Language of document : ECLI:EU:C:2024:84

Edição provisória

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 25 de janeiro de 2024 (1)

Processos apensos C160/22 P e C161/22 P e processo C597/22 P

Comissão Europeia

contra

HB

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Contratos públicos de serviços — Irregularidades no procedimento de adjudicação — Decisões de recuperação de montantes já pagos, adotadas após a assinatura do contrato — Recurso de anulação — Admissibilidade — Competência do juiz da União — Decisões constitutivas de título executivo, adotadas para recuperar os montantes reclamados — Competência da Comissão Europeia para adotar as referidas decisões constitutivas de título executivo»






Índice


I. Introdução

II. Quadro jurídico

A. Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia

B. Regulamento relativo à proteção dos interesses financeiros da União

C. Regulamentos Financeiros da União

1. Regulamento Financeiro de 2002

2. Regulamento Financeiro de 2018

III. Antecedentes dos presentes recursos

A. Processos apensos C160/22 P e C161/22 P

1. Decisões de recuperação CARDS e TACIS

a) Decisão de recuperação CARDS

b) Decisão de recuperação TACIS

2. Acórdãos T795/19 e T796/19

B. Processo C597/22 P

1. Decisões constitutivas de título executivo CARDS e TACIS

2. Acórdão T408/21

IV. Tramitação dos recursos no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

A. Processos apensos C160/22 P e C161/22 P

B. Processo C597/22 P

V. Apreciação

A. Processos C160/22 P e C161/22 P

1. Quanto à admissibilidade dos recursos

2. Quanto à competência jurisdicional para conhecer dos recursos das Decisões de recuperação CARDS e TACIS

a) Fundamentação controvertida do Tribunal Geral

b) Apreciação dos argumentos da Comissão

1) As decisões de recuperação CARDS e TACIS à luz das condições de admissibilidade dos recursos de anulação de atos adotados num contexto contratual

2) As Decisões de recuperação CARDS e TACIS e o «duplo papel» da Comissão em matéria contratual

3. Conclusão sobre os processos C160/22 P e C161/22 P

B. Processo C597/22 P

C. Conclusão intercalar

VI. Despesas

VII. Conclusão


I.      Introdução

1.        Quando um cocontratante da União Europeia cometeu uma irregularidade no decurso do procedimento de adjudicação de um contrato, que só se revela após a assinatura deste último, a Comissão Europeia pode adotar, em relação a esse cocontratante, uma decisão de recuperação dos montantes pagos no âmbito do contrato. Ora, uma decisão dessa natureza insere‑se, para efeitos de determinação da competência jurisdicional para conhecer dela, no quadro contratual ou extracontratual?

2.        Por outras palavras, essa decisão de recuperação é da competência do juiz do contrato — juiz nacional ou juiz da União, consoante o caso, em função da existência ou não de uma cláusula compromissória no contrato, na aceção do artigo 272.° TFUE — ou é, pelo contrário, um ato impugnável apenas perante o juiz da União, através de um recurso de anulação, na aceção do artigo 263.° TFUE?

3.        É a esta questão que o Tribunal de Justiça deverá responder nos processos C‑160/22 P e C‑161/22 P. Esta resposta determinará se o Tribunal Geral teve razão em qualificar as decisões de recuperação em causa no sentido de que se inscrevem num quadro contratual e em declinar a sua competência a favor do juiz belga, juiz do contrato, ou se, pelo contrário, deveria ter‑se declarado competente para conhecer dos recursos interpostos das referidas decisões pelo cocontratante da Comissão.

4.        A resposta que o Tribunal de Justiça der a esta questão ditará seguidamente a resposta à questão suscitada no processo C‑597/22 P. Esta questão consiste em saber se a Comissão podia adotar decisões constitutivas de títulos executivos, na aceção do artigo 299.° TFUE, para recuperar os montantes reclamados pelas decisões de recuperação controvertidas.

5.        Em conformidade com a sua qualificação das referidas decisões, no sentido de que se inscrevem no quadro contratual, o Tribunal Geral respondeu negativamente a esta questão. Com efeito, segundo o Acórdão ADR Center/Comissão (a seguir «Acórdão ADR») (2), a Comissão não pode adotar uma decisão constitutiva de título executivo no quadro de relações contratuais que não contenham uma cláusula compromissória a favor do juiz da União.

6.        Por conseguinte, a justeza da anulação, pelo Tribunal Geral, das decisões constitutivas de título executivo em causa no processo C‑597/22 P depende da bondade das suas conclusões quanto às decisões de recuperação em causa nos processos C‑160/22 P e C‑161/22 P.

II.    Quadro jurídico

A.      Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia

7.        Os artigos 272.°, 274.° e 299.° TFUE dispõem:

«Artigo 272.°

O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir com fundamento em cláusula compromissória constante de um contrato de direito público ou privado celebrado pela União ou por sua conta.

Artigo 274.°

Sem prejuízo da competência atribuída ao Tribunal de Justiça da União Europeia pelos Tratados, os litígios em que a União seja parte não ficam, por este motivo, subtraídos à competência dos órgãos jurisdicionais nacionais.

Artigo 299.°

Os atos do Conselho, da Comissão ou do Banco Central Europeu que imponham uma obrigação pecuniária a pessoas que não sejam Estados constituem título executivo.

A execução é regulada pelas normas de processo civil em vigor no Estado em cujo território se efetuar. A ordem de execução é aposta, sem outro controlo além da verificação da autenticidade do título, pela autoridade nacional que o Governo de cada Estado‑Membro designará para o efeito e de que dará conhecimento à Comissão e ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

Após o cumprimento destas formalidades a pedido do interessado, este pode promover a execução, recorrendo diretamente ao órgão competente, em conformidade com a legislação nacional.

A execução só pode ser suspensa por força de uma decisão do Tribunal. No entanto, a fiscalização da regularidade das medidas de execução é da competência dos órgãos jurisdicionais nacionais.»

B.      Regulamento relativo à proteção dos interesses financeiros da União

8.        Os artigos 1.° e 4.° do Regulamento (CE, Euratom) n.° 2988/95 do Conselho, de 18 de dezembro de 1995, relativo à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias (a seguir «Regulamento PIF») (3), têm a seguinte redação:

«Artigo 1.°

1.      Para efeitos da proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias, é adotada uma regulamentação geral em matéria de controlos homogéneos e de medidas e sanções administrativas relativamente a irregularidades no domínio do direito comunitário

2.      Constitui irregularidade qualquer violação de uma disposição de direito comunitário que resulte de um ato ou omissão de um agente económico que tenha ou possa ter por efeito lesar o orçamento geral das Comunidades ou orçamentos geridos pelas Comunidades, quer pela diminuição ou supressão de receitas provenientes de recursos próprios cobradas diretamente por conta das Comunidades, quer por uma despesa indevida.

Artigo 4.°

1.      Qualquer irregularidade tem como consequência, regra geral, a retirada da vantagem indevidamente obtida:

–        através da obrigação de pagar os montantes em dívida ou de reembolsar os montantes indevidamente recebidos,

–        através da perda total ou parcial da garantia constituída a favor do pedido de uma vantagem concedida ou aquando do recebimento de um adiantamento.

2.      A aplicação das medidas referidas no n.° 1 limita‑se à retirada da vantagem obtida, acrescida, se tal se encontrar previsto, de juros que podem ser determinados de forma fixa.

3.      Os atos relativamente aos quais se prove terem por fim obter uma vantagem contrária aos objetivos do direito comunitário aplicável nas circunstâncias, criando artificialmente condições necessárias à obtenção dessa vantagem, têm como consequência, consoante o caso, quer a não obtenção da vantagem quer a sua retirada.

4.      As medidas previstas no presente artigo não são consideradas sanções.»

C.      Regulamentos Financeiros da União

1.      Regulamento Financeiro de 2002

9.        O artigo 103.° do Regulamento (CE, Euratom) n.° 1605/2002 do Conselho, de 25 de junho de 2002, que institui o Regulamento Financeiro aplicável ao orçamento geral das Comunidades Europeias (4), conforme alterado pelo Regulamento (CE, Euratom) n.° 1995/2006 do Conselho, de 13 de dezembro de 2006 (5) (a seguir «Regulamento Financeiro de 2002»), dispunha:

«Sempre que se prove que o procedimento de adjudicação foi objeto de erros ou irregularidades substanciais ou fraude, as instituições suspenderão o referido procedimento e poderão tomar as medidas que considerem necessárias, incluindo a sua anulação.

