Language of document : ECLI:EU:C:2003:408

Conclusions

CONCLUSÕES DA ADVOGADA-GERAL
CHRISTINE STIX-HACKL
apresentadas em 10 de Julho de 2003 (1)



Processo C-100/02



Gerolsteiner Brunnen GmbH & Co.

contra

Putsch GmbH


[pedido de decisão prejudicial apresentado por decisão do Bundesgerichtshof (Alemanha)]


«Directiva 89/104/CEE – Limitação dos efeitos da marca no que respeita às indicações relativas à proveniência geográfica – Utilização de uma indicação da proveniência geográfica como marca – Observância de ‘práticas honestas em matéria industrial ou comercial’»






I – Observações introdutórias

1.       Nos termos do artigo 5.°, n.° 1, da Directiva 89/104/CEE  (2) (a seguir «directiva sobre as marcas»), uma marca confere ao seu titular um direito exclusivo que, entre outras coisas, lhe permite proibir a terceiros o uso de um sinal que implique um risco de confusão. No entanto, este direito exclusivo não vai ao ponto de impedir a indicação, designadamente, da proveniência geográfica do produto em causa  (3) .

2.       O que é discutível é se, e em que condições, é permitida a utilização de uma indicação de proveniência geográfica, se ela for para além da descrição das características do produto, tendo como finalidade diferenciá‑lo dos produtos de outras empresas – e for, portanto, usada como marca  (4) .

3.       O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, neste contexto, se a utilização como marca de uma indicação de proveniência geográfica também se inclui no âmbito de aplicação do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas e, em caso afirmativo, como deve ser tratada esta utilização no quadro desta disposição.

II – Matéria de facto e despacho de reenvio

4.       A recorrente no processo principal, Gerolsteiner Brunnen GmbH & Co. (a seguir «recorrente»), produz água mineral e refrigerantes à base de água mineral e comercializa‑os na Alemanha.

5.       É titular da marca nominativa «GERRI», registada com a prioridade de 21 de Dezembro de 1985 para, nomeadamente, água mineral, água de mesa, bebidas sem álcool e limonadas, bem como de diversas marcas nominativas e figurativas em que entra a palavra «GERRI» e que foram registadas para água mineral, bebidas sem álcool, sumos de frutas e limonadas.

6.       A recorrida no processo principal, a Putsch GmbH (a seguir «recorrida»), comercializa na Alemanha, desde meados dos anos noventa, refrigerantes com rótulos que contêm as palavras «KERRY Spring». A água utilizada para produção destes refrigerantes é proveniente da nascente situada na localidade de Ballyferriter, no Condado de Kerry, Irlanda.

7.       A recorrente propôs uma acção nos tribunais alemães contra a recorrida, com fundamento na violação do seu direito à marca. A recorrente pediu que a recorrida seja condenada a abster‑se de utilizar a designação, a prestar informações e a pagar uma indemnização. Alegou que comercializa sob a marca «GERRI» refrigerantes com diversos tipos de sabores. Em razão da quota de mercado dos refrigerantes à base de água mineral deste modo referenciados, deve reconhecer‑se a elevada força distintiva da marca «GERRI».

8.       A recorrida contesta este pedido e alega não existir risco de confusão entre ambas as designações, pois a palavra «KERRY» não é utilizada separadamente, mas apenas em combinações de palavras e de imagens e porque a palavra na designação impugnada não tem um valor distintivo. A recorrida utiliza a designação «KERRY Spring» exclusivamente para descrever o local de origem da água mineral.

9.       O pedido da recorrente foi, no essencial, considerado procedente na primeira instância. Em contrapartida, foi considerado improcedente no recurso interposto pela recorrida. A recorrente interpôs recurso dessa decisão para o Bundesgerichtshof.

10.     Como fundamento do seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio alega existir um risco de confusão nos termos do direito das marcas, por se verificar uma semelhança fonética das designações e, simultaneamente, existir um alto grau de semelhança dos produtos.

11.     Para decisão do litígio, é necessário aplicar o artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas. A aplicabilidade desta disposição não pode ser genericamente afastada só porque a indicação da proveniência geográfica é também utilizada pela recorrida como marca.

