Language of document : ECLI:EU:T:2024:110

Processos apensos T29/14 e T31/14

Telefónica Gestión Integral de Edificios y Servicios, SL, anteriormente Taetel, SL
e
Banco Santander, SA, anteriormente Banco Popular Español, SA

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Oitava Secção Alargada) de 21 de fevereiro de 2024

«Auxílios de Estado — Auxílio concedido pelas autoridades espanholas a favor de certos agrupamentos de interesse económico (AIE) e dos respetivos investidores — Regime fiscal aplicável a certos acordos de locação financeira para a aquisição de navios (Sistema de arrendamento fiscal espanhol) — Decisão que declara o auxílio em parte incompatível com o mercado interno e ordena parcialmente a sua recuperação — Extinção parcial do objeto do litígio — Não conhecimento parcial do mérito — Novo auxílio — Recuperação — Cláusulas contratuais que protegem os beneficiários contra a recuperação de um auxílio de Estado ilegal e incompatível com o mercado interno — Repartição das competências entre a Comissão e as autoridades nacionais»

1.      Recurso de anulação — Recurso de uma decisão da Comissão em matéria de auxílios de Estado — Interesse em agir — Anulação parcial da decisão recorrida no âmbito de outro recurso interposto desta decisão — Recurso destinado à anulação das partes anuladas da decisão recorrida — Recurso que ficou parcialmente sem objeto — Não conhecimento do mérito

(Artigo 263.° TFUE)

(cf. n.os 22‑34, 41‑49)

2.      Recurso de anulação — Recurso de uma decisão da Comissão em matéria de auxílios de Estado — Interesse em agir — Anulação parcial da decisão recorrida no âmbito de outro recurso interposto desta decisão — Recurso destinado à anulação das partes anuladas da decisão recorrida — Manutenção do interesse em agir

(Artigo 263.° TFUE)

(cf. n.os 50, 51, 53‑61)

3.      Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Medidas fiscais a favor de certos agrupamentos de interesse económico e dos respetivos investidores — Regime fiscal aplicável a certos acordos de locação financeira para a aquisição de navios — Regime fiscal constituído por várias medidas ligadas de facto e de direito — Apreciação separada das referidas medidas — Inadmissibilidade

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 67‑71)

4.      Auxílios concedidos pelos Estados — Recuperação de um auxílio ilegal — Restabelecimento da situação anterior — Alcance — Cláusulas contratuais que preveem a transferência do encargo da recuperação de um auxílio ilegal dos beneficiários desse auxílio para outras pessoas — Comissão que proíbe a transferência do encargo da recuperação e ordena a recuperação do auxílio ilegal junto dos beneficiários — Violação da repartição das competências entre a Comissão e os EstadosMembros — Violação da liberdade de empresa e do direito de propriedade — Inexistência

(Artigos 107.° e 108.° TFUE)

(cf. n.os 85‑105, 110, 111, 114‑123)

Resumo

Com o presente acórdão, o Tribunal Geral nega provimento aos recursos de anulação interpostos respetivamente pela Telefónica Gestión Integral de Edificios y Servicios, SL, e pela Banco Santander, SA, da decisão através da qual a Comissão Europeia qualificou de auxílios de Estado várias medidas fiscais que compõe o «Sistema de arrendamento fiscal espanhol» (a seguir «RELF») aplicável a certos acordos de locação financeira para a aquisição de navios (1). Para o efeito, analisa o eventual desaparecimento do objeto do litígio na sequência da anulação parcial da decisão recorrida pelo Acórdão do Tribunal de Justiça Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P) (2). O Tribunal Geral pronuncia‑se também sobre a questão inédita de saber se a Comissão excedeu as suas competências em matéria de auxílios de Estado ao rejeitar, na decisão recorrida, as cláusulas de indemnização que constam dos contratos celebrados entre particulares que protegem os beneficiários contra a recuperação de um auxílio de Estado ilegal e incompatível com o mercado interno (3).

No caso em apreço, foram apresentadas à Comissão várias denúncias relativas à aplicação do SAF a certos acordos de locação financeira, na medida em que este regime permitia às companhias de navegação beneficiarem de uma redução de preço de 20 % a 30 % para a compra de navios construídos por estaleiros navais espanhóis. Segundo a Comissão, o objetivo do SAF era conferir benefícios fiscais a agrupamentos de interesse económico (a seguir «AIE») e aos investidores que neles participavam, os quais transferiam em seguida uma parte desses benefícios para as companhias de navegação que adquiriam um navio novo.