Sempre que, após a adjudicação do contrato, se prove que o procedimento de adjudicação ou a execução do contrato foi objeto de erros ou irregularidades substanciais ou de fraude, as instituições podem, consoante a fase de adiantamento do procedimento, abster‑se de celebrar o contrato ou suspender a sua execução, ou, se adequado, anular o contrato.

Se esses erros, irregularidades ou fraudes forem imputáveis ao contratante, as instituições podem, além disso, recusar a realização do pagamento, recuperar os montantes já pagos ou rescindir todos os contratos celebrados com o contratante, proporcionalmente à gravidade desses erros, irregularidades ou fraudes.»

2.      Regulamento Financeiro de 2018

10.      O artigo 98.° do Regulamento (UE, Euratom) 2018/1046 (a seguir «Regulamento Financeiro de 2018») (6), estabelece o procedimento para o apuramento dos créditos da União e o estabelecimento de um título que exige a esse devedor o pagamento da sua dívida.

11.      O artigo 100.° do Regulamento Financeiro de 2018, com a epígrafe «Emissão de ordens de cobrança», dispõe no seu n.° 2, primeiro parágrafo:

«Uma instituição da União pode formalizar o apuramento de um crédito a cargo de pessoas, com exceção dos Estados‑Membros, numa decisão que constitui título executivo na aceção do artigo 299.° [TFUE].»

12.      O artigo 131.° deste regulamento, com a epígrafe «Suspensão, cessação e redução», dispõe nomeadamente:

«1.      Caso um procedimento de concessão tenha sido objeto de irregularidades ou de fraudes, o gestor orçamental competente suspende o procedimento e pode tomar todas as medidas necessárias, incluindo a anulação do procedimento. [...]

2.      Caso, após a concessão, se demonstre que o procedimento de concessão foi objeto de irregularidades ou fraudes, o gestor orçamental competente pode:

a)      Recusar‑se a assumir o compromisso jurídico ou cancelar a atribuição de um prémio;

b)      Suspender os pagamentos;

c)      Suspender a execução do compromisso jurídico;

d)      Se adequado, fazer cessar o compromisso jurídico, na totalidade ou relativamente a um ou mais destinatários.

3.      O gestor orçamental competente pode suspender os pagamentos ou a execução do compromisso jurídico caso:

a)      Se demonstre que a execução do compromisso jurídico foi objeto de irregularidades, fraudes ou incumprimento de obrigações;

b)      Seja necessário verificar se ocorreram efetivamente as presumíveis irregularidades, fraudes ou incumprimento de obrigações;

c)      As irregularidades, as fraudes ou o incumprimento das obrigações ponham em causa a fiabilidade ou a eficácia dos sistemas de controlo interno de uma pessoa ou entidade que executa fundos da União nos termos do artigo 62.°, n.° 1, primeiro parágrafo, alínea c), ou a legalidade e a regularidade das transações subjacentes.

Caso não se confirmem as presumíveis irregularidades, fraudes ou incumprimento de obrigações a que se refere o primeiro parágrafo, alínea b), a execução ou os pagamentos são retomados logo que possível.

Nos casos referidos no primeiro parágrafo, alíneas a) e c), o gestor orçamental competente pode fazer cessar o compromisso jurídico, na totalidade ou relativamente a um ou mais destinatários.

4.      Além das medidas referidas nos n.os 2 ou 3, o gestor orçamental competente pode reduzir a subvenção, o prémio, a contribuição ao abrigo do acordo de contribuição ou o preço devido ao abrigo de um contrato de forma proporcional à gravidade das irregularidades, fraudes ou incumprimento das obrigações, inclusive quando as atividades em causa não tiverem sido executadas ou tiverem sido executadas de um modo insatisfatório, parcial ou tardio.

[...]»

III. Antecedentes dos presentes recursos

13.      Os presentes processos têm por objeto dois contratos celebrados pela União com a recorrente em primeira instância [a seguir «recorrente»], HB, o contrato CARDS e o contrato TACIS. Durante a execução destes contratos, verificou‑se que tinham sido cometidas irregularidades pela recorrente durante os procedimentos de adjudicação.

14.      Na sequência destas revelações, a Comissão adotou decisões de recuperação dos montantes pagos no âmbito dos contratos, que foram objeto dos Acórdãos do Tribunal Geral de 21 de dezembro de 2021, HB/Comissão (T‑795/19, a seguir «Acórdão T‑795/19», EU:T:2021:917), e HB/Comissão (T‑796/19, a seguir «Acórdão T‑796/19», EU:T:2021:918), impugnados através de recursos para o Tribunal de Justiça nos processos C‑160/22 P e C‑161/22 P. Além disso, posteriormente, a Comissão adotou decisões constitutivas de título executivo para recuperar os montantes reclamados, que foram objeto do Acórdão do Tribunal Geral de 6 de julho de 2022, HB/Comissão (T‑408/21, a seguir «Acórdão T‑408/21», EU:T:2022:418), impugnado através de recurso para o Tribunal de Justiça no processo C‑597/22 P.

15.      Para todos os efeitos úteis, refira‑se que existem outros processos pendentes no Tribunal de Justiça que têm igualmente por objeto os contratos CARDS e TACIS (7).

A.      Processos apensos C160/22 P e C161/22 P

1.      Decisões de recuperação CARDS e TACIS

a)      Decisão de recuperação CARDS

16.      Os antecedentes do litígio no processo C‑160/22 P figuram, designadamente, nos n.os 1 a 29 do Acórdão T‑795/19, bem como nos considerandos da Decisão C(2019) 7319 final da Comissão, de 15 de outubro de 2019, relativa à redução dos montantes devidos a título do contrato CARDS/2008/166‑429 e à recuperação dos montantes indevidamente pagos (a seguir «Decisão de recuperação CARDS»), e podem ser resumidos da seguinte forma.

17.      Em 24 de outubro de 2007, a União, representada pela Agência Europeia de Reconstrução (AER), lançou um concurso, com a referência EuropeAid/125037/D/SER/YU, com o objetivo de celebrar um contrato público de serviços para prestação de assistência técnica ao Conselho Superior da Magistratura da Sérvia. Este contrato inseria‑se no âmbito do programa comunitário de ajuda à reconstrução, ao desenvolvimento e à estabilização (CARDS), cujo objeto era prestar assistência aos países da Europa do Sudeste com vista à sua participação no processo de estabilização e associação com a União.

18.      Em 10 de junho de 2008, o contrato CARDS/2008/166‑429 (a seguir «contrato CARDS/2008/166‑429») foi adjudicado ao consórcio coordenado pela recorrente, HB. O contrato correspondente, com o n.° 06SER01/05/004 (a seguir «contrato CARDS»), foi assinado em 30 de julho de 2008 por um valor máximo de 1 999 125 euros.

19.      O contrato CARDS estipulava, designadamente, que a lei aplicável ao contrato era o direito da União, completado, se necessário, pelo direito belga (artigo 9.°1 das condições especiais), que qualquer litígio relativo a este contrato era da competência exclusiva dos tribunais de Bruxelas (Bélgica) (artigo 11.° das condições especiais), que, se o cocontratante da União fosse declarado culpado de erros, irregularidades ou atos de fraude durante o procedimento de adjudicação do contrato, a União podia recusar‑se a efetuar os pagamentos devidos ou recuperar os montantes já pagos proporcionalmente à gravidade dos erros, das irregularidades ou das fraudes (artigos 35.°1 e 35.°2 das condições gerais) e que a União podia rescindir o contrato em várias situações, nomeadamente no caso de o cocontratante ser declarado culpado de faltas profissionais graves [artigo 36.°3, alínea g), das condições gerais].

20.      Após a cessação do trabalho da AER, em dezembro de 2008, o contrato CARDS foi transferido para a Delegação da União na Sérvia (a seguir «Delegação na Sérvia»).

21.      Em 31 de março de 2010, a execução do contrato CARDS foi suspensa na sequência de um inquérito e de um relatório de análise do Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF), que revelaram a existência de irregularidades graves e de possíveis atos de corrupção durante o procedimento de adjudicação do contrato.

