Language of document : ECLI:EU:C:2024:70

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

25 de janeiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.o — Princípio ne bis in idem — Processos penais instaurados in rem — Despacho de arquivamento adotado pelo Ministério Público — Admissibilidade de processos penais posteriores instaurados in personam pelos mesmos factos — Requisitos que devem estar preenchidos para se poder considerar que uma pessoa foi objeto de uma sentença transitada em julgado — Requisito de uma investigação exaustiva — Não inquirição de uma eventual testemunha — Não inquirição da pessoa em causa enquanto “suspeito”»

No processo C‑58/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova, Roménia), por Decisão de 13 de janeiro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 28 de janeiro de 2022, no processo penal contra

NR

sendo interveniente:

Parchetul de pe lângă Curtea de Apel Craiova,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, T. von Danwitz, P. G. Xuereb (relator), A. Kumin e I. Ziemele, juízes,

advogado‑geral: N. Emiliou,

secretária: R. Şereş, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 22 de março de 2023,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo Romeno, por E. Gane, A. Rotăreanu e A. Wellman, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por I. Rogalski e M. Wasmeier, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 8 de junho de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), lido em conjugação com a Decisão 2006/928/CE da Comissão, de 13 de dezembro de 2006, que estabelece um mecanismo de cooperação e de verificação dos progressos realizados na Roménia relativamente a objetivos de referência específicos nos domínios da reforma judiciária e da luta contra a corrupção e a criminalidade organizada (JO 2006, L 354, p. 56).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra NR por corrupção passiva.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

3        Sob a epígrafe «Direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez», o artigo 4.o do Protocolo n.o 7 à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950, tem a seguinte redação:

«1.      Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infração pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado.

2.      As disposições do número anterior não impedem a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afetar o resultado do julgamento.

[…]»

 Direito da União

 Decisão 2006/928

4        A Decisão 2006/928 foi adotada no contexto da adesão da Roménia à União Europeia em 1 de janeiro de 2007.

5        Nos termos do artigo 1.o, primeiro parágrafo, desta decisão:

«A Roménia deve, até 31 de março de cada ano, e pela primeira vez até 31 de março de 2007, apresentar à Comissão [Europeia] um relatório sobre os progressos realizados relativamente a cada um dos objetivos de referência previstos no anexo.»

6        O anexo da referida decisão prevê:

«Objetivos de referência a atingir pela Roménia, referidos no artigo 1.o:

1)      Garantir processos judiciais mais transparentes e eficazes, nomeadamente mediante o reforço das capacidades e da responsabilização do Conselho Superior da Magistratura. Apresentar relatórios e acompanhar o impacto dos novos Códigos de Processo Civil e Penal.

2)      Estabelecer, tal como previsto, uma Agência para a Integridade com responsabilidades de verificação dos ativos, incompatibilidades e potenciais conflitos de interesses, e com poderes para emitir decisões vinculativas, com base nas quais podem ser aplicadas sanções dissuasivas.

3)      Continuar, com base nos progressos já efetuados, a realizar inquéritos profissionais e imparciais sobre as alegações de corrupção de alto nível.

4)      Tomar medidas suplementares para prevenir e combater a corrupção, nomeadamente no âmbito da administração local.»

 DecisãoQuadro 2003/568/JAI

7        O artigo 2.o da Decisão‑Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de julho de 2003, relativa ao combate à corrupção no setor privado (JO 2003, L 192, p. 54), sob a epígrafe «Corrupção ativa e passiva no setor privado», enuncia, no n.o 1, alínea b):

«Os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para garantir que sejam consideradas infração penal as seguintes condutas voluntárias, praticadas no exercício de atividades profissionais:

[…]

b)      Solicitar ou receber, diretamente ou por interposta pessoa, vantagens indevidas de qualquer natureza, ou aceitar a promessa de tais vantagens, em benefício do próprio ou de terceiros, quando, a qualquer título, essa pessoa dirija uma entidade do setor privado ou nela trabalhe, a fim de, em violação dos seus deveres, praticar ou se abster de praticar determinados atos.»

8        Nos termos do artigo 4.o desta decisão‑quadro, sob a epígrafe «Sanções»:

«1.      Cada Estado‑Membro deve tomar as medidas necessárias para que as condutas referidas nos artigos 2.o e 3.o sejam passíveis de sanções penais efetivas, proporcionadas e dissuasivas.

2.      Cada Estado‑Membro deve tomar as medidas necessárias para que a conduta referida no artigo 2.o seja punível com pena de prisão com duração entre um e três anos.

3.      Cada Estado‑Membro deve tomar as medidas necessárias, nos termos das respetivas regras e princípios constitucionais, para garantir que, sempre que, em relação a determinada atividade profissional, uma pessoa singular tenha sido condenada pela conduta referida no artigo 2.o, essa pessoa possa, quando adequado, pelo menos nos casos em que ocupe uma posição dominante na empresa em causa, ficar temporariamente proibida do exercício dessa atividade profissional específica ou de uma atividade profissional comparável, num cargo ou numa qualidade semelhantes, quando os factos apurados permitam presumir a existência clara de risco de abuso de autoridade ou de poder, através de corrupção ativa ou passiva.»