12.     Isso resulta, desde logo, da letra do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas, que se refere a qualquer uso no comércio. De um ponto de vista sistemático, o Bundesgerichtshof é de opinião de que a disposição do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas deve ser vista como uma barreira de protecção contra os direitos de proibição conferidos pelo artigo 5.°

13.     Com base no acórdão Windsurfing Chiemsee  (5) , o Bundesgerichtshof considera não ser seguro que o artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas seja aplicável à utilização como marca de uma indicação de proveniência geográfica.

14.     Neste contexto, seria de especial importância o facto de o Tribunal de Justiça, no âmbito da ponderação do necessário equilíbrio entre os direitos de proibição do artigo 5.° da directiva sobre as marcas e a função do seu artigo 6.°, n.° 1, alínea b), que consiste em impedir uma monopolização de informações que têm de permanecer livres, ter feito uma interpretação ampla do conceito de utilização como marca na perspectiva do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da mesma directiva  (6) .

15.     Por fim, na opinião do Bundesgerichtshof, o facto de o sinal ser utilizado como marca deve ser considerado no âmbito da ponderação do requisito previsto na última frase do artigo 6.°, n.° 1, da directiva sobre as marcas, relativo a saber se essa utilização foi feita em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial.

16.     Uma vez que a procedência do recurso de revista depende da interpretação do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas, o Bundesgerichtshof, por decisão de 7 de Fevereiro de 2002, suspendeu a instância e apresentou ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)
O artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 89/104 é também aplicável quando um terceiro utiliza, como marca, as indicações aí referidas?

2)
Em caso afirmativo: constitui a utilização como marca uma das circunstâncias que, no âmbito da ponderação exigida pelo artigo 6.°, n.° 1, última frase, da Directiva 89/104, devem ser tidas em conta na análise das ‘práticas honestas em matéria industrial ou comercial’»?

III – Quadro jurídico

A – Direito comunitário

17.     O artigo 5.° da directiva sobre as marcas dispõe:

«Direitos conferidos pela marca

1.      A marca registada confere ao seu titular um direito exclusivo. O titular fica habilitado a proibir que um terceiro, sem o seu consentimento, faça uso na vida comercial:

a)
De qualquer sinal idêntico à marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada;

[...]

3.      Pode nomeadamente ser proibido, caso se encontrem preenchidas as condições enumeradas [no n.° 1]:

a)
Apor o sinal nos produtos ou na respectiva embalagem;

b)
Oferecer os produtos para venda ou colocá‑los no mercado ou armazená‑los para esse fim, ou oferecer ou fornecer serviços sob o sinal;

c)
Importar ou exportar produtos com esse sinal;

d)
Utilizar o sinal nos documentos comerciais e na publicidade.»

18.     O artigo 6.°, n.° 1, da directiva sobre as marcas estabelece:

«O direito conferido pela marca não permite ao seu titular proibir a terceiros o uso, na vida comercial:

[...]

b)
De indicações relativas à espécie, à qualidade, à quantidade, ao destino, ao valor, à proveniência geográfica, à época de produção do produto ou da prestação do serviço ou a outras características dos produtos ou serviços;

[...]

desde que esse uso seja feito em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial.»

B – Direito nacional

19.     O artigo 6.° da directiva sobre as marcas foi transposto para o direito alemão pelo § 23 da Gesetz über den Schutz von Marken und sonstigen Kennzeichen (Lei sobre a protecção de marcas e outros sinais distintivos, de 25 de Outubro de 1994, a seguir «lei das marcas»)  (7) .

20.     O § 23 da lei das marcas estabelece, parcialmente:

«Utilização de nomes e de indicações descritivas; actividade de peças sobresselentes

O titular de uma marca ou de uma designação comercial não tem o direito de proibir a um terceiro, na actividade comercial

[...]

2. A utilização de um sinal idêntico a uma marca ou a uma designação comercial ou um sinal semelhante como indicação de características ou especificidades de mercadorias ou de prestações de serviços, como, designadamente, a sua espécie, a sua qualidade, o seu destino, o seu valor, a sua proveniência geográfica ou a época da sua produção ou prestação,

[...]

desde que a utilização não colida com os bons costumes.»

IV – Apreciação jurídica

A – Quanto à primeira questão prejudicial

1.     Principais argumentos das partes

21.     Em concordância com o despacho de reenvio, quer a recorrida quer a Comissão expressaram nas suas observações escritas a opinião de que a utilização como marca do sinal em litígio, «KERRY Spring», não é fundamento para excluir genericamente a aplicação do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas e, no início das suas considerações jurídicas, afirmam a necessidade acrescida de uma livre utilização de indicações sobre a proveniência geográfica relativamente a águas minerais e água de nascente.