22.      Na sequência do relatório final de inquérito e de um relatório de análise complementar do OLAF, a Delegação na Sérvia informou a recorrente da sua intenção de rescindir o contrato CARDS. Por carta de 8 de maio de 2015, indicou‑lhe, designadamente, que se devia considerar que esse contrato estava viciado desde o início por irregularidades relativas à adjudicação do contrato correspondente e que a Comissão procederia à recuperação de todos os montantes pagos. Por carta de 9 de outubro de 2015, a Delegação na Sérvia confirmou a sua decisão de rescindir o referido contrato.

23.      Em 15 de outubro de 2019, a Comissão adotou a Decisão de recuperação CARDS. Esta decisão baseava‑se, nomeadamente, no artigo 103.° do Regulamento Financeiro de 2002, nos artigos 131.° e 98.° do Regulamento Financeiro de 2018 e no artigo 4.° do Regulamento PIF, e o seu dispositivo tinha a seguinte redação:

«Artigo 1.°

O procedimento de adjudicação do concurso limitado com a referência EuropeAid/125037/D/SER/YU foi objeto de uma irregularidade, na aceção do artigo 103.° do Regulamento [Financeiro de 2002] e do artigo 131.° do Regulamento [Financeiro de 2018].

A referida irregularidade é imputável ao consórcio liderado pela [recorrente], que assinou o contrato [CARDS/2008/166‑429] adjudicado na sequência do concurso público.

Artigo 2.°

O montante do contrato [CARDS/2008/166‑429] é reduzido de 1 199 125,00 euros para 0 (zero) euros.

Artigo 3.°

Todos os pagamentos, no montante de 1 197 055,86 euros, efetuados a título do referido contrato [CARDS/2008/166‑429] são considerados indevidamente pagos e serão objeto de recuperação.

Artigo 4.°

O diretor‑geral da Direção‑Geral da Política de Vizinhança e Negociações de Alargamento emitirá uma ordem de cobrança contra [a recorrente] no montante referido no artigo 3.°

[A recorrente] é a destinatária da presente decisão e da nota de débito que a acompanha. A presente decisão é aplicável a partir da data da sua receção pela [recorrente].

Artigo 5.°

Em conformidade com o artigo 263.° [TFUE], a presente decisão pode ser objeto de recurso de anulação para o Tribunal de Justiça da União Europeia no prazo de dois meses.»

b)      Decisão de recuperação TACIS

24.      Os antecedentes do litígio no processo C‑161/22 P figuram, designadamente, nos n.os 1 a 24 do Acórdão T‑796/19, bem como nos considerandos da Decisão C(2019) 7318 final da Comissão, de 15 de outubro de 2019, relativa à redução dos montantes devidos a título do contrato TACIS/2006/101‑510 e à recuperação dos montantes indevidamente pagos (a seguir «Decisão de recuperação TACIS»), e podem ser resumidos da seguinte forma.

25.      Em 25 de janeiro de 2006, a União, representada pela sua Delegação na Ucrânia (a seguir «Delegação na Ucrânia»), lançou um concurso, com a referência EuropeAid/122038/C/SV/UA, com o objetivo de celebrar um contrato público de serviços para prestação de assistência técnica às autoridades ucranianas com vista à aproximação da legislação ucraniana à legislação da União. Este contrato inscrevia‑se no programa de Assistência Técnica à Comunidade de Estados Independentes (TACIS), cujo objeto era promover a transição para uma economia de mercado e reforçar a democracia e o Estado de direito nos Estados parceiros da Europa Oriental e da Ásia Central.

26.      Em 17 de junho de 2006, o contrato TACIS/2006/101‑510 (a seguir «contrato TACIS/2006/101‑510») foi adjudicado ao consórcio coordenado pela recorrente, HB. O contrato correspondente, com o n.° 2006/101‑510 (a seguir «contrato TACIS»), foi assinado em 17 de julho de 2006 por um valor máximo de 4 410 000 euros.

27.      O contrato TACIS estipulava, nomeadamente, que qualquer questão não abrangida pelo referido contrato era regida pelo direito belga (artigo 9.°1 das Condições Especiais), que qualquer litígio relativo ao contrato era da competência exclusiva dos tribunais de Bruxelas (artigo 11.° das Condições Especiais), que se o cocontratante da União fosse declarado culpado de erros, irregularidades ou atos de fraude durante o procedimento de adjudicação, a União poderia recusar‑se a efetuar os pagamentos devidos ou recuperar os montantes já pagos proporcionalmente à gravidade dos erros, das irregularidades ou das fraudes (artigos 35.°3 e 35.°4 das condições gerais) e que a União podia rescindir o contrato em várias situações, nomeadamente no caso de o cocontratante ser declarado culpado de faltas profissionais graves [artigo 36.°3, alínea g), das condições gerais].

28.      Em 16 de julho de 2009, a execução do contrato TACIS e os respetivos pagamentos foram suspensos na sequência de inquérito e de um relatório de análise do OLAF, que revelaram a existência de irregularidades graves e de possíveis atos de corrupção durante o procedimento de adjudicação do contrato. As constatações do OLAF deram igualmente lugar, designadamente, a uma denúncia junto das autoridades judiciárias belgas.

29.      No seu relatório final de inquérito, de 19 de abril de 2010, o OLAF confirmou a existência de irregularidades graves e de possíveis atos de corrupção. O OLAF recomendou à Delegação na Ucrânia que rescindisse o contrato TACIS e procedesse à recuperação dos montantes indevidamente pagos.

30.      Em 20 de abril de 2012, a Delegação na Ucrânia informou a recorrente da sua intenção de levantar a suspensão do contrato TACIS, com o fundamento, por um lado, de que o inquérito judiciário conduzido pelas autoridades belgas se estava a arrastar, e, por outro, de que o referido contrato podia ser considerado como executado.

31.      Em 19 de março de 2013, a Delegação na Ucrânia informou a recorrente de que o contrato TACIS podia ser considerado como executado após aprovação do relatório final, do pagamento da fatura final e do reembolso da garantia bancária.

32.      Em 24 de maio de 2018, a Delegação na Ucrânia notificou a recorrente da sua intenção de recuperar todos os montantes pagos a título do contrato TACIS/2006/101‑510, no montante de 4 241 507 euros.

33.      Em 15 de outubro de 2019, a Comissão adotou a Decisão de recuperação TACIS. Esta decisão baseava‑se, nomeadamente, no artigo 103.° do Regulamento Financeiro de 2002, nos artigos 131.° e 98.° do Regulamento Financeiro de 2018 e no artigo 4.° do Regulamento PIF, e o seu dispositivo tinha a seguinte redação:

«Artigo 1.°

O procedimento de adjudicação do concurso limitado com a referência EuropeAid/122038/C/SV/UA foi objeto de uma irregularidade, na aceção do artigo 103.° do Regulamento [Financeiro de 2002] e do artigo 131.° do Regulamento [Financeiro de 2018].

Esta irregularidade é imputável ao consórcio liderado pela [recorrente], que assinou o contrato [TACIS] adjudicado na sequência do concurso.

Artigo 2.°

O montante do contrato [TACIS] é reduzido de 4 410 000,00 euros para 0 (zero) euros.

Artigo 3.°

Todos os pagamentos, no montante de 4 241 507,00 euros, efetuados a título do referido contrato público são considerados indevidamente pagos e serão objeto de recuperação.

Artigo 4.°

O diretor‑geral da Direção‑Geral da Política de Vizinhança e Negociações de Alargamento emitirá uma ordem de cobrança contra [a recorrente] no montante referido no artigo 3.°

[A recorrente] é a destinatária da presente decisão e da nota de débito que a acompanha. A presente decisão é aplicável a partir da data da sua receção pela [recorrente].

Artigo 5.°

Em conformidade com o artigo 263.° [TFUE], a presente decisão pode ser objeto de recurso de anulação para o Tribunal de Justiça da União Europeia no prazo de dois meses.»