 Direito romeno

 Código Penal

9        O artigo 207.o do Cod penal (Código Penal), sob a epígrafe «Extorsão», prevê, no seu n.o 1:

«Quem, para obter um benefício ilegítimo […], para si ou para terceiro, obrigar uma pessoa a dar, praticar, não praticar ou a sofrer um prejuízo, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.»

10      O artigo 289.o deste código, sob a epígrafe «Corrupção passiva», dispõe:

«1.      Quem solicitar ou aceitar, direta ou indiretamente, para si ou para terceiro, uma vantagem patrimonial ou outras vantagens que não lhe sejam devidas, ou a sua promessa, para a prática, omissão, aceleração ou atraso de um ato que se enquadre nas suas funções ou no exercício de um ato contrário aos deveres do seu cargo, é punido com pena de prisão de três a dez anos e de proibição de exercer uma função pública ou de exercer a profissão ou a atividade em cuja execução o funcionário cometeu o ato.

[…]»

11      O artigo 308.o do referido código, sob a epígrafe «Infrações de corrupção e de serviço cometidas por outras pessoas», tem a seguinte redação:

«1.      As disposições dos artigos 289.o a 292.o, 295.o, 297.o a 300.o e 304.o relativas aos funcionários aplicam‑se também por analogia aos atos praticados por ou em relação a pessoas que, a título permanente ou temporário, com ou sem remuneração, exerçam funções de qualquer natureza ao serviço de uma pessoa singular referida no artigo 175.o, n.o 2, ou de uma pessoa coletiva.

[…]»

 Código de Processo Penal

12      O artigo 6.o do Cod de procedură penală (Código de Processo Penal), sob a epígrafe «Ne bis in idem», dispõe:

«Ninguém pode ser processado ou julgado por uma infração penal quando contra si já tiver sido proferida uma sentença transitada em julgado pelo mesmo facto, ainda que com uma qualificação jurídica diferente.»

13      O artigo 335.o deste código, sob a epígrafe «Procedimento em caso de reabertura do inquérito», enuncia:

«1.      Se, posteriormente, se verificar que a circunstância que fundamentou a decisão de arquivamento do processo não existia, o procurador do Ministério Público hierarquicamente superior àquele que emitiu a decisão revoga o despacho e ordena a reabertura do inquérito. As disposições do artigo 317.o são aplicáveis em conformidade.

2.      Se surgirem novos factos ou circunstâncias no sentido de que a circunstância que fundamentou a decisão de arquivamento do processo deixou de existir, o procurador do Ministério Público anula o despacho e ordena a reabertura do inquérito.

[…]

4.      A reabertura do inquérito está subordinada à confirmação pelo juiz de instrução, no prazo máximo de três dias, sob pena de nulidade. O juiz de instrução decide, por decisão fundamentada, em conferência, sobre a legalidade e o mérito do despacho de reabertura do inquérito, após ter notificado o suspeito ou o arguido e com a participação do procurador. A ausência das pessoas legalmente notificadas não impede o tratamento do pedido de confirmação.

41.      Ao tratar o pedido de confirmação, o juiz de instrução verifica a legalidade e o mérito do despacho de reabertura do inquérito com base nos documentos e elementos dos autos da instrução penal e em novos documentos apresentados. A decisão do juiz de instrução é definitiva.

[…]»

 Lei n.o 78/2000

14      O artigo 6.o da Legea nr. 78/2000 pentru prevenirea, descoperirea și sancționarea faptelor de corupție (Lei n.o 78/2000 relativa à Prevenção, Deteção e Sanção dos Atos de Corrupção), de 8 de maio de 2000 (Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 219 de 18 de maio de 2000), na versão aplicável ao litígio no processo principal, dispõe:

«Os crimes de corrupção passiva (previstos no artigo 289.o do Código Penal), de corrupção ativa (previstos no artigo 290.o do Código Penal), de tráfico de influência (previstos no artigo 291.o do Código Penal) e de tráfico de influência sob forma ativa (previstos no artigo 292.o do Código Penal) são punidos em conformidade com as disposições legais aplicáveis. As disposições do artigo 308.o do Código Penal são aplicáveis em conformidade.»

 Tramitação processual e questão prejudicial

15      GL, HS, JK, MT e PB (a seguir «denunciantes no processo principal») são empregados da sociedade cooperativa BX. Em 12 de fevereiro de 2014, por decisão da assembleia geral dos membros desta sociedade, a presidente desta última, NR, foi destituída das suas funções.

16      Esta decisão foi objeto de um recurso de anulação interposto por NR, no âmbito do qual foi representada por um advogado a quem se comprometeu a pagar a quantia de 4 400 euros a título de «quota litis». Uma vez que foi dado provimento a este recurso, NR foi reconduzida às suas funções de presidente da referida sociedade.

17      Em 30 de abril de 2015, realizou-se uma reunião da sociedade cooperativa BX, na qual participaram NR, os denunciantes no processo principal e outros membros do conselho de administração desta sociedade, a saber, AX, BD, CH, FX e LM. Um dos denunciantes efetuou um registo áudio dos diálogos desta reunião.