22.     Na opinião da recorrida, a finalidade do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas não impede necessariamente a utilização como marca das indicações aí referidas. Como fundamentação, remete para a jurisprudência do Tribunal de Justiça  (8) , de acordo com a qual esta disposição visa garantir a livre utilização das indicações descritivas e, em última análise, a livre circulação de mercadorias e de prestação de serviços no mercado comum.

23.     O artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas foi antes concebido como barreira protectora contra os direitos de proibição previstos no artigo 5.° da mesma directiva e como necessário complemento à abertura do registo das marcas operada pela harmonização.

24.     Do teor literal do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas também não se pode inferir o contrário.

25.     Visto que a utilização de um sinal como marca é condição para a existência de uma violação ao artigo 5.° da directiva sobre as marcas, também a ordenação sistemática do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), desta directiva aponta para a aplicabilidade desta norma, pois de outra forma ela não teria qualquer âmbito de aplicação.

26.     A Comissão partilha, no essencial, das opiniões da recorrida e remete também para os trabalhos preparatórios da directiva sobre as marcas. Na sua opinião, seria ir ao arrepio da vontade do legislador comunitário se a disposição do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas não fosse aplicável no caso de o sinal em litígio ser utilizado como marca.

27.     A recorrente, o Governo grego e o Reino Unido, pelo contrário, são de opinião de que o artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas não é aplicável no caso de uma utilização como marca do sinal em litígio. Na sua opinião, deverá ser concedida primazia à finalidade de protecção da marca sobre a protecção de uma concorrência livre e não falseada.

28.     Na opinião da recorrente, já o facto de o artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva se referir apenas à espécie – mas não à finalidade – da indicação, aponta para o entendimento de que ela apenas abrange uma utilização meramente descritiva. Este entendimento apoia‑se ainda na ordenação sistemática do artigo 6.°, em comparação com os artigos 7.° e 9.° da directiva sobre as marcas e com a sua redacção divergente.

29.     Do ponto de vista sistemático, a recorrente defende que a disposição do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas não pode ser considerada uma barreira aos direitos de proibição do artigo 5.° da directiva sobre as marcas, mas, pelo contrário, um garante de um direito de uso autónomo e totalmente independente dos direitos de proibição previstos no artigo 5.° da mesma directiva.

30.     A opinião da recorrida é insustentável mesmo perante o contexto do acórdão Windsurfing Chiemsee  (9) . Neste acórdão, o Tribunal de Justiça exprimiu a opinião de que um terceiro só pode utilizar descritivamente uma marca que, no todo ou em parte, consista numa descrição geográfica, mas não utilizá‑la como marca.

31.     O Reino Unido e o Governo grego partilham, no essencial, das opiniões da recorrente.

32.     O Reino Unido alega ainda, para o caso de se considerar aplicável o artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas ao caso de utilização do sinal em causa como marca, o carácter contraditório das disposições relativas ao registo de marcas, por um lado, e das referentes à violação dos direitos da marca, por outro. Ao titular da marca seria reconhecido o direito de impedir o registo, mas não a utilização do sinal por um terceiro.

2.     Apreciação jurídica

33.     Na medida em que no processo principal se parte do princípio, com o órgão jurisdicional de reenvio, de que existe um risco de confusão com a marca registada, tem de considerar‑se que o utilizador do sinal em litígio está vinculado perante o titular da marca aos deveres de proibição decorrentes do artigo 5.° da directiva sobre as marcas.

34.     Esta disposição define os direitos conferidos pela marca, ao passo que o artigo 6.° da directiva sobre as marcas consagra disposições sobre a limitação dos efeitos da marca. De acordo com esta última disposição, o titular de uma marca não pode proibir a terceiros, designadamente, o uso de indicações relativas à proveniência geográfica. O que é discutível é se esta norma também se aplica quando a utilização não tiver como finalidade, ou não tiver só como finalidade, a descrição do produto ou da prestação de serviço, mas também a sua diferenciação relativamente a outros produtos ou prestações de serviços de concorrentes.

a)     Quanto à letra e à história do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas

35.     Observe‑se, em primeiro lugar, que a letra do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas não distingue entre os possíveis usos de um sinal. Esta disposição refere‑se, literalmente, a «indicações» relativas à proveniência geográfica, sem mencionar o seu eventual carácter puramente descritivo.