2.      Acórdãos T795/19 e T796/19

34.      A tramitação processual no Tribunal Geral e subsequentes desenvolvimentos são descritos nos n.os 30 a 51 do Acórdão T‑795/19 e nos n.os 25 a 46 do Acórdão T‑796/19, e podem ser resumidos da seguinte forma:

35.      Por requerimentos apresentados em 19 de novembro de 2019, a recorrente interpôs recursos das Decisões de recuperação CARDS (processo T‑795/19) e TACIS (processo T‑796/19). Com esses recursos, pedia ao Tribunal Geral, designadamente, a anulação das referidas decisões e a condenação da Comissão no pagamento de uma indemnização. A Comissão, por seu turno, pedia ao Tribunal Geral, designadamente, que julgasse improcedentes os pedidos de anulação e inadmissíveis ou improcedentes os pedidos de indemnização.

36.      Em 7 de fevereiro de 2020, a recorrente demandou a União, representada pela Comissão, no tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Língua Francesa de Bruxelas, Bélgica), ao qual pediu, em substância, a título do contrato TACIS/2006/101‑510, que declarasse que a União não tinha o direito de ordenar a redução a zero do montante do referido contrato e, a título do contrato CARDS/2008/166‑429, que declarasse que a União a não tinha o direito de o rescindir. A título subsidiário, pediu a condenação da União no pagamento de uma indemnização contratual equivalente ao montante total dos contratos TACIS e CARDS.

37.      Em 19 de fevereiro de 2021, o tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Língua Francesa de Bruxelas) proferiu uma sentença em que declarou que não dispunha da competência exigida para conhecer da ação intentada pela recorrente contra a União, no que dizia respeito quer ao contrato TACIS/2006/101‑510 quer ao contrato CARDS/2008/166‑429, ao mesmo tempo que decidiu suspender a instância quanto ao mérito, até prolação da ou das decisões que poriam termo à instância nos processos T‑795/19 e T‑796/19.

38.      Com os Acórdãos T‑795/19 e T‑796/19, o Tribunal Geral, por um lado, declarou inadmissíveis os recursos interpostos perante ele, na parte em que visavam a anulação das Decisões de recuperação CARDS e TACIS, e negou‑lhes provimento, na parte em que pretendiam desencadear a responsabilidade extracontratual da União. Por outro lado, condenou a Comissão nas despesas, em aplicação do artigo 135.°, n.° 2, do seu Regulamento de Processo. Nos termos desta disposição, o Tribunal Geral pode condenar uma parte, mesmo vencedora, na totalidade ou em parte das despesas se tal se justificar em razão da sua atitude, incluindo antes do início da instância, em especial se tiver feito incorrer a outra parte em despesas que o Tribunal considere inúteis ou vexatória. O Tribunal Geral considerou que, no caso em apreço, a Comissão tinha favorecido o surgimento do litígio com a formulação do artigo 5.° das Decisões CARDS e TACIS.

B.      Processo C597/22 P

1.      Decisões constitutivas de título executivo CARDS e TACIS

39.      Em 5 de maio de 2021, a Comissão adotou a Decisão C(2021) 3340 final, relativa à recuperação, a título do contrato CARDS/2008/166‑429, de um crédito no montante de 1 197 055,86 euros contra a recorrente (a seguir «Decisão constitutiva de título executivo CARDS»), bem como a Decisão C(2021) 3339 final, relativa à recuperação, a título do contrato TACIS/2006/101‑510, de um crédito no montante de 4 241 507 euros contra a recorrente (a seguir «Decisão constitutiva de título executivo TACIS»). Nos termos dos seus artigos 5.°, estas duas decisões são constitutivas de título executivo termos do artigo 299.° TFUE.

2.      Acórdão T408/21

40.      Em 9 de julho de 2021, a recorrente interpôs um recurso no Tribunal Geral, destinado, designadamente, à anulação das Decisões constitutivas de título executivo CARDS e TACIS, registado sob o número T‑408/21.

41.      Com o Acórdão T‑408/21, o Tribunal Geral anulou estas decisões com o fundamento, em substância, de que, na inexistência de uma cláusula compromissória nos contratos CARDS e TACIS, a Comissão dispunha do poder para adotar decisões constitutivas de título executivo com base no artigo 299.° TFUE.

IV.    Tramitação dos recursos no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

A.      Processos apensos C160/22 P e C161/22 P

42.      Por requerimentos apresentados em 7 de março de 2022, a Comissão interpôs recursos dos Acórdãos T‑795/19 e T‑796/19, registados sob os números C‑160/22 P e C‑161/22 P.

43.      Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 11 de maio de 2022, os processos C‑160/22 P e C‑161/22 P foram apensados para efeitos das fases escrita e oral e do acórdão.

44.      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        anular os Acórdãos T‑795/19 e T‑796/19, na parte em que julgam inadmissíveis os recursos de anulação interpostos pela recorrente das Decisões de recuperação CARDS e TACIS (n.° 1 dos dispositivos), e na parte em que condenam a Comissão nas despesas, incluindo as despesas relativas ao processo de medidas provisórias (n.° 3 dos dispositivos);

–        remeter os processos ao Tribunal Geral para que este decida quanto ao mérito dos recursos de anulação, bem como sobre as despesas; e

–        condenar a recorrente nas despesas.

45.      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        negar provimento aos recursos interpostos pela Comissão; e

–        condenar a Comissão nas despesas.

B.      Processo C597/22 P

46.      Por requerimento apresentado em 16 de setembro de 2022, a Comissão interpôs recurso do Acórdão T‑408/21, que foi registado sob o número C‑597/22 P.

47.      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        anular o Acórdão T‑408/21, na parte em que anula as Decisões constitutivas de título executivo CARDS e TACIS;

–        remeter o processo ao Tribunal Geral para que este se pronuncie sobre o mérito do recurso de anulação; e

–        condenar a recorrente nas despesas.

48.      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        negar provimento ao recurso interposto pela Comissão; e

–        condenar a Comissão nas despesas.

49.      Foram ouvidas as alegações orais das partes e as suas respostas às questões do Tribunal de Justiça numa audiência conjunta aos três recursos, realizada em 27 de setembro de 2023.

V.      Apreciação

50.      Tal como foi indicado na introdução, a solução a adotar no processo C‑597/22 P (B) depende da solução a adotar nos processos C‑160/22 P e C‑161/22 P. Por conseguinte, há que examinar estes processos em primeiro lugar (A).

A.      Processos C160/22 P e C161/22 P

51.      Antes de abordar o mérito destes processos, que dizem respeito à questão de saber se as Decisões de recuperação CARDS e TACIS se inserem efetivamente no quadro contratual e, por conseguinte, na competência do juiz do contrato (2), é necessário examinar a admissibilidade dos recursos da Comissão para o Tribunal de Justiça, posta em causa pela recorrente (1).

1.      Quanto à admissibilidade dos recursos

52.      Nos termos do artigo 56.°, segundo parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, um recurso pode ser interposto por qualquer das partes que tenha sido total ou parcialmente vencida.

53.      Ora, segundo a recorrente, no caso em apreço, a Comissão não foi vencida no que respeita aos pedidos de anulação apresentados pela recorrente contra as decisões de recuperação CARDS e TACIS no Tribunal Geral, uma vez que este indeferiu esses pedidos. O facto de terem sido declarados inadmissíveis em vez de terem sido julgados improcedentes, como a Comissão tinha pedido, não pode, segundo a recorrente, significar que a Comissão foi vencida.

54.      Além disso, ainda segundo a recorrente, a Comissão não tem interesse em agir, na medida em que baseia o seu recurso para o Tribunal de Justiça na necessidade de proteger os interesses financeiros da União. Este argumento não tem em conta a repartição de competências jurisdicionais prevista pelo Tratado FUE e o facto de o juiz nacional, enquanto juiz de um contrato celebrado pela União, ser tão capaz de proteger os interesses financeiros da União como o juiz da União.

55.      Esta exceção de inadmissibilidade deve ser rejeitada sem que seja necessário decidir se a Comissão, enquanto recorrente privilegiada, deve fazer prova de um interesse em agir quando interpõe um recurso para o Tribunal de Justiça em litígios como os do caso em apreço. Também não é necessário examinar os argumentos invocados pela recorrente para contestar o interesse em agir da Comissão, os quais, em meu entender, se inscrevem no âmbito do exame do mérito dos recursos para o Tribunal de Justiça, ou seja, da questão da competência do juiz da União para apreciar os recursos, e não da admissibilidade dos recursos para o Tribunal de Justiça.