18      Segundo a Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova, Roménia), que é o órgão jurisdicional de reenvio, na referida reunião, NR pediu aos denunciantes no processo principal, na medida em que estavam por trás da decisão de a demitir das suas funções de presidente da referida sociedade, o pagamento do montante dos honorários referido no n.o 16 do presente acórdão, sob pena de rescisão dos seus contratos de trabalho e «em contrapartida do restabelecimento de um clima de compreensão e de cooperação no local de trabalho». Uma vez que o seu pedido não foi atendido, NR emitiu e assinou as decisões de rescisão desses contratos.

19      GL, HS, JK, MT e PB apresentaram duas queixas‑crime contra NR, a primeira em 8 de junho de 2015 e a segunda em 26 de junho de 2015, respetivamente, no Inspectoratul de Poliție al Județului Olt (Comando da Polícia do Departamento de Olt, Roménia) e na Direcția Națională Anticorupție — Serviciul Teritorial Craiova (Direção Nacional Anticorrupção — Serviço territorial de Craiova, Roménia), pelos crimes de extorsão, abuso de poder e corrupção passiva, ao abrigo, respetivamente, dos artigos 207.o, 297.o e 289.o do Código Penal, lido em conjugação com o artigo 308.o deste código.

20      Por um lado, a queixa‑crime apresentada no Comando da Polícia do Departamento de Olt foi registada no Parchet de pe lângă Tribunalul Ol (Ministério Público junto do Tribunal Regional de Olt, Roménia), em 5 de fevereiro de 2016, sob a referência 47/P/2016.

21      Por outro lado, a queixa‑crime apresentada na Direção Nacional Anticorrupção — Serviço territorial de Craiova foi transferida para o Parchet de pe lângă Judecătoria Slatina (Ministério Público junto do Tribunal de Primeira Instância de Slatina, Roménia), com o fundamento de que esta queixa‑crime continha indícios de um crime de extorsão abrangido pela competência material deste Ministério Público. Esta queixa‑crime foi registada nos autos do referido Ministério Público em 11 de fevereiro de 2016, sob a referência 673/P/2016.

 Quanto ao seguimento dado ao processo 673/P/2016

22      Por Despacho de 14 de março de 2016, o Parchet de pe lângă Judecătoria Slatina (Ministério Público junto do Tribunal de Primeira Instância de Slatina) instaurou um processo penal in rem pela prática do crime de extorsão, ao abrigo do artigo 207.o do Código Penal.

23      Após ter procedido à inquirição de NR e dos denunciantes no processo principal, o órgão de polícia responsável pelo inquérito elaborou um relatório propondo o arquivamento do processo 673/P/2016. Segundo este órgão, na medida em que o montante dos honorários referido no n.o 16 do presente acórdão tinha sido pedido por NR não em seu benefício próprio, mas em benefício do seu advogado, há que considerar que não cometeu nenhum crime de extorsão, ao abrigo do artigo 207.o do Código Penal.

24      Por Despacho de 27 de setembro de 2016, o procurador responsável pelo processo 673/P/2016 proferiu, com base no relatório mencionado no número anterior, um despacho de arquivamento desse processo (a seguir «despacho de arquivamento em causa»).

25      Os denunciantes no processo principal não contestaram este despacho.

26      Por Despacho de 21 de outubro de 2016, o procurador‑geral do Parchet de pe lângă Judecătoria Slatina (Ministério Público junto do Tribunal de Primeira Instância de Slatina) revogou o despacho de arquivamento em causa e ordenou a reabertura do inquérito contra NR pela prática do crime de extorsão. Segundo este procurador, uma vez que a mesma situação de facto foi objeto de um inquérito no processo 47/P/2016 e que este inquérito se encontrava numa fase avançada, a boa administração da justiça impôs a transferência do processo 673/P/2016 para o Parchet de pe lângă Tribunalul Olt (Ministério Público junto do Tribunal Regional de Olt), com vista à sua apensação ao processo 47/P/2016.

27      Por Despacho de 21 de novembro de 2016, o juízo de instrução do Judecătoria Slatina (Tribunal de Primeira Instância de Slatina, Roménia), chamado a pronunciar‑se sobre um pedido de confirmação desta reabertura, indeferiu‑o com o fundamento de que a justificação apresentada pelo referido procurador‑geral não preenchia os critérios relativos à reabertura do inquérito previstos no artigo 335.o do Código de Processo Penal. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o despacho de arquivamento em causa tornou‑se, assim, definitivo.

 Quanto ao seguimento dado ao processo 47/P/2016

28      Por Despacho de 9 de fevereiro de 2016, o Parchet de pe lângă Tribunalul Olt (Ministério Público junto do Tribunal Regional de Olt) instaurou um processo penal contra NR, que, por despacho de acusação de 31 de janeiro de 2017, foi submetida a julgamento no Tribunalul Olt (Tribunal Regional de Olt, Roménia), pela prática do crime de corrupção passiva, ao abrigo do artigo 289.o do Código Penal, lido em conjugação com o artigo 308.o, n.o 1, deste código e com o artigo 6.o da Lei n.o 78/2000.