36.     Neste contexto, deve salientar‑se que a directiva não inclui a previsão «utilização como marca» de um sinal. Fazer depender a aplicabilidade do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), do tipo de utilização de um sinal – nomeadamente por recurso à diferenciação entre uma utilização descritiva de uma utilização como marca – significa fazer depender essa aplicabilidade de um elemento não escrito da previsão normativa.

37.     Perante o teor literal da disposição em causa, também não é convincente pretender concluir pela inaplicabilidade genérica do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas em caso de utilização de um sinal como marca, a partir da utilização do conceito de «indicação». Dificilmente poderia contestar‑se que também as marcas registadas podem incluir indicações sobre a proveniência geográfica de um produto ou serviço, de tal forma que o conceito «indicação» não permite retirar qualquer conclusão sobre o tipo de uso.

38.     Se o legislador comunitário tivesse pretendido estabelecer uma diferenciação entre os tipos de utilização de um sinal, seria lógico que tivesse incluído esse elemento na previsão do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas. E é precisamente isso que não se verifica, de modo que a letra da disposição dificilmente deixa margem para essa diferenciação.

39.     Da letra do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), apenas pode retirar‑se que um sinal só é incluído no seu âmbito de aplicação se contiver uma indicação sobre uma das características que nele são mencionados, como, por exemplo, a proveniência geográfica.

40.     Também a história do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas vai no sentido da aplicação desta disposição sem levar em conta o tipo de utilização do sinal em causa. É verdade que a primeira proposta de directiva  (10) previa que a disposição sobre as limitações ao direito de utilização exclusiva do titular da marca só seria aplicável se a indicação descritiva não fosse utilizada como marca; no entanto, na proposta alterada da directiva, esta disposição foi substituída – manifestamente para melhorar a clareza do texto – pela formulação «desde que esse uso seja feito em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial»  (11) . O legislador comunitário recusou, portanto, conscientemente fazer uma distinção consoante o tipo de uso.

41.     Por fim, deve salientar‑se que a remissão da recorrente e do Governo grego para o direito das marcas grego, italiano e espanhol torna claro que, nestes Estados‑Membros, só a utilização do sinal sem ser como marca, ou seja só com uma função meramente descritiva, permite preencher a previsão normativa em apreço do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas. O modo como a directiva sobre as marcas foi transposta para o direito interno dos Estados‑Membros não permite tirar qualquer conclusão sobre a forma como ela deve ser interpretada do ponto de vista do direito comunitário.

b)     Quanto à ordenação sistemática

42.     Existem também razões sistemáticas a favor de uma interpretação do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas como disposição que também abrange a utilização de um sinal como marca.

i)     i) Sobre a relação entre o artigo 5.° e o artigo 6.° da directiva sobre as marcas

43.     Enquanto o artigo 5.° estabelece os direitos exclusivos do titular da marca, o artigo 6.° estabelece limitações a esses direitos  (12) . Mas se, em especial, o artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas consagra uma limitação aos direitos exclusivos previstos no artigo 5.°, o seu conteúdo normativo pressupõe logicamente que a utilização em causa também seja abrangida pelo artigo 5.° Tanto a Comissão como a recorrida salientam, com razão, que a invocação do artigo 6.° não teria objecto se a utilização em causa não estivesse também abrangida pelo artigo 5.°

44.     O Tribunal de Justiça teve recentemente oportunidade de se pronunciar reiteradamente sobre o âmbito da protecção do artigo 5.° da directiva sobre as marcas. Ele interpretou‑o no sentido de que a invocação do direito exclusivo nele previsto pressupõe um acto que afecte os interesses protegidos por esta disposição  (13) . No acórdão Arsenal Football Club  (14) , o Tribunal de Justiça reforçou este ponto de vista, ao declarar que «o titular não pode proibir o uso de um sinal idêntico à marca para produtos idênticos àqueles para os quais a marca foi registada se este uso não puder prejudicar os seus interesses próprios como titular da marca, tendo em conta as funções desta»  (15) , tendo o Tribunal de Justiça definido a principal função da marca, invocando a sua jurisprudência constante  (16) , como visando «garantir ao consumidor ou ao utilizador final a identidade de origem do produto ou do serviço designado pela marca, permitindo‑lhe distinguir, sem confusão possível, este produto ou serviço de outros que tenham proveniência diversa»  (17) (a chamada garantia de proveniência).