Na decisão recorrida, adotada em julho de 2013, a Comissão considerou que três das cinco medidas fiscais que compunham o SAF constituíam um auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.°, n.° 1, TFUE, assumindo a forma de uma vantagem fiscal seletiva, parcialmente incompatível com o mercado interno. Tendo em conta que o auxílio em causa tinha sido executado desde 1 de janeiro de 2002 em violação da obrigação de notificação (4), a Comissão notificou as autoridades nacionais para o recuperarem junto dos investidores, concretamente os membros dos AIE (a seguir «ordem de recuperação»).

Foram interpostos vários recursos de anulação da decisão recorrida. Os recursos interpostos pela Telefónica Gestión Integral de Edificios y Servicios e pelo Banco Santander foram suspensos até à resolução definitiva dos recursos interpostos pelo Reino de Espanha, pela Lico Leasing, SA, e pela Pequeños y Medianos Astilleros Sociedad de Reconversión, SA (a seguir «PYMAR»). Assim, no seu Acórdão Espanha e o./Comissão (5), o Tribunal Geral anulou a decisão recorrida. A Comissão interpôs recurso deste acórdão, que o Tribunal de Justiça anulou pelo seu Acórdão Comissão/Espanha e o. (C‑128/16 P) (6), e remeteu os processos ao Tribunal Geral.

Pelo seu acórdão proferido após a remessa do Acórdão Espanha e o./Comissão (7), o Tribunal Geral negou provimento aos recursos interpostos pelo Reino de Espanha, pela Lico Leasing e pela PYMAR. Nesse acórdão, o Tribunal Geral julgou improcedente o fundamento destinado a contestar a seletividade do SAF, considerando, em substância, que a existência de um poder discricionário alargado da Administração Fiscal para autorizar a amortização antecipada era suficiente para admitir a seletividade do SAF no seu conjunto. Julgou igualmente improcedentes, nomeadamente, os fundamentos relativos à violação dos princípios aplicáveis à recuperação do auxílio, a saber, o princípio da proteção da confiança legítima e da segurança jurídica. Quanto a este último aspeto, em particular, considerou que a Comissão não tinha cometido um erro de direito ao ordenar a recuperação da totalidade do auxílio em causa junto dos investidores dos AIE, apesar de uma parte da vantagem fiscal obtida ter sido transferida para terceiros, a saber, companhias de navegação.

Chamado a conhecer de recursos distintos deste acórdão, o Tribunal de Justiça, pelo seu Acórdão Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P) (8), julgou procedente o fundamento do Reino de Espanha relativo à falta de fundamentação do acórdão recorrido no que respeita à recuperação do auxílio em causa e negou provimento aos recursos quanto ao restante. Deste modo, anulando parcialmente o referido acórdão e considerando estar em condições de decidir definitivamente a parte dos recursos que falta dirimir, o Tribunal de Justiça declarou, no final da sua análise, que havia que anular a decisão recorrida na parte em que designava os AIE e os respetivos investidores como únicos beneficiários do auxílio em causa e na parte em que ordenava a recuperação da totalidade do montante do auxílio em causa unicamente junto dos investidores dos AIE.

Apreciação do Tribunal Geral

Debruçando‑se, a título preliminar, sobre a questão de saber se, na sequência do Acórdão do Tribunal de Justiça Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P) que anulou parcialmente a decisão recorrida, os recursos interpostos pelas recorrentes não ficaram sem objeto, o Tribunal Geral recorda que o objeto do litígio deve perdurar até à prolação da decisão jurisdicional, sob pena de não conhecimento do mérito da causa, o que pressupõe que o recurso possa conferir um benefício à parte que o interpôs.

Assim, no âmbito de um recurso interposto ao abrigo do artigo 263.° TFUE, a anulação do ato recorrido no decurso da instância priva do seu objeto o recurso no que respeita aos pedidos de anulação da referida decisão. Com efeito, com a anulação desse ato, a recorrente obtém o único resultado que o seu recurso lhe pode trazer e, por isso, já não há matéria para decisão do juiz da União Europeia. O mesmo acontece quando a anulação parcial do ato recorrido tenha dado à recorrente o resultado que pretendia por uma parte do seu recurso, de modo que já não há que decidir sobre essa parte.