29      Por Despacho de 10 de abril de 2017, o juízo de instrução do Tribunalul Olt (Tribunal Regional de Olt) declarou a legalidade da remessa para esse órgão jurisdicional e ordenou a abertura de um processo judicial contra NR. Quanto à argumentação desta última relativa a uma alegada violação do princípio ne bis in idem, com base na circunstância de os mesmos factos já terem sido objeto de inquérito no processo 673/P/2016 e de ter sido proferida uma decisão transitada em julgado nesse processo, este juízo de instrução considerou, em substância, que a aplicação do princípio ne bis in idem não era da competência dos juízos de instrução e que, por conseguinte, as alegações relativas a uma suposta violação deste princípio só podiam ser examinadas no âmbito da apreciação do mérito do processo em causa.

30      Por uma sentença penal, de 19 de novembro de 2018, o Tribunalul Olt (Tribunal Regional de Olt) julgou improcedente a argumentação de NR relativa a uma alegada violação do princípio ne bis in idem, com o fundamento de que o despacho de arquivamento em causa não podia ser considerado uma decisão transitada em julgado que implicava a aplicabilidade deste princípio, uma vez que a adoção deste despacho não tinha sido precedida de uma investigação exaustiva do mérito da causa.

31      Além disso, o Tribunalul Olt (Tribunal Regional de Olt) considerou que, no âmbito do processo 673/P/2016, ao ter instaurado um processo penal in rem, com fundamento numa alegada falta de provas de que uma pessoa tinha cometido o crime de extorsão em causa, a responsabilidade penal de NR não foi examinada. Por conseguinte, a instauração de um processo penal in personam contra NR no processo 47/P/2016 não constituiu uma repetição do processo, pelo que o princípio ne bis in idem não era aplicável.

32      À luz destes elementos e uma vez que resulta inequivocamente dos elementos de prova produzidos no âmbito deste último processo que NR tinha pedido aos denunciantes no processo principal que pagassem o montante dos honorários referido no n.o 16 do presente acórdão, o Tribunalul Olt (Tribunal Regional de Olt) condenou‑a numa pena de prisão suspensa de um ano e quatro meses e numa pena acessória de proibição, com a mesma duração, de exercer uma função pública bem como a profissão ou atividade em execução da qual tinha cometido os factos em causa.

33      Por Acórdão penal n.o 1207/2020, de 20 de outubro de 2020, a Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova) deu provimento ao recurso interposto por NR da sentença referida no n.o 30 do presente acórdão. Este órgão jurisdicional considerou que o princípio ne bis in idem tinha sido violado, uma vez que a decisão de instaurar um processo penal no processo 47/P/2016 dizia respeito à mesma pessoa e aos mesmos factos que os que estão em causa no processo 673/P/2016. Além disso, as queixas‑crime que estão na origem destes dois processos tiveram um conteúdo idêntico e os elementos de prova recolhidos eram semelhantes, tendo o processo 673/P/2016 sido definitivamente encerrado pelo facto de o despacho de arquivamento em causa ter transitado em julgado devido ao indeferimento, pelo juízo de instrução do Judecătoria Slatin (Tribunal de Primeira Instância de Slatina), do pedido de confirmação da reabertura do inquérito. Por conseguinte, a Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova) anulou esta sentença e ordenou o arquivamento do processo penal instaurado no processo 47/P/2016.

34      O Parchet de pe lângă Curtea de Apel Craiova (Ministério Público junto do Tribunal de Recurso de Craiova) interpôs recurso de cassação deste acórdão para a Înalta Curte de Casație şi Justiție (Tribunal Superior de Cassação e Justiça, Roménia).

35      Por Acórdão penal de 21 de setembro de 2021, este último órgão jurisdicional deu provimento ao recurso, anulou o referido acórdão e remeteu o processo à Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova) para reapreciação, com o fundamento, em substância, de que tinha concluído erradamente pela aplicabilidade do princípio ne bis in idem e, por conseguinte, pelo arquivamento do processo penal no processo 47/P/2016. A Înalta Curte de Casație şi Justiție (Tribunal Superior de Cassação e Justiça), após ter constatado que, através do despacho de arquivamento em causa, o processo que tinha por objeto a queixa‑crime contra NR apresentada pelos denunciantes no processo principal pela prática do crime de extorsão tinha sido arquivado, entendeu que, uma vez que este despacho não tinha sido precedido de nenhuma apreciação quanto ao mérito do processo 673/P/2016 e não tinha sido devidamente fundamentado, não se podia considerar que o mesmo implicava a extinção da ação penal.

36      No âmbito desta reapreciação, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a interpretação que deve ser dada ao princípio ne bis in idem, na aceção do artigo 50.o da Carta, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal. Especifica que, como no processo que deu origem ao Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393), no caso em apreço, o artigo 50.o da Carta é aplicável, porque a legislação nacional em causa no processo principal visa realizar os objetivos de referência enunciados no anexo da Decisão 2006/928, mais concretamente, o primeiro destes objetivos.