45.     Sem ser necessário dar aqui uma definição de utilização de um sinal como marca  (18) , torna‑se claro, a partir desta jurisprudência, que não pode resultar do artigo 6.° da directiva sobre as marcas que a admissibilidade da utilização de um sinal para fins que não sejam os de diferenciar os produtos ou serviços de uma empresa dos produtos ou serviços de outras empresas se baseia no facto de tal utilização não estar já incluída no âmbito da protecção do artigo 5.°

46.     Chego assim globalmente à conclusão de que a aplicabilidade do artigo 6.° não depende de saber se um sinal é ou não utilizado como marca.

ii)     ii) Sobre as disposições relativas ao registo da marca

47.     No contexto da contradição alegada pelo Reino Unido entre as disposições relativas ao registo da marca, por um lado, e as relativas à limitação dos efeitos da marca, por outro, deve concluir‑se que as indicações relativas à proveniência geográfica podem, sob determinadas condições, ser perfeitamente protegidas como marcas.

48.     Assim, o artigo 3.°, n.° 1, alínea c), da directiva sobre as marcas em princípio não admite o registo de marcas constituídas exclusivamente por sinais ou indicações que possam servir, no comércio, para designar a proveniência geográfica. Esta proibição tem duas excepções. A proibição não se aplica se, antes da data do pedido de registo e após o uso que dela foi feito, a marca tiver adquirido carácter distintivo ou se uma associação tiver pedido o registo da indicação de proveniência como marca colectiva. Se não se verificarem estas duas excepções à proibição de registo de indicações de proveniência geográfica, existe ainda a possibilidade de registar uma marca nominativa ou figurativa. Com isso, a indicação da proveniência geográfica é transportada para o rótulo ou para a publicidade, mesmo que a própria indicação de proveniência não esteja na base da protecção da marca. Neste contexto, e ao contrário do alegado pelo Governo do Reino Unido, não parece ser contraditório que, nas referidas condições, fosse de recusar o registo mas não de impedir a simples utilização da indicação de proveniência geográfica.

c)     Sobre o espírito e a finalidade do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas

49.     O artigo 6.° da directiva sobre as marcas visa sobretudo conciliar os interesses fundamentais da protecção dos direitos de marca e os da livre circulação de mercadorias e da livre prestação de serviços no mercado comum, de forma a que o direito de marca possa desempenhar o seu papel de elemento essencial do sistema de concorrência não falseado  (19) . De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o artigo 6.° da directiva sobre as marcas constitui, sem dúvida, uma limitação aos direitos do titular da marca, estabelecendo os limites dos poderes do titular da marca. O artigo 6.° da directiva sobre as marcas está por isso, como uma espécie de regulamentação, numa relação estreita com os direitos exclusivos previstos no artigo 5.° da mesma directiva.

50.     Assim, a jurisprudência do Tribunal de Justiça deve ser entendida no sentido de que a função de garantia da proveniência deve ser considerada a principal função da marca  (20) . Para que a marca possa desempenhar o seu papel de elemento essencial do sistema de concorrência leal, ela deve constituir a garantia de que todos os produtos ou serviços que a ostentam foram fabricados ou prestados sob o controlo de uma única empresa à qual pode ser atribuída a responsabilidade pela qualidade daqueles  (21) .

51.     Em minha opinião, esta função primordial estabelecida pelo Tribunal de Justiça não é afastada se se considerar que o artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas também é genericamente aplicável à utilização de um sinal como marca.

52.     O artigo 6.° da directiva sobre as marcas deve ser visto à luz da reserva de que a possibilidade de utilização de uma indicação, entre outras, de proveniência geográfica está sujeita à condição de que esse uso «seja feito em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial». A aplicabilidade do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), não está, portanto, em contradição com a consideração dos respectivos interesses concretos das partes no caso em apreço, de tal forma que a função protectora da marca não parece ficar ameaçada.

53.     Contrariamente à opinião do Governo do Reino Unido, à opinião aqui defendida não se opõem considerações relativas à segurança jurídica. Sendo certo que o artigo 6.°, n.° 1, da directiva sobre as marcas exige em todos os casos concretos uma ponderação entre os interesses do titular da marca, por um lado, e os do terceiro, por outro, é todavia esta ponderação que permite realizar um adequado equilíbrio de interesses – aliás, prescrito pelo direito comunitário  (22) . Deve ainda observar‑se que a visão contrária criaria incertezas jurídicas de monta, uma vez que avaliaria a utilização como marca a partir de critérios indeterminados.