56.      Com efeito, basta constatar que, em todo o caso, contrariamente à opinião da recorrente, a Comissão foi efetivamente vencida no que respeita aos pedidos de anulação das decisões de recuperação CARDS e TACIS, o que lhe confere interesse em interpor recurso para o Tribunal de Justiça a fim de obter a anulação dos Acórdãos T‑795/19 e T‑796/19.

57.      A este respeito, importa recordar que o Tribunal Geral declarou os referidos pedidos de anulação inadmissíveis por considerar que os litígios tinham natureza contratual e, por conseguinte, eram da competência do juiz belga, juiz do contrato por força das cláusulas dos contratos CARDS e TACIS (8). Além disso, a recorrente submeteu igualmente a esse juiz belga pedidos idênticos, quanto aos seus efeitos, aos pedidos apresentados no Tribunal Geral, tendo o juiz belga declarado que era competente para os apreciar, embora tenha suspendido a instância até prolação das decisões que puserem termo aos presentes processos (9).

58.      Assim, como a Comissão indica, acertadamente, o facto de o Tribunal Geral ter julgado inadmissíveis, e não improcedentes, os pedidos de anulação das decisões de recuperação CARDS e TACIS apresentados pela recorrente prejudica‑a, pelo que o resultado do recurso para o Tribunal de Justiça é suscetível de lhe conferir um benefício (10). Com efeito, se o Tribunal Geral tivesse examinado o mérito desses pedidos e os tivesse julgado improcedentes, os litígios teriam terminado e o mérito dos pedidos da Comissão teria sido estabelecido (sujeito a confirmação de um eventual recurso para o Tribunal de Justiça).

59.      Por conseguinte, uma vez que a Comissão foi vencida no Tribunal Geral no que respeita aos pedidos de anulação das decisões de recuperação CARDS e TACIS, os recursos nos processos C‑160/22 P e C‑161/22 P são efetivamente admissíveis.

2.      Quanto à competência jurisdicional para conhecer dos recursos das Decisões de recuperação CARDS e TACIS

60.      Segundo a Comissão, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar que as Decisões de recuperação CARDS e TACIS se inseriam no quadro contratual para efeitos da determinação da competência jurisdicional para as conhecer, pelo que eram da competência do juiz do contrato e não do juiz da anulação. A Comissão considera, pelo contrário, que estas decisões são atos impugnáveis, na aceção do artigo 263.° TFUE.

61.      Em apoio desta argumentação, a Comissão invoca três fundamentos que, segundo a própria Comissão, estão intimamente ligados e podem, portanto, ser examinados em conjunto. Com estes fundamentos, a Comissão alega, em substância, que o Tribunal Geral qualificou erradamente de contratuais as suas prerrogativas de poder público que lhe são conferidas por regulamentos para efeitos da proteção dos interesses financeiros da União e que consistem em detetar unilateralmente irregularidades, reduzir os preços dos contratos e recuperar os montantes indevidamente pagos.

a)      Fundamentação controvertida do Tribunal Geral

62.      No que respeita à fundamentação controvertida do Tribunal Geral, este começou por recordar a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, desde o Acórdão Lito Maieftiko Gynaikologiko kai Cheirourgiko Kentro/Comissão (a seguir «Acórdão Lito») (11), segundo a qual o Tribunal de Justiça da União Europeia não pode estender a sua competência jurisdicional além dos limites traçados no artigo 274.° TFUE, que atribui aos órgãos jurisdicionais nacionais a competência de direito comum para conhecer dos litígios em que a União é parte. Por conseguinte, perante um contrato que vincula o recorrente a uma das instituições da União, os órgãos jurisdicionais da União só podem apreciar um recurso com fundamento no artigo 263.° TFUE se o ato impugnado se destinar a produzir efeitos jurídicos vinculativos que se situem fora da relação contratual que une as partes e que impliquem o exercício de prerrogativas de poder público conferidas à instituição contratante na sua qualidade de autoridade administrativa (12).

63.      Tendo em conta esta dupla condição, o Tribunal Geral rejeitou o argumento da Comissão segundo o qual, pelo simples facto de terem sido adotadas com base no direito derivado que confere à Comissão prerrogativas de autoridade pública, as Decisões de recuperação CARDS e TACIS se inserem na «esfera administrativa» (por oposição à «esfera contratual») (13).

64.      Segundo o Tribunal Geral, mesmo admitindo que os Regulamentos Financeiros de 2002 e 2018 (14) e o Regulamento PIF autorizam a Comissão, sob determinadas condições, a aplicar medidas que se inscrevem no âmbito das prerrogativas de uma autoridade pública, decorre das condições estabelecidas no Acórdão Lito que isso não pode ser suficiente para excluir liminarmente as referidas medidas do quadro contratual, uma vez que a aplicação desses regulamentos resulta de incumprimentos imputados a uma parte envolvida numa relação contratual com a União (15).

65.      Ora, segundo o Tribunal Geral, mesmo que os processos de concurso ainda não façam parte do quadro contratual, após a assinatura do contrato, a entidade adjudicante fica contratualmente vinculada ao adjudicatário. Por conseguinte, o exercício dos poderes conferidos à entidade adjudicante por disposições de direito derivado para punir irregularidades cometidas durante o procedimento concursal inscreve‑se, a partir da assinatura do contrato, no quadro das relações contratuais. No caso vertente, os fatores determinantes são, portanto, o facto de esses poderes terem sido exercidos quando as partes já estavam comprometidas uma com a outra no âmbito dos contratos CARDS e TACIS, o facto de já terem cumprido uma parte substancial, se não a totalidade, das suas obrigações respetivas, e o facto de as medidas impugnadas terem tido o efeito de anular as obrigações da Comissão decorrentes dos contratos, a saber, os pagamentos efetuados à recorrente (16).

66.      Por conseguinte, de acordo com a análise do Tribunal Geral, a segunda condição prevista pela jurisprudência para qualificar um ato adotado num quadro contratual de ato impugnável, na aceção do artigo 263.° TFUE, não estava preenchida, uma vez que as Decisões de recuperação CARDS e TACIS só eram suscetíveis de produzir efeitos que se inscreviam no quadro contratual (17).

b)      Apreciação dos argumentos da Comissão

67.      A Comissão alega, nomeadamente no seu primeiro fundamento, que a fundamentação do Tribunal Geral cria uma jurisprudência nova que consiste em «contratualizar» as suas prerrogativas de poder público. Ao fazê‑lo, subverte o sistema jurídico da União, torna ineficazes as disposições das decisões adotadas pela Comissão, priva‑a das suas prerrogativas de poder público e priva‑a de um instrumento essencial para a defesa dos interesses financeiros da União.

68.      Esta argumentação não pode, contudo, ser aceite.

69.      Com efeito, contrariamente ao que sustenta a Comissão, a fundamentação controvertida do Tribunal Geral constitui uma aplicação correta de princípios bem estabelecidos, nomeadamente pelos Acórdãos Lito e ADR (1). Do mesmo modo, a solução do Tribunal Geral não afeta a competência da Comissão para exercer as suas prerrogativas de poder público, mas apenas a competência jurisdicional para decidir das medidas adotadas a esse título (2).

1)      As decisões de recuperação CARDS e TACIS à luz das condições de admissibilidade dos recursos de anulação de atos adotados num contexto contratual

70.      Como o Tribunal Geral indicou no Acórdão Lito, no caso de um contrato que vincula uma parte recorrente a uma instituição da União, um ato deve preencher uma dupla condição para ser impugnável por recurso de anulação com base no artigo 263.° TFUE: deve não apenas resultar do exercício de prerrogativas de poder público conferidas à instituição contratante na sua qualidade de autoridade administrativa, mas também destinar‑se a produzir efeitos jurídicos vinculativos fora da relação contratual que vincula as partes.

71.      Daqui resulta que, ao invés do que a Comissão sustenta no seu primeiro fundamento, o Tribunal Geral teve razão em considerar que a mera origem extracontratual dos poderes exercidos pela Comissão ao adotar as Decisões de recuperação CARDS e TACIS, mesmo que estivesse demonstrada, não era suficiente para qualificar essas decisões de atos impugnáveis nos termos do artigo 263.° TFUE, uma vez essas decisões não produzem efeitos fora das relações contratuais entre as partes.