No caso em apreço, o Tribunal Geral constata que os recursos interpostos pelas recorrentes ficaram sem objeto na medida em que visam contestar a identificação dos AIE e dos seus investidores como sendo os únicos beneficiários do SAF e dos referidos investidores como sendo as únicas empresas objeto da ordem de recuperação, bem como a fundamentação da decisão recorrida a esse respeito, e o método descrito na decisão recorrida para calcular o montante que deve ser reembolsado pelos investidores dos AIE.

Com efeito, por um lado, o Acórdão do Tribunal de Justiça, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P), já anulou a decisão recorrida na parte em que designa os AIE e os seus investidores como sendo os únicos beneficiários do SAF e ordena a recuperação da totalidade do montante do auxílio em causa junto dos referidos investidores. Além disso, as recorrentes não demonstraram que a sua argumentação que contesta a exclusão dos estaleiros navais dos beneficiários do SAF e das empresas visadas pela ordem de recuperação, admitindo‑a fundada, era suscetível de lhes conferir um benefício superior ao que retiram do acórdão do Tribunal de Justiça.

Por outro lado, o método descrito nessa decisão para calcular o montante que deve ser reembolsado pelos investidores, baseando‑se na premissa, agora errada, de que a totalidade da vantagem deve ser recuperada apenas junto dos investidores dos AIE, tornou‑se obsoleto na sequência desse acórdão.

No entanto, continua a ser necessário decidir sobre os pedidos das recorrentes que têm por objeto a anulação de partes da decisão recorrida que não foram anuladas pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P). Com efeito, esta decisão continua válida, uma vez que declara ilegal e incompatível com o mercado interno o auxílio que beneficia, pelo menos, os AIE e os seus investidores e obriga o Reino de Espanha a recuperar esse auxílio, ou parte dele, junto destes últimos. Além disso, a circunstância de, para o cálculo dos montantes a recuperar, o método descrito na decisão recorrida dever ser alterado à luz do referido acórdão em nada altera o facto de essa obrigação de recuperação persistir enquanto tal.

A este respeito, em primeiro lugar, o Tribunal Geral julga improcedente o fundamento relativo à qualificação errada das medidas fiscais que constituem o SAF, tomadas individualmente, como auxílios novos.

Assim, os argumentos das recorrentes que visam contestar a qualificação dessas medidas fiscais como auxílios novos, o seu caráter seletivo e a existência de uma vantagem baseiam‑se na premissa errada de que as referidas medidas devem ser apreciadas separadamente, à luz do artigo 107.° TFUE, e não tendo em conta o SAF no seu conjunto.

Com efeito, estas medidas fiscais estão juridicamente ligadas, em substância, porque a amortização antecipada estava sujeita à obtenção de uma autorização pelas autoridades fiscais, e de facto, uma vez que a autorização administrativa para a amortização antecipada só era concedida no contexto de contratos de locação financeira de navios elegíveis para o regime do imposto sobre a arqueação. Assim, foi devido a essa ligação que o Tribunal Geral declarou, no seu Acórdão Espanha e o./Comissão (T‑515/13 RENV e T‑719/13 RENV), que, tendo em conta que uma das medidas que permite beneficiar do SAF no seu conjunto era seletiva, a saber, a autorização da amortização antecipada, a Comissão tinha considerado acertadamente, na decisão recorrida, que o sistema era seletivo no seu conjunto. No Acórdão Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P), o Tribunal de Justiça confirmou esta conclusão, bem como, implicitamente, a necessidade de avaliar o SAF no seu conjunto como um regime de auxílios.

Em segundo lugar, o Tribunal Geral julga improcedente o fundamento segundo o qual a Comissão teria excedido as suas competências em matéria de auxílios de Estado ao proibir as cláusulas de indemnização que constam dos contratos celebrados entre particulares que protegem os beneficiários contra a recuperação de um auxílio de Estado ilegal e incompatível.