54.     Por fim, vejamos o acórdão Windsurfing Chiemsee  (23) , o qual, segundo a opinião da recorrente e do Reino Unido, milita contra a aplicabilidade do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas em caso de utilização de um sinal como marca.

55.     O Tribunal de Justiça declarou neste acórdão, relativamente ao artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas, que quando tiver sido registada uma marca composta, no todo ou em grande parte, por uma indicação geográfica, esta norma não confere aos terceiros o direito ao «uso desse nome como marca, antes se limita a garantir que eles possam utilizá‑lo de modo descritivo, ou seja, como indicação relativa à proveniência geográfica» (itálico meu). O que, à primeira vista, parece conter a solução para o presente litígio, verifica‑se, após uma análise mais detalhada, como não pertinente.

56.     Deve salientar‑se que, nos processos apensos Windsurfing Chiemsee, a recorrente era titular de uma marca composta no todo ou em grande parte por uma indicação de proveniência geográfica, enquanto no processo principal as marcas da recorrente representam ou contêm designações de fantasia. Além disso, no processo Windsurfing Chiemsee, o Tribunal de Justiça tinha que esclarecer em que condições o artigo 3.°, n.° 1, alínea c), da directiva sobre as marcas se opõe ao registo de uma marca composta exclusivamente por uma indicação geográfica.

57.     Só com base nesta diferença de pontos de partida já dificilmente se poderia transpor a citada passagem do acórdão para o presente processo. É por isso que hesito aceitar a validade genérica da citada declaração do Tribunal de Justiça  (24) .

58.     Tendo em conta as minhas considerações anteriores, chego à conclusão de que a utilização de um sinal como marca não é fundamento jurídico para afastar a aplicabilidade do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas.

B – Quanto à segunda questão prejudicial

1.     Principais argumentos das partes

59.     A recorrente é de opinião de que a utilização como marca de uma indicação de proveniência geográfica não corresponde a uma prática honesta em matéria industrial ou comercial.

60.     Na opinião da recorrida, quer razões sistemáticas quer a letra do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas vão contra a inclusão da utilização de uma indicação de proveniência geográfica como marca na avaliação do requisito das práticas honestas em matéria industrial ou comercial.

61.     A recorrida, bem como a Comissão, salienta que uma utilização como marca não pode, de todo o modo, ser o único critério, mas apenas um entre vários critérios que devem ser considerados na avaliação dos requisitos do artigo 6.° da directiva sobre as marcas.

62.     Na opinião da Comissão, na avaliação dos elementos da previsão normativa «práticas honestas em matéria industrial ou comercial» devem considerar‑se as circunstâncias do caso concreto. Neste ponto, remete para as suas observações escritas relativas às especificidades do mercado das águas minerais aqui em causa.

2.     Apreciação jurídica

63.     O facto de, no quadro da aplicação do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas não poder ser permitida toda e qualquer utilização como marca, resulta já da reserva «desde que esse uso seja feito em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial.» No acórdão BMW  (25) , o Tribunal de Justiça define este elemento da previsão como a expressão de um dever de lealdade face aos interesses legítimos do titular da marca.

64.     Saber se a forma de utilização de um sinal respeita as práticas honestas em matéria industrial ou comercial depende de dois elementos, designadamente, da marca registada relativamente à qual existe um risco de confusão e do tipo de utilização do próprio sinal. Assim entendida, a utilização como marca deve ser levada em conta na apreciação do elemento «práticas honestas».