72.      Esta conclusão não é posta em causa pelo facto, invocado pela Comissão, nomeadamente no seu primeiro fundamento e na audiência, de que estes poderes lhe foram conferidos enquanto autoridade administrativa para punir irregularidades, na aceção do artigo 4.° do Regulamento PIF e do artigo 103.° do Regulamento Financeiro de 2002, e para proteger o orçamento da União. Do mesmo modo, o facto de a Comissão dispor de um poder discricionário de recuperação dos montantes já pagos, proporcional à gravidade das irregularidades cometidas, não é suficiente para se concluir que as medidas adotadas a este respeito não podem ser qualificadas de medidas que se inscrevem no quadro contratual, para efeitos do seu tratamento contencioso.

73.      É verdade que tais poderes são semelhantes a medidas de natureza «administrativa», que diferem do exercício de direitos e do cumprimento de obrigações contratuais clássicos, como, por exemplo, o pedido de indemnização por má execução do contrato (18). No entanto, isso não significa, no que diz respeito aos contratos das instituições da União, que os atos de execução desses poderes, adotados pela instituição adjudicante, devam ser qualificados de atos impugnáveis, na aceção do artigo 263.° TFUE, se fizerem parte do quadro contratual e não produzirem efeitos jurídicos vinculativos fora dele (19). Não seria compatível com o sistema das vias de recurso instituído pelo direito primário que o exercício desses poderes desse automaticamente lugar à competência aos órgãos jurisdicionais da União ao abrigo daquela disposição.

74.      Como decorre das considerações do Acórdão Lito, reproduzidas no n.° 62 das presentes conclusões, a dupla condição a preencher para que um ato adotado pela União em relação a uma parte contratante possa ser impugnado através de um recurso de anulação decorre do sistema das vias de recurso instituído pelo Tratado FUE. Segundo os artigos 272.° e 274.° deste Tratado, os litígios em que a União seja parte não ficam, por este motivo, subtraídos à competência dos órgãos jurisdicionais nacionais e o juiz da União só é competente para decidir dos litígios decorrentes de um contrato celebrado com a União se este contiver uma cláusula compromissória a favor dos órgãos jurisdicionais da União.

75.      Por conseguinte, tal como o Tribunal de Justiça declarou no n.° 19 do Acórdão Lito e no n.° 64 do Acórdão ADR, se o juiz da União se considerasse competente para se pronunciar, com base no artigo 263.° TFUE, sobre a legalidade de atos que se inscrevem num quadro contratual, correria o risco de esvaziar de sentido o artigo 272.° TFUE. Além disso, nos casos em que o contrato não contivesse uma cláusula compromissória a favor da União, correria o risco de estender a sua competência jurisdicional além dos limites traçados no artigo 274.° TFUE.

76.      É devido a esta repartição de competências jurisdicionais que a definição de ato impugnável, na aceção do artigo 263.° TFUE, está concebida de forma mais restritiva num contexto contratual do que noutros contextos. Assim, quando um ato diz respeito a um cocontratante da União, não basta que produza efeitos jurídicos vinculativos em relação ao seu destinatário para ser impugnável ao abrigo do artigo 263.° TFUE; estes efeitos jurídicos vinculativos devem também ser exteriores à relação contratual que une as partes (20). Esta restrição imposta ao acesso dos cocontratantes da União ao juiz de anulação não afeta o seu direito à ação se dispuserem de um recurso efetivo perante o tribunal do contrato (21).

77.      Os efeitos extracontratuais de uma decisão tomada num contexto contratual existem, por exemplo, quando um cocontratante que violou o contrato é temporariamente excluído de outros contratos públicos e subsídios da União, ou quando esse cocontratante é colocado numa lista negra numa base de dados central das instituições da União (22).

78.      Ora, no caso vertente, a Comissão não demonstrou quais eram os efeitos das Decisões de recuperação CARDS e TACIS fora da relação contratual entre as partes.

79.      Como o Tribunal Geral acertadamente constatou, no essencial, mesmo que se destinem a punir uma irregularidade cometida antes da celebração dos contratos controvertidos, essas decisões têm por efeito obrigar a recorrente a restituir os pagamentos que a União lhe fez a título desses contratos. Por conseguinte, dizem respeito aos direitos e obrigações das partes no âmbito dos referidos contratos. Esses pagamentos só eram, à partida, devidos à recorrente em virtude das estipulações contratuais e não teriam sido efetuados pela União se os contratos ainda não tivessem sido assinados. A obrigação imposta à recorrente de restituir os montantes em causa afeta, portanto, a sua situação enquanto cocontratante da União, mas não lhe impõe obrigações que vão além ou produzam efeitos fora desta relação contratual.

80.      Mesmo que as medidas adotadas pela Comissão não digam respeito à execução do contrato pela recorrente, punem esta última na sua qualidade de cocontratante da União. Além disso, a própria Comissão sublinhou, nomeadamente na audiência nos presentes processos, que o facto de as irregularidades punidas no caso em apreço terem sido cometidas antes da celebração dos contratos não era determinante. Na opinião da Comissão, o elemento decisivo para qualificar as decisões de recuperação controvertidas de atos impugnáveis, na aceção do artigo 263.° TFUE, é o facto de o comportamento punido constituir uma «irregularidade» na aceção do Regulamento PIF e do Regulamento Financeiro de 2002.

81.      Ora, como salientou com razão a recorrente, essa posição é totalmente inconcebível à luz da repartição de competências jurisdicionais estabelecida pelo Tratado. Com efeito, tendo em conta a definição ampla do conceito de «irregularidade» no artigo 1.° do Regulamento PIF, seria impossível distinguir entre irregularidades cuja sanção dá lugar à competência do tribunal da anulação e incumprimentos de obrigações contratuais cuja sanção dá lugar à competência do juiz do contrato. Tal situação seria, além disso, fonte de insegurança jurídica tanto para os cocontratantes da União como para os tribunais nacionais.

82.      Por último, importa observar que as Decisões de recuperação CARDS e TACIS adotadas pela Comissão no caso em apreço são distintas das decisões constitutivas de título executivo, na aceção do artigo 299.° TFUE, em causa no processo ADR, que foram qualificadas de atos impugnáveis, na aceção do artigo 263.° TFUE. Com efeito, como o Tribunal de Justiça declarou, os efeitos e a força vinculativa dessas decisões constitutivas de título executivo (que permitem o recurso direto à execução forçada) não podem decorrer de cláusulas contratuais, mas emanam do artigo 299.° TFUE, lido em conjugação com a disposição do Regulamento Financeiro que constitui a base jurídica para a adoção dessa decisão num caso específico (23).

83.      No caso vertente, é verdade que as decisões de recuperação em causa estabelecem uma obrigação de pagamento, mas não permitem diretamente a execução forçada dessa obrigação, diversamente das decisões constitutivas de título executivo, na aceção do artigo 299.° TFUE. Ora, os efeitos jurídicos extracontratuais destas decisões constitutivas de título executivo consistem no facto de a Comissão estabelecer a exequibilidade de um crédito contratual através de um ato unilateral de poder público que ela própria adotou (24).

84.      Além disso, a execução forçada de uma decisão baseada no artigo 299.° TFUE só pode ser suspensa por força de uma decisão do Tribunal de Justiça, ao passo que os órgãos jurisdicionais nacionais apenas têm competência para fiscalizar a regularidade das medidas de execução. Por conseguinte, uma decisão constitutiva de título executivo, na aceção do artigo 299.° TFUE, deve ser da competência jurisdicional do juiz da União (25). Em contrapartida, no caso em apreço, a Comissão não demonstrou por que razão as decisões de recuperação em causa devem, na sua opinião, ser da competência do juiz da União.

85.      Resulta das considerações anteriores que o segundo e terceiro fundamentos de recurso são inoperantes. Com estes fundamentos, a Com issão alega, em substância, que o Tribunal Geral cometeu um erro ao equiparar as medidas adotadas pela Comissão através das Decisões de recuperação CARDS e TACIS a medidas contratuais, por exemplo como sanção de um vício que afetasse a celebração do contrato, ou «dolo» na aceção do direito belga, ou ainda como anulação retroativa dos efeitos vinculativos do contrato.