37      Nestas condições, a Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o princípio ne bis in idem, conforme garantido pelo artigo 50.o da [Carta], em conjugação com as obrigações que incumbem à Roménia de respeitar os objetivos estabelecidos [no anexo da] Decisão [2006/928], ser interpretado no sentido de que uma decisão de arquivamento, emitida pelo Ministério Público após a obtenção das provas essenciais no processo em causa, obsta a uma nova ação penal pelo mesmo facto, ainda que com uma qualificação jurídica diferente, contra a mesma pessoa, com o fundamento de que a decisão é definitiva, salvo se se demonstrar que a circunstância em que se baseia a decisão de arquivamento não existe ou se se revelarem novos factos ou circunstâncias dos quais decorre que a circunstância em que assentou a decisão de arquivamento deixou de existir?»

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

38      O Governo Romeno considera que o pedido de decisão prejudicial deve ser julgado inadmissível, uma vez que o artigo 50.o da Carta não é aplicável no caso em apreço, na ausência de uma situação de aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta. Com efeito, segundo este Governo, o órgão jurisdicional de reenvio baseou‑se erradamente nos objetivos de referência que figuram no anexo da Decisão 2006/928 e nos n.os 158, 159 e 172 do Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393), para justificar a aplicabilidade da Carta, apesar de estes objetivos de referência terem sido definidos devido às deficiências «constatadas» pela Comissão antes da adesão da Roménia à União, tendo em conta, nomeadamente, os domínios da justiça e da luta contra a corrupção. Nestas condições, há que considerar, atendendo, nomeadamente, à jurisprudência resultante do Acórdão de 19 de novembro de 2019, TSN e AKT (C‑609/17 e C‑610/17, EU:C:2019:981, n.o 53 e jurisprudência referida), que o aspeto ligado à proteção do princípio ne bis in idem não está abrangido pelo âmbito de aplicação da Carta, pelo que a situação em causa no processo principal não pode ser apreciada à luz das disposições da Carta, em especial, do seu artigo 50.o

39      No que respeita à argumentação do Governo Romeno referida no número anterior do presente acórdão, a qual diz respeito, na realidade, à competência do Tribunal de Justiça para decidir, há que recordar que resulta do artigo 19.o, n.o 3, alínea b), TUE e do artigo 267.o, primeiro parágrafo, TFUE que o Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação do direito da União ou sobre a validade dos atos adotados pelas instituições da União.

40      A este respeito, importa também recordar que o âmbito de aplicação da Carta, no que respeita à ação dos Estados‑Membros, está definido no seu artigo 51.o, n.o 1, nos termos do qual as disposições da Carta têm por destinatários os Estados‑Membros apenas quando apliquem o direito da União, confirmando esta disposição a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça segundo a qual os direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica da União são aplicáveis em todas as situações reguladas pelo direito da União, mas não fora delas. Em contrapartida, quando uma situação jurídica não está abrangida pelo direito da União, o Tribunal de Justiça não tem competência para dela conhecer e as disposições da Carta eventualmente invocadas não podem, por si próprias, servir de base a essa competência (Acórdão de 14 de setembro de 2023, Volkswagen Group Italia e Volkswagen Aktiengesellschaft, C‑27/22, EU:C:2023:663, n.o 36 e jurisprudência referida).

41      No caso em apreço, resulta dos elementos que figuram no pedido de decisão prejudicial que o órgão jurisdicional de reenvio é chamado a conhecer da reapreciação do recurso interposto contra a sentença do Tribunalul Olt (Tribunal Regional de Olt) de 19 de novembro de 2018, referida no n.o 30 do presente acórdão, que condenou NR por corrupção passiva, nos termos do artigo 289.o do Código Penal, lido em conjugação com o artigo 308.o, n.o 1, deste código e com o artigo 6.o da Lei n.o 78/2000. Ora, como o Governo Romeno confirmou na audiência, estas disposições nacionais asseguram a transposição da Decisão‑Quadro 2003/568 para a ordem jurídica romena e, mais concretamente, dos seus artigos 2.o e 4.o

42      Nestas condições e sem que seja sequer necessário apreciar a eventual pertinência dos objetivos de referência previstos no anexo da Decisão 2006/928, o requisito de aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, está preenchido no caso em apreço. Daqui resulta que a Carta é aplicável no processo principal.

43      Consequentemente, o Tribunal de Justiça é competente para responder à questão submetida.

 Quanto à questão prejudicial

44      A título preliminar, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.o TFUE cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas (v., neste sentido, Acórdão de 21 de setembro de 2023, Juan, C‑164/22, EU:C:2023:684, n.o 24 e jurisprudência referida).

45      Tendo em conta os fundamentos que resultam do pedido de decisão prejudicial, para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, há que considerar que, com a sua questão, este órgão jurisdicional pergunta, em substância, se o princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que se pode considerar que uma pessoa foi definitivamente absolvida, na aceção deste artigo 50.o, em consequência de um despacho de arquivamento adotado pelo Ministério Público sem que tenha sido examinada a situação jurídica desta pessoa enquanto responsável, no plano penal, pelos factos constitutivos do crime em causa.

