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que, na audiência relativa ao incumprimento das obrigações decorrentes do regime de prova, TL tenha beneficiado de interpretação ou mesmo sido informado desse direito.

70      Nestas condições, e como resulta dos n.os 61 e 69 do presente acórdão, os direitos que o artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, conferem a TL foram violados no âmbito do processo penal em causa no processo principal.

71      Em terceiro lugar, quanto às consequências destas violações, resulta das constatações do órgão jurisdicional de reenvio que a violação do direito à interpretação constitui, na ordem jurídica portuguesa, um vício processual que, em conformidade com o disposto no artigo 120.° do CPP, comina com nulidade relativa os atos processuais correspondentes. Todavia, por um lado, de acordo com o n.° 2, alínea c), deste artigo, cabe à pessoa em causa arguir a violação do direito em questão. Por outro lado, nos termos do n.° 3, alínea a), desse mesmo artigo, o vício processual deve ser arguido, tratando‑se de um pedido de declaração de nulidade de um ato a cuja elaboração a pessoa em causa assista, antes de este ato estar terminado, sob pena de sanação da nulidade.

72      Em resposta a uma pergunta feita pelo Tribunal de Justiça na audiência, o Governo português confirmou que o artigo 120.° do CPP também era aplicável à arguição dos vícios relativos à violação do direito à tradução dos documentos essenciais do processo penal, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, bem como a aplicabilidade desta disposição à violação do direito de ser informado dos seus direitos à interpretação e à tradução de documentos essenciais.

73      A este respeito, cabe recordar que o artigo 2.°, n.° 5, e o artigo 3.°, n.° 5, da Diretiva 2010/64 impõem aos Estados‑Membros que assegurem que, nos termos da lei nacional, as pessoas em causa tenham o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária a interpretação ou a tradução.

74      No entanto, nem esta diretiva nem a Diretiva 2012/13 especificam as consequências que devem decorrer da violação dos direitos nelas previstos, nomeadamente na hipótese, como a que está em causa no processo principal, de a pessoa em questão não ter sido informada nem da existência dessa decisão, nem do seu direito de obter a assistência de um intérprete e uma tradução dos documentos controvertidos, nem mesmo da elaboração de alguns desses documentos.

75      Em conformidade com jurisprudência constante, na falta de regulamentação específica na matéria, as modalidades de exercício dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União são as previstas na ordem jurídica interna dos Estados‑Membros, em virtude do princípio da autonomia processual destes. Todavia, essas modalidades não devem ser menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) nem ser concebidas de modo a, na prática, tornarem impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (v., neste sentido, Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance, C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.° 27 e jurisprudência referida).

76      Quanto ao princípio da equivalência, sob reserva das verificações a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio, nada nos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça mostra que a aplicação do artigo 120.° do CPP às eventuais violações dos direitos decorrentes das Diretivas 2010/64 e 2012/13 infrinja tal princípio. Com efeito, este artigo regula as condições de arguição das nulidades, independentemente de a nulidade resultar da violação de uma regra que tenha por base disposições do direito nacional ou disposições do direito da União.

77      Relativamente ao princípio da efetividade, importa recordar que, embora as Diretivas 2010/64 e 2012/13 não regulem as modalidades referentes ao exercício dos direitos nelas previstos, essas modalidades não podem prejudicar o objetivo, prosseguido por estas diretivas, de garantir o caráter equitativo do processo penal e o respeito pelos direitos de defesa dos suspeitos e acusados em processo penal (v., neste sentido, Acórdãos de 15 de outubro de 2015, Covaci, C‑216/14, EU:C:2015:686, n.° 63, e de 22 de março de 2017, Tranca e o., C‑124/16, C‑188/16 e C‑213/16, EU:C:2017:228, n.° 38).

78      Ora, por um lado, a obrigação, imposta às autoridades nacionais pelo artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, de informar os suspeitos e os acusados sobre os seus direitos à interpretação e à tradução, previstos no artigo 2.°, n.° 1, e no artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, assume uma importância essencial para a garantia efetiva desses direitos e, assim, para a observância do artigo 47.° e do artigo 48.°, n.° 2, da Carta. Com efeito, sem essa informação, a pessoa em causa não pode saber da existência e do alcance desses direitos nem reclamar que estes sejam respeitados, pelo que não pode exercer plenamente os seus direitos de defesa nem beneficiar de um processo equitativo.

79      Assim, exigir à pessoa em causa num processo penal conduzido numa língua que ela não fala ou não compreende que alegue, num determinado prazo e sob pena de sanação, que não foi informada dos seus direitos à interpretação e à tradução, previstos no artigo 2.°, n.° 1, e no artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, esvaziaria de conteúdo o direito de ser informado, garantido pelo artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, o que poria em causa os direitos dessa pessoa a um processo equitativo e ao respeito pelos direitos de defesa, consagrados, respetivamente, no artigo 47.° e no artigo 48.°, n.° 2, da Carta. Com efeito, na falta dessa informação, a referida pessoa não pode ter conhecimento de que o seu direito à informação foi violado, ficando impossibilitada de arguir essa violação.

80      Além disso, pela mesma razão, tal conclusão também se impõe no que se refere aos direitos à interpretação e à tradução previstos, respetivamente, no artigo 2.°, n.° 1, e no artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, quando a pessoa em causa não é informada da existência e do alcance desses direitos.