65.     Neste contexto, tem de se analisar concretamente as circunstâncias e a situação dos interesses recíprocos das partes. Contrariamente à opinião da recorrente, não pode recusar‑se esta análise concreta com base na existência de uma eventual ilicitude devido à utilização do sinal como marca. Seria pouco consequente admitir, primeiro, que a utilização do sinal como marca é abrangida pelo artigo 6.° da directiva sobre as marcas e recusar depois a necessária apreciação do caso concreto e excluir uma aplicação sistemática do artigo 6.°

66.     Devem agora analisar‑se as circunstâncias que podem influir na referida apreciação concreta dos dois elementos.

67.     No que respeita à marca registada, deve reconhecer‑se que a relevância dos interesses do titular da marca depende da força distintiva da marca e do seu prestígio, como a Comissão justamente realçou  (26) . Assim, o titular da marca parece ser menos merecedor de protecção quando devia contar, pelo menos em parte, com a existência de um risco de confusão, ou seja, quando a marca registada consiste numa indicação descritiva que só através do uso adquiriu força distintiva. O prestígio da marca é também relevante: quanto maior este for tanto mais provável parece ser a ofensa à reputação dos produtos ou serviços em causa e ao valor da marca através da utilização de uma indicação que não visa apenas descrever as características do produto  (27) .

68.     Passo agora ao segundo elemento, ou seja, o modo de utilização da indicação por terceiros, que é a questão central da segunda questão prejudicial. Não subsistem dúvidas de que a deliberada confusão do público através da utilização de um sinal enganador – devido à sua semelhança com uma marca – para indicação da característica de um produto não pode corresponder a uma prática honesta em matéria industrial ou comercial. Tal como a Comissão justamente sublinhou, a percepção do sinal utilizado desempenha uma importante função na publicidade.

69.     Torna‑se assim simultaneamente claro que existe uma ligação estreita entre o modo de utilização da indicação e a sua finalidade, designadamente na medida em que o modo de utilização contém ao mesmo tempo uma indicação sobre a finalidade dessa utilização. É o caso do processo principal: a suspeita de utilização da indicação do nome da nascente para relacionar a água mineral em causa com uma determinada empresa – e não apenas como indicação da proveniência geográfica da água mineral utilizada – surge aqui, designadamente, devido ao realce dado e à restante configuração da indicação em causa. O modo de utilização da indicação relativa à proveniência geográfica da água permite, assim, a suspeita de que essa utilização não tem apenas um carácter descritivo, mas, pelo contrário, é feita, como afirma o órgão jurisdicional de reenvio, «como marca».

70.     Devido a esta estreita ligação entre o modo de utilização da indicação e o fim dessa utilização, na apreciação de todas as circunstâncias do caso concreto tem certamente de se considerar o modo de utilização da indicação, especialmente se se demonstrar que a utilização é feita para fins de individualização do produto, perante a recusa de registo de uma marca no Estado‑Membro respectivo.

71.     No que respeita ao produto água mineral, deve reconhecer‑se complementarmente que o simples uso do nome da nascente não permite tirar nenhuma conclusão sobre a finalidade desta indicação. Os artigos 7.° e 8.° da Directiva 80/777/CEE do Conselho  (28) prevêem que a proveniência geográfica de uma água mineral – seja a chamada nascente ou o chamado local de exploração – deve ser indicado de forma inequívoca, ou seja, através de uma indicação escrita clara  (29) . O fundamento desta exigência reside, sem dúvida, na relevância das águas minerais para a saúde dos consumidores. É por isso que é proibido alterar a água obtida numa determinada nascente e criar ou reforçar artificialmente os seus efeitos fisiológicos. Os consumidores associam a indicação de proveniência do produto ou do serviço a determinadas características do produto e à garantia de uma determinada qualidade. Sobretudo no caso de águas minerais, a sua característica específica deve‑se à localidade da qual realmente provém. O valor económico das águas minerais reside sobretudo nesta ligação especial entre a indicação de uma determinada proveniência e a expectativa dos consumidores relativamente a uma determinada qualidade.

72.     Do que precede resulta que, no quadro da ponderação imposta no artigo 6.°, n.° 1, última frase, da directiva sobre as marcas do elemento «práticas honestas em matéria industrial ou comercial», deve ser tido em conta o modo de utilização de uma das indicações especificadas no artigo 6.°, n.° 1, alínea b). No modo de utilização incluem‑se, por exemplo, o grau de semelhança da indicação com a marca registada, a intensidade do realce da indicação, na medida em que a sua utilização for além do que é imposto pelo direito comunitário, e a percepção pelo público de que a indicação utilizada é uma marca.

V – Conclusão

73.     Tendo em conta as observações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais do Bundesgerichtshof da seguinte forma:

«1)
A aplicabilidade do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 89/104/CEE não depende, em princípio, de saber se o terceiro utiliza ou não como marca as indicações aí referidas.