46      O artigo 50.o da Carta dispõe que «[n]inguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei». Assim, o princípio ne bis in idem proíbe o cúmulo tanto de procedimentos como de sanções que tenham natureza penal na aceção deste artigo pelos mesmos factos e contra a mesma pessoa (Acórdão de 22 de março de 2022, bpost, C‑117/20, EU:C:2022:202, n.o 24 e jurisprudência referida).

47      A aplicação deste princípio está sujeita a uma dupla condição, a saber, por um lado, que haja uma decisão anterior definitiva (condição «bis») e, por outro, que os mesmos factos sejam abrangidos pela decisão anterior e pelos procedimentos ou decisões posteriores (condição «idem») (Acórdão de 22 de março de 2022, bpost, C‑117/20, EU:C:2022:202, n.o 28).

 Quanto à condição «bis»

48      No que respeita à condição «bis», para que se possa considerar que uma pessoa foi objeto de uma «sentença transitada em julgado» pelos factos que lhe são imputados, na aceção do artigo 50.o da Carta, importa, em primeiro lugar, que a ação penal tenha ficado definitivamente extinta, em conformidade com o direito nacional. Com efeito, uma decisão que não extingue definitivamente a ação penal a nível nacional não pode, em princípio, ter por efeito obstar processualmente a que sejam eventualmente instauradas ou prosseguidas ações penais, pelos mesmos factos, contra essa pessoa (v., neste sentido e por analogia, Acórdão de 29 de junho de 2016, Kossowski, C‑486/14, EU:C:2016:483, n.os 34 e 35 e jurisprudência referida).

49      Além disso, importa recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que o facto de uma decisão ter sido adotada pelo Ministério Público não é determinante para apreciar se esta decisão põe fim, em termos definitivos, à ação penal. Com efeito, o artigo 50.o da Carta é também aplicável a decisões emanadas de uma autoridade chamada a participar na administração da justiça penal na ordem jurídica nacional em causa, como o Ministério Público, pondo definitivamente termo aos procedimentos criminais, ainda que sejam adotadas sem a intervenção de um órgão jurisdicional e não tenham a forma de uma sentença (v., neste sentido e por analogia, Acórdão de 29 de junho de 2016, Kossowski, C‑486/14, EU:C:2016:483, n.os 38 e 39 e jurisprudência referida).

50      No caso em apreço, como resulta dos n.os 25 e 27 do presente acórdão, por um lado, os denunciantes no processo principal não invocaram as vias de recurso disponíveis no direito romeno para contestar o despacho de arquivamento em causa, e, por outro, através do Despacho do juízo de instrução do Judecătoria Slatina (Tribunal de Primeira Instância de Slatina) de 21 de novembro de 2016, o pedido de confirmação da reabertura do inquérito contra NR pela prática do crime de extorsão ordenada pelo procurador‑geral do Parchet de pe lângă Judecătoria Slatina (Ministério Público junto do Tribunal de Primeira Instância de Slatina) foi julgado improcedente.

51      Por conseguinte, afigura‑se que a ação penal tenha ficado definitivamente extinta e que o despacho de arquivamento em causa se tornou definitivo, sem prejuízo das verificações que competem ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar.

52      Em segundo lugar, para determinar se se pode considerar que NR foi definitivamente absolvida pelo despacho de arquivamento em causa, o órgão jurisdicional de reenvio deverá assegurar‑se de que este foi adotado na sequência de uma apreciação quanto ao mérito e não por simples motivos processuais. Com efeito, como salientou o advogado‑geral, em substância, no n.o 100 das suas conclusões, o requisito relativo à apreciação do mérito do processo 673/P/2016 só pode ser considerado preenchido por este despacho desde que este último contenha uma apreciação relativa aos elementos materiais do alegado crime, bem como, nomeadamente, a análise da responsabilidade penal de NR, enquanto presumível autor deste crime.

53      A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para que se possa considerar que uma pessoa foi objeto de uma «sentença transitada em julgado» pelos factos que lhe são imputados, na aceção do artigo 50.o da Carta, importa garantir que essa decisão foi proferida na sequência de uma apreciação do mérito do processo em causa (v., neste sentido, Acórdão de 14 de setembro de 2023, Bezirkshauptmannschaft Feldkirch, C‑55/22, EU:C:2023:670, n.o 49 e jurisprudência referida).

54      Esta interpretação é confirmada, por um lado, pela redação deste artigo 50.o, uma vez que os conceitos de «condenação» e de «absolvição» a que se refere esta disposição implicam necessariamente que a responsabilidade penal da pessoa em causa tenha sido apreciada e que tenha sido adotada uma decisão a este respeito [Acórdão de 16 de dezembro de 2021, AB e o. (Revogação de uma amnistia), C‑203/20, EU:C:2021:1016, n.o 57].