81      No presente caso, atendendo a que, como salientado no n.° 45 do presente acórdão, a decisão de reenvio não menciona expressamente que TL não foi informado, ao ser constituído arguido, do seu direito de beneficiar de intérprete e da tradução dos documentos essenciais do processo penal contra si conduzido, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, sendo caso disso, se tal informação lhe foi efetivamente prestada.

82      Por outro lado, mesmo que a pessoa em causa tenha efetivamente recebido essa informação em tempo útil, é ainda necessário, como salientou, em substância, o advogado‑geral nos n.os 83 a 87 das suas conclusões, que ela tenha conhecimento da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos que lhe estão associados, para que possa arguir a violação do seu direito à tradução desse documento ou do seu direito à interpretação aquando da respetiva elaboração, garantidos pelo artigo 2.°, n.° 1, e pelo artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, e, assim, beneficiar de um processo equitativo no respeito pelos seus direitos de defesa, como exigem o artigo 47.° e artigo 48.°, n.° 2, da Carta.

83      Por conseguinte, há violação do princípio da efetividade se o prazo a que uma disposição processual nacional sujeita a possibilidade de arguir a violação dos direitos conferidos pelo artigo 2.°, n.° 1, e pelo artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como pelo artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, começar a correr ainda antes de a pessoa em causa ser informada, numa língua que fale ou compreenda, por um lado, da existência e do alcance do seu direito à interpretação e à tradução e, por outro, da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos a ele associados (v., por analogia, Acórdão de 15 de outubro de 2015, Covaci, C‑216/14, EU:C:2015:686, n.os 66 e 67).

84      Ora, no presente caso, decorre das constatações do órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva para interpretar as disposições do seu direito nacional, que a simples aplicação do artigo 120.° do CPP à situação em causa no processo principal, como parece ter sido feita pelo órgão jurisdicional de primeira instância, não permitia assegurar o respeito pelas exigências decorrentes do número anterior.

85      Em especial, resulta das informações de que dispõe o Tribunal de Justiça que, em aplicação do artigo 120.°, n.° 3, alínea a), do CPP, a nulidade de um ato a que a pessoa em causa assista deve ser arguida, sob pena de sanação, antes de esse ato estar terminado.

86      Isso implica, nomeadamente para um ato como o TIR, que a pessoa que se encontre numa situação como a de TL fica, de facto, privada da possibilidade de arguir a nulidade. Com efeito, quando essa pessoa, que não conhece a língua do processo penal, não está em condições de compreender o significado do ato processual e as suas implicações, não dispõe de informações suficientes para apreciar a necessidade da assistência de um intérprete quando da sua elaboração ou da tradução escrita desse ato, o qual pode aparentar ser uma mera formalidade. Além disso, a possibilidade de arguir a nulidade do referido ato fica prejudicada no futuro, por um lado, por falta de informação sobre o direito de beneficiar dessa tradução e da assistência de um intérprete, bem como, por outro, por o prazo para arguir essa nulidade terminar, em substância, instantaneamente, com a simples prática do ato em causa.

87      Nestas condições, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se pode fazer uma interpretação da legislação nacional que permita respeitar as exigências decorrentes do n.° 83 do presente acórdão e, assim, garantir o exercício dos direitos de defesa no âmbito de um processo equitativo.

88      Caso o órgão jurisdicional de reenvio venha a considerar que não é possível tal interpretação da legislação nacional em causa no processo principal, cumpre recordar que o princípio do primado impõe ao juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito da União a obrigação, na impossibilidade de proceder a uma interpretação da regulamentação nacional conforme com as exigências do direito da União, de assegurar o pleno efeito das exigências deste direito no litígio que lhe foi submetido, não aplicando, se necessário, por sua iniciativa, qualquer regulamentação ou prática nacional, mesmo posterior, que seja contrária a uma disposição do direito da União de efeito direto, sem ter de pedir ou esperar pela supressão prévia dessa regulamentação ou prática nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional [Acórdão de 8 de março de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Efeito direto), C‑205/20, EU:C:2022:168, n.° 37].

89      Atendendo às considerações anteriores, há que responder à questão prejudicial que o artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, lidos à luz do artigo 47.° e do artigo 48.°, n.° 2, da Carta e do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual a violação dos direitos previstos nas referidas disposições destas diretivas deve ser arguida pelo beneficiário desses direitos num determinado prazo, sob pena de sanação, quando esse prazo começa a correr ainda antes de a pessoa em causa ter sido informada, numa língua que fale ou compreenda, por um lado, da existência e do alcance do seu direito à interpretação e à tradução e, por outro, da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos a ele associados.

 Quanto às despesas

90      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, lidos à luz do artigo 47.° e do artigo 48.°, n.° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual a violação dos direitos previstos nas referidas disposições destas diretivas deve ser arguida pelo beneficiário desses direitos num determinado prazo, sob pena de sanação, quando esse prazo começa a correr ainda antes de a pessoa em causa ter sido informada, numa língua que fale ou compreenda, por um lado, da existência e do alcance do seu direito à interpretação e à tradução e, por outro, da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos a ele associados.

Assinaturas


*      Língua do processo: português.