86.      Ora, mesmo que o Tribunal Geral tenha cometido um erro ao analisar essas medidas à luz do direito contratual, a verdade é que aplicou corretamente as condições estabelecidas pela jurisprudência para analisar o caráter impugnável ou não, na aceção do artigo 263.° TFUE, de atos adotados pela Comissão contra os seus cocontratantes. Por conseguinte, o segundo e terceiro fundamentos de recurso devem ser julgados improcedentes, sem que seja necessário examinar os argumentos específicos invocados pela Comissão no âmbito destes fundamentos.

2)      As Decisões de recuperação CARDS e TACIS e o «duplo papel» da Comissão em matéria contratual

87.      Contrariamente ao que sustenta a Comissão, a solução adotada pelo Tribunal Geral não lhe retira a possibilidade de exercer os poderes de punir irregularidades que lhe são conferidos pelo Regulamento PIF e pelos Regulamentos Financeiros de 2002 e de 2018. Com efeito, o Tribunal Geral não se pronunciou, como a Comissão parece insinuar, sobre a competência desta para adotar as Decisões de recuperação CARDS e TACIS, mas apenas sobre a sua competência jurisdicional para conhecer dos recursos interpostos contra essas decisões.

88.      Assim, o Tribunal Geral nem sequer levantou a questão de saber se a Comissão tinha o direito de adotar as Decisões de recuperação CARDS e TACIS apenas com base no artigo 4.° do Regulamento PIF e no artigo 103.° do Regulamento Financeiro de 2002, ou se era necessário que as disposições pertinentes destes regulamentos também constassem das cláusulas contratuais, como aconteceu no caso vertente (26). Segundo o Tribunal Geral, os referidos regulamentos são, de facto, diretamente aplicáveis aos contratos controvertidos; no entanto, considerou que, de qualquer modo, no caso em apreço, as disposições em causa destes mesmos regulamentos foram igualmente reproduzidas nas cláusulas dos referidos contratos (27). Nestas condições, não é necessário decidir, no âmbito dos presentes processos, a questão de saber se a Comissão pode, apesar de tudo, exercer os poderes que lhe são conferidos pelo Regulamento PIF e pelos Regulamentos Financeiros de 2002 e de 2018 num caso em que a possibilidade de recorrer a esses poderes não é indicada nas cláusulas contratuais.

89.      Tal como a própria Comissão explicou na audiência, quando celebra contratos, assume, por assim dizer, um «duplo papel»: embora esteja contratualmente vinculada, não prossegue um interesse próprio como um cocontratante privado, mas exerce os seus poderes para realizar as suas missões, incluindo a execução de políticas e a proteção dos interesses financeiros da União. Por conseguinte, mesmo enquanto cocontratante, a Comissão não se descarta dos direitos e obrigações específicos que lhe são próprios enquanto poder público, pelo que os seus contratos estão sujeitos a um regime diferente do regime dos contratos entre cocontratantes privados. Isto ainda é mais verdade quando o legislador comunitário lhe conferiu, através de disposições de direito derivado, poderes de ação em relação aos seus cocontratantes, como os que foram aplicados no caso em apreço (28).

90.      Todavia, tal não significa que as medidas adotadas ao abrigo desses poderes sejam da competência do juiz da anulação se os efeitos dessas medidas se situarem dentro da relação contratual que vincula as partes. Caso contrário, isso seria contrário à repartição de competências jurisdicionais em matéria de contratos celebrados pela União, estabelecida pelo Tratado FUE, como explicado nos n.os 70 a 76, supra.

91.      Além disso, contrariamente ao que alega a Comissão, a solução adotada pelo Tribunal Geral não priva de eficácia os atos que ela adota para punir as irregularidades cometidas pelos seus cocontratantes, nem a obriga a recorrer aos tribunais para exercer os seus poderes, impedindo‑a assim de proteger os interesses financeiros da União. Por conseguinte, o Tribunal Geral não pôs, de modo algum, em causa o facto de que as decisões unilaterais de rescisão dos contratos e de recuperação dos montantes pagos (no sentido em que estas últimas estabelecem uma obrigação de pagamento) produzem efeitos a partir do momento em que são adotadas, independentemente de qualquer intervenção do juiz do contrato. A única coisa para a qual a Comissão tem de passar pelo tribunal do contrato é, em aplicação da jurisprudência ADR, a obtenção de um título executivo para a recuperação desses montantes, no caso de o contrato não conter uma cláusula compromissória a favor do juiz da União. Ora, isso decorre da repartição de competências jurisdicionais em matéria contratual estabelecida pelo direito primário, como acaba de ser explicado.

92.      Por último, na audiência dos presentes processos, foi feita referência ao direito administrativo francês, que apresenta, nomeadamente em matéria de contratos públicos, certas semelhanças com o direito administrativo das instituições da União. Ora, uma solução que consista em admitir a existência de prerrogativas por parte da administração contratante, ao mesmo tempo que sujeita as medidas adotadas no exercício desses poderes à competência do juiz do contrato, e não do juiz da anulação, corresponde igualmente à solução adotada no direito administrativo francês (29).

3.      Conclusão sobre os processos C160/22 P e C161/22 P

93.      Resulta das considerações precedentes que os argumentos invocados pela Comissão para demonstrar que o Tribunal Geral cometeu erros nos processos T‑795/19 e T‑796/19 não podem ser aceites. Por conseguinte, deve ser negado provimento aos recursos nos processos C‑160/22 P e C‑161/22 P.

B.      Processo C597/22 P

94.      Tal como foi acima indicado (30), o processo C‑597/22 P tem por objeto decisões constitutivas de títulos executivos, na aceção do artigo 299.° TFUE, adotadas pela Comissão contra a recorrente, a fim de recuperar os montantes reclamados pelas Decisões de recuperação CARDS e TACIS.

95.      No Acórdão T‑408/21, o Tribunal Geral anulou estas decisões constitutivas de título executivo em aplicação dos princípios decorrentes do Acórdão ADR. Tal como o Tribunal Geral recordou (31), neste último acórdão, o Tribunal de Justiça considerou que a Comissão não podia adotar uma decisão constitutiva de título executivo no âmbito de relações contratuais se estas não incluíssem uma cláusula compromissória a favor do juiz da União e estivessem, portanto, sujeitas à competência jurisdicional dos tribunais de um Estado‑Membro.

96.      Assim, decorria da solução adotada pelo Tribunal Geral nos Acórdãos T‑795/19 e T‑796/19, segundo a qual as Decisões de recuperação CARDS e TACIS tinham natureza contratual, que a Comissão não dispunha do poder de adotar decisões constitutivas de título executivo para a sua execução, uma vez que os contratos CARDS e TACIS não continham uma cláusula compromissória a favor do juiz da União.

97.      No seu recurso para o Tribunal de Justiça no processo C‑597/22 P, a Comissão alega que essa conclusão retirada pelo Tribunal Geral no Acórdão T‑408/21 é errada, uma vez que a conclusão do Tribunal Geral quanto à natureza contratual das Decisões de recuperação CARDS e TACIS nos Acórdãos T‑795/19 e T‑796/19 é, ela própria, errada.

98.      Resulta daí, como a própria Comissão reconhece, que, se o Tribunal de Justiça confirmar a natureza contratual das Decisões de recuperação CARDS e TACIS, isso priva a Comissão do poder de adotar as Decisões constitutivas de título executivo CARDS e TACIS, e o seu recurso no processo C‑597/22 P, de fundamento.

99.      De acordo com a minha proposta nos processos C‑160/22 P e C‑161/22 P, que consiste em confirmar a solução adotada pelo Tribunal Geral nos Acórdãos T‑795/19 e T‑796/19, proponho, por conseguinte, que o Tribunal de Justiça confirme igualmente a solução adotada pelo Tribunal Geral no Acórdão T‑408/21 e, consequentemente, negue provimento ao recurso no processo C‑597/22 P.

C.      Conclusão intercalar

100. Resulta das considerações precedentes que deve ser negado provimento aos recursos nos processos apensos C‑160/22 P e C‑161/22 P e ao recurso no processo C‑597/22 P.