55      Por outro lado, a referida interpretação é conforme ao objetivo legítimo de evitar a impunidade das pessoas que cometeram uma infração, objetivo que se insere no contexto do espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas no qual é assegurada a livre circulação de pessoas, previsto no artigo 3.o, n.o 2, TUE [Acórdão de 16 de dezembro de 2021, AB e o. (Revogação de uma amnistia), C‑203/20, EU:C:2021:1016, n.o 58 e jurisprudência referida].

56      Segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a constatação de que houve uma apreciação quanto ao mérito de um processo, em especial sobre a culpabilidade ou a inocência da pessoa em causa, pode ser apoiada pela fase processual em que se encontra este processo. Assim, quando tenha sido aberta uma investigação penal após a pessoa em causa ter sido objeto de incriminação, de a vítima ter sido ouvida, de os elementos de prova terem sido recolhidos e analisados pela autoridade competente e ter sido proferida uma decisão fundamentada com base nessas provas, tais fatores são suscetíveis de conduzir à conclusão de que foi proferida uma decisão de mérito (v., neste sentido, TEDH, 8 de julho de 2019, Mihalache c. Roménia, CE:ECHR:2019:0708JUD005401210, § 98).

57      Para que se possa considerar que essa análise do mérito do processo foi efetuada pela autoridade chamada a decidir, esta autoridade deve ter procedido ao estudo ou à avaliação dos elementos de prova constantes dos autos e ter feito uma apreciação sobre o envolvimento da pessoa em causa num ou em todos os acontecimentos que motivaram a intervenção dos órgãos de investigação, para determinar se a responsabilidade «penal» dessa pessoa foi declarada (v., neste sentido, TEDH, de 8 de julho de 2019, Mihalache c. Roménia, CE:ECHR:2019:0708JUD005401210, § 97 e jurisprudência referida).

58      Resulta desta jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que, quando uma sanção tenha sido aplicada pela autoridade competente como consequência do comportamento imputado ao interessado, se pode razoavelmente considerar que a autoridade competente tinha previamente apreciado as circunstâncias do processo e o caráter ilícito do comportamento do interessado (v., neste sentido, Acórdão de 23 de março de 2023, Dual Prod, C‑412/21, EU:C:2023:234, n.o 57 e jurisprudência referida).

59      Além disso, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que se deve considerar que uma decisão das autoridades judiciárias de um Estado‑Membro, que absolve definitivamente um arguido por insuficiência de provas, se baseia numa apreciação quanto ao mérito do processo em causa (v., neste sentido, Acórdão de 28 de setembro de 2006, Van Straaten, C‑150/05, EU:C:2006:614, n.os 60 e 61).

60      O Tribunal de Justiça também declarou que se deve considerar que um despacho de não pronúncia, proferido na sequência de uma instrução no decurso da qual foram recolhidos e examinados diversos elementos de prova, foi objeto de uma apreciação de mérito do processo em causa, na medida em que contenha uma decisão definitiva quanto ao caráter insuficiente dessas provas e exclua qualquer possibilidade de reabertura do processo com base no mesmo conjunto de indícios (v., neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2014, M, C‑398/12, EU:C:2014:1057, n.os 17 e 30 e jurisprudência referida).

61      A este respeito, importa recordar que, como salientou o advogado‑geral, em substância, no n.o 64 das suas conclusões, o Tribunal de Justiça precisou que, quando uma decisão se baseia na falta ou insuficiência da prova, é ainda necessário, para se poder concluir que esta decisão se baseia numa apreciação de mérito do processo em causa, que a adoção da referida decisão tenha sido precedida de uma investigação exaustiva.

62      Com efeito, na falta dessa investigação exaustiva, no âmbito da qual os diferentes elementos de prova existentes são reunidos e examinados, não se pode considerar que uma decisão que põe termo aos procedimentos criminais foi precedida de uma apreciação relativa ao mérito do processo em causa. O Tribunal de Justiça considerou, nomeadamente, que a não audição da vítima e de uma eventual testemunha constituem indício da inexistência dessa investigação exaustiva (v., neste sentido, Acórdão de 29 de junho de 2016, Kossowski, C‑486/14, EU:C:2016:483, n.os 48, 53 e 54).

63      No caso em apreço, resulta dos elementos que figuram no pedido de decisão prejudicial que, para adotar o despacho de arquivamento em causa, o procurador se baseou num relatório anexo a esse despacho, elaborado pelo órgão de polícia após ouvir NR e os denunciantes no processo principal, e depois de ter obtido, nomeadamente, um CD que contém o registo áudio da reunião da assembleia geral da sociedade cooperativa BX de 30 de abril de 2015. Estes elementos tendem a indicar que foram recolhidos e examinados no decurso do inquérito diversos meios de prova, sobre os quais foi feita uma apreciação do mérito. No entanto, a não audição de AX, de BD, de CH, de FX e de LM, que também participaram nessa reunião, pode constituir um indício da falta de exame da situação jurídica de NR enquanto responsável, no plano penal, pelos factos constitutivos do crime em causa.

64      Nestas condições, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio certificar‑se de que o despacho de arquivamento em causa foi precedido de uma apreciação quanto ao mérito do processo 673/P/2016 e que não foi adotado com base em simples fundamentos processuais.