2)
No quadro da ponderação imposta no artigo 6.°, n.° 1, última frase, da Directiva 89/104/CEE do elemento ‘práticas honestas em matéria industrial ou comercial’, deve ser tido em conta o modo de utilização de uma das indicações especificadas no artigo 6.°, n.° 1, alínea b). No modo de utilização incluem‑se, por exemplo

o grau de semelhança da indicação com a marca registada,

a intensidade do realce da indicação, na medida em que a sua utilização for além do que é imposto pelo direito comunitário,

a percepção pelo público de que a indicação utilizada é uma marca.»


1
Língua original: alemão.


2
Primeira Directiva do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1).


3
Artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da directiva sobre as marcas.


4
A utilização de um sinal como marca foi definida pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 23 de Fevereiro de 1999, BMW (C‑63/97, Colect., p. I‑905, n.° 38), como utilização feita «a fim de distinguir os produtos ou serviços em causa como provenientes de uma empresa determinada».


5
Acórdão de 4 de Maio de 1999 (C‑108/97 e C‑109/97, Colect., p. I‑2779, n.° 28).


6
O Bundesgerichtshof remete para o acórdão do Tribunal de Justiça, BMW (já referido na nota 4, n.° 42).


7
BGBl. 1994 I, p. 3082 (1995, p. 156).


8
Acórdão BMW (já referido na nota 4, n.° 62).


9
Já referido na nota 5 (n.° 28).


10
Boletim CE, anexo 5/80.


11
COM (85) 793 def.; JO 1985, C 351, p. 4.


12
Neste momento pode ficar em suspenso a questão de saber se se trata de excepções aos direitos previstos no artigo 5.° da directiva sobre as marcas ou de limitações imanentes aos mesmos. Ao contrário da opinião defendida pela recorrente, é irrelevante saber se o artigo 6.° da directiva sobre as marcas cria um «direito autónomo de utilização», pois tal direito só se poderia logicamente referir a uma utilização em princípio proibida, o que novamente nos reconduz à problemática da limitação.


13
V. acórdão de 14 de Maio de 2002, Hölterhoff (C‑2/00, Colect., p. I‑4187, n.° 16). Neste processo, tratava‑se da questão simétrica a esta, sobre se a utilização descritiva de um sinal pode ser subsumida ao artigo 5.°


14
Acórdão de 12 de Novembro de 2002 (C‑206/01, Colect., p. I‑10273).


15
Loc. cit., n.° 54.


16
V., entre outros, os acórdãos de 23 de Maio de 1978, Hoffmann‑La Roche (102/77, Colect., p. 391, n.° 7), e de 18 de Junho de 2002, Philips (C‑299/99, Colect., p. I‑5475, n.° 30).


17
Loc. cit., n.° 48.


18
O Tribunal de Justiça recusou expressamente dar essa definição no n.° 17 do acórdão Hölterhoff, já citado na nota 13.


19
Acórdão BMW, já citado na nota 4, n.° 62.


20
V. o n.° 44 supra.


21
V., entre outros, os acórdãos Hoffmann‑La Roche (já referido na nota 16, n.° 7), Philips (já referido na nota 16, n.° 30), e Arsenal Football Club (já referido na nota 14, n.° 48).


22
É sabido que a directiva sobre as marcas resultou da relação conflitual entre as liberdades fundamentais e a protecção da propriedade intelectual.


23
Já referido na nota 5 (n.° 28).


24
Neste sentido, também as conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs de 5 de Abril de 2001, Procter & Gamble (acórdão de 20 de Setembro de 2001, C‑383/99 P, Colect., p. I‑6251).


25
Já referido na nota 4 (n.° 61).


26
V. o acórdão BMW (já referido na nota 4, n.° 40).


27
V. a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 7.°, n.° 2, da directiva sobre as marcas, especialmente o acórdão BMW (já referido na nota 4, n.os 51 e segs.).


28
Directiva de 15 de Julho de 1980, relativa à aproximação de legislações dos Estados‑Membros respeitantes à exploração e à comercialização de águas minerais naturais (JO L 229, p. 1; EE 13 F11 p. 47).


29
Além disso, essa indicação pode constituir igualmente uma denominação de origem protegida ou uma indicação geográfica protegida nos termos do Regulamento (CEE) n.° 2081/92 do Conselho, de 14 de Julho de 1992, relativo à protecção das indicações geográficas e denominações de origem dos produtos agrícolas e dos géneros alimentícios (JO L 208, p. 1).