A este respeito, o Tribunal Geral constata que a precisão feita no artigo 4.°, n.° 1, do dispositivo da decisão recorrida, segundo a qual o Reino de Espanha deve recuperar o auxílio junto dos beneficiários «sem a possibilidade de [estes] transferirem o ónus da recuperação para as outras pessoas», está redigida em termos amplos e não se limita expressamente às cláusulas de indemnização. Além disso, essas cláusulas não visam especificamente a hipótese da recuperação de um auxílio de Estado ilegal e incompatível com o mercado interno, mas, de forma mais geral, as consequências da possibilidade de as autoridades competentes não aprovarem as vantagens fiscais decorrentes do SAF ou de, na sequência da sua aprovação, a sua validade ser posta em causa.

No entanto, em determinados considerandos da decisão recorrida, a Comissão identifica, de forma mais concreta, aspetos específicos das cláusulas de indemnização que se revelam, em seu entender, problemáticas no contexto específico da recuperação dos auxílios ilegais e incompatíveis com o mercado interno. Assim, especifica que o objetivo da recuperação, que visa restabelecer a situação anterior, e nomeadamente eliminar o falseamento da concorrência provocado pela vantagem competitiva conferida pelo auxílio ilegal e incompatível com o mercado interno, estaria irremediavelmente comprometido se as partes privadas pudessem, mediante cláusulas contratuais, alterar os efeitos das decisões de recuperação adotadas pela Comissão. Daqui decorre que a precisão feita no artigo 4.°, n.° 1, do dispositivo da decisão recorrida deve ser entendida como referindo‑se apenas às cláusulas de indemnização na medida em que podem ser interpretadas no sentido de que protegem os beneficiários de um auxílio ilegal e incompatível com o mercado interno contra a recuperação deste.

Por outro lado, a Comissão não declarou a nulidade dessas cláusulas de indemnização, uma vez que essa competência cabe, sendo caso disso, aos órgãos jurisdicionais nacionais. Com efeito, a precisão feita pela Comissão na decisão recorrida visa apenas clarificar o alcance da obrigação que incumbe ao Reino de Espanha de recuperar o auxílio junto dos beneficiários do mesmo para que a situação anterior ao pagamento do referido auxílio seja restabelecida.

Daqui resulta que a Comissão não excedeu as competências que lhe são conferidas em matéria de auxílios de Estado (9). Com efeito, embora seja verdade que a recuperação é efetuada de acordo com as formalidades do direito nacional do Estado‑Membro em causa (10), não é menos verdade que estas últimas devem permitir a execução imediata e efetiva da decisão da Comissão. Por conseguinte, nada se opõe a que a Comissão especifique, na decisão recorrida, que o Reino de Espanha deve proceder de modo que os beneficiários reembolsem os montantes dos auxílios de que beneficiaram efetivamente, sem poder transferir o encargo da recuperação desses montantes para outra parte no contrato. Tanto assim é que essas cláusulas de indemnização estavam previstas nos contratos‑quadro celebrados entre os diversos participantes do SAF, uma vez que esses contratos eram tidos em conta pela Administração Fiscal para autorizar a amortização antecipada.


1      Decisão 2014/200/UE da Comissão, de 17 de julho de 2013, relativa ao auxílio estatal SA.21233 C/2011 (ex NN/11, ex CP 137/06) concedido por Espanha ‑ Regime fiscal aplicável a certos acordos de locação financeira também conhecido por «Sistema de arrendamento fiscal espanhol» (JO 2014, L 114, p. 1).


2      Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60).


3      Por força das cláusulas de indemnização que figuram nos contratos celebrados entre particulares, os investidores podiam reclamar junto dos estaleiros navais, os montantes que tiveram de reembolsar ao Estado.


4      Obrigação prevista no artigo 108.°, n.° 3, TFUE.


5      Acórdão de 17 de dezembro de 2015, Espanha e o./Comissão (T‑515/13 e T‑719/13, EU:T:2015:1004).


6      Acórdão de 25 de julho de 2018, Comissão/Espanha e o. (C‑128/16 P, EU:T:2018:591).


7      Acórdão de 23 de setembro de 2020, Espanha e o./Comissão (T‑515/13 RENV e T‑719/13 RENV, EU:T:2020:434).


8      Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60).


9      V. artigo 14.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 659/1999 do Conselho, de 22 de março de 1999, que estabelece as regras de execução do artigo 93.° do Tratado CE (JO 1999, L 83, p. 1).


10      Artigo 14.°, n.° 3, do Regulamento n.° 659/1999.