 Quanto à condição «idem»

65      No que se refere à condição «idem», decorre dos próprios termos do artigo 50.o da Carta que este proíbe julgar ou punir penalmente a mesma pessoa, mais do que uma vez, pelo mesmo delito [Acórdão de 23 de março de 2023, Generalstaatsanwaltschaft Bamberg (Exceção ao princípio ne bis in idem), C‑365/21, EU:C:2023:236, n.o 34 e jurisprudência referida].

66      Para se poder considerar que uma pessoa foi «definitivamente julgada», na aceção do artigo 50.o da Carta, pressupõe‑se a existência de procedimentos anteriores instaurados contra a pessoa em causa. A este respeito, o Tribunal de Justiça já precisou que o princípio ne bis in idem só se aplica às pessoas que foram definitivamente julgadas num Estado‑Membro [v., neste sentido, por analogia, Acórdão de 25 de julho de 2018, AY (Mandado de detenção — Testemunha), C‑268/17, EU:C:2018:602, n.os 43 e 44 e jurisprudência referida].

67      Além disso, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o critério relevante para apreciar a existência de um mesmo crime, na aceção do artigo 50.o da Carta, é o da identidade dos factos materiais, entendidos no sentido da existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si que levaram à absolvição ou à condenação definitiva da pessoa em causa. Assim, este artigo proíbe a aplicação, para factos idênticos, de várias sanções de natureza penal no termo de diferentes procedimentos instaurados para esses fins (Acórdão de 12 de outubro de 2023, INTER CONSULTING, C‑726/21, EU:C:2023:764, n.o 72 e jurisprudência referida).

68      Resulta também da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a qualificação jurídica dos factos no direito nacional e o interesse jurídico protegido não são relevantes para efeitos da verificação da existência do mesmo crime, na medida em que o âmbito da proteção conferida pelo artigo 50.o da Carta não pode variar de um Estado‑Membro para outro (Acórdão de 12 de outubro de 2023, INTER CONSULTING, C‑726/21, EU:C:2023:764, n.o 73 e jurisprudência referida).

69      No caso em apreço, resulta das explicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que, embora, no processo 47/P/2016, tenham sido instaurados processos penais contra NR in personam pela prática do crime de corrupção passiva, no processo 673/P/2016, instaurou um penal in rem pela prática do crime de extorsão.

70      Antes de mais, importa especificar que, tendo em conta a jurisprudência recordada no n.o 68 do presente acórdão, e na medida em que está demonstrado que estes dois processos tinham por objeto factos idênticos, a circunstância de os processos penais instaurados nos referidos processos terem por objeto crimes diferentes é irrelevante para efeitos da apreciação da existência de um mesmo «delito», na aceção do artigo 50.o da Carta.

71      Em contrapartida, a circunstância de o processo penal ter sido instaurado in rem no processo 673/P/2016, que deu origem à prolação do despacho de arquivamento em causa, não pode ser considerada irrelevante para efeitos desta apreciação, uma vez que resulta das explicações apresentadas pelo Governo Romeno na audiência que NR não adquiriu formalmente o estatuto de suspeito no âmbito do processo 673/P/2016 e foi ouvida apenas como testemunha.

72      Este Governo parece, assim, referir‑se ao requisito relativo à identidade de pessoa que, segundo os elementos que figuram no pedido de decisão prejudicial, não foi posto em causa nem pelo órgão jurisdicional de reenvio nem pelo Înalta Curte de Casație şi Justiție (Tribunal Superior de Cassação e Justiça), no Acórdão penal de 21 de setembro de 2021.

73      A este respeito, como o advogado‑geral salientou, em substância, nos n.os 94 e 95 das suas conclusões e como resulta da jurisprudência referida nos n.os 54, 56 e 57 do presente acórdão, só se pode considerar que uma pessoa foi objeto de uma «sentença transitada em julgado» se resultar claramente da decisão proferida que, no inquérito que precedeu esta decisão, independentemente de ter sido instaurado in rem ou in personam com base no direito nacional, a sua situação jurídica enquanto responsável, no plano penal, pelos factos constitutivos dos crimes em causa foi analisada e, no caso de um despacho de arquivamento do Ministério Público, foi afastada.

74      Se assim não fosse, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, o despacho de arquivamento em causa não pode ter por efeito obstar a que sejam instaurados novos processos penais contra NR, pelos mesmos factos.

75      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que não se pode considerar que uma pessoa foi definitivamente absolvida, na aceção deste artigo 50.o, em consequência de um despacho de arquivamento adotado pelo Ministério Público sem que tenha sido examinada a situação jurídica desta pessoa enquanto responsável, no plano penal, pelos factos constitutivos do crime em causa.

 Quanto às despesas

76      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

deve ser interpretado no sentido de que:

não se pode considerar que uma pessoa foi definitivamente absolvida, na aceção deste artigo 50.o, em consequência de um despacho de arquivamento adotado pelo Ministério Público sem que tenha sido examinada a situação jurídica desta pessoa enquanto responsável, no plano penal, pelos factos constitutivos do crime em causa.

Assinaturas


*      Língua do processo: romeno.