VI.    Despesas

101. Em conformidade com o artigo 184.°, n.° 2, do seu Regulamento de Processo, se o recurso for julgado improcedente, o Tribunal de Justiça decidirá igualmente sobre as despesas.

102. Nos termos do artigo 138.°, n.° 1, deste regulamento, aplicável aos processos de recursos de decisões do Tribunal Geral por força do artigo 184.°, n.° 1, do referido regulamento, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

103. Uma vez que a Comissão foi vencida, deve ser condenada nas despesas, tal como requerido pela recorrente.

VII. Conclusão

104. Atendendo às considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que profira a seguinte decisão nos processos apensos C‑160/22 P e C‑161/22 P e no processo C‑597/22 P:

1)      É negado provimento aos recursos.

2)      A Comissão Europeia é condenada nas despesas.


1      Língua original: francês.


2      Acórdão de 16 de julho de 2020 (C‑584/17 P, EU:C:2020:576, n.° 73).


3      JO 1995, L 312, p. 1.


4      JO 2002, L 248, p. 1.


5      JO 2006, L 390, p. 1.


6      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de julho de 2018, relativo às disposições financeiras aplicáveis ao orçamento geral da União, que altera os Regulamentos (UE) n.° 1296/2013, (UE) n.° 1301/2013, (UE) n.° 1303/2013, (UE) n.° 1304/2013, (UE) n.° 1309/2013, (UE) n.° 1316/2013, (UE) n.° 223/2014, (UE) n.° 283/2014 e a Decisão n.° 541/2014/UE, e revoga o Regulamento (UE, Euratom) n.° 966/2012 (JO 2018, L 193, p. 1).


7      Por um lado, trata‑se do recurso no processo C‑770/23 P, Comissão/HB, interposto do Acórdão de 4 de outubro de 2023, HB/Comissão (T‑444/22, EU:T:2023:604), que tem por objeto uma decisão pela qual a Comissão procedeu à compensação entre o crédito detido pela recorrente sobre ela, a título das despesas a que a Comissão foi condenada a pagar pelos Acórdãos T‑795/19 e T‑796/19 e o crédito que a Comissão declara deter contra a recorrente a título do contrato CARDS. Por outro lado, trata‑se dos recursos nos processos C‑721/22 P, Comissão/BP, dirigido contra o Acórdão de 14 de setembro de 2022, PB/Comissão (T‑775/20, EU:T:2022:542), e C‑768/23 P, dirigido contra o Acórdão de 4 de outubro de 2023, PB/Comissão (T‑407/21, EU:T:2023:603), que dizem respeito a uma decisão pela qual a Comissão declarou o administrador da HB solidariamente responsável pelo pagamento dos montantes reclamados a título dos contratos TACIS e CARDS e a uma decisão constitutiva de título executivo adotada contra ele para a recuperação desses montantes.


8      V. n.os 19 e 27 das presentes conclusões.


9      V. n.os 36 e 37 das presentes conclusões.


10      V., sobre esta condição, Acórdão de 19 de outubro de 1995, Rendo e o./Comissão (C‑19/93, EU:C:1995:339, n.° 13).


11      Acórdão de 9 de setembro de 2015 (C‑506/13 P, EU:C:2015:562, n.os 19 e 20); v., igualmente, Acórdão ADR (n.os 64 e 65).


12      Acórdãos T‑795/19 (n.os 55 e 56) e T‑796/19 (n.os 50 e 51).


13      Acórdãos T‑795/19 (n.° 75) e T‑796/19 (n.° 70).


14      De acordo com as considerações da Comissão expostas nos considerandos 19 a 21 da Decisão de recuperação do CARDS e nos considerandos 13 a 15 da Decisão de recuperação do TACIS, o artigo 103.° do Regulamento Financeiro de 2002, aplicável quando o comportamento impugnado ocorreu, é relevante no que diz respeito ao poder da Comissão de recuperar os montantes pagos em resultado das irregularidades cometidas. Todavia, na medida em que o Regulamento Financeiro de 2018, aplicável no momento da adoção das Decisões de recuperação CARDS e TACIS, contém, em substância, regras idênticas, não há necessidade de examinar se esta interpretação é correta.


15      Acórdãos T‑795/19 (n.° 76) e T‑796/19 (n.° 71).


16      Acórdãos T‑795/19 (n.os 71, 72 e 80) e T‑796/19 (n.os 66, 67 e 75).


17      Acórdãos T‑795/19 (n.° 89) e T‑796/19 (n.° 86).


18      V., sobre a existência desses poderes no regime dos contratos da União, igualmente, as minhas Conclusões no processo ADR Center/Comissão (C‑584/17 P, EU:C:2019:941, n.os 84, 127 e 154).


19      V., neste sentido, Acórdãos de 10 de abril de 2013, GRP Security/Tribunal de Contas (T‑87/11, EU:T:2013:161, n.os 16 e 30), e de 24 de fevereiro de 2021, Universität Koblenz‑Landau/EACEA (T‑108/18, EU:T:2021:104, n.os 50 a 59), confirmado pelo Acórdão de 22 de dezembro de 2022, Universität Koblenz‑Landau/EACEA (C‑288/21 P, EU:C:2022:1027).


20      V., sobre este ponto, as minhas Conclusões no processo ADR Center/Comissão (C‑584/17 P, EU:C:2019:941, n.° 150 e referências aí citadas).


21      Sobre este ponto, v. Acórdão ADR (n.os 81 a 89) e as minhas Conclusões no processo ADR Center/Comissão (C‑584/17 P, EU:C:2019:941, n.os 137 a 158).


22      V. as minhas Conclusões no processo ADR Center/Comissão (C‑584/17 P, EU:C:2019:941, n.° 98 e jurisprudência aí referida).


23      Acórdão ADR (n.os 69 a 71); v., igualmente, as minhas Conclusões no processo ADR Center/Comissão (C‑584/17 P, EU:C:2019:941, n.os 97 a 104).


24      V. as minhas Conclusões no processo ADR Center/Comissão (C‑584/17 P, EU:C:2019:941, n.° 103).


25      V. as minhas Conclusões no processo ADR Center/Comissão (C‑584/17 P, EU:C:2019:941, n.° 49).


26      V. n.os 19 e 27 das presentes conclusões.


27      Acórdãos T‑795/19 (n.os 77 e 81), e T‑796/19 (n.os 72 e 77).


28      V. n.° 73 das presentes conclusões.


29      V., a este respeito, Wachsmann, P., «La recevabilité du recours pour excès de pouvoir à l'encontre des contrats – Pour le centenaire de l'arrêt Martin», Revue française de droit administratif (RFDA), 1/2006, pp. 24 e segs: «[Q]uanto aos atos autónomos posteriores à celebração do contrato, a teoria dos atos autónomos é essencialmente acessível a terceiros, devendo as partes limitar‑se a recorrer ao juiz do contrato e, em caso de desrespeito desta obrigação, confrontar‑se com a exceção de litispendência. O Acórdão da Assemblée (Assembleia [do Conselho de Estado, em formação jurisdicional], França) de 2 de fevereiro de 1987, Société TV 6, indica assim claramente, no que respeita à rescisão, que se deve distinguir entre o caso dos terceiros, que têm o direito de instaurar uma ação por ilegalidade, desde que o seu interesse em agir fique demonstrado, e o da sociedade concessionária, que dirige o seu pedido ao juiz do contrato. A “definição objetiva do ato autónomo” [...] só se aplica, portanto, a montante da celebração do contrato e dificilmente se estende às medidas de execução, para as quais a distinção entre as partes e os terceiros se mantém». V., igualmente, sobre desenvolvimentos mais recentes, Hoepffner, H., Droit des contrats administratifs, Dalloz, Paris, 3ª edição, 2022, p. 899, n.os 1013 e segs. p. 912, n.os 1033 e segs., bem como Conseil d'État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França), comentário ao Acórdão de 28 de dezembro de 2009, Commune de Béziers, https://www.conseil‑etat.fr/decisions‑de‑justice/jurisprudence/les‑grandes‑decisions‑depuis‑1873/conseil‑d‑etat‑28‑decembre‑2009‑commune‑de‑beziers.


30      V. n.os 39 e seguintes das presentes conclusões.


31      Acórdão T‑408/21 (n.° 50).